Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
154/21.2JAPTM.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO NA FORMA TENTADA
DOLO EVENTUAL
LIVRE CONVICÇÃO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 01/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Nos termos do artigo 127.º do CPP é ao Julgador que compete valorar os meios de prova.
II. No caso o Tribunal a quo realizou uma correta apreciação da prova produzida face às regras da normalidade e da experiência da vida quanto à intenção de o arguido querer tentar matar a vítima.
III. Não credibilizou a versão do arguido (militar da GNR reformado) possuidor de uma destreza apurada no manejo de armas e que invocou apenas ter pretendido disparar em direção ao chão para assustar a ofendida para esta se ir embora e, depois acertou-lhe dois tiros nas pernas e já após ser desarmado por uma testemunha, ainda, tentou agarrar a arma dizendo que ia matar a ofendida.
IV. A intenção do arguido resulta, ainda, da circunstância de este, face à sua experiência profissional, ter perfeitamente conhecimento que as zonas do corpo atingidas pelos dois disparos alojam as artérias femorais, que a serem alvejadas conduziriam à morte da vítima.
V. Não ocorre qualquer vício da contradição insanável do artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do CPP quando é conduzida aos não provados a factualidade relativa ao dolo direto (versão constante da acusação) e aos provados a matéria concernente ao dolo eventual de homicídio qualificado na forma tentada.
Decisão Texto Integral:

Acordam na sequência da audiência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO

1. Da decisão

No Processo Comum Coletivo n.º 154/21.... da Comarca de Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., submetido a julgamento, foi o arguido AA[1]:

1.1. Absolvido da qualificativa operada pelo disposto no artigo 132.º, n.º 2, alíneas b) e c) do CP;

1.2. Absolvido da prática de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas b) e d) e 2, alínea a), punido acessoriamente nos termos do disposto nos n.ºs 4, 5 e 6 do CP;

1.3. Absolvido da prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e e) da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, por referência ao artigo 2.º, n.ºs 1, alíneas p), q), e ad), e n.º 3, alínea m) e artigo 3.º, n.º 1, n.º 4, alínea a) do mesmo dispositivo legal e ao artigo 29.º, n.ºs 7 e 8 do DL n.º 30/2017 de 27/03.

1.4. Condenado como autor material de um crime de homicídio agravado na forma tentada previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º e 131.º do CP e artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão;

1.5. Manter o regime coativo de prisão preventiva ao arguido;

1.6. Foi(ram), ainda:

a) Declaradas perdidas a favor do Estado a arma e munições apreendidas e determinada a sua entrega à PSP;

b) Julgado procedente por provado o pedido de indemnização civil formulado pelo C..., EPE, e condenado o demandado a pagar a quantia de 182,07 €, acrescido de juros à taxa legal para as obrigações civis, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

2. Do recurso

2.1. Das conclusões do arguido

Inconformado com a decisão o arguido interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1ª - Conforme resulta supra dos pontos 4 a 11, a conduta do arguido/recorrente é enquadrável no crime de ofensa à integridade física qualificada, não podendo ser considerada como homicídio na forma tentada;

2ª – Devendo, por aquele crime, ser condenado em pena não superior a 3 anos de prisão, atentas as razões supra invocadas nos pontos 13 e 14.

3ª – Ainda que se admitisse (o que não se concede) ter ele cometido o crime de homicídio, na forma tentada, pelo qual foi condenado, sempre, e pelas mesmas razões, a pena adequada deveria ser não superior a 4 anos e 6 meses de prisão.

4ª – Considerando ainda e também a atenuação especial resultante do arrependimento sincero, que não foi tido em conta, na decisão recorrida.

5ª – Que, por isso, violou o comando do artº 72º, do C. Penal.

6ª – Igualmente violado se mostra o estatuído no artº 71º do mesmo normativo, pois que inexiste fundamentação bastante para a escolha da medida da pena que foi aplicada.

7ª – Em suma, ao arguido/recorrente deverá ser aplicada pena claramente inferior a 5 anos de prisão, a qual, de acordo com os princípios constantes do artº 40º, do C. Penal, e ainda atento o circunstancialismo supra referido no ponto 20, lhe deverá ser suspensa na sua execução.

Dando, pois, provimento ao presente recurso, (…)”.

2.2. Das contra-alegações do Ministério Público

Motivou o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição):

“1. O arguido AA, vem recorrer do douto Acórdão proferido nos autos à margem referenciados, que o condenou, pela prática de um crime de homicídio agravado, na forma tentada, ilícito previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º e 131.º, todos do Código Penal e artigo 86.º, n.º1, do Regime Jurídico das Armas e Munições, na pena de 5 (cinco) anos 6 (Seis) meses de prisão.

2. Começa por alegar o recorrente que não resulta da prova produzida que o arguido tenha atuado com intenção de tirar a vida à ofendida ou que tenha representado a possibilidade de tal suceder como consequência necessária da sua conduta.

3. Mais refere que se terá de considerar que o arguido praticou um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 145.º, n.º1, alínea a), do Código Penal.

4. Entende o recorrente que, caso se continue a considerar que o arguido praticou um crime de homicídio na forma tentada sempre seria inaceitável a pena de 5 anos e 6 meses de prisão, devendo ser aplicada uma pena não superior a 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução.

5. Face à prova carreada nos autos e corretamente apreciada, dúvidas não restam de que os factos em apreço se subsumem à prática do crime de homicídio tentado e não ao crime de ofensa à integridade física qualificada como a defesa pretende que se entenda.

6. O arguido, nas declarações que prestou, admitiu um disparo para o chão apenas com o intuito de assustar a ofendida por forma a que a mesma saísse dali para sempre, contudo o arguido acertou na parte de cima das pernas da ofendida. A defesa, tanto em sede de julgamento, como no recurso, debate-se pelo facto de o arguido ser militar da GNR aposentado, tendo prestado serviço nessa corporação por 24 (vinte e quatro) anos, sendo naturalmente hábil no manejo de armas.

7. Ora, aceitar que o arguido possuía toda esta destreza e apenas queria atirar para o chão para assustar a ofendida para esta se ir embora (como o mesmo defende) e, no entanto, vai acertar nas pernas da mesma a mais de um metro do chão, não tem qualquer destreza como alegado.

8. Face a tudo o exposto é possível concluir que o arguido agiu com intenção de tirar a vida à ofendida (ainda que não se entenda que o tenho feito com dolo direto, pelo menos terá de se entender que o fez com dolo eventual, atendo à zona para a qual disparou, a qual aloja órgãos vitais tal como supra indicado e, o arguido estava consciente de que os poderia atingir e retirar a vida à vítima, contudo, ainda assim, decidiu agir como agiu).

9. Mais, se o mesmo não tivesse essa intenção, porque motivo voltou a pedir a arma afirmando que queria matar a ofendida? Se fosse apenas para assustar, como o mesmo refere, uma pessoa que tinha acabado de levar um tiro já se encontrava suficientemente assustada.

10. Por outro lado, bem sabia o arguido que a zona atingida, a qual aloja artéria que a ser atingida levaria ao resultado morte (facto que o arguido bem sabe por ter sido militar da GNR).

11. Quanto à pena aplicada ao arguido, o tipo legal do crime pelo qual o arguido foi condenado (homicídio agravado, na forma tentada), efetuada a atenuação especial, nos termos do artigo 73.º, n.º1, alíneas a) e b), 1.ª parte, do Código Penal, tem como moldura abstrata a pena de prisão de 2 (dois) anos e 1 (um) mês e 24 (vinte e quatro) dias a 14 (catorze) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias.

12. No presente caso, forçoso é concluir que o arguido apenas poderia ser condenado numa pena de prisão, a título principal.

13. O arguido agiu contra a vítima com quem teria tido uma relação próxima. Mais, o mesmo já no interior do café a teria ameaçado, esperou que esta viesse para o exterior do mesmo, vindo atrás dela (sem que esta se apercebesse) e, de modo traiçoeiro, apontou a arma e disparou, com toda a frieza. Ora, da conduta do arguido resultaram ferimentos graves para a vítima, apenas não tendo tido consequências mais graves por sorte. Além disto, após terceiros lhe terem retirado a arma o mesmo voltou a pedi-la para terminar os seus intentos.

14. Mais, estamos perante um arguido que foi militar da GNR o qual tem deveres acrescidos para com a sociedade, ainda que seja aposentado.

15. Não nos esqueçamos, que o arguido atentou contra o pontífice máximo da nossa Constituição da República Portuguesa, a vida humana e fê-lo sem qualquer pena da vítima, com toda a frieza possível.

16. Além de tudo o exposto, o arguido fê-lo empunhando uma arma contra a vítima.

17. Invoca a defesa que o arguido é aposentado em virtude do AVC que haveria sofrido, contudo tal não o impediu de praticar os factos pelos quais foi condenado.

18. Pelo exposto, julgamos não merecer censura a decisão recorrida, por obedecer a todos os requisitos legais e não ter violado qualquer norma legal, devendo ser mantida na íntegra.

Pelo exposto, deve negar-se provimento ao recurso apresentado pelo arguido AA e manter-se a douta sentença recorrida, assim se fazendo justiça.”.

2.3. Do Parecer do MP em 2.ª instância

Na Relação a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de ser julgada a improcedência total do recurso interposto pelo arguido.

2.4. Da tramitação subsequente

Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos foi realizada a audiência de julgamento.

Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Objeto do recurso

De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questões a examinar

Analisadas as conclusões de recurso as questões a conhecer são:

2.1. Impugnação da matéria de facto por não resultar da prova produzida que o arguido tivesse intenção de tirar a vida à ofendida;

2.2. Erro de julgamento quanto à matéria de direito (artigo 412.º, n.º 2 do CPP):

a) Por incorreta qualificação jurídica dos factos pelos quais o arguido foi condenado, considerando que este praticou um crime de ofensa à integridade física qualificada, ilícito previsto e punido pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a);

b) Por virtude de a pena aplicada ao arguido (5 anos e 6 meses de prisão) ser excessiva e não lhe dever ser aplicada uma pena superior a 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, caso se considere ter efetivamente o arguido praticado um crime de homicídio tentado.

3. Apreciação

3.1. Da decisão recorrida

Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida.

3.1.1. Factos provados na 1.ª instância

O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):

“1. O arguido foi Militar da GNR, encontrando-se aposentado desde 01/10/2013.

2. O arguido e a ofendida, BB, conhecem-se pelo menos há 30 anos.

3. Em data não concretamente apurada, mas durante o ano de 2017, o arguido e a ofendida iniciaram uma relação de namoro, a qual durou cerca de 5/6 meses.

4. O arguido e a ofendida, não obstante a separação, sempre mantiveram uma relação de afeto e entreajuda.

5. Em março de 2020, a ofendida, em virtude de doença do foro psiquiátrico de que padecia, iniciou um período de baixa médica, altura em que restabeleceu contacto com o arguido.

6. Em 22 de Maio de 2020, foi a ofendida internada no ..., tendo tido alta a 02 de junho de 2020.

7. Foi assim que, entre o dia 02 de junho de 2020 e o mês de abril de 2021, o arguido e ofendida viveram na habitação daquele, sita na Av. ..., em ....

8. Durante o período referido no número anterior, por inúmeras vezes e em datas não concretamente apuradas, o arguido, após ingerir bebidas alcoólicas em excesso, discutia com a ofendida, por razões que não se lograram apurar.

10. O arguido também começou a usar o veículo propriedade da ofendida.

11. Em data não concretamente apurada, mas durante o mês de abril de 2021, a ofendida apoderou-se da chave do veículo e saiu da casa deste, passando a viver na sua atual residência, sita no ..., ..., em ....

12. Sucede que, durante o mês de maio de 2021, a ofendida voltou a ser internada no Hospital ..., tendo tido alta a 30 de maio de 2021.

13. O arguido, com o propósito de levar comida e tabaco à ofendida, começou a deslocar-se, com regularidade, à residência desta, pelo menos até ao dia 15 de agosto de 2021.

14. Não obstante, devido ao consumo de álcool em excesso, por parte do arguido, as discussões entre ambos ocorriam numa base diária e permanente.

15. Durante tais discussões o arguido apresentava discurso ciumento e possessivo.

17. A partir do dia 01 de julho de 2021, a ofendida e o arguido passaram a trabalhar juntos, desempenhando funções de vigilantes na empresa “V...”, encontrando-se a exercer funções na exposição de dinossauros, em frente ao Centro de Saúde ....

18. Sucede que, desde 12 de agosto de 2021, o arguido se encontrava de baixa médica, por ter fraturado uma perna no exercício das suas funções de vigilante, passando grande parte do dia, em casa da ofendida, a ingerir bebidas alcoólicas.

20. No dia 15 de agosto de 2021, o arguido saiu definitivamente da casa da ofendida, a qual o bloqueou no Facebook, deixando de atender as chamadas telefónicas do mesmo.

21. No dia 04 de setembro de 2021, pelas 12h00m, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento de restauração denominado “B...”, sito na Urbanização ..., ..., sentou-se e almoçou sozinho na esplanada da frente do dito estabelecimento.

22. Após, pelas 12h40m, a ofendida chegou ao dito estabelecimento e sentou-se na esplanada das traseiras (junto ao estacionamento), juntamente com dois amigos, CC e DD.

23. De seguida, após ter terminado a sua refeição, o arguido dirigiu-se à mesa onde se encontrava a ofendida e os dois amigos supra aludidos, sentou-se e começou a pedir e a ingerir copos de vinho.

24. A ofendida, considerando o estado de saúde do arguido, que padece de leucemia, alertou-o para que não bebesse mais, tendo-se o arguido levantado e arremessado a canadiana que trazia consigo na direção da ofendida, dizendo: “fica com ela que ainda te vai fazer falta hoje”.

25. Nessa sequência, o arguido dirigiu-se à sua residência, trocou a roupa que envergava, vestindo umas calças de fato de treino, ao invés dos calções e calçando umas sapatilhas.

26. De seguida, muniu-se de uma pistola, de marca ..., modelo ..., com o nº de série ...45, de calibre 7,65mm, e do respectivo carregador, municiado com 5 munições e saiu de casa.

28. Cerca de 15m depois, após já ter colocado a pistola no cós das calças, dirigiu-se novamente ao balcão, tendo sido atendido por EE, a quem pediu um copo de vinho.

29. Nesse momento, a ofendida que, entretanto, se tinha deslocado para a esplanada da frente do estabelecimento, decidiu abandonar o local, tendo começado a contornar o mesmo, a fim de se dirigir para a sua viatura, que se encontrava estacionada junto da zona da esplanada das traseiras.

30. O arguido, de imediato, seguiu no seu encalço e dirigiu-se também para a zona da esplanada das traseiras.

31. Em acto contínuo, o arguido chamou a ofendida e, quando esta se virou, já a cerca de um metro desta, disse-lhe: “amo-te muito, se não és para mim não és para mais ninguém”, retirando a arma do cós das calças.

32. De seguida, empunhou-a na direção da ofendida e efetuou um primeiro disparo que atingiu a ofendida na face interna da coxa esquerda, seguido de um segundo disparo que atingiu a ofendida na face interna da coxa direita.

33. Perante os ferimentos, a ofendida caiu no chão a sangrar, começando a gritar por socorro.

34. Nesta sequência, CC, acorreu ao local, desferindo uma pancada no braço do arguido, que deixou cair a arma ao chão, pontapeando-a, de seguida.

35. Quando a arma foi pontapeada por CC, o arguido ainda tentou agarrá-la, dizendo que ia matar a ofendida e matar-se a ele, de seguida.

36. Após, ao não lograr o seu intento, o arguido fugiu do local e dirigiu-se ao interior do estabelecimento, onde retirou uma faca de refeição, com a qual tentou atingir a zona do peito, o que não conseguiu levar a cabo pela intervenção de EE.

37. O arguido, depois, deslocou-se para a sua residência.

38. A ofendida foi socorrida por populares e, após a chegada do INEM, levada para as urgências do Hospital ....

39. Em consequência direta e necessária dos disparos efetuados pelo arguido, sofreu a ofendida:

- No membro inferior direito: duas cicatrizes de coloração acastanhada, localizadas uma na face antero-medial do terço médio da coxa com 1,7 cm por 0,8 cm (entrada do projétil da arma de fogo); outra na face ântero-lateral junto com linha média do terço medido-inferior com 1,5 cm por 0,8cm de maiores dimensões (saída do projétil de arma de fogo).

As cicatrizes distam de 5cm uma da outra, posicionadas em relação uma com a outra obliquamente.

Apresenta sinais de ruptura do músculo do fémur.

- No membro inferior esquerdo: duas cicatrizes de coloração acastanhada, localizadas uma na face medial do terço superior da coxa com 1,3 cm por 0,4 cm (entrada do projétil de arma de fogo); outra na face-lateral do terço superior com 0,5 cm de maior diâmetro (saída do projétil de arma de fogo).

As cicatrizes distam de 30 cm uma da outra, posicionadas em relação uma com outra obliquamente.

40. Tais lesões determinaram, um período de doença ainda não concretamente apurado.

41. Ao agir do modo descrito, o arguido admitiu como possível que ao efetuar dois disparos na direção do corpo da ofendida, poderia atingir zonas do corpo que alojam órgãos vitais, colocando em risco a vida desta, o que era adequado a provocar-lhe a morte e, não obstante, decidiu agir como o fez, conformando-se com tal possibilidade, não tendo sobrevindo a morte da ofendida por razões estranhas à vontade do arguido.

42. O arguido atingiu região que aloja artérias essenciais à vida, nomeadamente a artéria femoral, com objeto apto a causar a morte, quando atuando sobre tais regiões do corpo humano.

47. O arguido encontra-se na situação de reforma há mais de 5 anos sobre a mudança de situação Militar e não entregou o respetivo atestado médico ao Diretor Nacional da PSP, a fim de aferir de que está na posse de todas as suas faculdades psíquicas, pelo que o seu direito de detenção, uso e porte de arma, independentemente de licença foi, automaticamente, suspenso.

48. Pelo que o arguido não é titular de qualquer licença para detenção, uso e porte de arma, não obstante a arma usada pelo mesmo se encontrar manifestada e registada.

50. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.

Mais se apurou,

O arguido não possui antecedentes criminais.

Do Relatório Social consta que,

AA nasceu em ..., assim como a sua irmã mais nova, pais de origem do pai que tinha um comércio de venda de vestuário. A mãe foi para esse país em pequena, ajudando o pai na sua atividade profissional. O contexto familiar onde se desenvolveu foi marcado pela ausência de problemas relacionais e económicos.

Concluiu a primária e iniciou o 2º ciclo em ..., mas em 1974, na sequência da descolonização, a família regressou a Portugal e fixaram-se em ..., distrito ..., o pai na altura iniciou funções na área da construção civil e a mãe dedicava-se a tarefas agrícolas O arguido retomou os estudos, tendo após concluído o 6º ano, enveredado pela via profissional, laborando junto do pai na construção civil e ajudando a mãe na realização de trabalhos agrícolas, cujo provento depois era vendido.

O pai faleceu há cinco anos, vitima de AVC e a mãe mantem-se a viver em ....

Com 21 anos AA cumpriu o SMO em ... e perspetivando melhorar a sua situação profissional e económica, AA, aos 24 anos candidatou-se à GNR, tendo concluído o curso da Brigada de Transito, na Costa da Caparica. Foi colocado no Destacamento de ..., onde esteve cinco anos em ... e quinze anos em ..., pertencendo ao ... – .... Em 2004 foi promovido a cabo.

Na sequência de um AVC que sofreu em 2012 foi considerado inapto para exercer as funções na GNR tendo sido reformado por invalidez. Contudo, manteve atividade profissional como segurança num Hotel em ... e mais recentemente no Centro de Saúde dessa localidade.

Em 2018 foi-lhe detetado Leucemia Linfática Crónica, tendo realizado tratamento quimioterápico.

No presente mantém o acompanhamento na consulta de hematologia no Hospital ... (...), para controlo e vigilância.

No plano afetivo, AA contraiu matrimónio com 21 anos, tendo duas filhas desta relação, com 38 e 34 anos, ambas emigradas em .... A relação conjugal terminou volvidos 20 anos, considerando o arguido que foi motivada pelo AVC que sofreu. Passados dois anos o arguido iniciou nova relação afetiva, tendo casado em 1994. Tem um filho de 26 anos, residente em ....

Segundo o próprio, mantem interação regular com os descendentes, através de contatos telefónicos.

A relação com a ofendida foi iniciada em 2018, apesar do arguido referir que já a conhecia há muitos anos, mas sem convívio. Segundo reportou, manteve uma relação amorosa com a mesma durante seis meses e depois continuou a prestar apoio à mesma, como amigo, porquanto descreveu a ofendida como uma pessoa com um quadro de saúde depressivo, com carências económicas e sem retaguarda familiar.

AA deu entrada no EP ... de Tomar, em situação de preventivo, no dia 6 de setembro de 2021. Em meio prisional tem revelado comportamento adaptativo, não existindo registos de infrações.

Tem mantido interação com os filhos mediante contatos telefónicos e através de videochamadas.

Tem recebido visitas de familiares e de amigos de longa data.

À data da reclusão, vivia sozinho numa casa própria, adquirida mediante recurso bancário. Trata-se de um apartamento, tipologia T1, com boas condições de habitabilidade. Já durante a sua reclusão, um amigo e ex colega de profissão, após divórcio, passou a habitar a casa, coadjuvando o arguido no pagamento dos encargos com a mesma.

AA encontra-se reformado por invalidez, sendo a sua pensão no valor de 1.460,00€.

Não obstante já se encontrar aposentado, trabalhava por conta da empresa “V...” como segurança no Centro de Saúde ..., encontrando-se á data da reclusão, de baixa médica, por ter fraturado o perónio. Como despesas fixas mensais reportou a mensalidade da amortização da casa no valor de 336,00 e encargos com a sua manutenção (água, gás e luz) cujo montante não soube definir. A par destes, possuía outras despesas relacionadas com créditos pessoais que contraiu para aquisição de veiculo automóvel, mobiliário e eletrodomésticos cujo valor mensal ronda os €460,00.

Mantinha ligação próxima ao filho mais novo, residente em ... e contatos telefónicos regulares com as filhas, emigrantes em ....

Nos tempos de lazer, o arguido não desenvolvia qualquer atividade estruturada, aproveitando para realizar as tarefas domésticas. Diariamente tomava as refeições tomadas num restaurante perto da sua casa. Contatada a proprietária deste estabelecimento, o arguido foi descrito como um individuo pacato, prestável e bem inserido na comunidade. Para o filho mais novo a atual situação jurídica penal do arguido constituiu uma surpresa reconhecendo que tal situação não se coaduna com a imagem que dele têm face à sua postura ao nível profissional, social e familiar.

Como características pessoais, o arguido evidencia discurso colaborante, apresentando em nossa ótica algumas dificuldades ao nível da antecipação mental das consequências dos seus comportamentos, principalmente em situações mais complexas em termos emocionais.

Na DGRSP não constam registos de anteriores contactos de AA com o sistema de justiça penal.

Relativamente aos factos em apreço no presente processo, AA não revelou dificuldades em compreender a sua atual situação jurídica, pese embora aguarde com expetativa o esclarecimento da situação em sede de julgamento.

A presente situação jurídico-penal, tem tido um impacto negativo, com repercussões no seu estado emocional, apresentando um discurso de tristeza e vergonha por se ver envolvido num processo judicial.

Foram prestados cuidados de saúde à ofendida, ainda não liquidados, na quantia de € 182,07 (cento e oitenta e dois euros e sete cêntimos)”.

3.1.2. Factos não provados na 1.ª instância

O Tribunal a quo considerou não se terem provado quaisquer outros factos com interesse para a causa nomeadamente que (transcrição):

“Que o arguido e ofendida vivessem em comunhão de leito mesa e habitação.

Que o arguido começou a utilizar o veiculo propriedade da ofendida como seu se tratasse e obstaculizando a que a ofendida fizesse uso do mesmo e que a ofendida tivesse tirado as chaves do veiculo sem que o arguido se apercebesse.

Que o arguido manteve relações sexuais de cópula completa com a ofendida, contra a vontade desta.

Que o arguido pernoitou em casa da ofendida até ao dia 15 de agosto de 2021 e voltou a manter com a ofendida relações sexuais de copula completa contra a sua vontade, em numero não concretamente apurado de vezes.

19. Foi assim que, entre o dia 12 e o dia 15 de agosto de 2021, na casa da ofendida, no ..., ..., em ..., após ter ingerido bebidas alcoólicas, o arguido iniciou mais uma discussão com esta, exibindo-lhe uma arma de fogo.

27. Na posse da referida arma, o arguido, cerca das 16h00m, voltou ao sobredito estabelecimento, pediu um jarro de vinho, que colocou numa mesa onde se encontrava CC, tendo encetado uma breve conversa com o mesmo, no decurso da qual lhe disse que “iria fazer a folha à sua ex-companheira”, referindo-se à ofendida, BB.

Que o arguido disse á testemunha EE: “tenho uma arma carregada; 5 para mim, 5 para ela”, referindo-se à ofendida BB.

Que o arguido tivesse municiado a arma no momento em que a apontou à ofendida.

Que o arguido queria atirar na direção da zona das coxas da ofendida, que poderia atingir as veias femorais comuns, de ambos os membros inferiores da ofendida, que acompanham a artéria femoral, colocando em risco a vida desta, face à intensidade e local da hemorragia causada, expondo-a a grandes perdas hemáticas, a embolias e outras complicações do seu estado clínico.

43. De igual modo, com todas as condutas supra descritas, agiu o arguido com o propósito concretizado de causar à ofendida, perturbação psicológica, medo e inquietação, como efetivamente causou, fazendo-a recear pela sua vida, integridade física e segurança e afetando-a na sua liberdade, aproveitando-se da sua fragilidade psicológica, por força das depressões de que padece.

44. O arguido sabia que sobre si recaía o dever de tratar a sua ex-companheira, com particular respeito e consideração, atendendo ao vínculo que os unia e que não podia atuar do modo supra descrito.

45. O arguido agiu sempre com o propósito de molestar o corpo e a saúde da ofendida, o que quis e logrou.

46. Mais agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, além do mais, no interior da residência comum, sabendo que violava o seu carácter securitário.

49. O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, conhecedor das características e natureza dos objetos que possuía e que não se havia coibido de adquirir e possuir, bem sabendo que se tratava de objetos cuja detenção é proibida por lei e que não era titular de qualquer licença para o poder fazer legalmente, e, não obstante, decidiu deter os mesmos, tendo concretizado os seus intentos.

Não se provou qualquer outro facto com relevância para a decisão da causa.”.

3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido

O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma (transcrição):

“Quanto aos factos provados:

O Tribunal fundou a sua convicção, em geral, a partir da análise crítica dos depoimentos do arguido, da ofendida e das testemunhas inquiridas em sede de julgamento e dos documentos juntos aos autos, designadamente documentação clínica e relatórios médicos, em conjugação com as regras da experiência comum e da lógica.

Em particular:

Na verdade, o arguido colocou-se no local dos factos e admitiu parte deles ainda que com uma versão diferente dos mesmos. Refere que ele e a ofendida foram namorados durante 5/6 meses em 2017, muito embora já se conhecessem há mais de 30 anos. Depois do términus a relação mantiveram sempre uma relação de amizade e interajuda entre eles. Tanto assim era, que a ofendida foi internada duas vezes na ... e era o arguido que a ajudava.

Quando a ofendida teve alta da primeira vez, foi viver para sua casa por forma a que o arguido pudesse tratar dela e, da segunda vez, ele ia a casa dela diariamente para a ajudar. Mais tarde, quando o arguido partiu a perna, permaneceu em casa dela cerca de uma semana. Admite que discutiam muito por coisas do dia a dia e porque a ofendida não queria comer, dormir ou sequer tomar banho. Foi a ofendida que lhe deu autorização para usar o seu carro, até porque o seu estava avariado e o dela estava parado. Em momento algum ter-lhe-á tirado o carro sem autorização, foi ela que o emprestou. O veiculo inclusivamente estava em nome do arguido (pois a ofendida tinha problemas nas Finanças) e ele disse para colocar novamente em nome dela o carro pois não queria multas em seu nome. Igualmente nunca teve relações sexuais com a ofendida não consentidas («ela esteve nove meses em minha casa e nunca tomou banho!!», suas palavras). Quando se chateavam mais, a ofendida deixava de lhe atender telefones e bloqueava-o no Facebook. Isso aconteceu varias vezes.

Na altura dos factos, o arguido já tinha saído da casa da ofendida e estavam naquela fase em que não se falavam, a ofendida tinha-o bloqueado no Facebook há cerca de 15 dias.

No dia 4 de setembro, foi almoçar ao sitio do costume, os amigos que lá estavam convidaram-no para tomar um copo, ele sentou-se e bebeu com eles. Nesse dia, terá ingerido 2/3 litros de vinho, pelo que estava embriagado. A BB também estava lá e começaram a discutir. Na verdade, estava triste com ela pois ele foi a uma consulta a Lisboa e ela não o acompanhou («na altura em que mais precisava ela não me acompanhou»), sendo que ele sempre a ajudou quando ela precisava. Zangaram-se nesse dia também porque ela não lhe devolvia alguns pertences dele e porque ela dizia que ele tinha que ir ao medico por causa da perna. Atirou a canadiana para cima da mesa e foi-se embora para casa para não se chatear com ela. Mudou de roupa pois a «tala da perna» estava a incomodá-lo com a roupa que trajava. Voltou ao restaurante só para pagar a conta (sendo que a testemunha EE, conforme se dirá infra, referiu que este não tinha qualquer conta para pagar) e apercebeu-se que na mochila onde trazia a carteira igualmente trazia a arma pelo que a colocou na cintura. Perguntado porque o fez disse inicialmente por nada e depois disse que queria assustar a BB por forma a que ela lhe devolvesse os seus pertences. Foi atrás da BB quando esta se estava a dirigir ao seu veiculo automovel e pediu novamente para esta lhe entregar os seus pertences e ela disse que não. Atirou para chão para a assustar, para ela não voltar àquele lugar. Nunca a quis matar apenas assustar. Atirou uma só vez para o chão e depois apontou a arma à cabeça para se suicidar, mas o CC não deixou pois deu uma pancada na mão (esta testemunha CC referiu que quando chegou o arguido tinha a arma na mão, mas em direção ao chão e em momento algum viu o arguido a apontar à sua cabeça). Entrou no restaurante e pegou numa faca para se suicidar, mas a EE não o deixou e foi-se embora. O Comandante do Posto telefonou-lhe e disse que o ia buscar.

Por fim, questionado, referiu pensar que estava em tempo para apresentar atestado médico para permanecer com licença de uso de porte de arma.

A ofendida BB confirmou que ela e o arguido tiveram uma relação de namoro durante três ou quatro meses em 2017 e que desde aí só tiveram uma relação de amizade, sendo que são amigos desde há cerca de 30 anos. Durante os últimos anos, o arguido ajudou-a bastante numa fase menos boa pois passou por algumas depressões. «Ele tomou conta de mim», segundo palavras suas. Foi internada duas vezes e, em ambas, o arguido sempre esteve a seu lado. Igualmente o arguido levou-a para sua casa para cuidar dela. Esteve em sua casa entre os dois internamentos cerca de 9 meses, sendo que dormia na sala e o arguido no quarto. Na altura, a depoente não queria dormir, comer ou sequer tomar banho e o arguido cuidou dela.

O carro da depoente era utilizado pelo arguido, mas com a sua autorização. Depois foi alterado o registo de propriedade e foi a própria a assinar (ainda que tenha sido porque o arguido queria a propriedade do veiculo como garantia de uma divida que tinha para com ele). O problema do arguido, segundo a sua convicção, era que ingeria muitas bebidas alcoólicas.

Da primeira vez em que ficou em casa do arguido após a alta psiquiátrica -, cerca de 9 meses - tiveram uma discussão muito grande e a depoente foi-se embora de casa, levando consigo as chaves do seu carro. O arguido andava sempre com a arma ainda que nunca lha tivesse apontado. «A ....35 estava sempre em cima da mesa!!». Igualmente quando estava embriagado, ele alterava-se, agarrava-a, tirava-lhe a roupa e tinham relações sexuais e a depoente deixava…ou não fazia nada para parar.

Da segunda vez que foi internada, foi para sua casa após alta, mas o arguido sempre lhe levava as coisas necessárias.

Entretanto, o arguido arranjou-lhe trabalho e eram colegas normais que falavam diariamente.

Na semana em que o arguido permaneceu em sua casa, após ter partido a perna, ainda bebia mais bebidas alcoólicas e quando bebia «era o que vinha», ou seja, zangava-se e chamava-lhe nomes, mas nunca lhe bateu ou apontou qualquer arma (aliás, enquanto esteve em sua casa, a depoente escondeu-lhe a arma). Numa dessas discussões disse à depoente que ia dar uma oferta de anos ao filho dela, sendo que o arguido sabia que a depoente e o filho não se davam bem e que este fazia anos no dia 4/5 de setembro.

Tiveram uma ultima discussão e a depoente colocou-o fora de casa e bloqueou-lhe o telefone.

Finalmente, no dia 4 de setembro foi chamada ao restaurante «B...» por um amigo do arguido com o intuito de convencer o arguido a ter uma consulta de psiquiatria, o que a depoente estava reticente, mas acabou por anuir. Ainda tentaram conversar todos, mas o arguido estava muito alterado e ainda lhe atirou a canadiana para cima e disse «fica com ela que ainda te vai fazer falta» e foi-se embora. A depoente foi entregar à dona do restaurante a canadiana e disse que se ia embora. Ainda se voltou a sentar, mas levantou-se logo de seguida. Quando se levantou viu o arguido a regressar para dentro do restaurante ainda mais alterado e por isso foi logo em direção ao seu carro. Quando estava a passar pelo túnel de acesso ao estacionamento ouviu o arguido a chamá-la ao que se virou na direção do mesmo e deu um passo à frente. Encontravam-se a um metro um do outro quando o arguido disse «amo-te muito, não és para mim não és para mais ninguém», tirou a arma das costas e de imediato disparou. Deu o primeiro disparo e deu um segundo de imediato. Ele apontou para a depoente, mas a arma como vinha de baixo para cima ao disparar ainda só lhe acertou nas pernas. A testemunha CC apareceu de imediato e por trás do arguido pelo que lhe bateu na mão e o arguido deixou cair a arma, ao que a testemunha deu um pontapé na mesma para a retirar do alcance do arguido. O arguido ainda pediu para lhe darem a arma para matar a ofendida e depois se matar a ele próprio. Em momento algum, o arguido tentou atirar a ele próprio. Não sabe se o arguido foi para dentro do restaurante. O INEM foi chamado e foi para o Hospital. Nunca mais viu o arguido depois do sucedido. Ainda referiu que se sentou no chão apos os tiros, mas não caiu ao chão. Por fim, ainda referiu o arguido sempre gostou dela e sempre teve ciúmes dela, inclusivamente com o ex companheiro dela, o que lhe chegou a referir inúmeras vezes.

A testemunha CC referiu conhecer o arguido do restaurante que frequenta e a BB por estar com o arguido. Porem no que se refere à BB não tinha qualquer amizade para além do cumprimento. Percebia-se que o AA gostava da BB ainda que não o tivesse expressado.

No dia em causa, a BB estava sentada na esplanada, na mesa ao lado do depoente quando esta disse que o arguido estava dentro do restaurante. O arguido saiu do restaurante na direção da esplanada e estava zangado. Não se lembra da conversa em concreto, mas o arguido ainda mandou a bengala que trazia ao chão e foi-se embora novamente.

A BB, entretanto, foi-se embora em direção ao seu carro quando o depoente ouviu dois tiros (acha que foram dois). Deslocou-se na direção dos mesmos e viu o arguido com a arma na mão em baixo. Conseguiu tirar-lhe a arma da mão e deu-lhe um pontapé para sair do alcance do arguido. O arguido ainda lhe pediu a arma de volta para dar um tiro na BB e um tiro nele. Nunca viu o arguido a apontar a arma a si próprio e não sabe para onde o arguido foi depois do sucedido.

A testemunha EE, proprietária do restaurante onde ocorreram os factos referiu logo inicialmente que não gostava da BB e já tinha pedido ao arguido para a não trazer para o seu restaurante.

Nesse dia, o arguido chegou primeiro e almoçou na esplanada da frente do restaurante. Quando terminou de almoçar, o arguido foi sentar-se na esplanada de trás com a testemunha CC, com a BB e com outra pessoa (FF). A ultima vez que a depoente foi à esplanada de trás foi para servir a BB. Algum tempo depois, a BB foi-lhe entregar uma canadiana do arguido. Só depois ouviu os tiros (não sabe se foi um ou dois), a BB a gritar e a pedir ajuda. O arguido entrou no restaurante e disse «dei cabo da minha vida» e ainda terá agarrado numa faca para se espetar, mas tiraram-lhe a faca. Apos questionada algum tempo, referiu que o arguido lhe dava um cartão refeição para pagar a sua alimentação pelo que não era necessário que o mesmo fosse pagar a sua refeição nesse dia pois a mesma já estava paga.

Foram igualmente inquiridas as testemunhas Inspetores da PJ, GG e HH, que se deslocaram ao local, tendo apenas confirmado as diligencias efetuadas a fls.4 e 6 e seguintes.

Foi tido igualmente em atenção

A comunicação de noticia de crime de fls. 2;

Auto de diligencias iniciais de fls. 4

Auto de inspeção judiciaria de fls. 6

Auto de apreensão de fls. 8

Copia do documento «livrete de manifesto de armas» de fls. 9/10

Relatório de exame pericial de fls. 12 e respetivas fotografias

Fotografias de fls. 36/138 (ferimentos da ofendida tirados no Hospital)

Relatório do episodio de urgência da ofendida de fls. 62/145;

Fotografias dos ferimentos da ofendida de fls. 52

Informação da PSP de fls. 238, onde o Chefe do NAE refere que o arguido está isento de licença de uso e porte de arma.

Exame pericial de fls. 252;

Relatório de perícia de avaliação do dano corporal em matéria penal de fls. 256;

Relatórios periciais de fls. 305/327/330, onde se conclui que foram detetadas partículas consistentes com resíduos de disparo de arma de fogo nas mãos, braço direito, face, cabelo e vestuário do arguido. Sendo a presença dessas partículas compatíveis com disparo, manipulação ou proximidade a disparo de armas de fogo por parte do arguido.

Em suma,

No que se reporta aos factos que se subsumem ao crime de homicídio, perante a prova supra referida, tanto testemunhal como documental, não restam duvidas sobre a identidade do autor dos factos e o modo como ocorreram os mesmos, tendo por base – acima de tudo – a versão objetiva apresentada pela ofendida que relatou os factos de forma clara e não tecendo considerações ou relatando factos que não se lembra ou não se passaram.

Tal depoimento é francamente corroborado com a restante prova referida supra, nomeadamente as testemunhas arroladas e a prova pericial e até com a versão do arguido em alguns momentos que levam a corroborar a versão da ofendida e a afastar a sua própria versão.

Ou seja,

O arguido admite um disparo para o chão para assustar a ofendida por forma a que a mesma saísse dali para sempre. Ora, o arguido acertou na parte de cima das pernas da ofendida. A defesa debate-se pelo facto de que o arguido tinha certamente destreza em armas pois que foi militar da GNR, pelo que acertou nas pernas porque não a queira matar (alegações finais). Ora, a aceitar que o arguido atirou para o chão e acertou a mais de um metro do chão na zona das coxas da arguida, não se poderá concluir que o arguido possuía qualquer destreza, conforme alegado.

Conclui o Tribunal tal como corroborado pela ofendida que o arguido com a ansia de lhe tirar a vida, assim que retirou a pistola das costas e a levou à frente, como a ofendida estava a menos de um metro de si, disparou de imediato (por isso, a ofendida diz que o tiro veio de baixo para cima), confiando que sempre acertaria nela e lhe tiraria a vida.

Ademais,

Tanto a ofendida como a testemunha CC referiram que o arguido voltou a pedir a arma para dar um tiro na BB e se matar a seguir e bem assim tanto um como outro foram perentórios ao referir que em momento algum o arguido apontou a arma à sua própria cabeça. Ora, se o arguido voltou a pedir a arma para dar um tiro na BB é porque não a queria apenas assustar pois isso já certamente o tinha feito. Aqui é relevante referir que do relatório pericial consta presença de partículas compatíveis com disparo ou manipulação na face e cabelo do arguido, o que é logico se o arguido, como rezam as regras de experiencia comum, tiver levado as mãos à cabeça depois dos disparos efetuados.

Finalmente, não tem duvidas este coletivo de juízes que existiram dois disparos, duas entradas e saídas de projeteis, dois invólucros, duas feridas e duas pernas atingidas em ângulos diferentes e com entradas nas coxas internas direita e esquerda, pelo que não poderia ser efetuado por um único disparo. Não se encontrar uma capsula de um dos projéteis não faz com que o mesmo não exista…

Assim, para firmar a convicção do Tribunal, quanto à intenção e vontade do arguido, foram decisivos, não só o modo como ocorreram os factos mas também a zona do corpo atingida que aloja também ela artéria que a ser atingida levaria ao resultado morte, pelo que o arguido praticou todos os actos de execução idóneos a produzir o resultado.

Relativamente às consequências da conduta do arguido, o Tribunal fundou a sua convicção na documentação clínica e relatórios médico-legais, referidos supra, pelo seu teor e proveniência nos mereceram credibilidade.

Para prova dos antecedentes criminais, o Tribunal baseou-se no C.R.C. do arguido, junto aos autos.

Para prova dos factos pessoais relativos ao arguido, o Tribunal baseou-se no Relatório Social que se encontra junto aos autos que por provir de identidade isente nos mereceu credibilidade.

Já no que se reporta aos factos não provados

No se que refere aos factos que se subsumem ao crime de violência domestica, resulta da prova que os mesmos não eram um casal à data da pratica dos factos nem mesmo anteriormente, mas tão somente tinham namorado durante cerca de 5/6 meses há quatro anos atras e não era devido a esse relacionamento que a ofendida se encontrava na casa do arguido, mas sim pela sua relação de amizade que durava há mais de 30 anos. Ora, ainda que tenha transparecido da audiência de discussão e julgamento que o arguido gostava da ofendida, esta não foi clara ou pormenorizada (pois minimizou tais factos perante o acontecimento mais grave, presume o Tribunal) no que se reporta aos factos que constam da acusação e que se poderiam subsumir ao crime de violência domestica (ainda que na fase de ex namorados e não como companheiros como resulta da acusação), pois que apenas referiu diversas discussões sobre banalidades diárias, agressões verbais sem concretizar e relações sexuais que terá tacitamente anuído. Porém, foi firme ao referir que quando se zangavam a serio, mandava o arguido embora de casa e ele ia. Ora tais factos, mesmo que fossem concretizados –que não foram- para serem subsumidos a outo ilícito penal, igualmente não caberiam no âmbito do crime de violência domestica.

Finalmente nos factos atinentes ao crime de detenção de arma proibida, apenas fica provado a necessidade de licença de uso e porte de arma mas não já que o arguido agiu com dolo pois que na verdade tanto das suas palavras como inclusivamente da informação veiculada pela GNR e que consta dos autos, o arguido parecia estar isento da licença de uso e porte de arma até determinado período.”.

3.1.4. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido

O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma (transcrição):

“O arguido vem acusado da prática de

- Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 22º, 23º, nº 1, 131º, nº 1 e 132º, nºs 1 e 2, als. b) e c), todos do CP;

- Um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, als. b) e d) e 2, al. a), punido acessoriamente nos termos do disposto nos nºs 4, 5 e 6 do CP;

- Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo p. e p. pelo art. 86º, nº 1, als. c) e e), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, por referência ao art. 2º, nºs 1, als. p), q), e ad), e nº 3, al. m) e art. 3º, nº 1, nº 4, al. a), do mesmo dispositivo legal e ao art. 29º, nºs 7 e 8, do DL nº 30/2017, de 27/03.

Do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 22º, 23º, nº 1, 131º, nº 1 e 132º, nºs 1 e 2, als. b) e c), todos do CP;

Nos termos do artº 131º, nº 1 do Código Penal, “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos”.

Por sua vez, nos termos do artº 22º, nº 1 do Código Penal, há tentativa, quando o agente pratica actos de execução do crime que decidiu cometer, sendo actos de execução, nos termos da alínea b) do nº 2 do mesmo artigo, “os que forem idóneos a produzir o resultado típico”.

Neste tipo de crime em que o bem jurídico protegido é a vida humana, o elemento objectivo do tipo consiste no acto de matar outra pessoa, isto é, no acto de causar a morte de pessoa diferente do agente.

O "causar a morte" significará que tem de se estabelecer o indispensável nexo de imputação objectiva do resultado à conduta. Com absoluta irrelevância (...) dos meios e do modo através dos quais a morte é provocada: directa ou indirectamente, por conduta activa ou omissiva, sejam utilizados meios físicos ou psíquicos, resulte aquela do encurtamento do período de vida de uma pessoa sã ou do apressamento do momento da morte de um moribundo, ocorra ela imediatamente ou após um período longo relativamente à acção ou omissão (sem prejuízo de deverem considerar-se as dificuldades que, no plano da prática e, especificamente, do processo penal podem ser suscitadas pelo factor "tempo" relativamente á verificação do resultado) - Jorge de Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 16.

Quanto ao elemento subjectivo, o mesmo preenche-se com o dolo, sob qualquer uma das suas formas- eventual, necessário ou directo.

Por sua vez, o art. 132°, do Código Penal, sob a epígrafe "homicídio qualificado" estabelece uma forma agravada de homicídio.

Dispõe-se nos números 1 e 2 "corpo" do referido art. 132°:

«1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.

2. É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau;

c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez»

A especial censurabilidade ou perversidade do agente decorre da revelação de um desrespeito acrescido ou de um desprezo extremo do autor do crime de homicídio pelo bem jurídico protegido traduzindo um modo próprio do agente estar em sociedade que revela um grau de perigosidade que pode merecer particular atenção.

Seguem-se um conjunto de circunstâncias que o legislador estatui como sendo suscetíveis de revelar a aludida especial censurabilidade ou perversidade.

Deste modo, combina-se um critério generalizador determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão.

Por outras palavras, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a especial censurabilidade ou perversidade do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos, uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador (vide Jorge de Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo 1, pág. 25 e 26).

Postas estas considerações, vejamos o caso em apreço. Como decorre da factualidade provada, apurou-se que:

No caso em apreço, é imputado ao arguido o preenchimento das circunstâncias indiciadoras da qualificação contidas na al. b) e c).

Sendo que, a especial censurabilidade ou perversidade do agente decorre da revelação de um desrespeito acrescido ou de um desprezo extremo do autor do crime de homicídio pelo bem jurídico protegido traduzindo um modo próprio do agente estar em sociedade que revela um grau de perigosidade que pode merecer particular atenção

No caso da alínea b)

Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau

Ora, não sendo estas alíneas automáticas tendo presente que tem que existir especial perversidade ou censurabilidade, não podemos considerar a relação de namoro tida há quatro anos e que durou 5/6 meses como qualificativa para este crime, pois que o historial de vida do arguido e ofendida a partir do terminus da relação é de amizade e interajuda.

Vejamos a alínea c)

Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez

Igualmente não se provou que da data da tentativa de homicídio, a ofendida estivesse particularmente indefesa em razão da doença do foro psicológico que padece ou padecia.

Assim, verificam-se, como supra exposto, que tais qualificativas não se encontram preenchidas, pelo que soçobra a acusação nesta parte.

Porém, o Tribunal alterou a qualificação jurídica em audiência de discussão e julgamento,

Vem agora o arguido acusado da prática do crime de homicídio tentado com a agravação operada pelo artigo 86º, n.º3, da Lei das armas.

Vejamos.

Consagra este normativo que «as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».

Ora, in casu, o uso e porte de arma não é elemento do tipo de crime do homicídio, sendo que inexiste igualmente previsão da lei – como acusado – para agravação em função do crime de homicídio, pelo que se encontra preenchida a agravação no crime em causa nos autos.

Como se vê pelo acima descrito, está perfeitamente demonstrado que o arguido tentou matar a ofendida com uma arma.

Provou-se igualmente que o arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o intuito concretizado de causar a morte, só não o conseguindo por motivos alheios à sua vontade.

Assim sendo, estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivo do tipo de crime de homicídio na sua forma tentada, praticado pelo arguido e bem assim encontra-se preenchida a qualificativa prevista no artigo 86º, n.º3, da Lei das armas, igualmente como atras referido.

Do Crime de Violência Domestica agravada, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, als. b) e d) e 2, al. a), punido acessoriamente nos termos do disposto nos nºs 4, 5 e 6 do CP;

Encontra-se o Arguido, desde já, acusado da prática de um crime de Violência Doméstica, previsto e punível pelo artigo 152º, nº 1, e 2 do Código Penal, o qual estatui que

“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

(…)

4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos”.

Como se explica no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12.09.2011, disponível na Internet, in bdjur.almedina.net

«O bem jurídico protegido por este crime é a saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental e que pode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge.

Assim, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima para que esteja preenchido o tipo de crime.

Como refere Plácido Conde Fernandes, em Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ nº 8, 1º semestre «o bem jurídico, enquanto materialização directa da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos».

De acordo com a corrente jurisprudencial maioritária e mais recente dos nossos tribunais superiores, à realização do crime de maus tratos, face à lei antiga, não bastava, por regra uma acção isolada do agente, sendo necessária uma acção plúrima e reiterada, com uma proximidade temporal entre os actos ofensivos, embora não se exigisse uma situação da habitualidade.

Esta regra era excepcionada pela verificação de uma única acção agressiva se ela fosse suficientemente grave para afectar de forma marcante a saúde física, emocional ou psíquica da vítima.

Neste sentido, vide o Ac. STJ de 06-04-2006, C.J. Ano XIV, Tomo II, págs. 166 e segs; de 13-11-97, CJ, ano V, tomo III, pág. 235 e de 5.02.04 (Proc. nº 2857/03-3).

Esta é a orientação que subjaz ao art. 152º do C. Penal na redacção dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, como resulta do segmento “Quem, de modo reiterado ou não”, tendo o legislador deste modo posto fim à questão colocada na doutrina e na jurisprudência sobre se o crime de violência doméstica exigia como elemento objectivo do crime a reiteração de condutas ou não.

Assim, o crime de violência doméstica exige a prática reiterada de actos ofensivos consubstanciadores de maus tratos, ou, então, um único acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor da acção e do resultado, que seja apto e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral de modo incompatível com a dignidade humana.

O critério de interpretação de reiteração há-de assentar num conceito fáctico e criminológico que dê lugar a um estado de agressão permanente, sem que as agressões tenham que ser constantes, embora com uma proximidade temporal relativa entre si (cfr. Ac. da Relação do Porto de 11 de Junho de 2007, da Relação de Coimbra de 13 de Junho de 2007 e do S.T.J. de 6 de Abril de 2006, em www.dgsi.pt).

Como refere Plácido Fernandes no artigo citado, a pág. 307 “ É o estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante”.»

No que concerne ao elemento subjectivo do tipo, o crime em apreço é caracterizado como doloso, exigindo-se, portanto, o conhecimento, por parte do agente, da relação de subordinação do sujeito passivo e da censurabilidade penal das suas condutas e a intenção de, ainda assim, praticar os factos.

No caso em apreço, apurou-se apenas que arguido e ofendida tiveram uma relação de namoro há quatro anos atras. Que enquanto viveram na mesma casa tinham apenas uma relação de amizade e que tinham muitas discussões, sendo que inclusivamente saiam de casa um do outro e a ofendida bloqueava os telefonemas do arguido.

Não há, pois, dúvidas de que não se encontram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime em analise pelo que, impõe-se a sua absolvição pela prática do crime de Violência Doméstica de que vem acusado.

Do Crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86.º n.º 1 alínea c) e e), da Lei das Armas (lei n.º 5/2006, de 23.02).

Vem o arguido igualmente acusado da prática de um crime de detenção de arma proibida previsto e punidos pelas disposições conjugadas do artigo 86º, n.º 1, alínea c) e e) da lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Dispõe o referido artigo 86º, nº 1, al. c), da Lei nº 05/2006, de 23 de Fevereiro que “Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo (…) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objeto, arma de fogo fabricada sem autorização ou arma de fogo transformada ou modificada, bem como as armas previstas nas alíneas ae) a ai) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;”.

Por seu turno a alínea e) refere que “ Silenciador, moderador de som não homologado ou com redução de som acima dos 50 dB, freio de boca ou muzzle brake, componentes essenciais da arma de fogo, carregador apto a ser acoplado a armas de fogo semiautomáticas ou armas de fogo de repetição, de percussão central, cuja capacidade seja superior a 20 munições no caso das armas curtas ou superior a 10 munições, no caso de armas de fogo longas, bem como munições de armas de fogo não constantes na alínea anterior, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.”

No caso em apreço, o Arguido detinham consigo:

- uma pistola, de marca ..., modelo ..., com o nº de série ...45, de calibre 7,65mm, e do respetivo carregador, municiado com 5 munições.

Considerando o disposto na alínea c) e e) do nº 1 do artigo 86º da Lei em apreço, já supra referida, dúvidas não há de que se tratam de uma arma cuja detenção a lei proíbe.

Porem não fica provado o elemento subjetivo porquanto não sabia este Arguido que não podia deter tal arma, nem as respectivas munições. Assim, não agiu voluntariamente ao ter na sua posse a mencionada arma, sem as referidas condições.

Não se mostra assim preenchido o elemento subjetivo, importa concluir que soçobra a acusação.

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5. ESCOLHA E MEDIDA DA PENA

O crime de homicídio simples é punido com pena de 8 a 16 anos de prisão.

Nos termos do disposto no artigo 86º, n.º3, da Lei das armas, terá uma agravação de um terço nos seus limites mínimos e máximos, ou seja, passa a ser punido com pena de prisão de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses.

Tratando-se de homicídio na sua forma tentada é punido com a pena do crime consumado, atras referida e com a agravação operada, especialmente atenuada (artº 23º, nº 2 do Código Penal).

Efectuada a atenuação especial, nos termos do artº 73º, nº 1, als. a) e b), 1ª parte, do Código Penal, ficamos com uma moldura abstracta de prisão de 2 (dois) anos 1 (um) mês e 24 (vinte e quatro) dias a 14 (anos) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias.

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Na determinação da medida concreta da pena, importa atender à culpa do agente, às exigências de prevenção de futuros crimes e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (artº 71º do Código Penal).

Pela via da culpa, segundo refere o Prof. Figueiredo Dias (“As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, pág. 239), releva para a medida da pena a consideração do ilícito típico, ou seja, “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente”, conforme prevê o artº 71º, nº 2, al. a) do Código Penal.

A culpa, como fundamento último da pena, funcionará como limite máximo inultrapassável da pena a determinar (artº 40º, nº 2 do Código Penal). A prevenção geral positiva (“protecção de bens jurídicos”), fornecerá o limite mínimo que permita a reposição da confiança comunitária na validade da norma violada. Por último, é dentro daqueles limites que devem atuar considerações de prevenção especial, isto é, de ressocialização do agente (F. Dias, ob. cit., págs. 227 e segs.; Anabela Rodrigues, in R.P.C.C., 2, 1991, pág. 248 e segs.; e Ac. S.T.J. de 9/11/94, B.M.J. nº 441, pág. 145).

No caso fazem-se sentir particulares necessidades de prevenção geral, pelo crescente número de ilícitos desta natureza que têm ocorrido, bem como, pela elevada insegurança que os mesmos geram na comunidade.

Ponderando o modo de execução dos factos e as consequências que resultaram dos mesmos, importa concluir que, dentro da moldura abstracta deste crime, é elevado o grau de ilicitude dos factos. De facto, o grau de ilicitude dos factos é elevadíssimo, é o maior, pela privação do bem fundamental da pessoa e de qualquer sociedade: a vida humana. O modo de execução deste também é gritante pela negativa, através da frieza do que é empunhar a arma contra uma pessoa.

O arguido actuou com dolo directo de elevada intensidade revelando elevada energia criminosa para executar tal plano.

Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos determinantes: ostensivo desprezo e indiferença pela dignidade humana.

Fazem-se, assim, sentir elevadas exigências de prevenção especial positiva.

Ponderando o modo de execução dos factos, com o uso de uma arma e de forma traiçoeira e as consequências que resultaram dos mesmos, importa concluir que, dentro da moldura abstracta deste crime, é médio o grau de ilicitude dos factos, e elevada a gravidade das suas consequências.

Nestes termos, e à luz do disposto nos arts 22º, 23º, 41º, 131º e 71º, todos do Código Penal, e 86º, n.º 3, da Lei das armas entendemos adequado e proporcional aplicar ao arguido, a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de homicídio agravado na forma tentada

REVISÃO DA ESTATUTO PROCESSUAL DO ARGUIDO (MEDIDAS DE COACÇÃO)

O arguido encontra-se desde 6 de setembro de 2021 preso preventivamente à ordem do presente processo, por existirem fortes indícios da prática do crime de homicídio agravado na forma tentada, pelo qual o arguido vai agora ser condenado.

A prisão preventiva foi decretada por existir forte perigo de continuação de atividade criminosa, alarme social e necessariamente perigo de fuga, e como única forma de o acautelar, conforme se pode ler na pormenorizada fundamentação do douto despacho, que decretou a prisão preventiva do arguido.

Não só se mantém os apontados perigos, como os pressupostos de facto e de direito em que assentou a sujeição do arguido a prisão preventiva ficaram, entretanto, fortemente reforçados, com a condenação no presente acórdão.

Vejamos porquê.

Impõe a Lei que, neste momento e no presente acórdão, o Tribunal Colectivo proceda ao reexame do estatuto processual do arguido, sujeitando-o às medidas de coacção admissíveis e adequadas às exigências do caso (cfr. arts 213º, nº 1, al. b), e 375º, nº 4, ambos do CPP).

A opção do legislador pela imposição ao julgador, da necessidade de revisão do estatuto coactivo do arguido, no momento em que é proferida a decisão condenatória, resulta, necessariamente, da introdução, com tal prolação, de importantes alterações dos requisitos de aplicação das medidas de coacção.

Desde logo, porque, nesta fase, o que até aí eram meros indícios do cometimento do crime, converteu-se em certeza da sua prática e da respetiva autoria. Na verdade, realizado o julgamento, no qual foi ampla e solidamente apurada a factualidade, através da produção e discussão de toda a prova, com totais garantias e em pleno respeito pelo contraditório, o Tribunal, neste caso com a acrescida garantia de ser Colectivo, tem um pleno convencimento sobre o efectivo cometimento, pelo arguido, dos crime pelo qual vai ser condenado, bem como dos completos contornos do grau de participação e do papel do arguido no cometimento do crime e uma perfeita noção sobre a respectiva personalidade e modo de vida.

Assim, neste momento, estão qualitativamente alterados, por substancialmente reforçados, os pressupostos que presidiram, em fases anteriores do processo, à sujeição do arguido a prisão preventiva.

À solução legislativa adoptada não é, seguramente, alheio o facto de que, a concreta pena aplicada ao arguido, gerar no arguido a pretensão de se eximir ao cumprimento da respectiva pena, colocando-se em fuga, logo que a mesma se torne definitiva.

Para obstar aos apontados intensos perigos de fuga, fortemente potenciado pela efectiva condenação na referida pena de prisão, nem sequer a simples obrigação de permanência na habitação, ainda que vigiada electronicamente, se revela suficiente, alias conforme já varias vezes peticionado pela defesa.

Pois na verdade, ninguém, razoavelmente, pode duvidar de que o arguido, condenado na pena de prisão, não deixará de se sentir fortemente impelido a colocar-se em fuga, para se eximir à execução da aludida pena.

Por outro lado, será gravemente perturbador da ordem e tranquilidade públicas, que alguém, como o arguido, que após ser condenado em pena de prisão de não despicienda dimensão, por homicídio agravado na sua forma tentada, com elevada repercussão social, não continue a aguardar, em prisão preventiva, o trânsito em julgado de tal condenação. É que, só dessa forma é possível repor, na comunidade, o sentimento de segurança e tranquilidade.

No mesmo sentido, aliás, se pronunciaram, entre muitos outros, os doutos Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/03/2004 (in www.dgsi.pt), Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12/12/1995 (in BMJ de nº 452, pág. 509), Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/01/1996 (in BMJ nº BMJ nº 453, pág. 585).

Efectivamente, os citados Acórdãos da Relação de Évora de 12/12/1995, da Relação de Coimbra de 09/01/1996, e da Relação de Lisboa de 24/03/2004 pronunciam expressamente no sentido de que uma condenação em pena de prisão constitui, só por si, uma forte razão para que o condenado se sinta motivado para fugir, de forma a não ter de cumprir a pena se a mesma se tornar exequível.

Também o douto Acórdão da Relação de Coimbra de 14/05/1997 (in BMJ nº 467, pág. 644) vai nesta linha de argumentação, ao defender que, a condenação em pena de prisão “altera substancialmente a situação do arguido, uma vez que, passa de um juízo de probabilidade para um juízo de certeza sobre a prática de um crime, mesmo que tal juízo seja provisório por não ter transitado em julgado a respectiva sentença; essa alteração e o conhecimento da pena que terá de cumprir provocam no arguido uma alteração do seu estado de espírito, passando a ser maior a sua apetência para a fuga”.

Na verdade, dúvidas não podem subsistir de que, provado o crime, a pena aplicada é da máxima relevância na determinação das medidas de coacção, pois dá a dimensão da gravidade concreta do crime praticado e estabelece a confiança da comunidade na reposição da norma violada, assegurando a confiança no funcionamento do ordenamento jurídico (emanação do direito à segurança, inscrito no artº 27º nº 1 da Constituição da República), mas também impede a perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, que constitui um dos perigos visados acautelar com a aplicação de medidas de coacção, nos termos e por força do disposto no artº 204º, nº 1 do Código de Processo Penal.

Em suma, o que legitima a reapreciação das medidas de coacção são pois, não a decisão condenatória em si mesma, mas os factos típicos provados constantes de tal decisão, a gravidade provada destes, a existência de um juízo de certeza sobre a culpa do agente na produção dos mesmos, tornando, assim, necessário o reexame da situação do arguido, para que fique sujeito às medidas de coacção admissíveis e adequadas às exigências cautelares que o caso requer, neste momento e face a tal decisão (neste sentido: Acórdão do Tribunal da Relação ... de 28/11/2006, proferido no ... da ..., no processo comum colectivo nº 160/02.... do ... Juízo Criminal de ...).

Em resumo, a dimensão das penas, associada às circunstâncias concretas supra expostas, que indica serem elevados os perigos de fuga, aliados ao intenso perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas (pelo elevado sentimento de insegurança que gera na comunidade a não manutenção do arguido em prisão preventiva), impõem que o Tribunal Coletivo conclua que os apontados perigos apenas poderão ser atalhados com continuação do arguido em prisão preventiva, pois qualquer outra medida de coação é manifestamente insuficiente para prevenir, de forma eficaz, a ocorrência dos apontados perigos.

Sendo de afastar, face à sua manifesta insuficiência e clara ineficácia, a obrigação de permanência na habitação, por não conseguir atalhar (pelas razões supra expostas), e ainda que acompanhada de vigilância eletrónica, os apontados perigos de fuga e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

Ademais, não se mostra excedido o prazo máximo, agora de 2 (dois) anos, de duração da prisão preventiva (artº 215º, nºs 1, al. d), e 2, do Código de Processo Penal).

Nestes termos, o Tribunal Coletivo conclui que o arguido terá que continuar a aguardar, o trânsito em julgado da decisão condenatória, em prisão preventiva.

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DA ACÇÃO CÍVEL ENXERTADA

Nos termos do artº 129º do Código Penal, a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada na lei civil, quantitativamente e nos seus pressupostos. Por conseguinte, são aplicáveis as normas constantes dos arts 483º e segs. do Código Civil.

De acordo com o disposto no artº 483º, nº 1 do Código Civil, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos provenientes da violação.

Os pressupostos do dever de indemnizar são: um facto ilícito e culposo do lesante, um dano para o lesado e um nexo de causalidade entre aquele e este (Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, 8ª edição, vol. I, pág. 533 e Ac. S.T.J. de 13/2/96, C.J., tomo I, pág. 95).

Verificados os pressupostos do dever de indemnizar, o D.L. nº 218/99, permite, à instituição hospitalar que prestou assistência à ofendida, demandar diretamente o causador do dano para reembolso das despesas hospitalar com a assistência ao ofendido.

Face à factualidade provada, não restam dúvidas de que o arguido/demandado, ao agir da forma descrita, violou dolosamente o direito à integridade física da ofendida, pelo que se constituiu na obrigação de indemnizar os danos sofridos (ofensa do corpo e da saúde) decorrentes dessa violação (arts 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, 70º, nº 1 e 483º do Código Civil, “ex vi” artº 129º do Código Penal).

Mais se provou que o demandante Hospital prestou assistência ao ofendido em consequência das lesões infligidas pelo arguido, pelo que lhe assiste o direito a ser reembolsado pelas respectivas importâncias.

O dever de indemnizar compreende todos os danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do acidente (artº 563º do Código Civil), visando-se, deste modo, e segundo a teoria da diferença, repor o lesado na situação em que se encontraria se não ocorresse o acidente (artº 562º do Código Civil).

A regra geral, em sede de obrigação de indemnizar, é a reconstituição natural (artº 566º, nº 1 do Código Civil).

Quando não for possível a reconstituição natural, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, é a indemnização fixada em dinheiro, e tem como medida, a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos, nos termos do artº 566º, nº 2 do Código Civil (cfr. Ac. R.E. de 14/7/83, B.M.J., nº 331, pág. 618). Trata-se da consagração legal da chamada teoria da diferença (A. Varela, ob. cit., vol. I, pág. 920).

Não sendo possível averiguar o valor exacto dos danos, por força do disposto no artº 566º, nº 3 do Código Civil, “o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.

Provou-se que o demandante Hospital prestou assistência hospitalar ao ofendido, no valor peticionado.

Assiste, assim, ao demandante, o direito a ser ressarcido pelo valor total pedido.

Estabelece o artigo 805º, n.º 1, do Código Civil que o devedor só fica constituído em mora após a sua interpelação para cumprir realizada judicialmente ou extrajudicialmente. O n.º 2 do mesmo artigo estabelece excepções a esta regra geral, determinando as situações em que o devedor se constitui em mora, independentemente da interpelação. Uma das possíveis exceções consistirá na situação em causa nos autos, ou seja, quando a obrigação provier de facto ilícito. Contudo, resulta do exposto supra que só agora e na presente acção foram devidamente liquidados os créditos de que o demandante civil é titular.

Em conformidade, os demandantes civis terão igualmente direito a exigir ao responsável pelos danos, ou seja, o arguido, os juros de mora contados desde o trânsito em julgado da presente sentença, calculados à taxa que vigorar para os juros civis, até ao integral pagamento da indemnização em causa.

OBJECTOS

Por força do disposto no artº 109º do Código Penal, a arma e munições, por terem servido para a prática do crime, serão, necessariamente, declarados perdidos a favor do Estado, sendo determinada a entrega à PSP.(…)”.

3.2. Da apreciação do recurso interposto pelo arguido

O arguido/recorrente foi condenado como autor material de um crime de homicídio agravado na forma tentada na pena de 5 anos e 6 meses de prisão (artigos 22.º, 23.º e 131.º do CP e artigo 86.º, n.º 3 da Lei das Armas).

Em sede de recurso o arguido refere, em síntese, ter o Tribunal a quo efetuado uma incorreta apreciação e julgamento da prova produzida tal como uma inadequada aplicação do direito. Na perspetiva do recorrente este não atuou com a intenção de tirar a vida à ofendida ou representado sequer a possibilidade de tal suceder em consequência da sua conduta e por isso deveria ter sido, tão só, condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada (artigo 145.º, n.º 1, alínea a) do CP), em pena não superior a 3 anos. Na ótica do recorrente caso seja entendido, pela Relação, ser de manter a condenação pela prática do crime de tentativa de homicídio qualificado, o que não concede, propugna pela aplicação de uma pena em medida não superior a 4 anos e 6 meses de prisão.

Cumpre, pois, conhecer as questões suscitadas em sede de recurso pelo recorrente.

3.2.1. Da incorreta apreciação e julgamento da prova produzida

A. Começa o arguido por afirmar não resultar da prova produzida ter atuado com intenção de tirar a vida à ofendida ou sequer ter representado a possibilidade de tal suceder como consequência necessária da sua conduta. Parece, pois pretender impugnar a matéria de facto dada como provada em primeira instância.

A verdade é que para impugnar a matéria de facto, tal como ela se encontra fixada pelo Tribunal a quo, o recorrente deveria tê-la sindicado pela via ampla (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP) ou pela via restrita (artigo 410.º, n.º 2 do CPP).

Em relação à primeira das formas de impugnação referenciadas (o erro de julgamento quanto aos factos, previsto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP) o recorrente não deu cumprimento, nas conclusões (como lhe competia), ou sequer nas motivações de recurso, aos ónus previstos no n.º 3, alíneas b) e c) e n.º 4 do artigo 412.º do CPP, ficando, deste modo vedado ao Tribunal reapreciar a prova gravada.

B. Em todo o caso, o recorrente parece confundir o erro de julgamento com a livre convicção, pois parece pretender substituir a convicção do tribunal pela que é supostamente a sua. Na perspetiva do recorrente resulta claramente ter o arguido disparado para as pernas da ofendida, que estava a cerca de um metro de distância dele, não existindo nenhum obstáculo entre ambos. Assim, sendo o arguido um militar da GNR aposentado, tendo prestado serviço nessa cooperação durante 24 anos e sendo hábil no manejo de armas, se quisesse tirar a vida à ofendida teria obviamente disparado para o tronco ou para a cabeça. Depois, salienta que em todo o processo e quando foi ouvido, no interrogatório inicial e em julgamento, sempre referiu nunca ter pretendido matar a ofendida. Por fim, aponta que nas declarações por si prestadas, admitiu um disparo para o chão apenas com o intuito de assustar a ofendida por forma a fazê-la dali sair.

Resulta, pois, do recurso interposto ocorrer uma divergência da valoração da prova feita pelo recorrente em oposição à forma como foi avaliada pelo julgador, divergência essa que não constitui qualquer erro de julgamento ou até vício da sentença (n.º 2 do artigo 410.º do CPP). Com esta invocação pretende o recorrente, como atrás apontado, colocar em causa a apreciação realizada pelo Tribunal a quo dos meios de prova, esquecendo-se que é precisamente ao julgador (e não a ele recorrente), nos termos do artigo 127.º do CPP, a quem compete essa valoração.

Tal como é referido no Acórdão recorrido, aceitar ser o arguido possuidor de uma destreza apurada no manejo de armas e que apenas a pretendia disparar em direção ao chão para assustar a ofendida para esta se ir embora (como defendido pelo recorrente) e, depois acertar dois tiros nas pernas da vítima, revela-se como uma versão destituída de sentido e que contraria frontalmente quaisquer regras da normalidade e da experiência da vida. Mais, se o arguido não tivesse a intenção de tirar a vida à vítima, porque motivo voltou a pedir a arma à testemunha CC afirmando querer matar a ofendida? Se fosse apenas para assustar a vítima, como por ele afirmado, os dois tiros que a atingiram não eram suficientes para a assustar? Por fim, a intenção de matar resulta, ainda, da circunstância de o arguido ser militar da GNR (reformado) tendo perfeitamente conhecimento que as zonas do corpo atingidas pelos dois disparos alojam as artérias femorais, que a serem alvejadas conduziriam à morte da vítima.

Neste âmbito não merece, pois, qualquer reparo o Acórdão proferido, tendo o julgador a quo realizado uma correta apreciação da prova produzida.

C. No concernente aos vícios da sentença (artigo 410.º, n.º 2 do CPP), embora estes sejam de conhecimento oficioso, a sua deteção tem de resultar da simples leitura do texto da decisão não podendo o Tribunal ad quem socorrer-se, a este nível, de quaisquer elementos a ela estranhos (ex: declarações do arguido gravadas durante o interrogatório ou em julgamento), tal como pretendido pelo recorrente.

Da simples leitura do texto da sentença não se vislumbra, todavia, a existência de qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (alínea a)) ou erro notório na apreciação da prova (alínea c)). Quanto à suposta contradição entre os pontos 41. e 42. dos factos provados e o ponto 2.[2] dos não provados não se deslinda ter ocorrido qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (alínea b), do n.º 2 do artigo 410.º do CPP). Na realidade dos pontos 41. e 42. resulta ter ficado tão só provado o dolo eventual na tentativa de homicídio agravado perpetrada pelo arguido. Já ao ponto 2. dos não provados foi conduzida matéria relativa ao dolo direto, porquanto era essa a versão constante da acusação e considerada como não apurada pelo Tribunal recorrido. Não ocorre, pois, qualquer contradição insanável entre os factos provados e os não provados mostrando-se, por outro lado, sedimentada em definito da materialidade fáctica, será com base nela que se apreciarão as duas questões de direito suscitadas pelo recorrente, e assinaladas em II., ponto 2. deste Acórdão e em 3.2..

3.2.2. Da qualificação jurídica dos factos

O arguido propugnou pela subsunção dos factos provados ao crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto no artigo 145.º, n.º 1, alínea a) do CP e punível com pena cujo o máximo não poderá exceder 4 anos agravado em 1/3 (pela regra do artigo 86.º do CP).

Como já se deixou assinalado, todavia, os factos dados como provados pelo Tribunal recorrido encontram-se definitivamente sedimentados, por não ter merecido provimento a “impugnação factual” apresentada pelo arguido.

Assim, dúvidas não subsistem de que os factos em apreço se subsumem à prática do crime de homicídio tentado (cf. pontos 41. e 42.) e não ao crime de ofensa à integridade física qualificada, como pretendido pelo recorrente.

Na verdade, o arguido depois de seguir a ofendida disse-lhe “(…) se não és para mim não és para mais ninguém”, de seguida empunhou a arma e realizou dois disparos que a atingiram um na face interna da coxa esquerda e outro na face interna da coxa direita. Ao atuar por esta forma agiu admitindo, como possível que ao efetuar dois disparos na direção do corpo da ofendida, poderia atingir zonas do corpo onde se encontram alojados órgãos vitais (tais como as artérias femorais), facto que não podia ignorar, pois era GNR reformado, exigindo a sua profissão conhecimentos sobre a localização, nos seres humanos, dos seus órgãos vitais.

Como se não bastasse já depois de ter sido desarmado por CC ainda tentou agarrar a arma, dizendo que ia matar a ofendida (cf. facto provado sob o ponto 35.).

Não merece, pois, qualquer reparo o Acórdão proferido, tendo sido feita uma correta qualificação jurídica dos factos praticados pelo arguido.

3.2.3. Da medida da pena

Considera o recorrente que a entender-se, nesta 2.ª instância, ter sido cometido o crime de homicídio agravado, na forma tentada, pelo qual veio a ser condenado sempre a pena aplicada de 5 anos e 6 meses de prisão, seria excessiva, e mais adequada uma pena não superior a 4 anos e 6 meses, suspensa na sua execução. Para fundamentar a sua perspetiva tece considerações sobre a sua idade, a ausência de antecedentes criminais, o estar socialmente integrado e sobre a sua situação de saúde (foi aposentado em virtude de um AVC; sofre atualmente de leucemia linfática crónica, tendo tratamento quimioterápico).

Fundamenta o seu raciocínio na circunstância de o Acórdão não ter cumprido o artigo 71.º, n.º 3 do CP, pois não referiu expressamente os fundamentos da medida da pena.

O tipo legal do crime pelo qual o arguido foi condenado (homicídio agravado, na forma tentada), efetuada a atenuação especial, nos termos do artigo 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), 1.ª parte do CP, tem como moldura abstrata a pena de prisão de 2 anos e 1 mês e 24 dias a 14 anos, 2 meses e 20 dias.

Na situação em apreciação o arguido agiu contra a ofendida com quem havia mantido uma relação de intimidade. Como se isso não bastasse, ainda, no interior do café atirou-lhe uma muleta e disse “fica com ela que ainda te vai fazer falta hoje”. Depois dirigiu-se à sua residência (trocou de roupa) muniu-se de uma pistola, regressou ao balcão do café, esperou que a ofendida saísse da esplanada, seguiu-a sem que esta se apercebesse, chamou-a e disse-lhe “se não és minha não és de mais ninguém” e disparou dois tiros atingindo a vítima em cada uma das suas pernas.

Desta conduta do arguido resultaram ferimentos graves para a vítima, apenas não tendo tido consequências mais gravosas por fatores alheios ao arguido. Depois, como se não bastasse, após um terceiro lhe ter retirado a arma, ainda voltou a tentar alcançá-la para terminar os seus intentos, o que não conseguiu por ter sido impedido.

O arguido como militar da GNR, mesmo aposentado, tinha deveres acrescidos na proteção da vida humana e ao disparar a arma que tinha na sua posse fê-lo sem qualquer consideração pela vítima. A circunstância de ser reformado bem como a sua doença não o impediram de praticar os atos violentos pelos quais foi condenado, não sendo os fatores convocados relevantes no sentido de mitigar a conduta do arguido.

Tendo em consideração que o ponto médio da pena de prisão para a tentativa de homicídio agravado se situa em 8 anos 2 meses e 6 dias, a pena concreta aplicada ao arguido, que atuou com dolo eventual, não poderia nunca ser inferior àquela encontrada (5 anos e 6 meses de prisão), tendo quando muito pecado por defeito e não por excesso.

III. DECISÃO

Nestes termos e com os fundamentos expostos:

1. Nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido e em consequência, mantém-se na íntegra, o Acórdão recorrido.

2. Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.ºs 1 do CPP e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III anexa, do Código das Custas Processuais).

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, de 24 janeiro de 2023.


Beatriz Marques Borges - Relatora

João Carrola

Maria Leonor Esteves

João Amaro


________________________
[1] Nascido em .../.../1962, natural de ..., divorciado, filho de II e de JJ, residente na ..., ... (TIR – fls. 42 e 43), detido no EP ....
[2] Deste ponto 2 dos não provados consta “Que o arguido queria atirar na direção da zona das coxas da ofendida, que poderia atingir as veias femorais comuns, de ambos os membros inferiores da ofendida, que acompanham a artéria femoral, colocando em risco a vida desta, face à intensidade e local da hemorragia causada, expondo-a a grandes perdas hemáticas, a embolias e outras complicações do seu estado clínico”.