Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
384/06-1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO DE PROVAS
Data do Acordão: 06/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1 - A sentença deve conter, sob pena de nulidade, uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Tendo, a sentença recorrida, indicado, de modo claro, quer as provas em que o tribunal se baseou para formar a sua convicção, quer as razões pelas quais essas provas o convenceram, não pode dizer-se que a sentença recorrida padeça da dita nulidade sem que se mostre não ter sido seguido um processo racional e lógico na apreciação feita das provas respeitador, no caso, das regras da experiência comum e da lógica.
2 – Quando os recorrentes não especifiquem, nem nas conclusões das motivações dos recursos nem em qualquer outra parte dessas motivações, os pontos de factos que consideram incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida e os suportes técnicos dessas provas, não pode, a Relação, conhecer da matéria de facto impugnada.
3 – O princípio da livre apreciação da prova, atentos os princípios da imediação e da oralidade, impede que a Relação se afaste do juízo feito pelo tribunal recorrido em matéria de prova a não ser no caso de este ter chegado a uma convicção puramente subjectiva, baseada em imprecisões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação e não numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras da lógica, da razão e das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos (convicção pessoal mas objectivável e motivável).
4 – A violação do princípio in dubio pro reo pressupõe uma verificação de uma dúvida razoável e irremovível na apreciação da prova e a decisão, nessa circunstância, em desfavor do arguido.
5 - O erro notório na apreciação da prova não se verifica pelo simples facto de o tribunal não ter dado crédito à versão dos factos tal como relatada pelo arguido.
6 - O relatório pericial é um documento constante do processo, cuja leitura é permitida em audiência e que, portanto, pode ser valorado em julgamento, independentemente da sua leitura em audiência.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em audiência, os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora:
1. No Tribunal Judicial da Comarca de … correu termos o Proc. Comum Singular n.º …, no qual foram julgados os arguidos IM e LF, melhor identificados na sentença de fol.ªs 324 a 329, datada de 11.07.2005, pela prática de um crime p. e p. pelos art.ºs 1, 3, 4 n.º 1 al.ª g) e 108 do DL 422/89, de 2 de Dezembro, tendo sido condenados:
    - O arguido IM, pela prática, como autor material, de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelos art.ºs 1, 3 e 108 n.º 1 do DL 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção dada pelo DL 10/95, de 19 de Janeiro, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 3 (três) euros, perfazendo o montante total de 540 (quinhentos e quarenta) euros;
    - O arguido LF, pela prática, como autor material, de um crime de exploração de jogo ilícito, p. e p. pelos art.ºs 1, 3 e 108 n.º 1 do DL 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção dada pelo DL 10/95, de 19 de Janeiro, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de 3 (três) euros, perfazendo o montante total de 420 (quatrocentos e vinte) euros.
2. Inconformados com tal decisão, recorreram os arguidos, concluindo a motivação do seu recurso formulando as seguintes conclusões:
    2.1. O arguido LF
    a) A decisão recorrida viola de forma impressiva o direito constitucional da presunção de inocência e atinge noutros segmentos diversos preceitos da legislação processual penal.
    b) Quem julga não se pode bastar com a mera probabilidade da ocorrência de factos que correspondem ao thema decidendum, mas sim com um juízo de certeza obtido de forma intraprocessualmente válida; ao socorrer-se de forma sumária de uma transcrição de um texto de Montesquieu, a decisão começa por transpirar incerteza e acaba a violar o princípio da livre apreciação da prova inscrito no art.º 127 do Código de Processo Penal, não satisfazendo as exigências impostas pelo art.º 374 n.º 2 do mesmo diploma.
    c) Nada legitimou a conclusão do Mm.º Juiz quanto ao conhecimento, por parte do arguido, da diferença entre jogos de fortuna e azar e jogos de perícia, pois foi a senhora procuradora que concluiu esclarecendo o arguido. Isto significa, directa e necessariamente, que a decisão padece de um vício de raciocínio e que incorre em erro evidente na análise da prova. Face à ausência de outros elementos de prova, a não aceitação da versão apresentada pelo arguido implica que este elemento probatório não seja valorado, porque assume um conteúdo axiologicamente neutro e permite a fundamentação de um juízo “non liquet”. Interpretação contrária é colidente com o princípio da presunção de inocência e com a estrutura acusatória do processo penal e, ao contrariar estes ditames, a decisão viola, assim, as normas constitucionais já acima citadas.
    d) Se o Juiz não acredita no arguido, continua o Ministério Público (ou o assistente, nos casos previstos na lei) a ter de demonstrar em julgamento que “os indícios suficientes de se ter verificado o crime” (art.º 283 do Código de Processo penal) efectivamente ocorreram.
    e) Ao omitir o itinerário demonstrativo da formulação do juízo sobre a existência de determinada situação factual, o Mm.º Juiz do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de …, ali colocado em regime de estágio, impede a sua fiscalização por parte do tribunal superior, através dos mecanismos de controlo de que dispõe para avaliar a (in)correcção da decisão.
    f) O princípio da livre apreciação da prova, o princípio da presunção de inocência, o dever de fundamentação das sentenças, o direito ao recurso e o direito de tutela efectiva são colocados em crise no ponto 1.3 da sentença recorrida. O tribunal da 1.ª instância não acreditou no arguido. Certo, não se discute, mas é imperioso perguntar: acreditou em quem?
    g) Para além do erro notório na apreciação da prova, a fundamentação da decisão, porque equívoca e incompleta, está viciada pelo precedente lógico de não ter havido prova produzida relativamente a parte da factualidade descrita na acusação.
    h) O princípio do contraditório vigora plenamente na fase do julgamento, de recurso e, se for o caso, caso tenha havido a fase de instrução, no debate instrutório, conforme dispõem os art.ºs 32 n.º 5 da CRP, 321, 327, 355, 360, 423 e 298 do Código de Processo Penal. Diz a lei que não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência (artigo 355 n.º 1 do CPP).
    i) Resulta da decisão que o relatório pericial de fol.ªs 31 a 56 serviu para basear a convicção do tribunal, posto que, não configurando qualquer excepção ao disposto no art.º 355 do CPP, para ser válida esta asserção aquela prova deveria ter sido produzida em audiência. Porém, da acta da audiência de discussão e julgamento não consta que o aludido relatório tivesse sido lido ou exibido em audiência.
    j) Com base numa suspeita da acusação, e sem prova produzida em audiência, o arguido Carrilho foi condenado e prevaleceu o juízo acusatório sobre a verdade intraprocessual ocorrida em sede de julgamento.
    k) Na relação necessária entre o princípio constante do art.º 127 do CPP e o dever de motivação das sentenças, o Tribunal Constitucional perfilha a posição (Ac. TC de 19.11.1996, DR n.º 31, II Série, de 06.02.1997) que “a livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma actividade puramente subjectiva, emocional e, portanto, não fundamentada juridicamente. Tal princípio, no entendimento do tribunal, concretiza-se numa valoração racional e crítica. De acordo com as regras da lógica, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, o que permitirá ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão. Trata-se, assim, de um princípio de liberdade para a objectividade e não para o arbítrio”.
    l) Ao fundamentar a decisão de facto com aquele instrumento probatório sem o submeter ao crivo do contraditório a sentença enferma de vício que a afecta e a torna nula.
    m) Em adição aos vícios apontados, existe ainda uma contradição insanável entre dois factos que tornam a decisão nula (facto 9 dos factos provados e facto não provado).
    n) O erro notório na apreciação da prova, que viola o disposto no art.º 410 do CPP, conduz à absolvição.
    o) A falta de fundamentação da matéria de facto, que conduz à nulidade da sentença e à eventual repetição do julgamento, viola os comandos dos art.ºs 27 n.º 4, 32 n.º 1 e 205 n.º 1 da CRP, e 97 n.º 4, 374 n.º 2 e 375 n.º 1, estes do CPP.
    p) A importação de um elemento probatório (relatório pericial) que não foi produzido em audiência configura uma violação do princípio do contraditório (art.º 32 n.º 5 da CRP e 321, 327 e 360 do CPP).
    q) Insuficiência da matéria de facto para a escolha da medida e da graduação da pena.
    r) Face ao erro notório na apreciação da prova e ao vício da falta de fundamentação da matéria de facto, a sentença impugnada deve ser substituída por outra que absolva o arguido.
    2.2. O arguido IM
    a) O recorrente foi condenado pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo p. e p. pelos art.ºs 1, 3 e 108 n.º 1 do DL 422/89, de 2.12, na redacção dada pelo DL 10/05, de 19.01, na pena de cento e oitenta dias de multa, à taxa diária de 3 euros, perfazendo o montante total de 540 euros.
    b) Para motivação da matéria de facto fundamentou-se o tribunal nas declarações do arguido, no depoimento da testemunha J, no relatório pericial e no CRC do arguido.
    c) Face ao objecto do recurso a questão que se coloca é a de saber se o arguido cometeu o crime pelo qual se encontra acusado de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelos art.º 1, 3 e 108 n.º 1 do DL 422/89, de 2.12, na redacção dada pelo DL 10/95, de 19.01, atenta a insuficiência de prova produzida em audiência de julgamento.
    d) Apesar do arguido ao longo do seu depoimento negar os factos pelos quais se encontra acusado, não ter o Mm.º Juiz valorado tal depoimento, apesar de confirmado com o depoimento do co-arguido …, não se ter verificado a titularidade legal da máquina onde se encontrava o jogo considerado como ilegal.
    e) Da prova produzida em julgamento resulta que o arguido IM apenas é contabilista da firma proprietária da máquina em questão, nunca ter visto a mesma nem ter tido qualquer intervenção na sua colocação ou activação, factos esses confirmados pelo co-arguido … e não resultando da restante prova qualquer intervenção por parte do mesmo.
    f) O arguido apenas teve conhecimento dos factos aquando da sua apreensão.
    g) Todavia, o Mm.º Juiz deu como provado que a máquina multijogos denominada “Total 4” foi colocada no referido estabelecimento pelo arguido IM.
    h) Para tal socorre-se do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127 do CPP, em que acaba por se fundamentar a decisão recorrida.
    i) Todavia, tal princípio tem necessariamente que se alicerçar em meios de prova concretos e objectivos, o que não se verificou.
    j) Ao apreciar livremente a prova o tribunal a quo não utilizou, no nosso modesto entender, as regras da experiência comum e os necessários critérios objectivos, violando o princípio consagrado no art.º 127 do CPP.
    k) Com efeito, a prova produzida em audiência de julgamento, dada a sua insuficiência e carácter redutor, não poderia permitir ao tribunal dar como assente, de forma integral, a responsabilidade criminal do arguido na prática dos factos.
    l) Assim sendo, sempre teriam que naufragar os elementos do tipo de crime em causa, pois que, o princípio da livre apreciação da prova constitui regra de apreciação da prova em direito penal. Para conduzir à condenação, tal prova deve ser plena, pelo que, na decisão de factos incertos, a dúvida determina necessariamente a absolvição, de harmonia com o princípio da inocência que enforma também o direito processual penal e tem consagração constitucional (art.º 32).
    m) Pelo que a douta sentença em recurso violou os art.ºs 127, 374 n.º 2, 379 e 410 n.ºs 1 e 2, todos do CPP, 32 da Constituição da República Portuguesa e o princípio in dubio pro reo.
    n) Termos em que, e nos melhores de direito doutamente a suprir, deve o recorrente ser absolvido do crime pelo qual foi condenado.
3. O Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu, dizendo, em síntese:
    a) Os recursos restringem-se à verificação da existência dos vícios indicados no n.º 2 do art.º 410 do CPP;
    b) A decisão recorrida não padece de qualquer um desses vícios, pelo que o recurso deve improceder.
4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência de ambos os recursos.
5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal (art.º 423 do CPP).
Cumpre, pois, decidir.
6. Foram dados como provados na 1.ª instância os seguintes factos:
a) No dia …, cerca das 21h15m, a Secção de … da Brigada Fiscal da Guarda Nacional Republicana procedeu a uma acção de fiscalização, juntamente com a Inspecção Geral de Jogos e um elemento das Equipas Especiais de Investigação e Combate ao Jogo Ilegal, ao Café – Restaurante …, sito na …, em …, área da Comarca de …, e pertencente ao arguido LF.
b) Nessa acção de fiscalização foi detectada no interior do estabelecimento, que se encontrava em funcionamento, no café e num anexo do lado esquerdo de quem entra, uma máquina modelo “Maquina Total 4”, cujo sistema de funcionamento é do tipo vídeo, com um sistema TOUCHSCREEN, ou seja, o jogador intervém nos jogos por toques no ecrã e não através de um teclado. Ligada a máquina à corrente eléctrica aparecem no ecrã vários ícones que permitem ao jogador optar por vários tipos de jogos de diversão, que constam da memória descritiva. Porém, aparece mais um jogo designado “21 GO”, o qual não consta na memória descritiva do documento de registo da IGJ e que se passa a descrever:
    - aparecem cinco colunas e um baralho de cartas com uma ordenação inteiramente aleatória (no canto superior esquerdo do ecrã), que mostra sempre, e apenas, a primeira carta;
    - o jogador coloca essa carta numa das colunas (surgindo aleatoriamente outra carta aberta no seu lugar) na tentativa de obter o valor 21 em cada coluna ou o mais aproximado possível;
    - as cartas do baralho têm um valor numérico com as seguintes equivalências: o Ás vale 1 ou 11, as figuras valem 10, as restantes têm o valor que representam (2 a 10);
    - trata-se de um jogo em tudo semelhante ao jogo BLACK JACK dos casinos, que depende da sorte e não da perícia do jogador.
c) Foi ainda encontrado um placard expositor, sem marca, com vários prémios, todos identificados por números, e um expositor em acrílico, transparente, de forma oval, com base de cor verde claro, contendo no interior um número indeterminado de cápsulas de várias cores. O jogador introduz uma moeda de 100$00 no expositor; em seguida roda um manípulo até ao ponto de bloqueamento e recebe uma pequena cápsula oval de plástico, dentro da qual se encontra uma senha com a inscrição de uma letra ou de um número. Aberta a senha, há dois resultados possíveis:
    1) A senha contém a indicação de uma letra de “A” a “G” e, de acordo com o plano de prémios, o jogador tem direito a receber um objecto correspondente;
    2) A senha contém um número, que corresponde ao número dos objectos em exposição no placard e o jogador recebe esse prémio. Os números e nomes impressos nas senhas e a respectiva combinação com os números do placard assenta única e exclusivamente na sorte, sem possibilidade de o jogador influenciar ou condicionar essa combinação.
d) No referido estabelecimento estava também uma máquina sem qualquer referência exterior quanto à origem, fabricante, número de fabrico ou série. Ligada a máquina, e após a introdução de moedas de 100$00, o jogador decide o número de apostas que deseja jogar. Pressionando a tecla “start” a jogada inicia-se, começando os rolos a rolar. Passados alguns segundos pára automaticamente, aparecendo em cada uma das três janelas existentes na parte central um símbolo. O jogador pode, nesta fase do jogo, caso o pretenda, fixar alguns daqueles símbolos através da tecla correspondente. Carregando de novo na tecla “start” dá-se continuidade à jogada, começando os rolos novamente a rolar. Uma vez parados a jogada termina.
Duas situações podem então acontecer:
    1) A combinação que saiu não é premiada: neste caso o jogo só não termina caso uma das luzes numeradas de 1 a 4 esteja acesa. Nesta situação o jogador tem a possibilidade de fazer rodar um dos rolos para a figura seguinte, obtendo, dessa forma, uma nova combinação, premiada ou não;
    2) A combinação que saiu é premiada, podendo o jogador optar entre fazer colecta dos pontos obtidos ou duplicar os créditos ganhos. Nesta última situação o jogador terá de acertar na escolha de um número maior ou menor do que o número que se acende no painel (números de 1 a 10), caso contrário perde tudo o que tiver apostado.
    O objectivo deste jogo é obter uma combinação de três símbolos com direito a prémio, conforme o plano de prémios desenhado no painel da máquina. O aparecimento destes símbolos e respectivas combinações assenta única e exclusivamente na sorte, através do mero accionamento dos botões, sem possibilidade de o jogador o influenciar ou condicionar.
e) No referido estabelecimento estava ainda uma máquina sem qualquer referência exterior quanto à origem, fabricante, número de fabrico ou série. Introduzindo uma ou mais moedas de 100$00 na ranhura própria é escolhido o número de créditos a apostar na tecla “BET” e, através do accionamento da tecla “start” é iniciado o jogo. Surgem então, de forma aleatória, e dispostos em linha na base do ecrã, cinco círculos com números que variam entre 1 e 13, sendo ainda representados por quatro cores diferentes (azul, verde, vermelho e laranja). Da sua combinação pode resultar o eventual aparecimento no ecrã de quatro círculos com o número 1 (sendo um de cada cor), quatro com o n.º 2 e assim sucessivamente, até ao número 13. O número 1, por convenção, corresponde ao Ás, o 13 ao Rei e os números intermédios às demais cartas do naipe de um baralho.
Quanto às cores (azul, verde, vermelho e laranja), correspondem aos naipes de copas, espadas, paus e ouros.
O jogador pode, nesta fase do jogo, e se assim o entender, fixar algum dos números através dos botões correspondentes (STOP), de modo a tentar obter uma sequência premiada. A máquina, por defeito, já fixa os mais apropriados, aparecendo então por baixo desses a imagem de uma mão. Carregando novamente na tecla “start” dá-se prosseguimento à jogada, aparecendo novos números em detrimento daqueles que não foram fixados. Trata-se de um jogo em tudo semelhante às máquinas de VIDEOPOKER dos casinos, em que o objectivo é o de conseguir combinações premiadas, tais como: SEQUÊNCIA REAL (Ás, Rei, Valete, Dama e 10 do mesmo naipe), SEQUÊNCIA NUMÉRICA, SEQUÊNCIA DE COR, FULLEN, TRIOS, PARES, etc., tudo dependendo da sorte, independentemente da perícia do jogador.
No momento da fiscalização estava a jogar nessa máquina JV.
f) Foi detectada no interior do estabelecimento acima referido uma máquina PC sem marca, um monitor de marca SAMSUNG Sync Master 700 S plus, ambos de cor branca, um moedeiro de cor preta, com uma ranhura para introduzir moedas e outra para retirar as moedas encravadas, uma disquete de computador, identificada pela inscrição “Samsung Monitor Installation Disk for Windows”. O sistema de funcionamento é do tipo vídeo, com um sistema TOUCHSCREEN, ou seja, o jogador faz as marcações no monitor do computador por toque de dedo. Ligado o computador nada aparece no ecrã. Se for introduzida a disquete apreendida e ligado o computador aparece no ecrã o nome “MAGIC PLANET” e um menu com seis temas de jogo de diversão, a saber: Anagrams, Hangman, Napoleon, Word Mess, Solitaire, Photo Dif. Pressionando no quadrado “Premium Gate” aparece um outro menu com seis temas de jogo:
1 – Lottaria 20 – tema semelhante ao vídeo keno dos casinos, cujo objectivo é apostar em 8 dos 20 números que aparecem no quadro.
A tabela de prémios está situada no canto inferior direito e para a aposta mínima de 1 crédito a tabela é a seguinte:
    - 6 Win – 10
    - 5 Win – 5
    - 4 Win – 2
    - 3 A Win – 1.
    Ou seja, se saírem 3, 4, 5 ou 6 dos 8 números escolhidos pelo jogador, o jogador tem o prémio correspondente; se a aposta for 2, os prémios são multiplicados por 2 e assim sucessivamente, até à aposta máxima de 65 créditos. Este tema de jogo é de fortuna ou azar, pois o jogador aposta dinheiro na esperança aleatória de ganhar mais dinheiro como prémio, sendo o resultado contingente e dependendo única e exclusivamente da sorte.
    2 – Barbouti Dice – é um jogo de dados com semelhanças ao jogo de Banca Francesa dos Casinos, no qual o jogador pode apostar em duas colunas “BET FRONT” e “BET BACK” até um máximo de 50 créditos, tendo cada uma várias combinações que dão direito a prémio (WIN), sendo o resultado contingente e dependendo única e exclusivamente da sorte.
    3 – Vídeo Donna – tema semelhante ao Vídeo-Poker das máquinas dos casinos. O seu objectivo, mediante a aposta (máximo de 100 créditos), é o conseguir combinações premiadas, tais como SEQUÊNCIA REAL, SEQUÊNCIA NUMÈRICA, SEQUÊNCIA DE COR, FULLEN, TRIOS, PARES, etc., como consta da tabela de prémios situada na tabela do lado direito do ecrã. Tudo depende única e exclusivamente da sorte, independentemente da perícia do jogador.
    4 – Horse Races – é um jogo que desenvolve um tema assente em apostas numa corrida de 10 cavalos. O jogador aposta em um ou mais cavalos, até ao máximo de 50 créditos em cada um. Mediante a sua aposta, o jogador poderá ou não ter direito a prémio, caso o cavalo vencedor seja aquele em que apostou, sendo o resultado contingente e dependendo única e exclusivamente da sorte.
    5 – ROULETTE 12 – é um jogo cujo tema é semelhante ao jogo desenvolvido nas roletas dos casinos. O jogador pode apostar num dos 12 números existentes no grande e pequeno ou no preto e vermelho. De seguida, uma pequena esfera anda à roda e, mediante a sua aposta, o jogador poderá ou não ter direito a prémio, sendo o resultado contingente e dependendo única e exclusivamente da sorte.
    6 – Lottery Ticket – neste jogo o jogador escolhe um dos 9 tipos de cartões de raspadinha, com preços e prémios diferentes. Raspando o cartão escolhido verá se tem prémio ou não. Uma vez mais o jogo depende apenas da sorte, sendo também jogo de fortuna ou azar. No momento da fiscalização estava a jogar nesta máquina CM.
g) Numa arrecadação do lado direito de quem entra, e com acesso pelo interior do estabelecimento, estava uma máquina tipo vídeo, com os dizeres “Super Vídeo” e “Alcor”, sem qualquer outra referência exterior quanto ao número de fabrico ou de série. O sistema de funcionamento é do tipo vídeo, desenvolvendo um jogo de fortuna ou azar denominado “SUPER POKER”.
Ligada a máquina nada aparece no ecrã. Depois da introdução de um código aparece no ecrã o jogo de fortuna ou azar, o POKER DE CARTAS, cuja lógica de funcionamento é a seguinte: ao cimo e à esquerda tem os seguintes dizeres – em cima “Any”, a seguir o n.º 888, depois “Full House” e, por fim, a indicação de “n.º de joker”, que varia de acordo com o valor da aposta.
Segue-se, na parte central, um plano de prémios, semelhante ao plano de prémios do poker, disposto em coluna. Trata-se da pontuação a que correspondem as diversas combinações premiadas e para uma só aposta; se a jogada se fizer com mais de uma aposta, aqueles números aparecem automaticamente alterados em face do número de apostas, ou seja, para duas apostas tais números aparecem multiplicados por 2 e assim sucessivamente, até ao limite de 100 apostas (=1.000$00) em cada jogada. Ao cimo, à direita do ecrã, aparecem as palavras “CREDIT”, que corresponde aos créditos introduzidos e ganhos, “BET”, que corresponde ao número de apostas em cada jogada, e “WIN”, que corresponde aos pontos ganhos. Ao centro do ecrã aparece o nome do jogo – “SUPER POKER” – e, alternando com o nome do jogo, aparece um conjunto de 5 rectângulos em linha, com a imagem de um joker. Após a introdução de créditos, e decidido o número de apostas (pontos) a arriscar na jogada, que pode variar entre 1 e 100 apostas (apostas mínima e máxima), pressiona-se um dos botões da consola e os cinco rectângulos são “virados”. Aparecem então as figuras de cinco cartas de jogar dispostas de forma aleatória quanto aos naipes (copas, ouros, espadas e paus) e às cartas de cada naipe, dando-se, assim, início ao jogo.
O objectivo deste jogo é o de conseguir combinações premiadas, tais como, sequência real, sequência numérica, sequência de cor, fullen, trios, pares, etc., combinações essas geradoras de pontuações que dependem em tudo da sorte, independentemente da perícia e destreza do jogador. Tal como nas máquinas dos casinos, o jogador também pode tentar a dobra, desde que tenha obtido uma combinação premiada.
h) A máquina tipo vídeo, com os dizeres “Super Vídeo” e “Alcor” foi colocada no referido estabelecimento por um cidadão espanhol que apenas se sabe chamar ….
i) A máquina multijogos denominada “Total 4” foi colocada no referido estabelecimento pelo arguido IM.
j) Os lucros da exploração da máquina “Total 4” seriam repartidos pelos arguidos na proporção de 50% para cada um.
k) As restantes máquinas (jogos) pertenciam ao arguido LF, que as havia adquirido ao referido espanhol ….
l) Todos os jogos desenvolvidos pelas máquinas revestem as características de jogos de fortuna ou azar, pois que, não interferindo de forma alguma a perícia do jogador, os resultados são contingentes, por dependerem exclusivamente da sorte.
m) No momento da apreensão as máquinas tinham no seu interior 41.100$00.
n) Os arguidos IM e LF agiram deliberada, livre e conscientemente, sabendo que os jogos que exploravam eram jogos qualificados como de fortuna e azar e que, como tal, só podiam ser efectuados em locais em que existisse concessão de exploração por parte da entidade competente, de que não eram detentores.
o) O arguido IM é casado, contabilista, auferindo mensalmente cerca de 1.100,00 euros, paga mensalmente cerca de 364 euros para amortização do empréstimo para aquisição de casa, tem um filho de dezassete anos e despesas no valor de 100 euros, estando a esposa desempregada; foi condenado em 5 de Janeiro de 2000 pela prática, em 31 de Julho de 1994, de um crime de exploração ilícita de jogo, na pena de multa de 112.500$00 ou, em alternativa, 50 dias de prisão, substituída esta por 90 dias de multa.
p) O arguido LF é comerciante, auferindo mensalmente cerca de 1.200,00 euros, tem três filhos e tem despesas domésticas no valor de 300 euros; não tem antecedentes criminais.
7. Consta da sentença recorrida que não se provou que os lucros da exploração da máquina “Total 4” fossem efectivamente repartidos pelos arguidos, em proporção não concretamente apurada.
8. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido (art.º 412 do Código de Processo Penal).
Tais conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito – elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, sendo estas que delimitam o âmbito do recurso (ver art.ºs 412 n.ºs 1 e 2 e 410 n.ºs 1 a 3, ambos do C.P.P., e, entre outros, o acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98).
Não primam pela clareza as conclusões dos recursos apresentados. Todavia, delas se inferem as seguintes questões colocadas pelos recorrentes à apreciação deste tribunal:
1.ª - A nulidade da sentença, por falta de fundamentação da matéria de facto (art.ºs 374 n.º 2 e 379 do CPP) – questão suscitada pelo recorrente LF;
2.ª - A insuficiência da prova produzida em audiência para se concluir que os arguidos cometeram o crime pelo qual foram condenados/violação do princípio da livre apreciação da prova (art.º 127 do CPP)/violação do princípio in dubio por reo questões suscitadas por ambos os recorrentes;
3.ª - A existência de erro notório na apreciação da prova (art.º 410 n.º 2 al.ª c) do CPP) – questão suscitada pelo recorrente LF;
4.ª - A violação do art.º 355 n.º 1 do CPP (por se ter valorado, em julgamento, o relatório pericial junto aos autos sem que o mesmo tivesse sido lido ou exibido em audiência) – questão suscitada pelo recorrente LF;
5.ª - A contradição (insanável) entre o facto dado como provado sob a al.ª j) do ponto 6 e o facto (único) não provado – questão suscitada pelo recorrente LF;
6.ª - A insuficiência da matéria de facto para a decisão (por não se ter apurado qual o dinheiro que estava depositado em cada uma das máquinas) – questão suscitada pelo arguido LF.
8.1. – 1.ª questão (a nulidade da sentença, por falta de fundamentação da matéria de facto)
Suscita o arguido LF a nulidade da sentença por a mesma – no que respeita à fundamentação da matéria de facto - omitir “o itinerário demonstrativo da formulação do juízo sobre a existência de determinada situação factual” (o conhecimento do arguido da diferença entre jogos de fortuna e azar e jogos de perícia), impedindo a “sua fiscalização por parte do tribunal superior, através dos mecanismos de controlo de que dispõe para avaliar a (in)correcção da decisão”;
O tribunal fundou a sua convicção (no que à matéria de facto respeita), nos seguintes termos:
    - A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, “há-de fundar-se numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros...”.
    - “... o tribunal deve fazer um balanço de todos os depoimentos e é do conjunto da prova produzida, combinando elementos de um ou outro depoimento com as restantes provas, que pode encontrar a verdade jurídica dos factos...”.
    - “O arguido IM sempre negou saber que o jogo “21 GO” estivesse na máquina “Total 4”, ancorando-se na memória descritiva por si enviada à Direcção Geral de Jogos, de onde tal jogo não constava, sustentando ainda que é um seu primo que procede à instalação da maquinaria. Tal versão não é considerada credível pelo tribunal, uma vez que, quer o autor do relatório pericial, …, quer a testemunha …, ambos da Inspecção Geral de Jogos, referiram que tal jogo vem já instalado na máquina. Acresce que, como o próprio arguido reconheceu que há cerca de dez anos que se dedica à actividade de exploração e venda de máquinas de jogos... face a uma actividade tão duradoura não é crível, de acordo com as regras da experiência comum, que o arguido não soubesse que tal jogo estivesse na máquina, sendo certo que tal jogo já vinha inserido na máquina”.
    - “Quanto ao arguido LF, também a sua versão de desconhecimento dos jogos que estão dentro das máquinas e da proibição dos jogos em causa não é credível, considerando que, como admitiu, conhece o conteúdo de uma das máquinas, uma vez que referiu jogar ao “Trivial Pursuit”, conhecendo que tal jogo depende da perícia e, como tal, sabendo a distinção entre, por um lado, jogo de fortuna e azar, e jogo que depende da perícia do jogador, por outro”.
    - “... de acordo com as regras da experiência comum, o arguido LF, na sua qualidade de dono de café – que tem várias máquinas – não poderia desconhecer o conteúdo das máquinas e a natureza (de proibidos) dos jogos”.
    - “A convicção do tribunal fundou-se ainda no depoimento da testemunha …, que confirmou a utilização das máquinas nos termos que constam dos factos provados. Baseou-se ainda tal convicção no relatório pericial de fol.ªs 31 a 56 e na confirmação do seu teor pelo senhor perito”.
    - “Tal convicção assentou ainda nas declarações dos arguidos, que confirmaram que a máquina “Total 4” foi colocada no café do arguido LF, sendo os lucros dela distribuídos a meio...”.
A sentença deve conter, sob pena de nulidade (art.º 379 al.ª a) do CPP):
2 - ... uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” (art.º 374 n.º 2 do CPP).
Resumidamente, o que se pretende com tal exigência é permitir, quer aos sujeitos processuais, quer ao tribunal superior, a percepção clara das razões ou motivos pelos quais o tribunal assim decidiu.
Valem aqui os ensinamentos de Marques Ferreira, in Meios de Prova, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal, 228 e seguintes, onde escreve: “A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso, conforme impõe, inequivocamente, o art.º 410 n.º 2...
E, extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade”.
No mesmo sentido se pronuncia Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, 294: “A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite a sindicância da validade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina”.
No caso em apreço, a sentença recorrida indicou, de modo claro, quer a provas em que o tribunal se baseou para formar a sua convicção, quer as razões pelas quais essas provas o convenceram nesse sentido, ou seja, de que os arguidos “agiram livre, deliberada e conscientemente, sabendo que os jogos que exploravam eram jogos qualificados como de fortuna e azar” e, como tal, que a sua exploração não lhes era permitida.
Baseou-se o tribunal, para assim decidir (de acordo com a fundamentação que consta da sentença):
    - no relatório pericial de fol.ªs 31 a 56 (onde se identificam as máquinas e se descreve o seu funcionamento);
    - no depoimento do senhor perito, que confirmou o teor de tal relatório;
    - no depoimento da testemunha …, que confirmou a utilização das máquinas nos termos que constam dos factos provados;
    - no depoimento da testemunha … e …, ambos da Inspecção Geral de Jogos, que referiram que o jogo “21 GO” – que não consta da memória descritiva da máquina “Total 4” enviada pelo arguido IM à Inspecção-Geral de Jogos – “já vem instalado na máquina” (já constava da máquina quando tal memória descritiva foi enviada à Inspecção Geral de Jogos), pelo que não é crível – de acordo com as regras da experiência comum - tanto mais que reconheceu que há cerca de 10 anos que se dedica à actividade de exploração e venda de máquinas de jogos, que não soubesse que tal jogo estava na máquina, sendo certo que já vinha inserido na mesma;
    - nas declarações do arguido LF, que admitiu conhecer o conteúdo de uma das máquinas, uma vez que referiu jogar ao “Trivial Pursuit”, “conhecendo que tal jogo depende da perícia e, como tal, sabendo a distinção entre, por um lado, jogo de fortuna e azar, e jogo que depende da perícia do jogador, por outro”; de acordo com as regras da experiência comum, o arguido LF, na sua qualidade de dono de café, que tem várias máquinas, não poderia desconhecer o conteúdo das máquinas e a natureza dos jogos.
De acordo com esta fundamentação não pode dizer-se que a sentença recorrida não indica as provas em que o tribunal se baseou para formar a sua convicção e porque razão tais provas lhe mereceram credibilidade, ou seja, porque razão as mesmas o convenceram no sentido em que formou a sua convicção e porque razão não lhe mereceram credibilidade as declarações do arguido, designadamente quanto ao desconhecimento, por parte deste, da natureza das máquinas que explorava, dos jogos que estas desenvolviam e da ilicitude da sua conduta.
Não se pode dizer, pois, que o tribunal, na fundamentação da matéria de facto, não seguiu um processo racional e lógico na apreciação que fez das provas e que, portanto, não respeitou as regras da experiência comum, da lógica, dos critérios da normalidade, na análise que fez das provas produzidas.
Improcede, por isso, a nulidade invocada (a nulidade da sentença por falta de fundamentação).
8.2. – 2.ª questão (a insuficiência da prova produzida em audiência para se concluir que os arguidos cometeram o crime pelo qual foram condenados/violação do princípio da livre apreciação da prova/violação do princípio in dubio pro reo).
Questiona o arguido LF a convicção do tribunal (se o tribunal não acreditou no arguido, acreditou em quem? – pergunta na conclusão f) acima transcrita).
Por sua vez, o arguido IM questiona a convicção do tribunal que, não dando credibilidade ao seu depoimento, concluiu que a máquina “Total 4” foi colocada no estabelecimento pelo arguido IM, “socorrendo-se do princípio da livre apreciação da prova”.
Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto o recorrente deve especificar:
    a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
    b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
    c) As provas que devem ser renovadas”, devendo as especificações previstas nas al.ªs b) e c) ser feitas por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição (art.º 412 n.ºs 3 e 4 do CPP).
Os arguidos, como se vê, quer da motivação do recurso, quer das conclusões da mesma, não especificam os pontos de factos que consideram incorrectamente julgados (com algum esforço depreende-se que o arguido IM considera incorrectamente julgado o facto – provado – de que foi ele que colocou a máquina no estabelecimento e o arguido LF considera incorrectamente julgado o facto – provado – relativo à consciência da ilicitude), como não especificam as provas que impõem decisão diversa da recorrida e os suportes técnicos dessas provas, de modo que o tribunal possa apreciar o mérito da impugnação.
Não pode o tribunal, consequentemente, conhecer da matéria de facto assim impugnada.
Não deixará, porém, de se acrescentar:
1) Relativamente ao arguido LF, concretamente quanto à dúvida sobre em quem acreditou o tribunal (que não acreditou em si), o tribunal disse claramente em quem acreditou, na fundamentação que deu para justificar a sua convicção: acreditou no exame pericial, no depoimento das testemunhas supra referidas (ponto 8.1) e na própria experiência do arguido, o qual, enquanto comerciante e dono de café, não pode – de facto - de acordo com a regras da experiência comum e da normalidade da vida, deixar de saber a natureza das máquinas que explora (no seu café) e, consequentemente, a ilicitude da sua conduta; não se trata de qualquer presunção, mas de uma dedução (lógica), que resulta da análise conjugada da prova e dos demais factos dados como provados, de acordo com os critérios da experiência comum e da normalidade da vida.
2) Relativamente ao arguido IM, que não questiona a repartição dos lucros da exploração da máquina, não se percebe a razão da impugnação da propriedade da máquina (facto que não consta da matéria de facto provada e não provada), pois o que se provou é que a mesma foi colocada no estabelecimento por este arguido e isto resulta das suas próprias declarações, quando refere que “tava tudo devidamente homologada, licenciada e tudo... tudo o que temos, tudo homologado, tudo devidamente licenciado p`la Inspecção Geral e Jogos”, e quando responde ao arguido LF, quando lhe dá conhecimento da apreensão: “Eh pá, então, mas a minha máquina tá devidamente, penso eu que tava legal...”.
Mas poderá afirmar-se – como pretendem os recorrentes - que o tribunal violou o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127 do CPP?
Entendemos que não.
As provas são apreciadas pelo julgador de acordo com as regras da experiência comum e a sua livre convicção – não uma convicção puramente subjectiva, baseada em imprecisões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas de uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras da lógica, da razão e das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, de tal modo que, sendo uma convicção pessoal, há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável.
Intimamente relacionado com este estão os princípios da imediação e da oralidade, que permitem o contacto directo e imediato do julgador com os arguidos e demais intervenientes processuais, a recolha deixada pela sua personalidade e a avaliação da credibilidade das declarações ou depoimentos prestados.
Como se escreve no acórdão da RP de 5.06.2002, Proc. 0210320, in www.dgsi.pt, “a actividade judiciária na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de factores que têm a ver com as garantias da imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (inclusive os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente (...) não raras vezes o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios que tenham merecido a confiança do tribunal”.
Por isso, o tribunal de recurso, a quem está vedado tal contacto directo e imediato, perante versões contraditórias só pode afastar-se do juízo feito pelo julgador naquilo que não colida com aqueles princípios, ou seja, quando, de acordo com a fundamentação da convicção, resulte que esta não se fundou em consonância com as regras da lógica, dos juízos da normalidade e da experiência comum.
“Quando a atribuição da credibilidade de uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum” – escreve-se no acórdão da RC de 6.03.2002, Col. Jur., Ano XXVII, t. 2, 44.
Não é, manifestamente, o que acontece no caso em apreço, tendo em conta a fundamentação da convicção acima transcrita, da qual resulta – como dissemos aquando da análise da questão anterior – que as provas foram analisadas de modo crítico e cuidado, tomando em consideração as regras da experiência e os critérios da lógica e da normalidade.
Aliás, para a convicção do tribunal foram fundamentais as declarações dos arguidos, destacadas a páginas 16 e 17 deste acórdão.
Improcede, por isso, a invocada violação do princípio da livre apreciação da prova.
Invocam ainda os arguidos a violação do princípio in dubio pro reo.
Sem razão.
Este princípio identifica-se com o da presunção da inocência do arguido e impõe que o julgador valore sempre a favor do arguido um “non liquet”, ou seja, em suma, na decisão de factos incertos a dúvida favorece o réu (Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 12.ª edição, 333); ele será desrespeitado quando o tribunal, colocado numa situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido, mas “não é toda e qualquer dúvida que fundamenta o princípio in dubio pro reo, mas apenas a dúvida razoável, razoabilidade que cabe ao julgador analisar caso a caso” (acórdão do STJ de 13.01.99, Proc. 262/99, 3.ª Secção, SASTJ, 33, 68, citado por Maia Gonçalves, in obra mencionada, 338).
Não é o que acontece no caso em apreço, pois ao tribunal nenhumas dúvidas se suscitaram – como resulta da fundamentação da sentença recorrida atrás supra analisada – quanto à prova dos factos dados como provados e que integram os elementos constitutivos do crime pelo qual os arguidos foram condenados; e não se suscitando quaisquer dúvidas, quer quanto aos factos, quer quanto à sua imputação aos arguidos, nos termos em que o foram, não faz qualquer sentido a invocação da violação do princípio in dubio pro reo, que carece, por isso, de fundamento.
8.3. – 3.ª questão (o erro notório na apreciação da prova)
O erro notório na apreciação da prova é um vício da decisão (art.º 410 n.º 2 al.ª c) do CPP) e traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando determinado facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (acórdão do STJ de 98.07.09, Proc. 1509/97, citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 77).
Tal erro terá que ser notório, de modo que, apreciada a decisão, na sua globalidade, de acordo com as regras da experiência comum, ressalte aos olhos do observador comum que o tribunal errou – manifestamente – na apreciação que fez das provas.
Não é o que acontece no caso em apreço, pois a decisão recorrida, apreciada na sua globalidade, no seu todo, apresenta-se como perfeitamente coerente e lógica, ou seja, existe uma perfeita sintonia entre a fundamentação e a decisão, por um lado, e os factos dados como provados e a justificação da convicção do tribunal, por outro.
Aliás, invocando a existência de tal vício, o recorrente LF justifica a sua existência com o facto do tribunal não ter dado credibilidade à versão do arguido, ou seja, por discordar da convicção que o tribunal formou com base nas provas produzidas em julgamento, fundamento que nada tem a ver com o erro notório na apreciação da prova.
O arguido IM, afirmando, embora, que a sentença violou o art.º 410 n.ºs 1 e 2 do CPP, não invoca quaisquer razões concretas para fundamentar tal vício, limitando-se a manifestar a sua divergência quanto à convicção que o tribunal formou com base nas provas produzidas - que não coincide com a sua - alegação que nada tem a ver com o erro notório na apreciação da prova.
Improcede, por isso, o invocado erro notório na apreciação da prova.
8.4. – 4.ª questão (a violação do art.º 355 n.º 1 do CPP)
Suscita o arguido LF a violação do art.º 355 n.º 1 do CPP por o tribunal ter valorado o relatório pericial junto aos autos, prova não produzida em audiência de julgamento, violando-se, por isso, o princípio do contraditório.
Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência (art.º 355 n.º1 do CPP).
Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura em audiência seja permitida, nos termos dos artigos seguintes (art.º 355 n.º 2 do CPP).
O relatório pericial é um documento constante do processo, cuja leitura é permitida em audiência, face ao que dispõe o art.º 356 n.º 1 al.ª b) do CPP, e que, portanto, pode ser valorado em julgamento, independentemente da sua leitura em audiência.
A propósito, escreve Maia Gonçalves, in CPP Anotado e Comentado, 12.ª edição, 667: “Há portanto que esclarecer, pois tem reinado alguma confusão sobre este ponto, que os documentos constantes do processo se consideram produzidos em audiência, independentemente de nesta ser feita a respectiva leitura, desde que se trate de caso em que esta leitura não seja proibida. Esta orientação... foi seguida, entre outros, pelo acórdão do TC n.º 87/99, de 10 de Fevereiro”.
Estas provas – escreve-se, por sua vez, no acórdão do STJ de 23.03.94, Proc. 46218, 3.ª Secção, sumariado por Maia Gonçalves, in obra citada, 668 – “são provas que, forçosamente, estão presentes na audiência e submetidas ao contraditório, sem necessidade de serem lidas na mesma audiência, já que as partes têm conhecimento do seu conteúdo”.
No mesmo sentido veja-se o acórdão do STJ de 21.12.04, in www.dgsi.pt, sumariado no parecer que o Ministério Público elaborou nos presentes autos.
Improcede, por isso, a invocada violação do art.º 355 n.º 1 do CPP, designadamente a violação do princípio do contraditório, por o tribunal ter valorado o exame pericial junto aos autos.
8.5. – 5.ª questão (a contradição insanável entre o facto dado como provado sob a al.ª j) do ponto 6 da matéria de facto acima transcrita e o facto dado como não provado).
Invoca o arguido LF a contradição – que considera insanável – “entre dois factos que tornam a decisão nula (facto 9 dos factos provados e facto não provado)”.
Lidos tais factos, não se vê nos mesmos qualquer contradição – e muito menos insanável - enquanto vício da decisão, tal como se prevê no art.º 410 n.º 2 al.ª b) do CPP.
No facto 9 (que neste acórdão corresponde à al.ª j) do ponto 6) deu-se como provado que “os lucros da exploração da máquina “Total 4” seriam repartidos pelos arguidos na proporção de 50% para cada um”; na matéria de facto dada como não provada consta que não se provou “que os lucros da exploração da máquina “Total 4” fossem efectivamente repartidos pelos arguidos em proporção não concretamente apurada”.
Tudo muito claro: por um lado deu-se como provado que os lucros da exploração daquela máquina (que foi colocada no referido estabelecimento pelo arguido IM...) seriam repartidos pelos arguidos na proporção de 50% para cada um, por outro, deu-se como não provado que os lucros obtidos fossem (foram) efectivamente repartidos pelos arguidos (“em proporção não concretamente determinada”) – uma coisa foi a colocação da máquina no estabelecimento e as condições estabelecidas quanto à repartição dos lucros da sua exploração e outra, diferente, foi o modo como foram efectivamente repartidos os lucros, facto que não se provou.
Esta é a única interpretação possível face ao facto alegado na acusação, onde se escreve que “os lucros da exploração destas máquinas eram repartidos por estes arguidos em proporção não concretamente apurada” – em suma, não se provou que “os lucros... eram efectivamente repartidos...”, mas que “seriam repartidos...”, pelo que não ocorre qualquer contradição.
Improcede, por isso, a invocada contradição insanável da fundamentação.
8.6.- 6.ª questão (a insuficiência da matéria de facto para a decisão)
Invoca o arguido LF a insuficiência da matéria de facto para a decisão, por não se ter apurado quais os montantes depositados em cada uma das máquinas.
De acordo com a matéria de facto dada como provada, “no momento da apreensão as máquinas tinham no seu interior 41.100$00”.
A insuficiência da matéria de facto para a decisão é um vício da sentença (art.º 410 n.º 2 al.ª a) do CPP) e verificar-se-á quando se constata, pela análise do texto da decisão, apreciada na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, que existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão da causa, ou seja, quando se chega à conclusão de que, com os factos dados como provados, não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, impondo-se, consequentemente, a averiguação de tal facto (ou factos) - Simas Santos e Leal-Henriques, in Recurso em Processo Penal, Rei dos Livros, 4.ª edição, 70.
No caso em apreço, os lucros auferidos com a exploração das máquinas não são elemento constitutivo do tipo.
Por outro lado, sendo todas as máquinas apreendidas exploradas pelo arguido, seria irrelevante apurar em qual delas aquela quantia se encontrava, pois se encontrava seguramente numa (ou em mais que uma) das máquinas por si exploradas.
Por outro lado, na sentença recorrida não se tomou em consideração aquela quantia – enquanto lucro da exploração de jogo ilícito – pelo que não tem qualquer relevância para a determinação da responsabilidade do arguido e, consequentemente, da pena, apurar em qual das máquinas (se era ilícita a exploração de todas elas) se encontrava tal quantia, designadamente se tivermos em conta o facto não provado a que acima (no ponto anterior) fizemos referência.
Fosse qual fosse o resultado dessa averiguação, da mesma nada de útil seria possível concluir em benefício do arguido.
Improcede, por isso, a invocada insuficiência da matéria de facto para a decisão.
9. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos IM e LF e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos arguidos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça a pagar pelo arguido IM em sete UC e a taxa de justiça a pagar pelo arguido LF em oito UC.
(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)
Évora, 06/06/2006