Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4210/23.4T8STB-A.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
DIREITO DE SUPERFÍCIE
DOMÍNIO PRIVADO
INTERESSE PÚBLICO
LEI DOS SOLOS
Data do Acordão: 06/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Tendo, através de uma escritura outorgada em 13.6.1994, sido constituído a favor da Aerogeradores de Portugal, S.A um direito de superfície administrativa sobre bens do domínio privado do Município de Sines, ficou o mesmo submetido ao regime especial da Lei dos Solos aprovada pelo DL nº 794/76, de 5 de Outubro, em vigor na data da sua constituição por contrato e, subsidiariamente, ao Código Civil.
II - No documento complementar anexo a essa escritura as partes consagraram, além do mais, a proibição da venda sem a autorização do Município proprietário do solo (fundeiro), a proibição do terreno cedido servir para fim diferente daquele para que foi concedido (para instalação de aerogeradores) e a reversão para o Município, sem direito da superficiária a qualquer indemnização, no caso de inobservância das condições convencionadas ou da falta de cumprimento das formalidades e prazos estabelecidos.
III - Estamos, no caso, perante a constituição de um direito de superfície administrativa sobre um bem do domínio privado de pessoa colectiva pública, como é o Município Réu, submetido a um regime substantivo de direito público e cuja execução foi, ademais, fixada contratualmente mediante “cláusulas” específicas de interesse público, postas em consideração do ente público.
IV - Consequentemente, o presente litígio contratual que opõe a Autora ao Réu Município, fica, por força do disposto na alínea e) do nº1 artº 4º do ETAF sujeito à jurisdição administrativa.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

I. RELATÓRIO

1. MUNICÍPIO DE SINES, Réu nos autos à margem identificados, nos quais figura como Autora Aerogeradores de Portugal, S.A, veio interpor recurso da decisão proferida em sede de audiência prévia que julgou improcedente a excepção da incompetência em razão de matéria do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal por si deduzida, formulando as seguintes conclusões:

1ª O presente recurso jurisdicional foi interposto contra o despacho saneador de 26 de fevereiro p.p., que julgou improcedente a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal para julgar o objecto da presente acção, na qual se pretendia ver reconhecido que o direito de superfície constituído pelo Município de Sines em benefício da A. podia ser por esta última prorrogado unilateralmente por mais trinta anos.

2ª Salvo o devido respeito, é manifesto o erro de julgamento em que incorreu o aresto em recurso, o qual esquece que o Município de Sines é uma pessoa colectiva pública e que a constituição do direito de superfície por pessoa colectivas públicas está sujeito a um regime exorbitante de natureza juspublicista, razão pela qual não é a hipotética vontade das partes que determina a natureza da relação jurídica estabelecida, antes sendo a lei e as suas especificações que determinam que tipo de relação jurídica pode ser estabelecida por esse mesmo Município e, sobretudo, se nessa relação há ou não especificidades decorrentes do interesse público que a sujeitam a uma normação específica e distinta do direito civil.

3ª Em qualquer dos casos, o desacerto do aresto em recurso começa logo por resultar do facto de Tribunal de Conflitos já ter deixado bem claro que era a jurisdição administrativa a competente para conhecer dos litígios referentes ao direito de superfície constituído por pessoas colectivas públicas, afirmando claramente que:

“IV - A constituição do Direito de Superfície por entidades públicas está subordinada a um regime jurídico de direito público instituído no DL 794/76, de 5.11, encontrando-se os aspectos gerais da sua regulação no art. 19º.

V -Daí que sejam competentes os tribunais administrativos para conhecer de uma providência cautelar em que a pretensão da requerente visa suspender a deliberação camarária que decidiu “Aprovar a revogação do contrato de cedência do direito de superfície e accionar a cláusula de reversão prevista no contrato de cedência do direito de superfície”, deliberação que assim tem de ser qualificada como acto administrativo.” (v. Acórdão de 21 de Fevereiro de 2013, Proc. n.º 023/12; v. igualmente o Acórdão do mesmo douto Tribunal de 20 de Outubro de 2011, Proc. n.º 13/11).

Para além disso,

4ª A doutrina e jurisprudência são unânimes em reconhecer que ”… em matéria de constituição do direito de superfície há dois regimes diferentes, com regras diferentes justificadas por diferentes interesses, devendo distinguir-se entre o direito de superfície civil – se o direito de superfície é constituído por particulares – e o direito de superfície administrativa – se constituído pelo Estado ou pessoas coletivas de direito público em terrenos do seu domínio privado –, sendo o primeiro disciplinado pelo Código Civil e o segundo por legislação especial, só se aplicando o regime do Código Civil subsidiariamente (v. neste sentido, o Acórdão do STJ 12/7/2018, Proc. n.º 9934/13.1T2SNT-A.L1.S1, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo de 23/9/2010, Proc. n.º 0563/09, o Acórdão da 1.ª secção do Tribunal de Contas n.º 20/2020, Proc. n.º3553/19 e, na doutrina, OLIVEIRA ASCENSÃO, Direitos Reais, 1978, págs. 505 e segs e BERNARDO AZEVEDO, O Domínio Privado da Administração, in Tratado de Direito Administrativo Especial, 2010, Vol. III, pág. 46).

5ª Isso mesmo, é, aliás, conformado pelo próprio Código Civil ao prescrever no art.º1527.º que “…o direito de superfície constituído pelo Estado ou por pessoas colectivas públicas em terrenos do seu domínio privado fica sujeito a legislação especial e, subsidiariamente, às disposições deste Código”, o que significa que todo o direito de superfície constituído pelo Município de Sines estará sujeito à disciplina desta normação especial – inicialmente da Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948, depois pelo DL n.º 794/76 e mais recentemente pela Lei n.º 31/2014 – e às derrogações de direito público impostas pelo regime juspublicista que caracteriza o direito de superfície administrativo, mesmo que por hipótese a vontade do Município fosse – e não foi – a de fugir a tal regime imperativo e de querer aplicar apenas o regime civilista do direito de superfície.

6ª Ora, legal e constitucionalmente compete aos tribunais administrativos dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, entendidas como aquelas relações estabelecidas “…entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração), que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas” (v. CARLOS CADILHA, Dicionário de Contencioso Administrativo, págs. 117/118; v. igualmente o Acº do STA de 28/10/2009, Proc. n.º 0484/09).

7ª Consequentemente, e uma vez que a constituição do direito de superfície por parte de uma pessoa colectiva pública está expressamente sujeito a um regime especial determinado por razões de interesse público administrativo – como decorre quer do art.º 1527.º do CCivil quer da legislação especial supra referida que ao longo dos tempos disciplinou a constituição do direito de superfície pelo Estado e demais pessoas colectivas –, é inegável que constitucional e legalmente a jurisdição competente para conhecer dos litígios em torno do direito de superfície constituído por tais entes público é a jurisdição administrativa, ex vi do art.º 212.º/3 dos Constituição e dos art.ºs 1.º e 4.º do ETAF.

8ª Essa competência é, aliás, reforçada pela redacção das alíneas b) –que atribuiu aos tribunais administrativos competência para curar da legalidade dos actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública ao abrigo de disposições de direito administrativo (como seguramente o são as normas da Lei n.º 2030, do DL n.º 794/76 e da Lei n.º 31/2014, que regularam sucessivamente o direito de superfície do Estado) e e) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF (que defere à jurisdição administrativa a competência para apreciar a interpretação, validade e execução de contratos administrativos (como inegavelmente o são os contratos de constituição do direito de superfície administrativa e resulta do n.º 1 do art.º 200.º do CPA).

9ª Assim sendo, e uma vez que no caso sub judice se está perante uma relação em que um dos sujeitos é um ente público e que é disciplinada por legislação específica que lhe atribui direitos e obrigações claramente exorbitantes em face do regime civilista dado pelo Código Civil, é inegável estar-se perante uma relação jurídica administrativa e perante um contrato subordinado a um regime substantivo de direito administrativo, para cuja apreciação da sua eventual prorrogação são competentes os tribunais da jurisdição administrativa e não os tribunais comuns.

10º Refira-se, aliás, que o erro em que incorreu o Tribunal a quo foi o de julgar que a eventual vontade das partes – que sempre estaria por demonstrar – e a hipotética violação das normas juspublicistas que disciplinavam o direito de superfície administrativo – o que também estaria por comprovar – teria a virtualidade de converter a natureza da relação jurídica e transformar o direito de superfície administrativo num direito de superfície civil, quando a verdade é que não é a vontade das partes que determina a natureza da relação jurídica, antes sendo a normação que regula essa mesma relação que determina se a mesma tem uma natureza civil ou administrativa, da mesma forma que a eventual violação da normação juspublicista apenas teria a virtualidade de determinar a nulidade do contrato de constituição do direito de superfície, mas nunca a de transformar a natureza do contrato celebrado e, muito menos, de o converter num contrato de direito privado e sujeito apenas à disciplina geral do direito civil.

11ª De igual modo, , também o facto de no contrato se ter clausulado a sujeição à jurisdição comum não transforma o direito de superfície administrativo num direito de superfície civil e, muito menos, retira a competência da jurisdição administrativa para conhecer dos litígios em torno de tal contrato de constituição de um direito de superfície administrativa, uma vez que as regras relativas à competência em razão da matéria não podem ser afastadas por vontade das partes (v. art.º 95.º do CPC).

Nestes termos,

Deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional, revogado o saneador em recurso e declarada a incompetência material do Tribunal a quo para julgar a presente acção, com as legais consequências.

Assim será cumprido o Direito e feita JUSTIÇA”.

2. Contra-alegou a Autora defendendo a manutenção do decidido.

3. Tendo em conta que o objecto do recurso se delimita pelas conclusões das alegações do apelante (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) a única questão cuja apreciação as mesmas convocam conexiona-se com a (in) competência absoluta do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal para conhecer do mérito da acção.

II. FUNDAMENTAÇÃO

4. Os factos a considerar na decisão deste recurso são os que constam do antecedente relatório e, bem assim, que é o seguinte o teor da decisão proferida neste conspecto pelo Tribunal “a quo”:

“O Réu, na sua contestação, veio invocar a exceção dilatória de incompetência deste tribunal em razão da matéria, sustentando que a competência para a ação caberá ao Tribunal Administrativo, já que se trata de um direito de superfície administrativa, constituído por entidade de direito público em terreno do seu domínio privado, cuja constituição está subordinada a um regime jurídico de direito público, instituído no DL 794/76 de 05/11.

Notificada a Autora, veio a mesma pronunciar-se no sentido de tal exceção ser improcedente, dizendo que o R. Município de Sines, é demandado em questão relacionada a uma situação jurídica em que intervém despido do seu “Ius Imperii”, regulada por normas de direito privado, pelo que não se enquadra na jurisdição administrativa, estando em causa matéria estritamente de direito privado e em que o R. interveio apenas como um operador económico privado, impondo-se o critério residual de competência material que atribui a apreciação da causa aos tribunais judiciais comuns, sendo que no caso trata-se de parcelas avulsas e dispersas (parte de terreno rústico), não se verificando qualquer das afetações previstas no DL 794/76 de 05/11 (Lei dos Solos), em vigor à data da constituição da direito de superfície, que não se aplicaria a qualquer contrato de constituição de direito de superfície em causa nos autos.

Cumpre decidir:

Segundo o disposto no artigo 64º do Código de Processo Civil “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.”

Por sua vez, estabelece o artº 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, que: “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.”

Dispõe o artº 117º da LOSJ que:

“1 - Compete aos juízos centrais cíveis:

a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00;

b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a € 50.000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;

c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;

d) Exercer as demais competências conferidas por lei.” (…)

Por seu turno, de acordo com o estabelecido no artº 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) “1 - Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.”

E estabelece o artº 4º do ETAF que:

“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;

e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;

f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;

g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;

i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;

j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;

k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;

l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;

o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.”

(…).

“I- A competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da relação jurídica controvertida tal como é configurada pelo autor, em termos do pedido e da causa de pedir e da própria natureza dos sujeitos processuais. II- Competência essa que se fixa, de acordo com tal configuração, no momento da propositura da causa, sendo, como regra, irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente. III- A competência dos tribunais comuns judiciais determina-se por um critério residual, cabendo- lhes, por regra, julgar todas as causas que não estejam atribuídas a outra jurisdição. IV- Já o critério para aferir da competência dos tribunais administrativos deve ser o da natureza da relação jurídica concreta subjacente ao litígio, devendo essa relação jurídica assumir a natureza administrativa e o litígio que lhe subjaz situar-se no âmbito da previsão do artº. 4º do ETAF. V- Com o novo regime do ETAF foi propósito do legislador confiar à jurisdição administrativa e fiscal os litígios emergentes da responsabilidade extracontratual da Administração, independentemente de estarem em causa atos de gestão pública ou privada. (…)” (v. entre outros, Ac. TRC de 17/11/2017).

No caso sub judice, a A., Aerogeradores de Portugal, S.A., veio interpor a presente ação contra o Município de Sines, pretendendo, no essencial, que seja declarado que o direito de superfície que foi constituído pelo Réu a favor da Autora através de escritura pública data de 13 de junho de 1994, no Cartório Notarial Privativo da Câmara Municipal ..., lavrada a fls. 34 e seguintes do Livro de Escrituras Diversas número ...4, se deve considerar prorrogado por mais 30 (anos) a contar de 13 de junho de 2024.

Baseia tal pedido num contrato celebrado com o ora Réu em que este lhe cedeu o direito de superfície sobre uns terrenos de que é proprietário, pelo prazo de 30 anos e que, segundo o estabelecido no contrato celebrado entre as partes, é prorrogável, uma ou mais vezes, por vontade da superficiária por períodos não superiores ao inicial nem inferiores a metade dele, mediante prévia comunicação da superficiária ao ora R. da sua intenção de prorrogação, até um ano antes do termo do prazo.

É certo que o R. invocou que o contrato que está em causa nos autos é um contrato regulado por normas de direito administrativo, o que, a ser assim, integraria a previsão do disposto na al. e) do nº 1 do artº 4º do ETAF.

O DL 794/76 de 05/11, no CAPÍTULO IV, previa a “Constituição do direito de superfície”, nos artigos 19.º a 21.º, um regime específico, para as situações de direito de superfície mencionadas no artigo 5.º de tal diploma.

Ora, o artigo 5.º, desse diploma legal estabelecia no seu n.º 1 que “Os terrenos já pertencentes à Administração ou por ela adquiridos para os fins previstos no artigo 2.º ou para operações de renovação urbana não podem ser alienados, salvo a pessoas coletivas de direito público e empresas públicas, devendo apenas ser cedido o direito à utilização, mediante a constituição do direito de superfície, dos terrenos destinados a empreendimentos cuja realização não venha a ser efetuada pela Administração.”

Por sua vez, o artigo 2.º enumerava os solos destinados a:

a) Criação dos aglomerados urbanos;

b) Expansão ou desenvolvimento de aglomerados urbanos com mais de 25 000 habitantes;

c) Criação e ampliação de parques industriais;

d) Criação e ampliação de espaços Verdes urbanos de proteção e recreio;

e) Recuperação de áreas degradadas, quer resultantes do depósito de desperdícios, quer da exploração de inertes;

Contudo, o terreno cedido em direito de superfície à A. não se enquadra em qualquer um dos fins acima previstos, tratando-se de parcelas avulsas e dispersas (partes de terrenos rústicos), pelo que o regime da Lei dos Solos, não tem aplicação ao contrato de constituição de direito de superfície a eles respeitantes.

Assim sendo, a constituição de direito de superfície que está em causa nestes autos, incidido em partes de terreno rústico, sem se destinar a qualquer um dos fins acima referidos, podia e foi realizada à luz das normas de direito privado e não do direito administrativo, não se tratando de contrato de constituição de direito de superfície administrativa.

De resto, o próprio contrato de constituição do direito de superfície leva a concluir que a vontade das partes foi a de submeter o contrato a um regime de natureza privada, fixando-lhe um prazo de 30 anos, ao contrário do previsto no artº 19º nº 1 do DL 794/76 de 05/11 (mínimo 50 anos), e deixando esclarecido que pretendiam sujeitá-lo à competência dos tribunais judiciais comuns (cfr. o artigo 9.º do documento complementar à escritura de constituição de direito de superfície).

Conclui-se, por isso, em face da causa de pedir e do pedido formulado nos autos, que não está em causa uma relação jurídica que assuma a natureza administrativa ou fiscal, a fiscalização da legalidade de normas ou a prática de outros atos jurídicos por órgãos da administração pública e que o litígio que lhe subjaz não se situa no âmbito da previsão do artº. 4º do ETAF.

Assim, concluindo-se que a situação dos autos não se enquadra em nenhuma das alíneas do artº 4º do ETAF, tratando-se de matéria de direito privado, afigura-se-nos que deverá ser aplicado o critério da competência material residual para a apreciação da causa, ou seja, a competência do tribunal judicial comum.

Assim e atento o valor da causa, declara-se a competência deste tribunal para a apreciação destes autos.”.

5. Do mérito do recurso

Cuidemos, então, de apreciar se a jurisdição administrativa é competente para o presente litígio que opõe um particular ao Município de Sines ou se, como se decidiu na 1ª instância, o é a jurisdição comum.

Desde já se diga que, como aí bem se salienta, a competência do tribunal em razão da matéria afere-se, em princípio, pelos termos em que o Autor propõe a acção, definida esta pela causa de pedir, pelo pedido, pela natureza das partes, ou seja em função dos termos em que o autor estrutura a pretensão que quer ver reconhecida.

Emerge da petição inicial a seguinte factualidade:

- No dia 13 de junho de 1994, no Cartório Notarial Privativo da Câmara Municipal ..., através de escritura pública lavrada a fls. 34 e seguintes do Livro de Escrituras Diversas número ...4, foi celebrado um contrato de constituição de direito de superfície entre a A. e R., este na qualidade de proprietário do solo ou fundeiro, aquela, na qualidade de superficiária.

- O contrato em questão teve como objecto a cedência, em regime de direito de superfície à aqui A., de um terreno destinado à instalação de aerogeradores, o qual constituía parte do prédio rústico sito nos ..., inscrito a favor do Município de Sines, o prédio misto, sob o artigo nove Secção K e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ... do Libro B-dois, com a área de quatrocentos e vinte e um metros quadrados; prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo doze Secção K e descrito na Conservatório do Registo Predial ... sob o número ... a folhas treze verso do livro B-quatro, com a área de cento e oito metros quadrados; do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo treze da Secção K e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ... a folhas dezasseis verso do Libro B-quatro com a área de trezentos e vinte seis vírgula cinco metros quadrados; do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo catorze Secção K e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ... folhas trinta e sete do Livro B-seis com a área de novecentos e dezanove metros quadrados; do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo quinze da Secção K e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ... folhas vinte e oito do Livro B-quatro, com a área de quinhentos e cinquenta e nove vírgula setenta e cinco metros quadrados.

- O direito de superfície a favor da A. foi estabelecido pelo prazo de 30 (trinta) anos, com início na data da celebração do contrato, prazo esse prorrogável, uma ou mais vezes, por vontade da superficiária por períodos não superiores ao inicial nem inferiores a metade dele;

- A A. é uma sociedade comercial anónima, cuja actividade se centra na exploração dos Aerogeradores instalados no terreno objeto do contrato de constituição de direito de superfície sendo este o centro da actividade de produção de energia elétrica e comercialização desta para distribuição pública;

- O centro de produção de energia elétrica que é explorado pela A. mostra-se instalado no terreno propriedade do R. e que foi objeto do contrato já acima identificado;

- A A. requereu a notificação judicial avulsa do ora R, dando-lhe nota da sua pretensão/decisão de prorrogar o prazo do direito de superfície , por período igual ao período inicial, que é de 30 (trinta) anos;

- Tal comunicação veio a ser realizada no dia 09/03/2022 com mais de um ano de antecedência para o términus do período inicial do contrato;

- Nesse mesmo dia, o R. comunicou-lhe o seguinte; “O Município de Sines, pessoa coletiva n.º ...10, com sede em Largo ..., ..., ..., em resposta à notificação judicial avulsa

à margem identificada, vem informar que não reconhece o direito à prorrogação unilateral e automática do contrato de direito de superfície n.º ...4, celebrado por escritura em 13 de junho de 1994, entre esta edilidade e a empresa denominada Aerogeradores de Portugal, SA.”

Entendendo que o Réu Município não exerceu o seu direito a se opor à renovação nos termos previstos contratualmente, pede a Autora que o Tribunal declare “que o direito de superfície que foi constituído pelo R. a

favor da A. através de escritura pública data de 13 de junho de 1994, no Cartório Notarial Privativo da Câmara Municipal ..., lavrada a fls. 34 e seguintes do Livro de Escrituras Diversas número ...4 se deve considerar prorrogado por mais 30 (anos) a contar de 13 de junho de 2024”.

De harmonia com o disposto no art.º 212º/3 da C.R.P., compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, norma que veio a ser parcialmente transcrita, no artº 1º da Lei nº Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro (E.T.A.F.).

Num primeiro momento, reflectido nesta norma , o ETAF assumiu como critério de delimitação da jurisdição administrativa o da natureza administrativa das pretensões ou relações jurídicas que sejam submetidas à apreciação e julgamento dos respectivos tribunais; porém esclarece que tal competência é deferida “nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.

É que nesse art.º 4º - quando aparece a exemplificar os litígios submetidos à jurisdição administrativa – renunciou, algumas vezes, pela positiva ou pela negativa, à aplicação daquele critério.

Uma das situações paradigmáticas dessa competência é a prevista na alínea e) do nº1 do artº 4º do E.TAF que atribui competência aos tribunais da jurisdição administrativa para apreciação de litígios relativos à “validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”.

Subsumíveis na jurisdição administrativa, e administrativos, são (também) os contratos cujo regime substantivo esteja especificamente sujeito a normas de direito público e é o caso também de quaisquer outros contratos regulados em aspectos “substantivos “do seu regime por normas de direito público. (Cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira in Código de Processo nos Tribunais Administrativos, anotado, Vol.I.,pag. 56.) .

Com efeito, de acordo com o disposto nesta alínea do nº1 do artº 4º do ETAF, basta que um qualquer aspecto “substantivo” (não meramente procedimental) relevante do próprio contrato esteja sujeito – no que respeita aos direitos e deveres das partes, ou à sua direcção, modificação, ficalização , extinção ou sanção – a um regime específico de direito público para que o mesmo se considere administrativo e integrado na jurisdição administrativa.

No caso, está em causa a interpretação do contrato celebrado entre as partes, designadamente do n.º 5 do artigo 2.º, do Documento Complementar, no que tange ao modo em que o Município se opôs à renovação do prazo do direito de superfície.

E, por conseguinte, a questão (prévia) que se coloca é se o mesmo contrato está de alguma sorte sujeito a um regime específico de direito público.

Não há quaisquer dúvidas que, no caso, o direito de superfície foi constituído por uma autarquia em terrenos do seu domínio privado.

No acórdão do Tribunal de Contas de 06/04/2020 proferido no processo 3553/2019 (relatado pelo Conselheiro Alziro Cardoso) [1] é proficientemente explanado o regime do direito de superfície constituído pelo Estado ou por pessoas coletivas públicas.

Passemos-lhe a palavra: “O direito de superfície surge definido no artigo 1524º do Código Civil como «a faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações», dizendo-se fundeiro o dono do solo e superficiário o titular da construção implantada ou da plantação.

Este conceito está, na opinião de Menezes Cordeiro (Direitos Reais, Lex, Lisboa 1993, págs. 706 e 707), seriamente amputado por esvaziado de significado económico, preferindo considerá-lo, de forma mais abrangente, como «a afetação jurídica de um prédio alheio em termos de nele se efetuar, ou simplesmente manter, edifícios ou plantações, com o subsequente aproveitamento das coisas assim mantidas».

Podendo assumir carácter perpétuo ou temporário, o direito de superfície permite ao superficiário um aproveitamento integral das utilidades da obra ou plantação, mas convive, necessariamente, com o direito de propriedade sobre o terreno, o direito do fundeiro, direito maior, como o evidencia o facto de a lei lhe reconhecer, sem reciprocidade, direito de preferência na alienação ou na dação em cumprimento do direito de superfície (artigo 1535º do Código Civil), permitindo ao titular do direito de propriedade sobre o solo consolidar a propriedade através da reunião na sua pessoa dos dois direitos e da consequente extinção do direito de superfície, nos termos do disposto no artigo 1536 nº 1 al. d) do Código Civil (cf. Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, Universidade Católica Editora, 2017, pág. 436, e Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1999, pág. 413).

Tal direito, conforme se considerou no ac. do STJ de 16.02.95, in BMJ, 444, 595, pressupõe assim a existência de uma coisa, um prédio materialmente uno e legalmente dividido em parcelas jurídicas em termos de sobre as partes recaírem direitos diversos, cujo assento tónico está no direito de o superficiário manter o implante em solo alheio.

Não se trata, pois, de um simples direito real de gozo de coisa alheia, pertencente ao proprietário do solo, mas de um direito de domínio sobre coisa própria do superficiário (ac. do STJ de 04.02.93, in BMJ, 424, 669).

E o artigo 1534º do Código Civil consagra a transmissibilidade por acto entre vivos ou por morte quer do direito de superfície, quer do direito de propriedade do solo.

Assim, embora se esteja perante uma só coisa, tudo se passa, em sentido jurídico, como se a mesma tivesse sido idealmente cindida em partes dotadas de autonomia que lhes permite serem excecionalmente objeto de diversos direitos reais de garantia, como a hipoteca e a penhora (cf. Acórdão do STJ de 02.11.2017, proferido na Revista nº. 231/06.8TBBRR.L3.S1, e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1987, pág.602).

Importa distinguir, contudo, se o direito de superfície é constituído por particulares – em superfície civil – ou pelo Estado ou pessoas coletivas de direito público em terrenos do seu domínio privado – em superfície administrativa –, uma vez que o regime legal aplicável não é o mesmo. Na verdade, no primeiro caso, aplica-se o estatuído no Código Civil, enquanto, no segundo caso, tem aplicação legislação especial e, só subsidiariamente, o Código Civil (artigo 1527º deste diploma)[2].

A possibilidade de constituição da superfície administrativa, apareceu regulada na Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, cujo artigo 22º estabelecia: «Só o Estado, as autarquias locais e as pessoas coletivas de utilidade pública administrativa podem constituir, em terrenos do seu domínio privado, o direito de superfície», dispondo no artigo 25º ser possível constar, entre o mais, do título de constituição do direito de superfície a dependência de autorização do proprietário do solo para a alienação daquele direito (nº 1 al. b)).

Posteriormente, a Lei dos Solos, aprovada pelo DL nº 794/76, de 5 de outubro, veio consagrar no seu artigo 5º que:

«1. Os terrenos já pertencentes à Administração (…) não podem ser alienados, salvo a pessoas coletivas de direito público e empresas públicas, devendo apenas ser cedido o direito à utilização, mediante a constituição do direito de superfície, dos terrenos destinados a empreendimentos cuja realização não venha a ser efetuada pela Administração».

E, regulando o regime especial da superfície administrativa no capítulo IV, veio estabelecer no artigo 20º que:

«1. Na constituição do direito de superfície serão sempre fixados prazos para o início e conclusão das construções a erigir e serão adotadas as providências que se mostrem adequadas para evitar especulação na alienação do direito.

2. Para os fins do disposto na última parte do número anterior poderá convencionar-se, designadamente, a proibição da alienação do direito durante certo prazo e a sujeição da mesma a autorização da Administração.

3. A Administração gozará sempre do direito de preferência, em primeiro grau, na alienação por ato inter vivos (…)».

Revogada pela Lei nº 31/2014, de 30 de maio, a referida Lei dos Solos (DL nº 794/76, de 5 de outubro), manteve, neste particular, o regime legal assim estabelecido, apesar das subsequentes alterações nela introduzidas pelo DL nº 313/80, de 19 de agosto, pelo DL nº 400/84, de 31 de dezembro, e pelo DL nº 307/2009, de 23 de outubro”.

Parece-nos claro que, à semelhança da situação analisada pelo Tribunal de Contas, no caso que temos em mãos foi, através da escritura outorgada em 13.6.1994, constituído a favor da Aerogeradores de Portugal, S.A um direito de superfície administrativa sobre bens do domínio privado do Município de Sines , submetido ao regime especial da Lei dos Solos aprovada pelo DL nº 794/76, de 5 de Outubro, em vigor na data da sua constituição por contrato (artigo 12º do Código Civil) e, subsidiariamente, do Código Civil.

Como tal, sujeito às limitações legais decorrentes do respetivo regime especial e ao consignado no documento complementar da escritura pública que o corporiza, na qual as partes consagraram, além do mais, a proibição da venda sem a autorização do Município proprietário do solo (fundeiro), a proibição do terreno cedido servir para fim diferente daquele para que foi concedido (para instalação de aerogeradores), e a reversão para o Município, sem direito da superficiária a qualquer indemnização, no caso de inobservância das condições convencionadas ou da falta de cumprimento das formalidades e prazos estabelecidos.

Não nos oferece dúvidas que estamos em perante a constituição de um direito de superfície administrativa sobre um bem do domínio privado de pessoa colectiva pública, como é o Município Réu, submetido a um regime substantivo de direito público e cuja execução foi, ademais, fixada contratualmente mediante “cláusulas” específicas de interesse público, postas em consideração do ente público.

Consequentemente, o presente litígio contratual que opõe a Autora ao Réu Município, fica, por força do disposto na alínea e) do nº1 artº 4º do ETAF sujeito à jurisdição administrativa.

Em conclusão: o Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal é incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido emergente de tal contrato formulado pela Autora, sendo tal competência dos Tribunais Administrativos à luz desta última norma.

Nestes termos e de acordo com o disposto nos artigos 97º, nº1, 99º, nº1 ,576º, nº2, 577º a) e 578º, todos do CPC, impõe-se a absolvição do Município Réu da instância.

Isto sem prejuízo do disposto no art.º 99º, nº2 do CPC.

III. DECISÃO

Por todo o exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, revogando o despacho recorrido, decide-se, perante a constatada incompetência absoluta do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, absolver o Réu Município da instância.

Custas pela apelada.

Évora, 6 de Junho de 2024

Maria João Sousa e Faro (relatora)

Manuel Bargado

Ana Pessoa

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[1] Consultável no site do mesmo Tribunal.
[2] Realce nosso.