Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
847/10.0T2STC
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
DIREITO DE RETENÇÃO
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 02/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
I- É nula a sentença que, condenando a parte tal como vinha pedido na p.i., não teve em consideração uma redução do pedido que os AA. haviam apresentado em audiência.
II- A obrigação garantida por direito de retenção vence juros de mora a partir do momento da condenação, independentemente de a coisa, como é próprio desta garantia, estar na posse do credor.

Sumário do relator
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
F... e mulher M… propuseram a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra R..., I..., L... e J... e mulher M..., pedindo o seguinte:
1.º- A declaração da nulidade da compra e venda outorgada no Cartório Notarial de Almada de M… em 19 de Janeiro de 2007 a folhas 96-97 do Livro de Escrituras Diversas C-62 daquele cartório por titular uma venda de bem alheio;
2.º- A impugnação, para todos os efeitos legais, do facto justificado na escritura outorgada no Cartório Notarial de Almada de M… em 14 de Junho de 2007 a folhas 133-135 do Livro de Escrituras Diversas C-72 daquele cartório;
3.º- A declaração da nulidade e da falta de produção de efeitos daquela escritura de justificação notarial, quer porque enferma de irregularidades insanáveis no que tange às formalidades a observar, quer porque os factos justificados são falsos;
4.º- A determinação do cancelamento de quaisquer registos operados com base naquelas escrituras;
5.º- A declaração de que o prédio urbano descrito sob o n.º 16.107, folhas 101 verso do Livro B-47 da Conservatória do Registo Predial de Santiago do Cacém e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1528 é propriedade dos autores;
6.º- A condenação das primeiras cinco rés no pagamento de uma indemnização por prejuízos causados aos autores pela sua actuação concertada no valor de € 69.683,15 acrescidos de juros de mora a contar desde a data da citação até integral pagamento;
7.º- A condenação dos sextos réus a entregar aos autores o prédio identificado livre de pessoas e bens no prazo a definir pelo tribunal; e
8.º- A comunicação à Ordem dos Notários dando conhecimento da presente acção para efeitos de acção disciplinar contra a quinta ré.
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O processo seguiu os seus termos e, no final, veio a ser proferida sentença com a seguinte decisão:
1. Declaro a nulidade da compra e venda outorgada no Cartório Notarial de Almada de M… em 19 de Janeiro de 2007 a folhas 96-97 do Livro de Escrituras Diversas C-62 daquele cartório;
2. Declaro que C… não é nem foi proprietária do prédio justificado na escritura outorgada no Cartório Notarial de Almada de M… em 14 de Junho de 2007 a folhas 133-135 do Livro de Escrituras Diversas C-72 daquele cartório;
3. Declaro a nulidade daquela escritura de justificação notarial;
4. Determino o cancelamento dos registos operados a favor dos réus com base naquelas escrituras;
5. Declaro que o prédio urbano descrito sob o n.º 16.107, folhas 101 verso do Livro B-47 da Conservatória do Registo Predial de Santiago do Cacém e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1528 é propriedade dos autores e condeno os réus J... e mulher M... a procederem à sua entrega aos autores no momento em que lhes for paga a quantia a seguir fixada a título de benfeitorias;
6. Condeno as rés R..., I..., L... no pagamento solidário aos autores da quantia de quatro mil e quatrocentos euros acrescido de juros de mora desde a citação até integral pagamento;
7. Condeno os autores a pagarem aos réus J... e mulher M... a quantia de setenta e um mil euros acrescida de juros de mora desde a data desta sentença até integral pagamento; e
8. Declaro que os réus J... e mulher M... são titulares do direito de retenção sobre o prédio que está descrito na Conservatória do Registo Predial de Santiago do Cacém sob o n.º 1834/20071015 da freguesia de Cercal do Alentejo corresponde à anterior descrição em Livro com o n.º 16107 efectuada no Livro n.º 47 e consta como prédio urbano, situado na Rua 25 de Abril, n.º 19, freguesia do Cercal do Alentejo, com a área total de 400 metros quadrados, sendo 70 metros quadrados de área coberta e 330 metros quadrados de área descoberta, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1528, composto de edifício de rés-do-chão com quintal desanexado do prédio n.º 11985, descrito a folhas 187 verso do Livro B – 34, até ao momento do pagamento da quantia acima indicada.
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Desta sentença recorrem os AA., restringindo o seu recurso a duas questões:
1.ª- arguir a nulidade da decisão por omissão de pronúncia (art.º 668º, nº 1, al. d) do C.P.C.), e
2.ª- obter modificação do segmento nº 7 da douta decisão no que concerne à condenação de pagamento de juros sobre a quantia fixada desde a data da sentença até integral pagamento.
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Em relação à primeira questão, alegam que em audiência reduziram o pedido que haviam formulado sob o n.º 1, 5 e 7 para o reconhecimento do direito de propriedade sobre o assento e o logradouro onde foi edificada uma benfeitoria; ou seja, já não pedem o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio urbano identificado.
Não obstante o Mm.º Juiz ter relegado o conhecimento desta redução para a sentença final, o certo é que, nesta, não se pronunciou sobre ela.
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Com efeito, por requerimento de 10 de Fevereiro de 2012, os AA. apresentaram a redução de pedido acima indicada. Na audiência de dia 12, o Mm.º Juiz decidiu que a questão da redução do pedido seria apreciada na sentença final (cfr. fls. 580).
No entanto, a sentença que veio a ser proferida não teve em consideração aquele requerimento, o que se constata facilmente pela sua leitura. Na verdade, no relatório faz-se menção da desistência de um pedido reconvencional mas não da redução do pedido apresentada pelos AA.; também consta da sentença, no elenco das questões jurídicas a decidir, a referência ao direito de propriedade sobre o prédio urbano; por outro lado, a decisão, ao reconhecer, tal como inicialmente havia sido pedido, o direito de propriedade dos AA. sobre um prédio urbano, e não sobre a nua propriedade do terreno onde ele está implantado, revela que o Mm.º Juiz não teve em consideração o requerimento de redução do pedido.
Como é sabido, é nula a sentença quando não conhece de questões de que devia conhecer, nos termos do art.º 668.º, n.º 1, al. d), Cód. Proc. Civil. Tendo o pedido sido reduzido pelos AA. não podia a sentença ignorar tal redução nem podia, como afinal acabou por acontecer, condenar em mais do que o pedido.
Sendo nula a sentença, como é, agora apenas cabe sanar essa nulidade restringindo a decisão ao objecto que os AA. vieram a definir.
Nos termos o art.º 273.º, n.º 2, Cód. Proc. Civil, a redução do pedido pode ser feita em qualquer altura; por outro lado, e como consequência do princípio do dispositivo, o autor pode sempre reduzir o seu pedido; seja para uma quantia menor (caso típico) seja para o reconhecimento de um direito com um conteúdo menor do que aquele cujo reconhecimento inicialmente se pedia.
No caso dos autos, os AA. já não pretendem o reconhecimento da sua qualidade de proprietários de um prédio urbano (com o preciso sentido que lhe dá o art.º 204.º, n.º 2, 2.ª parte, Cód. Civil) mas tão-só o reconhecimento da sua qualidade de proprietários do chão, do solo onde está implantada (onde assenta; daí a expressão utilizada pelos AA.) uma casa.
Sem dúvida que, mesmo que com uma configuração jurídica distinta, o objecto da reivindicação tem um âmbito qualitativo menor que aquele que antes tinha sido definido.
A questão do direito à casa, à construção existente no terreno, bem como a questão do titular desse direito, é arredada pelos AA. deste litígio.
Nada obsta, pois, à redução pretendida uma vez que não estamos perante uma alteração do pedido.
Assim, adiante se terá isto em consideração.
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A segunda questão, resumem-na os AA. da seguinte maneira:
A douta Sentença fixa juros de mora aos Apelantes, mas não fixa prazo para o cumprimento do decido, pelo que salvo melhor opinião, parecem indevidos os juros.
Por outro lado, os RR têm a garantia do cumprimento da Sentença através do direito de retenção que lhes foi fixado, podendo no exercício deste direito, desfrutar da casa quer pelo seu uso pessoal quer pela disponibilização a terceiros pelo menos em época balnear.
A obrigação de juros estabelecida pela sentença a par do direito de retenção, viola os princípios da equidade.
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Não é necessário reproduzir a totalidade da matéria de facto para que se compreenda bem o que agora se pretende.
Basta ter presente que num determinado prédio rústico (aquele sobre que os AA. pediram o reconhecimento do direito de propriedade) foi construída uma casa que, posteriormente, foi vendida aos 6.º RR., titulares do direito de retenção que a sentença recorrida lhes reconheceu com base em benfeitorias realizadas.
A sentença condenou os AA. a pagarem aos 6.º RR. o valor das benfeitorias, acrescido de juros desde a data da própria sentença «pois o pedido foi deduzido só para o caso de procedência da acção e, por isso, só neste momento é que se efectivou». O direito de retenção foi reconhecido «até ao momento do pagamento da quantia acima indicada».
A este respeito alegam os recorrentes:
Os Apelantes mantêm o interesse no decisão sobre a redução do pedido que deverá ser apreciado e decidido [o que já foi feito], porquanto e a ser considerada a redução do pedido, tal terá relevância para o segmento da decisão proferida no ponto sete da douta Sentença, uma vez que a benfeitoria existente no logradouro será reconhecida como propriedade dos RR. J... e Mulher M… com desnecessidade de os AA. a fazerem sua.
Se assim não viesse a ser entendido e a redução do pedido soçobrasse, hipótese sem concessão, colocada por razões de patrocínio cauteloso, entendem os AA. que a douta Sentença é excessiva na condenação dos AA. na condenação do pagamento dos juros sobre a quantia fixada no segmento 7., uma vez que, a mesma Sentença reconhece aos referidos RR. o direito de retenção sobre o prédio em questão, o que significa que o poderão usar e fruir, tal como fizeram até aqui, benefício próprio e resultado do investimento que efectuaram com a edificação da benfeitoria.
Sendo embora o direito de retenção uma garantia do cumprimento do crédito estabelecido a favor daqueles RR (artº 754º do C.C.), não fixando a douta Sentença um prazo para pagamento da referida quantia e consequente entrega do imóvel, não estarão em mora os AA. e consequentemente não lhes deveria ser imputada uma obrigação de juros de mora, fixados, por regra, para minimizar o prejuízo no atraso no cumprimento de obrigação pecuniária.
E se é certo que os RR., credores do montante fixado, beneficiam do direito de retenção que tal como já se referiu lhes permite usar e fruir a casa, com exclusão, dos AA., parece que, ainda que atraso houvesse no adimplemento, não terão qualquer outro prejuízo, traduzindo-se a obrigação de juros em duplo benefício para os RR. e injustificado encargo para os AA. Apelantes.
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Afirmamos, em primeiro lugar, que a redução do pedido não tem como consequência necessária que a benfeitoria existente no logradouro será reconhecida como propriedade dos RR. — pelo menos em termos judiciais. Não houve pedido nesse sentido e, por isso, não poderia o tribunal fazer tal reconhecimento. Se, porventura, os AA. reconhecem, na sua alegação, aos RR. esse direito, as respectivas consequências são entre eles e não com o tribunal.
Mas isto é de somenos importância para o objecto do recurso.
O fundamental é saber se são devidos juro ou não.
Conforme resulta claramente do art.º 805.º, n.º 1, Cód. Civil, o devedor fica constituído em mora «depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir». A interpelação judicial é a que consta da sentença que decide o litígio, que condena uma nas partes na realização de uma prestação (seja esta um pagamento ou seja com qualquer outra natureza).
No nosso, a sentença recorrida condenou os AA. no pagamento de uma quantia o que constitui uma interpelação. A partir deste momento, os AA. sabem que devem e estão obrigados a pagar. De acordo com o n.º 1 do citado preceito legal, existe mora a partir desta condenação. Não podemos, por isso, concordar com a douta alegação de que a sentença não fixou prazo para cumprir o decidido. São coisa diferentes a fixação de um prazo para a realização de uma dada prestação e o momento a partir do qual a prestação se torna exigível; melhor dizendo, não é necessário fixar um prazo para cumprir para que a obrigação seja devida. Nuns casos pode haver necessidade, noutros não. Na nossa situação, não há que fixar qualquer prazo porque a sentença, ao condenar num pagamento, constitui, como se disse, uma interpelação ao devedor; este deve, a obrigação é exigível a partir do momento em que a sentença o condena.
Os recorrentes, em bom rigor, não discutem isto mas afirmam que o direito de retenção, com o consequente gozo do imóvel, paralisa a mora.
Importa ter em conta os termos das condenações decididas na sentença: por um lado, o pagamento pelos AA. aos RR. de uma determinada quantia; por outro, o direito de retenção só existe enquanto este pagamento não for feito. A permanência na casa está condicionada (no tempo) ao momento em que aos RR. seja pago o valor das benfeitorias. Ou seja, enquanto esta quantia não for paga, o direito de retenção vale.
Da mesma forma, os AA., enquanto não pagarem, continuam a dever, continuam obrigados ao pagamento. A existência de uma garantia (real ou de outra natureza) não paralisa o crédito tal como não paralisa a mora, não desqualifica o atraso no pagamento como sendo mora — associada, claro, à sua consequência mais natural: o vencimento de juros.
A seguir a opinião dos apelante, estava encontrada a solução para não mais se pagarem juros de mora nos casos em que existisse uma garantia de cumprimento.
Entendemos, pois, que a mora e o vencimento de juros não são em nada afastados pelo direito de retenção. É certo que os RR. podem ocupar a casa mas isso resulta tão-só e directamente da sua garantia real; é o próprio conteúdo desta garantia (art.º 754.º, Cód. Civil).
Note-se, por último, que a redacção pretendida pelos apelantes, na sua redução do pedido, ao n.º 7 do seu pedido inicial (condenação na entrega em prazo a definir pelo tribunal) não pode proceder uma vez que este último segmento não está na disponibilidade da parte. O tribunal é que decide, como fez, se há prazo ou não para a entrega; e decidiu que a entrega teria lugar depois de paga a quantia que os AA. foram condenados a pagar.
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Em função do que antecede, temos que a decisão recorrida deve ser alterada. Dada a redução do pedido que foi feita, o seu objecto há-de confinar-se àquele que foi, depois dos articulados, definido pelos AA. (assento e logradouro e não o prédio urbano).
No mais (prazo para entrega e juros de mora) mantém-se a sentença recorrida.
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Pelo exposto, julga-se verificada a nulidade da sentença e altera-se a decisão recorrida nos pontos 1 e 5 que ficam com a seguinte redacção:
1. Declara-se nula a compra e venda outorgada no Cartório Notarial de Almada de M…, em 19 de Janeiro de 2007, a fls. 96-97, do Livro de escrituras diversas C-62, daquele Cartório, no que se refere ao assento e logradouro em que foi edificada a benfeitoria.
5. Declara-se que o assento e logradouro descrito sob o nº 16107, fls. 101 vº, do Livro B-47, da Conservatória do Registo Predial de Santiago do Cacém, em que foi edificada a benfeitoria inscrita na matriz predial urbana sob o art.º 1528, é propriedade dos AA.
Nada mais se altera.
Custas pelos apelantes.
Évora, 7 de Fevereiro de 2013
Paulo Amaral
Rosa Barroso
José Lúcio