Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3004/06.6TBLLE.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
DANO FUTURO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 02/17/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: SILVES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
1 – Para efeitos de reapreciação da matéria de facto não basta que o recorrente proceda à mera transcrição de depoimentos e a alegação genérica de que devem ser atendidos no elenco dos factos provados para fundar uma pretensão de impugnação da matéria de facto. É necessário também que haja uma indicação especificada dos pontos de facto a alterar.
2 - A indemnização pelo dano de incapacidade parcial permanente é devida, mesmo que não se prove ter resultado dela diminuição actual dos proventos profissionais do lesado.
3 - No cálculo da indemnização em dinheiro do dano futuro de incapacidade parcial permanente, quer se processe com utilização das regras previstas nas leis laborais (para o cálculo e remição de pensões), quer com a capitalização à taxa de juro máxima das operações passivas bancárias (de modo a obter um capital que proporcione rendimento igual ao perdido), com as tabelas financeiras (para determinação do capital necessário à formação de uma renda periódica correspondente à perda de ganho) ou seguindo o entendimento que ultimamente vem prevalecendo na jurisprudência de que a indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que a vítima não irá auferir, mas que se extinga no final do período provável de vida, cabe ao julgador corrigir resultados que contrariem a equidade que deve presidir à fixação do valor em causa.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
I – RELATÓRIO:
Na acção ordinária que F… intentou contra …Companhia de Seguros, SA.», tramitada na comarca de Silves (após declaração de incompetência territorial do Tribunal de Loulé), destinada a exigir responsabilidade civil emergente de acidente de viação causado alegadamente pelo condutor de veículo segurado na R., vêm A. e R. interpor recursos de apelação (independente e subordinado, respectivamente) da sentença final proferida em 1ª instância.
Na acção pediu o A. a condenação da R. a pagar-lhe a quantia global de 380.982,00 €, por danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como quantia a liquidar em execução de sentença por eventual agravamento futuro de sequelas, acrescida de juros vincendos desde a citação até integral pagamento. Fundamentou o pedido em acidente ocorrido em S. Bartolomeu de Messines, a 10/1/2004, no IC1, ao Km 715,4, em que o veículo ligeiro (…DE) conduzido pelo segurado na R., veio a entrar em contra-mão, por actuação negligente daquele, e a colidir frontalmente com o veículo ligeiro (…LQ) conduzido pelo A. O pedido corresponde ao total dos seguintes componentes: 21.182,00 € e 9.000,00 €, por remunerações do trabalho e comissões que deixou de auferir; 430,00 €, por inutilização de roupa que usava na ocasião do acidente; 370,00 €, pelo custo de consultas médicas que teve de suportar; 70.000,00 €, por danos não patrimoniais sofridos, atenta a gravidade das lesões, intervenções cirúrgicas efectuadas, longo período de internamento e graves sequelas; e 280.000,00 €, por danos futuros resultantes da IPP verificada, atentos a idade, o rendimento do trabalho e a expectativa de vida do sinistrado.

Contestando, a R., para além da questão de incompetência relativa mencionada, suscitou a excepção de pagamento, quanto à quantia de 14.781,15 €, que terá entregue ao A., desde a data do acidente até à data da alta clínica (3/7/2006), a título de compensação por remunerações que o A. deixou de auferir, enquanto beneficiário de contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, celebrado entre a entidade patronal do A. e a R., por estar em causa acidente simultaneamente de viação e de trabalho. Mais impugnou a R. o pedido, negando a versão do acidente apresentada pelo A. e alegando ainda estar a pagar a este, no âmbito do referido seguro de acidentes de trabalho, uma pensão provisória mensal de 170,00 €, desde a mencionada alta clínica.
Estabelecidos os factos assentes e a base instrutória, foi realizado o julgamento, na sequência do qual foi lavrada sentença em que se decidiu julgar parcialmente procedente a acção, condenando a R. a pagar ao A. a quantia global de 46.196,01 €, corresponde ao total dos seguintes componentes: 6.196,01 €, a título de danos patrimoniais, sendo 5.826,01 € por remunerações do trabalho que deixou de auferir (equivalente ao valor a receber, no montante de 20.607,16 €, deduzido da quantia de 14.781,15 € já suportada pela R.) e 370,00 € pelo custo de consultas médicas que teve de suportar; e 40.000,00 €, a título de danos não patrimoniais, atentas as lesões, dores, tratamentos e internamento, e sequelas sofridos pelo A.. Mais se condenou a R. a pagar à A. quantia que se vier a apurar em sede de liquidação, nos termos do artº 47º, nº 5, do CPC, relativamente ao agravamento futuro de sequelas e ao valor do vestuário danificado no acidente.
Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: da matéria de facto provada resultou que o condutor do DE invadiu inopinadamente e por imperícia a faixa de rodagem contrária, assim embatendo na viatura conduzida pelo A., pelo que a sua conduta foi ilícita e culposa, sendo-lhe imputável a responsabilidade pelo acidente, a ser suportada pela R., enquanto seguradora daquele veículo; mais se provou que, em consequência do acidente, o A. teve de suportar despesas com consultas médicas, no montante de 370,00 €, e sofreu danos no vestuário, mas cujo montante exacto não foi possível apurar; provou-se ainda que sofreu graves lesões físicas, dores, danos estéticos e sequelas permanentes, bem como desgosto e sofrimento, o que fundamenta o arbitramento de indemnização, nos termos dos artos 494º e 496º do C.Civil, que, com recurso à equidade, se considerou ajustado fixar em 40.000,00 €; provou-se igualmente um previsível agravamento futuro das sequelas do A., pelo que haverá que liquidar posteriormente indemnização para o efeito, nos termos do artº 47º, nº 5, do CPC; não obstante estar demonstrada uma IPP do A., o certo é que não se provou perda efectiva de capacidade de ganho do A. ou que este tivesse passado a auferir remuneração inferior, pelo que não cabe fixar qualquer indemnização que compense uma eventual perda; também não se provou que o A. auferisse as comissões que invoca, pelo nada poderá ser arbitrado a esse propósito; quanto às remunerações deixadas de auferir, é de concluir, pelo valor mensal de remuneração base (523,74 €) e de subsídio de refeição (100,00 €), multiplicado pelo número de meses de uma e outra verba (34 e 28, respectivamente) que não recebeu, que o seu valor global seria de 20.607,16 €, a que haverá que abater as verbas recebidas da R., no âmbito do referido seguro de acidentes de trabalho, no montante de 14.781,15 €).

Inconformado com tal decisão, dela apelou o A., formulando as seguintes conclusões:
«1 – Em consequência das lesões sofridas o Autor ficou com múltiplas e graves sequelas de carácter definitivo e permanente.

2 – Além de numerosas cicatrizes espalhadas em diversas partes do corpo, o Autor ficou com limitação da mobilidade da anca esquerda, com dor púbica, e com limitação da mobilidade do joelho esquerdo e ainda com rigidez do tornozelo esquerdo.

3 – O Autor não pode pegar em objectos pesados, não pode estar de pé por períodos mais ou menos prolongados e tem dificuldade, por sentir dores, em estar sentado por períodos mais ou menos prolongados, tendo necessidade de mudar de posição amiudadas vezes quando está sentado.

4 – O Autor continua a sentir dores sobretudo quando faz algum esforço físico e com as mudanças de tempo e variação de humidade.

5 – De acordo com o exame pericial a que foi sujeito, e tendo em conta a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, as sequelas de que ficou afectado determinaram-lhe uma incapacidade permanente geral de 40,16 pontos, a que devem acrescer mais 10 pontos, tendo em conta o futuro agravamento das sequelas.

6 – O Autor, na altura do acidente, contava 39 anos de idade, e exercia a actividade profissional de motorista e vendedor comercial e era um homem saudável, trabalhador e bem disposto e não sofria de qualquer incapacidade física ou defeito estético.

7 – No exercício da sua profissão o Autor tinha não só de conduzir o veículo automóvel que lhe estava distribuído, mas também de transportar as mercadorias que entregava aos clientes e as que estes, eventualmente, lhe entregavam para reparação.

8 – Ora, com as sequelas referidas com que ficou afectado e lhe dificultam a própria marcha e que o obrigam a mudar de posição amiudadas vezes e com a dificuldade que tem em pegar em objectos mais ou menos pesados e em fazer esforços físicos, é manifesto que o Autor não tem mais possibilidade de exercer a sua profissão habitual.

9 – O Autor ficou diminuído na sua capacidade laboral em cerca de 50%.

10 – O Autor tem direito a ser indemnizado não só pelos danos emergentes, mas também pelos lucros cessantes e, nomeadamente, pelos danos futuros emergentes da elevada incapacidade permanente geral de 50,16% pontos com que ficou afectado.

11 – Esta incapacidade permanente geral impossibilita-o para o exercício da sua profissão habitual.

12 – Independentemente da incapacidade permanente com que ficou afectado se traduzir no imediato numa real perda de ganho, o Autor tem sempre direito a ser indemnizado pelos danos futuros acrescidos ou maior dispêndio de energia e trabalho.

13 – Na altura do acidente, o Autor auferia a remuneração base de € 523,74 acrescida de € 100,00 de subsídio de alimentação por mês.

14 – E tendo em conta a idade do Autor (39 anos) e a esperança de vida até aos 72 anos e que auferia uma remuneração mensal de € 623,74, não deve a indemnização pela incapacidade permanente com que ficou afectado ser fixada em quantia inferior a € 200.000,00.

15 – A esta importância devem acrescer, ainda, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 20.607,16, respeitante aos salários perdidos, e € 370,00 de consultas médicas, além do que vier a ser liquidado relativamente ao vestuário inutilizado e ao agravamento das sequelas da artrose da anca e do joelho esquerdo, bem como da rigidez do tornozelo.

16 – Foram igualmente de não menos gravidade os danos não patrimoniais sofridos pelo Autor.

17 – Devido às numerosas fracturas que sofreu, o Autor teve de ser sujeito a diversas intervenções cirúrgicas, tendo também de ser internado no hospital por várias vezes para o efeito.

18 – O Autor esteve afectado de incapacidade temporária profissional total durante 928 dias e de incapacidade temporária total durante 87 dias, a que acrescem mais 15 dias para extracção do material no futuro.

19 – O dano estético foi fixado no grau 5/7 e o quantum doloris no grau 6/7.

20 – O Autor não pode estar de pé e tem dificuldade em estar sentado por períodos mais ou menos prolongados, tendo necessidade de mudar de posição amiudadas vezes.

21 – Tem dificuldade na marcha normal, claudica acentuadamente e não pode correr nem fazer marcha acelerada, tendo ficado com limitação dos movimentos do membro inferior esquerdo.

22 – Tornou-se irritável e triste e sente um grande desgosto por ter ficado afectado na sua capacidade de trabalho e sente-se muitas vezes revoltado e triste por não poder executar todas as tarefas que antes fazia normalmente.

23 – Atenta a gravidade e extensão dos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor, a compensação por estes danos não deve ser fixada em quantia inferior a € 70.000,00.

24 – As importâncias referidas atribuídas a titulo de indemnização pelos danos patrimoniais e de compensação pelos danos não patrimoniais devem acrescer os juros legais contados a partir da citação, acrescendo ainda as quantias que se vier a liquidar relativamente ao vestuário danificado e ao agravamento das sequelas da artrose da anca e do joelho esquerdo e da rigidez do tornozelo.

25 – Ao decidir, como decidiu, não condenando a Ré no pagamento de indemnização devida pela incapacidade permanente geral com que o Autor ficou afectado, a sentença recorrida, alem de iníqua, consagra uma dupla injustiça ao discriminar o Autor relativamente aos demais sinistrados que sempre têm sido indemnizados e privando-o da indemnização que justamente lhe é devida como reparação dos danos efectivamente sofridos.

26 – A sentença recorrida não ponderou devidamente a matéria de facto provada e fez incorrecta interpretação do direito aplicável, tendo violado, nomeadamente, o disposto nos artos 562°, 564° e 566°, n° 2, do Cód. Civil.»


Por sua vez, a R. interpôs recurso subordinado, culminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«1 – O único meio de prova produzido neste processo para apuramento da matéria quesitada sob os nos 1 a 10 da base instrutória foi, como se diz na fundamentação da decisão sobre essa matéria, “.... o depoimento prestado por N…, soldado da GNR que tomou conta da ocorrência, tendo elaborado a participação do acidente de fls. 11 a 15 (a qual foi objecto de análise em audiência), sendo que a testemunha em questão mostrou recordar pormenores que conferem consistência ao que fez constar do “croquis” de tal participação – como sejam os vestígios que lhe permitiram situar o local (provável) do embate e a circunstância de no veículo DE ter sido encontrado um talão de portagem que permitiu estabelecer qual era o seu sentido de marcha ...“.

2 – O certo, porém, é que não fez constar do croquis os vestígios que referiu na audiência, onde disse que se lembrava apenas vagamente do acidente, e esclareceu que não falou com nenhum dos condutores sobre esse local do embate.

3 – Os vestígios apontados pela testemunha e que levaram à decisão de considerar como provado o local do embate, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 655° do C.P.Civil, não são, porém, suficientes para extrair com segurança, sem dúvidas, a conclusão de dar como certo e não como provável, logo não provado, o local apontado pela testemunha, pois a mesma se recordava apenas vagamente do acidente, não assinalou os vestígios na participação e não falou com nenhum dos dois condutores dos veículos intervenientes.

4 – Verifica-se, assim, erro na apreciação da única prova produzida sobre o local do embate dos dois veículos intervenientes no acidente.

5 – Assim, deverá ser alterada a resposta à matéria dos quesitos 1 a 10 no sentido de que não que não está provada matéria do quesito 9°, ou seja, o segmento final da resposta onde se consigna que “o embate ocorreu na metade direita da faixa de rodagem, considerado o sentido sul-norte (art. 690°-A, n° 1, a), e 712°, nos 1, a) e b), e 2, CPCivil).

6 – E em consequência dessa alteração, deverá ser correspondentemente alterada a sentença recorrida no sentido do disposto no n° 2 do art. 506° do C.Civil, ou seja, que é igual a medida de contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores, e alterando-se em conformidade a decisão condenatória no sentido de a ré seguradora ser apenas responsável por igualmente metade dos danos apurados.»

Ambos os recorrentes apresentaram contra-alegações relativamente aos recursos das respectivas contrapartes, em oposição a essas pretensões recursórias e em sentido consonante com as posições expressas nas suas próprias alegações de recurso.
Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artos 660º, nº 2, e 664º, ex vi do artº 713º, nº 2, do CPC).

Do teor das alegações dos recorrentes (A. e R.) extraem-se as seguintes questões essenciais a discutir:
– no recurso independente do A.:
1) existência de direito do A. a indemnização por danos patrimoniais futuros devidos a perda de capacidade de ganho, cuja pretensão se quantifica em 200.000,00 € (e que não foi reconhecido na sentença recorrida);
2) quantificação do direito do A. a indemnização por danos não patrimoniais, cuja pretensão se situa em 70.000,00 € (e que foi computado em 40.000,00 € na sentença recorrida).

– no recurso subordinado da R.:
3) alteração da resposta conjunta aos quesitos 1º a 10º da base instrutória, no sentido de «não provado» (quanto à ocorrência do embate «na metade direita da faixa de rodagem, considerado o sentido sul-norte», ou seja, estando o veiculo segurado pela R. em contra-mão) – com a consequente alteração da condenação da R., em termos de repartição de culpas e de atribuição à R. de responsabilidade apenas por metade da quantia em que o pedido do A. obteve procedência.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:
O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:
«A –No dia 10 de Janeiro de 2004, pelas 07h00m, em S. Bartolomeu de Messines, ao Km 715,4 do IC1, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de mercadorias com a matrícula …DE, conduzido por D… e o veículo automóvel ligeiro de mercadorias com a matrícula …LQ, conduzido pelo Autor F…

B – A ré assumiu a responsabilidade pelo sinistro em causa como seguradora do ramo de acidentes de trabalho, cujo seguro se encontra titulado pela Apólice nº…, contratada entre a ora ré e a empregadora do autor, “E…, Lda.”, tendo prestado assistência clínica ao autor no Hospital Privado de Santa Maria de Faro.

C –O autor recebeu da ré no âmbito do seguro de acidente de trabalho titulado pela referida Apólice nº…, por conta das retribuições que deixou de receber, desde a data do acidente até à data da alta, em 3 de Julho de 2006, a quantia de € 14.781,15.

D – Em 3 de Julho de 2006, o autor teve alta dos Serviços Clínicos a cargo da ré com a indicação de incapacidade parcial permanente para o trabalho e com a indicação de que podia retomar a sua actividade profissional.

E – Desde a data do acidente até à data da alta clínica, o autor esteve com incapacidade total para o trabalho.

F – O autor nasceu a 09 de Julho de 1964.

G – Na altura do acidente, o autor auferia o vencimento base mensal de € 523,74, ao que acrescia € 100 de subsídio de alimentação.

H – O acidente referido em A) consistiu num embate frontal entre os dois veículos, sendo que o veículo …LQ seguia no sentido sul-norte e o veículo …DE seguia em sentido contrário e que o embate ocorreu na metade direita da faixa de rodagem, considerado o sentido sul-norte.

I – Como consequência do acidente descrito, além da destruição do veículo LQ, o autor sofreu graves ferimentos que consistiram, nomeadamente, em:

a) Fractura segmentar do fémur esquerdo, exposta grau II;

b) Fractura basi-cervical do fémur esquerdo;

c) Fractura cominutiva do planalto tibial esquerdo;

d) Fractura dos ossos do antebraço esquerdo;

e) Fractura transversal do acetábulo esquerdo; e

f) Fractura dos ramos públicos à direita, além de outros ferimentos menores espalhados pelo corpo.

J – No mesmo dia, o autor ficou internado no Serviço de Ortopedia do Hospital Distrital de Faro, tendo aí sido submetido a intervenção cirúrgica de urgência para encavilhamento e reconstrução do fémur esquerdo.

L –Sendo-lhe igualmente feita osteosíntese do planalto tibial esquerdo com placa em L de neutralização.

M –Foi-lhe ainda feita reconstrução e osteosíntese dos ossos do antebraço com DCP de pequenos fragmentos e tracção esquelética ao membro inferior esquerdo.

N – Após equilíbrio vascular, fibroelectrolítico e metabólico, em 26 de Janeiro de 2004, o autor foi submetido a nova cirurgia com osteosíntese da fractura do acetábulo esquerdo com placa de reconstrução e parafusos.

O – Tendo-se verificado, no pós-operatório, que o autor ficaria com paralisia do nervo ciático.

P – No dia 25 de Fevereiro de 2004, o autor teve alta hospitalar, passando ao regime de tratamento ambulatório.

Q – Em Abril de 2004, o autor iniciou o tratamento de fisioterapia na Clínica de Stº António, em Faro.

R –Em 5 de Agosto de 2004, foi novamente submetido a uma intervenção cirúrgica no fémur e à tíbia esquerda para extracção do material de osteosíntese.

S –Dado ter surgido o desenvolvimento de um processo de osteomielite, com drenagem contínua seguido de osteotaxia da fractura do fémur esquerdo com fixadores externos, em 15 de Dezembro de 2004, o autor foi submetido a electromiografia do membro inferior esquerdo, que revelou a existência de lesões do nervo ciático externo (CPE) com sinais de desnervação total dos músculos da perna e pé esquerdos.

T – Em 21 de Março de 2005, foi reoperado, tendo-lhe sido retirados os fixadores externos e foi submetido a:

a) Osteotomia do fémur esquerdo (1/3) seguido de osteosíntese com placa e parafusos; e

b) Osteotomia da tíbia esquerda e osteosíntese com placa e parafusos.

U –Posteriormente, teve o autor indicação para prosseguir o tratamento fisiátrico na Clínica de Stº António, em Faro.

V – Tratamento esse que manteve até Junho de 2006.

X – O autor não é capaz de carregar mercadoria, caso tenha de fazer uma demonstração perante clientes, entregá-la ou dar assistência.

Z – O autor exerce a actividade profissional de vendedor comercial ao serviço da “E…, Lda.”, com sede na….

AA –Em consequência do acidente, o autor ficou com as lesões/sequelas descritas a fls. 204, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

BB –O autor mantém ainda o material de osteosíntese no rádio e no cúbito.

CC –Assim como mantém o material de osteosíntese que lhe foi aplicado ao nível das fracturas da bacia e ao fémur e da tíbia.

DD –As alterações degenerativas das superfícies articulares da anca e joelho esquerdo do autor, sugerem o agravamento com evolução para artrose das referidas articulações.

EE –Em consequência das lesões sofridas e dos tratamentos a que se submeteu o autor sofre intensas dores, grave mal-estar e profundos incómodos.

FF –O quantum doloris sofrido pelo autor é fixável no grau 6, numa escala de 1 a 7.

GG –O autor tem dificuldade na marcha normal.

HH –Claudica acentuadamente.

II – Não pode correr nem fazer marcha acelerada.

JJ – Não pode pegar em objectos pesados.

LL –O autor, em consequência do acidente, ficou com acentuada limitação dos movimentos do membro inferior esquerdo.

MM – Não pode estar de pé por períodos mais ou menos prolongados.

NN –E também tem dificuldade, por sentir dores e mal-estar, em estar sentado por períodos mais ou menos prolongados.

OO –Tendo necessidade de mudar de posição amiudadas vezes quando está sentado.

PP –O dano estético com que o autor ficou em consequência das lesões sofridas e das sequelas que apresenta deve ser fixado no grau 5, tendo em conta uma escala de 1 a 7.

QQ –Após o acidente, o autor tornou-se irritável, triste e revoltado com o sucedido.

RR –Sendo certo que, antes do acidente, era um homem dinâmico, alegre e divertido e interessado nas actividades que exercia.

SS –Antes do acidente, o autor era saudável, trabalhador bem disposto.

TT –E não sofria de qualquer incapacidade física ou defeito estético.

UU –O autor sente um grande desgosto por ter ficado afectado na sua capacidade de trabalho e com as sequelas de que é portador.

VV –Sentindo-se, muitas vezes, revoltado e triste por não poder executar todas as tarefas que antes fazia normalmente.

XX –E continua a sentir dores, sobretudo quando faz algum esforço físico e com as mudanças de tempo e variações de humidade.

ZZ –Sendo que essas dores vão perdurar toda a vida.

AAA –Podendo até agravar-se.

BBB –No exercício da sua actividade profissional de vendedor, o autor conduzia um veículo automóvel e transportava alguns dos equipamentos que vendia nesse veículo.

CCC –Procedendo também à recepção de artigos objecto de reclamação ou para reparação.

DDD –Além da sua actividade de vendedor ao serviço da “E…”, o autor promovia, ainda, a venda de brindes publicitários.

EEE –A roupa que o autor vestia na altura do acidente ficou inutilizada.

FFF –Em consultas médicas, o autor despendeu a quantia de € 370,00, para além das que foram custeadas directamente pela ré.

GGG –O autor está a receber, desde 4 de Julho de 2006, a quantia de € 170,00 por mês, a título de pensão provisória no âmbito do seguro de acidente de trabalho.

HHH –Correu termos no Tribunal de Trabalho de Faro o processo nº 31/05.4TTFAR, acção com processo especial emergente de acidente de trabalho, constando de fls. 193 a 197 certidão da respectiva decisão final, cujo teor aqui se dá por reproduzido.»

B) DE DIREITO:
1. Da apelação do A.:
Comece-se por salientar que, tendo em conta o teor das conclusões das alegações de recurso (que, como referimos supra, delimitam o objecto do recurso), o A. apenas impugna a sentença recorrida quanto aos segmentos, já identificados, relativos às peticionadas indemnizações por danos patrimoniais futuros (respeitantes a perda de capacidade de ganho) e por danos não patrimoniais (respeitantes a lesões físicas, dores, danos estéticos, sequelas permanentes, desgosto e sofrimento).
Já quanto à condenação da R. relativa a consultas médicas, perda de remunerações, vestuário danificado e futuro agravamento de sequelas, não se vislumbra discordância relevante do A. (cfr. conclusão 15ª das respectivas alegações de recurso): quantifica o montante das consultas em 370,00 €, valor considerado na condenação; refere um total de remunerações não recebidas no montante de 20.607,16 €, mas reconhece que deve ser «descontada a importância já recebida a esse título por acidente de trabalho» (cfr. al. b) da síntese da sua pretensão recursória, inscrita na parte final das suas alegações de recurso), o que permite deduzir àquele valor a quantia de 14.781,15 € já suportada pela R., perfazendo o montante de 5.826,01 € considerado na sentença condenatória; e aceita o reenvio para liquidação de sentença das indemnizações por vestuário danificado e futuro agravamento de sequelas. Sendo assim, estes segmentos da sentença condenatória encontram-se já transitados em julgado, estando excluída qualquer apreciação a seu respeito do âmbito de intervenção do tribunal ad quem.
Posto isto, passemos a analisar as duas questões essenciais suscitadas pelo A. neste recurso.
1.1. Quanto à questão da indemnização por danos patrimoniais futuros devidos a perda de capacidade de ganho, recorde-se que o tribunal recorrido entendeu que não era devida tal indemnização porque, não obstante as lesões permanentes sofridas pelo A., não se provou que este tivesse deixado de auferir remuneração do trabalho (total ou parcialmente), assim entendendo que só a perda real de capacidade de ganho será indemnizável. O A. sustenta, em sede de recurso, que a incapacidade parcial permanente (IPP) deve ser sempre indemnizável, ainda que o sinistrado continue a ter emprego remunerado, desde logo pelo maior esforço exigido no desempenho do mesmo trabalho. A R. opõe-se a esta tese, aderindo à posição do tribunal recorrido.
Nesta matéria, afigura-se-nos de acolher o entendimento, seguido dominantemente nos tribunais superiores, segundo o qual «a indemnização pelo dano de incapacidade parcial permanente é devida, mesmo que não se prove ter resultado dela diminuição actual dos proventos profissionais do lesado», com o argumento central de que «mesmo que na actualidade o não sinta no património, é de prever que o “handicap” físico da vítima se converta no futuro em prejuízos económicos, tais como a frustração de expectativas de promoção, a fragilidade na competição pelo posto de trabalho, a antecipação da reforma e outras» (assim, QUIRINO SOARES, «O Cálculo da Indemnização por Morte ou Incapacidade Permanente», in CEJ – Sessão de Cultura Judiciária sobre Acidente de Viação, ed. polic., 1999/2000). Neste sentido, v., por todos, o Ac. STJ de 17/5/1994, com o seguinte sumário: «Sofrendo o autor, em acidente de viação, lesões que lhe determinaram incapacidade permanente parcial de cerca de 17%, deve ser por isso indemnizado, a título de danos patrimoniais, mesmo que se não tenha provado diminuição actual da sua remuneração» (in CJ-Acs. STJ, II, t. II, p. 101 ss.).
Nesta mesma linha, importa ainda mencionar o Ac. STJ de 7/10/2004, em que se explicita mais amplamente a ratio dessa solução: «A afectação da pessoa do ponto de vista funcional, na envolvência do que vem sendo designado dano biológico, determinante de consequências negativas a nível da sua actividade geral, justifica a indemnização no âmbito do dano patrimonial, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial. Com efeito, a incapacidade permanente é susceptível de afectar e diminuir a potencialidade de ganho, por via da perda ou diminuição da remuneração ou da implicação para o lesado de um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de ganho» (Proc. nº 04B2970, in www.dgsi.pt). Como se salienta no Ac. RL de 26/4/2007, o que releva para este efeito é a «perda ou diminuição da capacidade produtiva», a qual consubstancia a previsibilidade de danos exigida pelo artº 564º, nº 2, do C.Civil, independentemente de se continuar ou não a exercer actividade remunerada: «A existência duma incapacidade permanente do lesado envolve uma normal diminuição do seu potencial de ganho, traduzível na perda ou diminuição da sua remuneração, ou, quando tal não suceda, implicará sempre um esforço acrescido do mesmo para manter os mesmos níveis de ganho» (Proc. 236/2007-2, idem). E isto sem prejuízo de também se dever pesar, no cômputo da indemnização devida, ao facto de o lesado continuar a ter emprego remunerado.
Quanto ao critério de apuramento dessa indemnização, e atenta a imprecisão do respectivo cálculo, haverá que ter em conta, antes do mais, o que dispõe sobre a matéria o artº 566º, nº 3, do C.Civil, que apela para o efeito a juízos de equidade: «Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provado».
Porque o legislador não concretiza o critério de cálculo, a jurisprudência tem vindo a construir várias soluções, como a utilização das regras previstas nas leis laborais (para o cálculo e remição de pensões), a capitalização à taxa de juro máxima das operações passivas bancárias (de modo a obter um capital que proporcione rendimento igual ao perdido), as tabelas financeiras (para determinação do capital necessário à formação de uma renda periódica correspondente à perda de ganho), etc. – por vezes, com correcções ou ajustamentos, em função de diferentes sub-critérios (sobre este ponto, v. QUIRINO SOARES, idem; e Ac. STJ de 6/7/2000, in CJ-Acs. STJ, VIII, t. II, p. 144 ss.). Ultimamente tem prevalecido o entendimento de que «a indemnização em dinheiro do dano futuro de incapacidade permanente corresponde a um capital produtor do rendimento que a vítima não irá auferir, mas que se extinga no final do período provável de vida» (assim, citado Ac. STJ de 6/7/2000).
De qualquer modo, qualquer desses critérios aritméticos deve ser considerado como mero auxiliar, ponto de referência ou dado orientador na busca da correcta avaliação do dano concreto, cabendo ao julgador corrigir resultados que contrariem a equidade que deve presidir à fixação do valor em causa (cfr. citado Ac. STJ de 6/7/2000). Como ainda recentemente afirmava o Ac. STJ de 15/2/2007, «as fórmulas financeiras utilizadas na determinação do quantum indemnizatório por danos patrimoniais futuros só relevam como meros elementos instrumentais, no quadro da formulação de juízos de equidade, face aos elementos de facto provados, porque se não conformam com a própria realidade das coisas, avessa a operações matemáticas, além do mais porque não é possível determinar o tempo de vida útil, a evolução dos rendimentos, da taxa de juro ou do custo de vida, e inexiste relação de proporcionalidade entre a incapacidade funcional e o vencimento auferido pelo exercício profissional» (Proc. 07B302, idem).
Atentos estes parâmetros, haverá que considerar, no presente caso, que o A., à data do acidente, auferia uma remuneração anual de 7.332,36 € (523,74 € x 14), tinha 39 anos e sobreveio-lhe, como consequência do acidente e segundo o relatório pericial de fls. 201-207, uma IPP de 40,16% (sendo que o previsível agravamento futuro de sequelas, fixável em mais 10%, segundo esse mesmo relatório, não será nesta sede considerado, por estar implicado no segmento condenatório em que se determina posterior liquidação quanto a eventual agravamento futuro das sequelas do A., nos termos do artº 47º, nº 5, do CPC).
Haverá ainda que ter presente o seguinte: a esperança de vida para os homens situa-se hoje por volta dos 74 anos (não relevando neste ponto a idade da reforma de 65 anos, como vem sendo entendido jurisprudencialmente: cfr., por todos, o recente Ac. STJ de 7/10/2010, Proc. 2171/07.6TBCBR.C1.S1, idem; v., ainda, Ac. RE de 13/4/2009, Proc. 367/04.1TBOLH.E1, idem) – o que significa, no caso concreto, uma previsão de 34 anos de expectativa de vida para o A.; e ao valor da indemnização deve ser introduzida uma correcção em função de ser recebida de uma só vez e por inteiro, para evitar intangibilidade do capital com locupletamento à custa alheia (dedução essa que se encontra jurisprudencial e genericamente fixada em 1/3: v., por todos, o citado Ac. RL de 26/4/2007).
Nesta conformidade, obter-se-ia in casu um valor de 66.746,53 € – e haveria ainda que sopesar factores futuros não quantificáveis, como a evolução profissional, a inflação e a variabilidade das taxas de capitalização, que justificariam um aumento do referido valor (v., neste sentido, e com explicação detalhada das operações aritméticas realizadas, o citado Ac. RL de 26/4/2007, e ainda o Ac. RL de 13/12/2007, Proc. 10156/2007-7, idem, fazendo-se notar que em ambos os arestos estavam em causa lesados que continuaram a auferir remuneração profissional).
Tudo ponderado, considera-se razoavelmente equitativo fixar a indemnização por danos patrimoniais futuros sofridos pelo A. no montante de 80.000,00 € (actualizado à data da presente decisão).
1.2. Quanto ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais também formulado pelo A., cumpre atentar no que dispõe o artº 496º, nº 1, do C.Civil, segundo o qual «na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito». Daqui decorre que o dano indemnizável «deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado» (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, p.606).
Não oferece dúvidas que a factualidade provada (cfr. factos sob as als. I) a X), e AA) a AAA)) configuram, amplamente, sofrimento físico e psíquico indemnizável. O montante dessa indemnização deve ser apurado com recurso à equidade (artº 496º, nº 3, do C.Civil).
O tribunal recorrido fixou a respectiva indemnização em 40.000,00 € – e o A. pretende que esse montante seja aumentado para 70.000,00 €, com a oposição da R.. Passemos a aferir do acerto do montante arbitrado.
Reconhece-se que, no presente caso, ocorrem circunstâncias especiais que justificam uma indemnização particularmente elevada: designadamente, a gravidade das lesões sofridas pelo A. (que determinaram a sua incapacidade total para o trabalho desde a data do acidente, em 10/1/2004, até à alta clínica, em 3/7/2006, e uma incapacidade parcial permanente de 40,16%), o longo tempo decorrido até à alta clínica (mais de 2 anos), a significativa quantidade de tratamentos, internamentos e intervenções cirúrgicas realizados, as dores de grau 6 (em 7), o dano estético de grau 5 (em 7), a perenidade do seu sofrimento e desgosto.
Tendo em conta a prática jurisprudencial mais recente (v, por todos, o citado Ac. STJ de 7/10/2010, em que se aceita um valor de 35.000,00 €, num caso de lesado de 45 anos, com ITA de 382 dias e IPP de 8%, com internamentos, intervenção cirúrgica e tratamentos, com quantum doloris de grau 4 e dano estético de grau 2, e com remuneração de 972,00 €), entendemos que o montante fixado na sentença recorrida, para os danos não patrimoniais da vítima, peca por ser algo escasso, afigurando-se mais razoavelmente equitativo arbitrar a respectiva indemnização num montante de 50.000,00 € (actualizado à data da presente decisão).
1.3. Impõe-se uma última nota, quanto a matéria de juros.
Uma vez que os montantes ora fixados de indemnizações por danos patrimoniais devidos a perda de capacidade de ganho (80.000,00 €) e por danos não patrimoniais (50.000,00 €) constituem valores actualizados, os juros de mora a ter em conta em relação a essas verbas apenas serão devidos a partir da data da prolação do presente aresto e até integral pagamento, à taxa legal em vigor.
O que se determina em conformidade com o estabelecido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº 4/2002 (in DR, I-A, de 27 de Junho): «Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, nº 3 (interpretado restritivamente), e 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação».

2. Da apelação da R.:
Quanto ao recurso subordinado, é sabido que este, não obstante ter de acompanhar as vicissitudes processuais do recurso principal, sempre terá de «ser apreciado pelo tribunal de recurso se este conhecer do objecto do recurso principal, julgue-o procedente ou improcedente» (v. LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 27).

No presente caso, o recurso subordinado da R. apenas suscita uma única questão: alteração da resposta conjunta aos quesitos 1º a 10º da base instrutória.

Em bom rigor, tratar-se-ia de matéria com precedência lógica sobre a tratada no recurso do A., por se reportar à matéria de facto – e por da sua procedência poder resultar uma integral revogação da decisão recorrida. Porém, a manifesta improcedência do recurso subordinado da R. ditou a desnecessidade de alterar a sequência legal de apreciação plural de recursos segundo a sua ordem de interposição (cfr. artº 710º, nº 1, do CPC).

Indo ao objecto deste recurso subordinado, começaremos então por dizer que, se era intenção da R. impugnar a matéria de facto (conforme declara nas suas alegações de recurso), o certo é que não cumpriu os ónus impostos pelo artº 690º-A do CPC: indicação concreta dos pontos de facto a alterar e dos meios probatórios relevantes para tal alteração, com indicação dos depoimentos em que se funda a impugnação, por referência ao assinalado na acta.

Face ao disposto no citado artº 690º-A do CPC, é entendimento dominantemente aceite que não basta a mera transcrição de depoimentos e a alegação genérica de que devem ser atendidos no elenco dos factos provados para fundar uma pretensão de impugnação da matéria de facto (cfr. LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 53-55). É necessário que haja uma indicação especificada dos pontos de facto a alterar – i.e., tem de haver uma indicação ponto por ponto (facto a facto/quesito a quesito) do que deve ser alterado, em que sentido (resposta positiva, negativa ou restritiva) e com que particular fundamento, com referência a concretos trechos de depoimentos (ou outros meios probatórios).

No presente caso, é certo que a recorrente indicou o concreto facto que pretendia ver alterado, por referência a resposta dada a quesitos, e em que termos deveria ser alterado (de resposta conjunta parcialmente positiva para resposta negativa), mas não procedeu a uma indicação precisa de trechos do depoimento em que se funda a sua pretensão (concretamente, da testemunha N…, militar da GNR e, in casu, agente de fiscalização de trânsito): não se estabeleceu uma correlação entre concretas passagens da gravação e o ponto de facto que se pretende ver alterado.

Não tendo a R. cumprido os referidos ónus, é óbvio que está vedada a possibilidade de alteração da matéria de facto – e não pode, por mera dedução, alcançar-se facto contrário ao que foi declarado provado.

Em todo o caso, sempre se dirá que mesmo que fosse operante a impugnação da matéria de facto (cabendo sindicar o conteúdo da prova produzida), seria improvável que o tribunal de recurso pudesse alterar a decisão de facto da 1ª instância – e isso na medida em que uma reapreciação de matéria de facto pela 2ª instância se encontra condicionada pelo princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador da 1ª instância (artº 655º do CPC) –, ainda que ressalvada qualquer situação de patente impossibilidade de desse depoimento poder ser retirada determinada resposta de facto.

Acresce que, ainda que se contemporizasse na aplicação do artº 690º-A do CPC, não se poderia deixar de considerar o juízo formulado pela R. indefensável. Note-se que esta sustenta que a testemunha teria declarado ter uma vaga recordação do acidente, haver constatado vestígios indicativos do local do embate (sem os mencionar no croquis) e não ter falado com os condutores – e daí pretende inferir que o depoimento dessa testemunha não é bastante para considerar provado o facto impugnado.

Ora, independentemente do que se disse quanto ao princípio da livre apreciação da prova legitimamente exercido pelo tribunal a quo, o certo é que a recorrente não põe em causa a existência dos referidos vestígios, nem questiona a afirmação do tribunal (na motivação da matéria de facto) de que a testemunha em apreço recordou pormenores que conferiram consistência ao seu depoimento. Se tivermos em conta que a indicação da localização dos vestígios está implícita na própria forma como a testemunha elaborou o croquis (correspondendo aquela ao local do embate e tornando despicienda uma expressa menção aos mesmos), e que entre os pormenores fornecidos pelo depoimento está, para além da alusão aos vestígios, a referência ao talão de portagem encontrado no veículo DE que permitiu estabelecer o seu sentido de marcha, afigura-se perfeitamente razoável a conclusão do tribunal a quo de que o depoimento dessa testemunha era consistente, apresentando coerência e credibilidade bastantes para fundar a convicção do tribunal no sentido da resposta afirmativa impugnada – e sendo assim evidente que a (alegada e eventual) vacuidade da recordação da testemunha relativamente ao acidente não passará senão de mero sintoma da memória selectiva que os agentes de fiscalização de trânsito formam como decorrência dos muitos acidentes de viação em que são chamados a intervir no âmbito na sua actividade. E tanto basta para permitir inferir a incongruência da argumentação em que a recorrente funda a sua impugnação da matéria de facto.

Reafirma-se, pois, a improcedência do recurso subordinado da R..

3. Em suma: merece provimento parcial o recurso independente do A., por se considerar que ao A. são devidas indemnização por danos patrimoniais relativos a perda da sua capacidade de ganho, não reconhecida pelo tribunal a quo (que se entende fixar em 80.000,00 €), e indemnização por danos não patrimoniais em montante superior ao que havia sido arbitrado pelo tribunal recorrido (50.000,00 €, em vez de 40.000,00 €); e deve improceder o recurso subordinado da R., por incumprimento dos ónus impostos pelo artº 690º-A do CPC e, independentemente disso, por também carecer de fundamento material a sua pretensão de impugnação da matéria de facto.

III – DECISÃO:
Pelo exposto, acorda-se em:
a) conceder provimento parcial ao recurso independente deduzido pelo A., procedendo a acção quanto aos segmentos e nos termos infra descritos, pelo que se revoga a sentença recorrida em conformidade com esse juízo;
b) e negar provimento ao recurso subordinado deduzido pela R..

Consequentemente, decide-se julgar procedente a acção quanto aos pedidos de atribuição ao A. de indemnização por danos patrimoniais relativos a perda da sua capacidade de ganho, que se fixa em 80.000,00 € (oitenta mil euros), e de indemnização por danos não patrimoniais, que se fixa em 50.000,00 € (cinquenta mil euros), condenando a R. a pagar ao A. essas quantias (e sem prejuízo da condenação da R. no pagamento ao A. de outras verbas, determinada na parte não impugnada da sentença recorrida), a que acrescem os juros de mora que se vencerem sobre as mesmas, desde a data da prolação da presente decisão e até integral pagamento, à taxa legal em vigor.

Custas por A. e R., quanto à apelação da A. e na 1ª instância, na proporção do decaimento (artº 446º do CPC), sem prejuízo, para o primeiro, do apoio judiciário que lhe foi concedido (cfr. fls. 53-55). Custas da apelação da R. pela respectiva apelante (artº 446º do CPC).
Évora, 17.02.2011
(Mário António Mendes Serrano)
(Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes)
(Jaime Ferdinando de Castro Pestana)