Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ALBERTINA PEDROSO | ||
Descritores: | SEGURO AGENTE DE EXECUÇÃO RESPONSABILIDADE CIVIL PRESCRIÇÃO INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 10/08/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I - A seguradora para quem foi contratualmente transferido o risco decorrente de eventual responsabilidade civil extracontratual do agente de execução, caso se encontre prescrito o direito do terceiro lesado pedir a indemnização perante o segurado, pode, com êxito, deduzir a excepção de prescrição da obrigação de indemnizar, porque a sua relação com o lesado não subsiste sem a relação do segurado com o lesado, estando-lhe subordinada. II - Porém, se a responsabilidade civil do lesante se mantiver, por haver sido interrompida a prescrição, como a responsabilidade da seguradora deriva do contrato de seguro celebrado com o segurado, mediante o qual se comprometeu a substituir-se a este no pagamento de qualquer indemnização por si devida a terceiros, então, porque a intervenção da seguradora não se estriba na responsabilidade civil extracontratual mas sim na responsabilidade contratual emergente do contrato de seguro, o efeito interruptivo produzido pela citação do lesante na relação principal estende-se à relação subordinada constituída por via do contrato de seguro. III - Verificando-se a interrupção do decurso do prazo prescricional relativamente ao lesante, por mor do funcionamento da salvaguarda do exercício atempado do direito potestativo dos lesados, mercê da entrada em juízo da acção mais de cinco dias antes do decurso daquele, de harmonia com o previsto no n.º 2 do artigo 323.º do CC, o efeito interruptivo produzido na relação principal estende-se à relação subordinada existente entre seguradora e segurado, donde se conclui que a Interveniente não podia ter invocado, com êxito, a excepção de prescrição do direito potestativo que os AA. pretendem exercer, a seu favor, mantendo-se na lide o seu segurado, lesante. (sumário da relatora). | ||
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Decisão Texto Integral: | Tribunal Judicial da Comarca de Beja [1] ***** Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:I - RELATÓRIO 1. M…, A…, e J…, na qualidade de únicos herdeiros de A…, instauraram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra os Réus V…, L…, e P…, pedindo a condenação destes no pagamento da quantia de 47.744,50 €, acrescida de juros legais a contar da citação até efectivo e integral pagamento. Em fundamento da sua pretensão alegaram que o falecido A… era proprietário de um tractor agrícola, que foi penhorado pelo 3.º réu, agente de execução, no âmbito de um processo executivo para pagamento de quantia certa, instaurado pelo réu V… contra J…, filho do referido A…, pelo que este e, após a sua morte, a herança, deixaram de auferir os proventos que advinham dos serviços prestados com o referido tractor. 2. Os RR. contestaram, por impugnação, e por excepção, invocando a incompetência material e a ilegitimidade dos 1.º e 2.º RR., tendo o 3.º R. deduzido incidente de intervenção de terceiros, visando a intervenção como parte principal ou subsidiariamente como parte acessória, da C… Seguros, S.A., invocando que: «Impõe o art. 123º, nº1 da Lei n. 154/2015, de 14 de Setembro, que os AE devem subscrever um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional de valor não inferior a 100.000,00 €. Mais estatuindo o nº6 deste preceito legal, que os custos do referido seguro de responsabilidade civil podem ser suportados, total ou parcialmente, pela Ordem, relativamente aos associados que não tenham dividas de qualquer natureza para com aquela. A OSAE celebrou contrato de seguro com a O…Seguros S.A., NIPC 501 836 918, com sede na Avª … Porto Salvo, (apólice nºRC78572401) tendo por objecto garantir a responsabilidade extracontratual que, ao abrigo da lei, seja imputada ao segurado ou no exercício da actividade de AE, cobrindo as indemnizações legalmente exigíveis em consequência de danos causados a clientes ou a terceiros resultantes dos actos ou omissões cometidos durante o exercício da referida actividade. Apólice vigente à data dos factos geradores da responsabilidade profissional alegada pelos AA.. O 3º réu não tinha à data, dívidas à sua ordem profissional. Donde, a responsabilidade civil profissional do 3º réu está transferida para a chamada. Importa assim chamar à demanda a O… Seguros S.A., como parte principal, ou caso assim se não entenda, como parte acessória do 3º réu». 3. Por decisão proferida em 25-06-2019, foi declarado que «o incidente de intervenção principal provocada é o incidente adequado para o 3.º réu assegurar a presença na causa da seguradora para a qual se encontrava transferida a responsabilidade civil decorrente da sua actividade profissional». Citada, a Seguradora deduziu contestação, alegando a prescrição do direito invocado pelos Autores, considerando que estando em causa direito fundado em responsabilidade extracontratual, será aplicável o prazo prescricional de três anos, pelo que, tendo o facto ilícito em causa (penhora do tractor) ocorrido em 25 de Janeiro de 2016, sendo também esse o dia em que os Autores tiveram conhecimento do mesmo, e que a Interveniente apenas foi citada em 02-07-2019, deve ser declarada a prescrição do direito contra si exercido e a sua absolvição do pedido. 4. Autores e Réus, responderam, alegando, em suma, que a Seguradora não pode invocar de forma autónoma a prescrição e que a obrigação principal se reporta ao Segurado. 5. Na audiência prévia, foi julgada procedente a excepção peremptória deduzida pela Interveniente O… Seguros, S.A., e determinada a sua absolvição do pedido. 6. Inconformado, o 3.º Réu, agente de execução, apelou, finalizando a respectiva minuta recursória com as seguintes conclusões: «1. O Tribunal recorrido violou os art.s 146, nº1, 147º do RJCS, 323º, n.2 e 498º ambos do CC. 2. Nos seguros obrigatórios, como o presente, a obrigação de indemnização não é autónoma para a seguradora, antes uma obrigação originária do segurado. 3. A responsabilidade da companhia de seguros é de natureza contratual, fundada no contrato de seguro de responsabilidade, mediante o qual se comprometeu a substituir o segurado no pagamento de qualquer indemnização por este devida a terceiros, 4. É, assim uma posição subordinada, consentânea com a sua função de garante social nos seguros obrigatórios. 5. Donde, o efeito interruptivo produzido na relação principal estende-se à relação subordinada». 7. A Interveniente apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação, e no segmento relevante da sua minuta, concluindo que: «10. A prescrição pode interromper-se quanto à seguradora e não quanto ao segurado, aproveitando a prescrição apenas àquele que a invoca. 11. A seguradora de responsabilidade civil pode invocar contra o lesado a prescrição do direito à indemnização mesmo que o segurado a não haja invocado. 12. De facto, o lesado, conforme expresso no artº 146/1 RJCS, tem o direito de exigir o pagamento da indemnização diretamente do segurador. Todavia, esse direito termina após decorrido o prazo prescricional legalmente previsto. 13. Assim, ao contrário do que o Recorrente quer fazer crer, a posição assumida pela seguradora no contrato de seguro em causa é autónoma face à do Tomador do Seguro, in casu, do Recorrente. 14. Não o tendo realizado, isto é, tendo apenas intentado a ação contra o Réu, pode agora a seguradora arguir a prescrição, o que se alega para os devidos e legais efeitos». 8. Observados os vistos legais, cumpre decidir. ***** II. O objecto do recurso. Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Assim, vistas as conclusões do recurso, a única questão a apreciar respeita a saber se, não estando prescrita a obrigação do segurado (alegado lesante), pode ou não a seguradora da responsabilidade civil deste invocar e ver autonomamente declarada a prescrição a seu favor, do direito do alegado lesado. ***** III – FundamentosIII.1. – De facto A factualidade relevante para a decisão do recurso é a seguinte: 1- A presente acção deu entrada em 18-01-2019; 2- O facto ilícito invocado pelos autores em fundamento do seu pedido indemnizatório, é a penhora de um tractor agrícola, realizada em 25-01-2016 pelo 3.º R., agente de execução, da qual o intitulado proprietário do referido tractor, tomou conhecimento no dia 28-01-2016[4]. 3- Citado, na sua contestação apresentada em 28-02-2019, o 3.º R., agente de execução, invocou a existência de seguro de grupo de responsabilidade civil, e requereu a intervenção da Ocidental, S.A.; 5- Admitida a intervenção principal, a Seguradora foi citada em 02-07-2019, e invocou a excepção de prescrição. ***** III.2. – O mérito do recursoComo é consabido, e para o que ora importa considerar, são fonte das obrigações, nomeadamente da obrigação de indemnizar, o contrato, e a responsabilidade civil, nomeadamente por facto ilícito. A presente acção foi intentada com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, com assento no artigo 483.º do Código Civil[5], decorrente da invocada ilicitude do acto de penhora que alegadamente atingiu o direito de propriedade de A… efectuada pelo 3.º R., no exercício da sua actividade profissional de agente de execução, qualificação jurídica que não vem colocada em causa e com a qual, na economia dos autos, igualmente concordamos[6]. Na verdade, como cristalinamente decorre do sumário do aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 11-04-2013[7], «embora as atribuições do agente de execução não se circunscrevam às que são típicas de uma profissão liberal, envolvendo também actos próprios de oficial público, para efeitos de responsabilidade civil emergem os aspectos de ordem privatística que resultam, nomeadamente, da forma de designação, do grau de autonomia perante o juiz, do regime de honorários, das regras de substituição e de destituição, da obrigatoriedade de seguro ou do facto de o recrutamento, a nomeação, a inspecção e a acção disciplinar serem da competência de uma entidade que não integra a Administração. A responsabilidade civil que aos agentes de execução for imputada, no âmbito do exercício da sua actividade, obedece ao regime geral, e não ao regime da responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas (…). Assim acontece com a responsabilidade decorrente da realização indevida de uma penhora (…)». Neste mesmo sentido já se pronunciara TOMÉ GOMES[8], entendendo que nada de específico se prevendo quanto à responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício das funções de agente de execução, haverá que «recorrer aos meios de tutela comuns, tendo em linha de conta que se trata do exercício de uma profissão liberal independente[9], mas pautada por deveres estatutários específicos, aliás postulados pela natureza pública da função de administração da justiça em que se inscrevem». Por razões, quer de segurança e certeza jurídica[10] quer também de prova[11], o legislador estabeleceu para a responsabilidade delitual um prazo especialmente curto de prescrição, na comparação com o prazo ordinário de vinte anos, previsto no artigo 309.º do CC, prevendo no artigo 498.º, n.º 1, que «o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete…». Precisando esta estatuição PEDRO DE ALBUQUERQUE[12] observa que «o direito que prescreve nos termos deste preceito não é o direito de indemnização (…), é o direito potestativo conferido ao lesado (…), é a situação jurídica daquele a quem violaram um direito ou simples interesse, e que, em virtude dessa ofensa, sofre um ou mais prejuízos». Conforme é sabido, a prescrição é uma excepção peremptória que confere a quem dela possa tirar benefício a possibilidade de impedir o exercício do direito invocado, visando no fundo sancionar a inércia do seu titular em virtude do não exercício do respectivo direito por determinado prazo, clarificando as situações jurídicas por forma a conferir estabilidade aos direitos das partes[13], e que, a proceder, importa a absolvição total ou parcial do pedido, como decorre do artigo 576.º, n.ºs 1 e 3, do CPC. Assim, completado o prazo de prescrição, o beneficiário tem a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor ao exercício do direito prescrito, aproveitando a prescrição a todos os que dela possam tirar benefício, só sendo admissível renunciar a este benefício depois de decorrido o prazo prescricional (artigos 301.º, 302.º, e 304.º, n.º 1, todos do CC). Porém, o tribunal não pode conhecer oficiosamente desta excepção, que necessita, para ser eficaz, de ser invocada por aquele a quem aproveita (artigo 303.º do CC). Ora, na situação em presença, o facto danoso ocorreu em 25-01-2016, e o alegado lesado teve conhecimento do mesmo no dia 28-01-2016, iniciando-se a partir desta data o decurso daquele prazo prescricional de três anos, já que o mesmo é contado a partir da data em que o lesado, conhecendo a verificação dos pressupostos que fundam a responsabilidade civil decorrente do facto ilícito, soube ter direito à indemnização. Trata-se de entendimento há muito pacífico, e ainda recentemente afirmado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2019, de cujo sumário consta que «para efeito de contagem do termo inicial do prazo prescricional estabelecido no artigo 498.º, nº 1 do Código Civil, o lesado terá conhecimento “do direito que lhe compete” quando se torne conhecedor dos factos que integram os pressupostos legais do direito de indemnização fundado na responsabilidade civil extracontratual (facto ilícito, culpa, dano e relação de causalidade entre o facto e o dano), sabendo ter direito à indemnização pelos danos que sofreu». Como visto, a presente acção deu entrada em juízo, em 18-01-2019, portanto, antes do decurso de tal prazo de prescrição mas a escasso tempo de passarem três anos sobre o dies a quo. De harmonia com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 323.º do CC que estatui sobre a interrupção da prescrição promovida pelo titular do direito, a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, sendo que, se não se fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias, inutilizando-se o tempo anteriormente decorrido e começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo – artigo 326.º do CC. Na situação em apreço, pese embora a acção tenha dado entrada em juízo em momento temporal próximo do decurso dos 3 anos, o certo é que, mesmo tendo presente o disposto no artigo 279.º, alínea b), do CC, de acordo com cuja estatuição na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr, o prazo de 5 dias a que alude o artigo 323.º, n.º 2, ocorreu antes do decurso do prazo prescricional, interrompendo-o em 23-01-2019. Efectivamente, em face do segmento final deste normativo, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorra o prazo substantivo de cinco dias desde a prática do acto que exprima a intenção de exercer o direito, no caso, da dedução da pretensão indemnizatória vertida no petitório inicial com aquela antecedência legal mínima. Na realidade, apesar de a carta registada com A/R para citação dos RR. ter sido expedida em 24-01-2019, desconhecendo-se se o 3.º Réu foi ou não citado ainda antes do efectivo decurso do prazo prescricional de 3 anos (o A/R não se encontra disponível nos autos), na espécie vale aquela interrupção do prazo de prescrição então em curso, uma vez que, ainda que a citação tivesse realmente ocorrido posteriormente, o certo e determinante é que aquele Réu não invocou a prescrição da obrigação de indemnizar. Ponto assente é, pois, que relativamente ao 3.º Réu a obrigação de indemnizar não se encontra prescrita, já que o legislador equiparou à citação, o decurso do prazo de cinco dias desde a manifestação de vontade de exercer o direito, tendo os AA. instaurado a acção com a observância do prazo previsto no n.º 2 do artigo 323.º do CC, não se vislumbrando que o seu eventual retardamento lhe pudesse ser assacável. Conforme decorre do relatório e da tramitação processual relevante, tendo este Réu, agente de execução, requerido a intervenção principal da Seguradora para quem a OSAE havia transferido a responsabilidade civil profissional, a interveniente só foi citada em 02-07-2019, e invocou a seu favor a excepção peremptória da prescrição, por haver sido citada quando já tinham decorrido mais de três anos sobre o facto ilícito, o que não suscita quaisquer dúvidas por fluir do mero confronto de datas. Porém, a questão que se coloca é diversa e é a de saber se a seguradora para quem foi contratualmente transferido o risco decorrente de eventual responsabilidade civil extracontratual do agente de execução, pode ou não invocar autonomamente do lesante, a prescrição do direito indemnizatório do lesado. Na sentença recorrida respondeu-se afirmativamente, com a seguinte fundamentação: «ainda que os Autores não tivessem conhecimento da existência do contrato de seguro e a Seguradora, em virtude desse facto, não figure, ab initio, como Ré, tal desconhecimento não obsta à invocação da excepção da prescrição (salvo nas situações previstas no artigo 323.º, n.º 2 do Código Civil, o que não é o caso) – veja-se, neste sentido, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 06-05-2016, processo n.º 03315/11.9BEPRT (MARIA FERNANDA ANTUNES APARÍCIO DUARTE BRANDÃO), disponível in www.dgsi.pt. Relativamente à invocação autónoma de tal excepção, cumpre referir que, sendo a obrigação solidária, consideramos que cada réu pode, isoladamente, invocar as excepções que entenderem por convenientes, não aproveitando, in casu, à Seguradora o facto de o direito se encontrar ou não prescrito relativamente ao segurado (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29-09-2016[14], processo n.º 1612/11.2TVLSB-A.L1-2 (MARIA ONDINA ALVES), disponível in www.dgsi.pt. Assim, verificando-se o decurso do prazo de três anos e não tendo ocorrido nenhuma causa suspensiva ou interruptiva do prazo prescricional, cumpre declarar a prescrição». Será assim? Duas notas de precisão se impõem a respeito dos arestos em que a decisão recorrida se fundou. Relativamente ao primeiro, foi efectivamente afirmado que «salvo se o credor beneficiar do regime prescrito no n.º 2 do artigo 323.º, do Código Civil, o credor que pretenda demandar um interveniente, cuja existência desconhecia até lhe ser revelada pela contestação do Réu, pode confrontar-se com a prescrição do seu direito por força do decurso do prazo de três anos estabelecido no citado artigo 498.º do Código Civil, mesmo quando seja pedida a intervenção com meses ou mesmo mais de um ano de antecedência», mas a realidade é que não só a situação em presença não se referia à intervenção principal da seguradora para a qual um dos lesantes transferira a sua responsabilidade civil – o que não é despiciendo –, como na situação em presença o credor beneficia do regime daquele preceito quanto ao lesante. No concernente ao segundo acórdão citado, tudo indica que o contrato de seguro em causa respeitava a um seguro facultativo e não a um seguro de responsabilidade civil obrigatório, como acontece nos presentes autos, em que estamos perante seguro de responsabilidade civil profissional de agente de execução[15]. Assim, o fulcro da questão decidenda, como bem nota o Recorrente, resume-se em saber se a seguradora, num seguro de responsabilidade civil profissional, obrigatório como aquele que se encontra em apreço, assume uma posição autónoma relativamente ao segurado, como defendeu a decisão aqui sindicada e pugna a Recorrida, ou se, ao invés, a sua posição processual se encontra subordinada à posição do seu segurado, como considera o Apelante. Para o efeito importa desde logo atentar nas disposições do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, que estabelece o regime jurídico do contrato de seguro, concretamente nas ínsitas nos artigos 140.º, n.ºs 1 a 3 e 145.º, aplicáveis aos seguros facultativos, e nas especiais referentes ao seguro obrigatório estabelecidas nos artigos 146.º e 147.º daquele diploma. Visto isoladamente o disposto no artigo 145.º, de acordo com cuja estatuição «aos direitos do lesado contra o segurador aplicam-se os prazos de prescrição regulados no Código Civil, poderíamos a uma primeira leitura considerar que se aplicava directamente ao caso em presença, por si só justificando a confirmação da decisão recorrida. Mas não é assim, uma vez que a interpretação da lei, tal como reza o artigo 9.º, n.º 1, do CC, não deve cingir-se apenas à sua letra mas ter «sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico», o que nos conduz à natureza da obrigação assumida pela seguradora. Assim sendo, é uma evidência que aos direitos do lesado contra o segurador se aplicam os prazos de prescrição previstos mormente no artigo 498.º, n.º 1, do CC, quando o lesado tenha exercido o direito que lhe assiste de demandar directamente o segurador, nas circunstâncias prevenidas nos n.ºs 2 e 3 do mencionado artigo 140.º e especificamente previsto no n.º 1 do artigo 146.º quanto ao seguro obrigatório. Daqui decorre que, caso os AA. apenas tivessem formulado a intenção de exercerem o seu alegado direito, directamente contra a Seguradora e não contra o lesante, fazendo-o na data em que a mesma foi citada, esta poderia validamente opor-lhes a prescrição do direito. Efectivamente, como adverte MARGARIDA LIMA REGO[16], «nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil, há solidariedade passiva na obrigação de indemnizar o lesado, pela qual respondem, quer o responsável civil, seu primeiro titular, quer o segurador, este último em virtude da vigência de uma cobertura de seguro, conjugado com o direito de acção directa consagrado no art. 146º da LCS. Atendendo à relação de subordinação entre o vínculo obrigacional que une o lesado ao responsável civil e o que o une ao segurador, este último pode invocar contra o lesado todos os meios de defesa fundados na relação de responsabilidade civil, porquanto o seguro só estende ao segurador a responsabilidade pelo pagamento da obrigação de indemnização que vincule o respectivo segurado…” Porém, não foi isso que aconteceu, tendo a acção sido primeiramente instaurada contra o lesante, responsável civil cuja demanda interrompeu o prazo prescricional, porquanto, como antedito, a acção foi instaurada no prazo assinalado no n.º 2 do artigo 323.º e o 3.º R., segurado, não invocou a prescrição. Neste caso, estamos perante a situação prevenida pelo artigo 147.º, aplicável aos seguros obrigatórios que vigoram por imposição legal ou regulamentar, de acordo com cuja previsão «o segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro», sendo «nomeadamente oponíveis ao lesado, como meios de defesa do segurador, a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato», meios que, aliás, a ora Recorrente usou, quanto às específicas condições contratuais. Na realidade, conforme bem se explicitou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-10-2017[17], invocado pelo Recorrente, estribado nos ensinamentos da doutrina e jurisprudência citadas e para os quais se remete para maiores desenvolvimentos, «sendo a posição do devedor solidário Seguradora, uma posição não autónoma em relação ao vínculo principal que se estabelece entre o lesado e o (seu) segurado, tem aquela, no que concerne à invocação da prescrição, que se mostrar – também – subordinada à verificação do decurso do prazo de prescrição naquele vínculo obrigacional principal (responsabilidade civil). Isto significa que, nestas situações, se verifica, pelas razões apontadas, um caso em que o efeito interruptivo pessoal produzido num dos devedores solidários (no caso, nos 2º e 3ºs RR.) se estende ao outro devedor solidário subordinado (a aqui Recorrente Seguradora) - o que como vimos é permitido pelo art. 521º do CC (…). Daí que como se diz no ac. do STJ de 15.4.1979 que mereceu anotação de Vaz Serra na RLJ ano 120, pág. 288: Trata-se, contudo, a nosso ver, dum falso problema. É que a companhia seguradora não é demandada verdadeiramente com base na responsabilidade civil extracontratual, a respeito da qual se estabeleceu a prescrição de curto prazo do art. 498º do CC. A responsabilidade que se lhe exige é de natureza contratual, fundada no contrato de seguro de responsabilidade, mediante o qual se comprometeu a substituir-se ao segurado no pagamento de qualquer indemnização por este devida a terceiros. Assim, desde que a obrigação do segurado não esteja prescrita, cumpre-lhe assumir o encargo, contratualmente estipulado, de garantir esse pagamento, não podendo esquivar-se a isso com a invocação duma prescrição inaplicável ao título por que responde…»[18]. Revertendo o que vimos de referir à concreta situação em presença e tendo em mente que o dever de indemnizar a que a seguradora está vinculada nos seguros de responsabilidade civil profissional se destina a proteger o património do lesante que responderia perante o lesado pela ocorrência dos danos que os factos ou omissões que lhe fossem imputáveis provocaram na esfera deste, caso não estivessem cobertos pelo seguro de responsabilidade civil, então surge-nos evidente a conclusão de que o dever de indemnizar o terceiro lesado a que a seguradora se obriga mediante o pagamento de um prémio, funda-se no contrato de seguro e não na responsabilidade civil. Assim sendo, como se acentuou no citado acórdão, «no caso dos seguros obrigatórios de responsabilidade civil não há dúvidas que, na relação solidária (passiva) que se estabelece entre o lesante/segurado e a Seguradora, existe uma relação de subordinação da posição desta última em relação à posição que aquele assume na relação de responsabilidade civil que se visa cobrir através do seguro. Na verdade, conforme já se referiu, a posição da Seguradora não é uma posição autónoma, pois que só responde perante o lesado “se e na medida em que o lesante/segurado também responda” (ou “se e na medida em que exista a obrigação do seu segurado”). Ou seja, “a seguradora paga em vez, na medida e no lugar do responsável civil, num quadro de interesses valorado pelo legislador a favor dos lesados”»[19]. Deste modo, podemos concluir que caso se encontre prescrito o direito do terceiro lesado pedir a indemnização perante o segurado, a seguradora pode, com êxito, deduzir a excepção de prescrição da obrigação de indemnizar, porque a sua relação com o lesado não subsiste sem a relação do segurado com o lesado, estando-lhe subordinada. Porém, se a responsabilidade civil do lesante se mantiver, por haver sido interrompida a prescrição, como a responsabilidade da seguradora deriva do contrato de seguro celebrado com o segurado, mediante o qual se comprometeu a substituir-se a este no pagamento de qualquer indemnização por si devida a terceiros, então, porque a intervenção da seguradora não se estriba na responsabilidade civil extracontratual mas sim na responsabilidade contratual emergente do contrato de seguro, o efeito interruptivo produzido pela citação do lesante na relação principal estende-se à relação subordinada constituída por via do contrato de seguro. Assim, conclui-se como no citado aresto da Relação de Guimarães, que «se o prazo de prescrição tiver sido interrompido por acto praticado pelo lesado junto do lesante/segurado, tal interrupção da prescrição impõe-se à Seguradora, uma vez que, neste caso, a obrigação de indemnização continua a vincular o respectivo segurado». Neste mesmo sentido, pronuncia-se AMÉRICO MARCELINO[20], afirmando que «a responsabilidade da seguradora só pode ter como suporte o contrato que celebrou com o seu segurado, pois ela nenhum facto ilícito cometeu. É uma responsabilidade contratual, portanto. Já a responsabilidade do segurado é de natureza extracontratual e essa é a prevista nos arts. 483.º e ss. do CC. Ora, o art. 498.º que trata da prescrição insere-se neste tipo de responsabilidade e, por isso, só pode ser aplicável à responsabilidade assente na culpa ou no risco. Não tem, por isso, sentido que a seguradora venha invocar a prescrição referida no art. 498.º a não ser na hipótese adiante considerada[21]. Sendo assim, existindo (e subsistindo) a obrigação do segurado, a seguradora não poderá recusar-se ao ressarcimento do lesado com fundamento em decurso do prazo de prescrição “próprio” à data em que é judicialmente demandada, já que, repete-se, a sua obrigação não é própria, autónoma». Revertendo ao caso em presença, verificando-se a interrupção do decurso do prazo prescricional relativamente ao lesante, por mor do funcionamento da salvaguarda do exercício atempado do direito potestativo dos lesados, mercê da entrada em juízo da acção mais de cinco dias antes do decurso daquele, de harmonia com o previsto no n.º 2 do artigo 323.º do CC, o efeito interruptivo produzido na relação principal estende-se à relação subordinada existente entre seguradora e segurado, donde se conclui que a Interveniente não podia ter invocado, com êxito, a excepção de prescrição do direito potestativo que os AA. pretendem exercer, a seu favor, mantendo-se na lide o seu segurado, lesante. Pelo exposto, sem necessidade de maiores considerações, a apelação procede, sendo de revogar a decisão recorrida que julgou procedente a excepção de prescrição, com as consequências legais, ou seja, a seguradora responde apenas se o 3.º Réu for condenado a indemnizar os AA., e, nesse caso, de harmonia com o clausulado contratual. Vencida, a Seguradora Interveniente, suporta as custas devidas em primeira instância e as de parte na Apelação, atenta a regra da causalidade vertida no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, e de harmonia com o disposto nos artigos 529.º, n.ºs 1 e 4 e 533.º, todos do CPC. ***** III- Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida. Custas pela Recorrida, na primeira instância e neste Tribunal, na vertente de custas de parte. ***** Évora, 8 de Outubro de 2020Albertina Pedroso [22] Tomé Ramião rancisco Xavier _______________________________________________ [1] Juízo de Competência Genérica de Odemira – Juiz 1. [2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Tomé Ramião; 2.º Adjunto: Francisco Xavier. [3] Doravante abreviadamente designado CPC. [4] Artigo 23.º da petição inicial. [5] Doravante abreviadamente designado CC. [6] Para mais desenvolvimentos sobre as posições defendidas a este respeito na jurisprudência e na doutrina, cfr. a síntese efectuada por PEDRO EDGAR MINEIRO, in A Responsabilidade Civil pelo Exercício da Função de Agente de Execução, Almedina 2017, págs. 75 e ss. [7] Proferido no processo n.º 5548/09.9TVLSNB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. [8] In Balanço da reforma da acção executiva: Benefícios e desvantagens da alteração do paradigma da Acção Executiva, Sub Judice, 29, pág. 32, citado na obra anteriormente referida. [9] Evidenciando a obrigatoriedade legal de contratação pelo agente de execução do seguro de responsabilidade civil profissional. [10] In Direito das Obrigações, 2.º vol., pág. 431, MENEZES CORDEIRO, explica que este prazo especialmente curto de prescrição“… visa, por um lado, pôr rapidamente cobro à situação de insegurança que é representada pela existência de danos imputáveis, cujo ressarcimento, dependente do lesado, se encontra em dúvidas quanto à realização e, por outro lado, visa incitar os lesados à realização pronta dos seus direitos”. [11] Como observa VAZ SERRA na Exposição de Motivos, in BMJ n.º 87, “os elementos da responsabilidade civil, e, sobretudo, o dano, têm, em regra, de ser provados por testemunhas e, passado longo tempo sobre o facto ilícito, pode ser muito mais difícil apurar devidamente os factos”. No mesmo sentido, ANTUNES VARELA, in Direito das Obrigações em Geral, 7.ª ed., pág. 520, salienta que o regime regra de prescrição trienal, teve em conta as circunstâncias da prova dos factos definidores da responsabilidade civil ser geralmente feita através de testemunhas, tornando-se bastante difícil e precária, quando feita depois de certo período de tempo sobre a data dos acontecimentos. [12] In “A APLICAÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL DO N.º 1 DO ARTIGO 498.º DO CÓDIGO CIVIL À RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7B09eb21b8-985b-498d-b7e3-9915ef43b589%7D.pdf, pág. 813, citando GOMES DA SILVA. [13] Cfr. exemplificativamente, Acórdãos do STJ de 01-10-2015, Revista n.º 193/06.3TBSRQ.L1.S1 - 7.ª Secção e de 22-10-2015, Revista n.º 273/13.9IHLSB.L1.S1 - 7.ª Secção, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, este com o seguinte sumário: I - O decurso de um prazo de prescrição não extingue o direito a que corresponde; antes confere ao sujeito passivo o poder de se opor ao respectivo exercício (art. 304.º, n.º 1, do CC). II - Diversamente, o decurso do prazo de caducidade extingue o direito de cujo exercício se trate; a caducidade não tem por fundamento primeiro a protecção do sujeito passivo mas sim o valor da certeza e segurança dos direitos. [14] Corrige-se o manifesto lapso na data que constava na sentença, já que o acórdão citado é de 29-09-2016 e não de 29-06-2016. [15] Em face do disposto na Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro, que transformou a Câmara dos Solicitadores em Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, e aprovou o respetivo Estatuto, cujo artigo 123.º, sob a epígrafe “Responsabilidade civil profissional”, estabelece nos seus n.ºs 1, 2, e 6, que o associado com inscrição em vigor deve celebrar e manter um seguro de responsabilidade civil profissional, tendo em conta a natureza e o âmbito dos riscos inerentes à sua actividade, por um capital de montante não inferior a 100.000,00 €, cujos custos podem ser suportados, total ou parcialmente, pela Ordem, relativamente aos associados que não tinham para consigo dívidas de qualquer natureza. [16] In “Código Civil Anotado” (coord. Ana Prata), Vol. I, ALMEDINA, pág. 678. [17] (proc. 2428/16.5T8GMR.G1), acessível em www.dgsi.pt., [18] Afirma-se ainda no citado aresto que tem sido essa posição que os Tribunais vêm seguindo, como resulta dos seguintes Acórdãos: ac. do Stj 23.3.1995 (relator: Mário Cancela), 11.3.1999 (relator: Simões Freire); de 22.1.2004, in CJ, t. 1, pág. 37 - também disponível na Dgsi.pt (relator: Ferreira de Almeida); ac. do Stj de 5.7.2006, in CJ, T. III, págs. 198-200; ac. Stj de 28-10-97, CJ, t. 3, pág. 103; ac. da RC de 15-4-80, CJ, t. II, pág. 48 e ac. da RL de 3-3-83, CJ t. 2, pág. 94, e que também é seguida por Américo Marcelino, in “Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, 7.ª edição revista e ampliada, Livraria Petrony Editores, Lisboa, págs. 585/586; por Leite Campos, in “Seguro da Responsabilidade Civil Fundada em Acidente de Viação”, pág. 96, e por Dário de Almeida, In “Manual de Acidentes de Viação”, nota 1, pág. 286. [19] Citando Brandão Proença, in “Anotação ao Ac. do STJ, de 18/10/2012: natureza e prazo de prescrição do “direito de regresso” no diploma do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”- “Cadernos de direito privado”, nº 51 (Julho/Setembro 2015), pág. 38- disponível também na internet. [20] In “Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, 7.ª edição revista e ampliada, Livraria Petrony Editores, Lisboa, págs. 585/586. [21] O Autor reporta-se à situação já acima enunciada, ressalvando a possibilidade de a obrigação do segurado já haver prescrito. [22] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado electronicamente pelos três desembargadores que constituem esta conferência. |