Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
8204/22.9T8STB.E1
Relator: ANA PESSOA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
MÚTUO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 04/09/2025
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário (da responsabilidade da relatora):

O objeto do conhecimento do Tribunal da Relação em matéria de facto é conformado pelas alegações e conclusões do recorrente – este tem, não só a faculdade, mas também o ónus de no requerimento de interposição de recurso e respetivas conclusões, delimitar o objeto inicial da apelação – cf. artigos 635º, 639º e 640º do Código de Processo Civil.


Assim, sendo a decisão do tribunal «a quo» o resultado da valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação, desde que a parte interessada cumpra o ónus de impugnação prescrito pelo artigo 640º citado, a Relação, como tribunal de instância, está em posição de proceder à sua reavaliação,


No caso, embora de forma vaga e genérica, percebe-se das alegações de recurso apresentada, que a Autora pretende impugnar os factos que correspondem à versão dos mesmos apresentada pelo Réu e que o Tribunal Recorrido considerou provados, que a Apelante entende, não o deveriam ter sido, e indica, para o efeito, os meios de prova em que fundamenta tal pretensão, pelo que se entende que deve admitir-se a impugnação.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório


AA intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, , pedindo a condenação do Réu a liquidar à Autora valor global de 8.537,42€ (oito mil quinhentos e trinta e sete euros e quarenta e dois cêntimos) correspondente ao valor que alega ter sido mutuado e aos juros de mora vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.


*


O Réu foi citado e contestou, defendendo-se por impugnação, alegando, em resumo, que foi criado pela aqui A. grande parte da sua infância, tendo esta criado o mesmo como se de um filho se tratasse, e este a considerado sempre uma segunda mãe, razão pela qual é seu afilhado, que de igual modo, a A., considera e trata o filho do R., atualmente com 14 anos de idade, como se seu neto fosse e que em virtude desta relação de afectos/familiar, apesar de não sanguínea, a aqui A., em 01/02/2017, efetuou uma transferência bancária no montante de €8.000,00 (oito mil euros) para a conta bancária do menor, filho do R., CC, com o NIB ..., da instituição bancária C.G.D., conforme documento que ora juntou sob nº 1.


Acrescentou que foi por não concordar, com o donativo de tal montante, ao seu filho, considerando ser um montante elevado, que acordou com a aqui Autora, que enquanto pai do menor, considerar-se-ia devedor desta quantia perante a mesma, formalizando o acordado através da confissão de divida já junta aos autos, sendo esta a verdadeira causa, da celebração da confissão de divida objeto dos autos.


Mais referiu que, por assim ser não foi estabelecido qualquer prazo, prestação, nem juro para a liquidação do referido montante, tratando-se de uma divida de natureza pessoal, e que a instauração da presente ação não constitui vontade da Autora.


Pediu a sua absolvição do pedido.


*


Foi proferido despacho de saneamento e realizada a audiência final, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:


Pelo exposto, julgo a presente ação improcedente por não provada e, consequentemente, decide-se absolver do pedido o Réu, BB.


Custas a cargo da Autora, AA, sem prejuízo da proteção jurídica de que é beneficiária.


Valor: 8.537,42€ (oito mil quinhentos e trinta e sete euros e quarenta e dois cêntimos).


Registe e notifique.”


*


Inconformada a Autora interpôs recurso de apelação, apresentando a seguinte síntese conclusiva:


“a) O Tribunal a quo não foi imparcial na avaliação dos depoimentos das testemunhas arroladas, e julgou incorrectamente os referidos factos, fixando a sua convicção em factos que não poderia ter dado como provados, porquanto em relação aos mesmos não foi feita ou produzida qualquer prova.


b) Mais, o Tribunal a quo, não apreciou correctamente face à Lei, que houve um mútuo entre particulares, nomeadamente, porquanto a A emprestou ao R o valor de 8.000€ (oito mil euros).


c) Salvo o devido e merecido respeito, o Tribunal a quo, não analisou devidamente a prova produzida, e ao invés de se reger aos temas da prova e ao objecto do litígio em questão, nomeadamente, da existência ou da inexistência de um contrato de mútuo celebrado entre as partes, e do prazo da quantia mutuada, extrapolou apenas sobre o relacionamento entre A e R, e sobre o facto de a A ter ficado um período de tempo aos cuidados do R, o que nada tem a ver para a questão do litígio em si.


d) Não tendo o Tribunal a quo, verificado as incongruências da versão apresentada pelo R, não analisando devidamente toda a prova feita, e de que na realidade efectivamente houve um mútuo feito pela A ao R, que este se considerou devedor da quantia que lhe foi mutuada pela a A, e de que apesar de instado ao cumprimento e pagamento do valor, assim não o fez.


e) Pelo que, e sempre com o douto respeito pelo Tribunal a quo, deveria ter condenado o R ao pagamento à A do valor mutuado e ao respectivo cumprimento do ora estabelecido entre as partes.


Nestes termos e nos melhores de direito aplicável, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, sendo a douta sentença recorrida corrigida, e ser julgada procedente a presente acção, por provada.”

***

O Réu contra-alegou, concluindo da seguinte forma:


I. O presente recurso visa impugnar a decisão do Tribunal a quo a qual julgou improcedente a ação, por não provada.


II. Decisão que não merece qualquer censura, uma vez que da prova produzida nos autos resulta claro e evidente que não assiste qualquer razão na pretensão da Recorrente.


III. O presente recurso tem como fundamento, que o Tribunal a quo julgou incorretamente os factos, não foi imparcial na avaliação dos depoimentos das testemunhas arroladas, e na avaliação da prova documental junta, formando a sua convicção em factos que não poderia ter dado como provados.


IV. Contudo a recorrente não identifica as concretas questões que pretende que sejam reapreciadas, nem os meios probatórios, constantes nos autos que imponham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnada, e bem assim não especifica a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.


V. Em sede de recurso a recorrente acrescenta considerações e especula para além da matéria decidida, conforme se constata nos art.ºs 8º, 9º, 23º, 24º, 25º, 28º, 29º, 40º, 41º, e 44º das doutas alegações.


VI. A argumentação desenvolvida pela recorrente ao longo das suas alegações, mais não é do que a sua perspetiva de como deveria ter sido a convicção do Tribunal a quo, num claro dissentimento entre a decisão de facto proferida e aquela que a recorrente entende ser correta, face á prova produzida, ou seja, a que lhe convém.


VII. Outra não podia ter sido a convicção do Tribunal a quo, que interpretou e valorou de forma correta toda a prova produzida nos autos.


VIII. O Tribunal a quo fez uma correta apreciação do documento junto aos autos, não tendo a recorrente logrado provar a existência de um contrato de mútuo.


IX. Tendo o Tribunal a quo concluído, e bem, “O que está junto aos autos é uma confissão de divida, o que é diferente de um contrato de mútuo”,


X. Nem resultou qualquer prova dessa matéria dos depoimentos das testemunhas, como bem considerou o Tribunal a quo.


XI. Interpretou e valorou o Tribunal a quo, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, de forma correta, os depoimentos das testemunhas arroladas.


XII. O Tribunal a quo formou a sua convicção, na análise crítica das provas produzidas e comportamentos ocorridos durante a audiência de julgamento.


XIII. Mormente, o comportamento da testemunha DD, com quem a Autora reside, após terminar o seu depoimento e no momento anterior ao início da Autora prestar declarações de parte, na sessão de julgamento de 07/05/2024 com início às 11:27h e fim às 11:47h, ao minuto 00:01:50, quando afirmou para a Autora “vê lá o que vais dizer…”.


XIV. Tal comportamento foi interpretado e valorado de forma correta, não merecendo qualquer censura a análise efetuada pelo tribunal a quo, quando refere a este propósito “(…) descredibilizou totalmente a versão dos factos alegada na petição inicial, a qual teve de ser dada como não provada”.


XV. E assim decidiu o Tribunal a quo na sua mui douta sentença que nenhuma repreensão merece.


XVI. Como e bem considerou o Tribunal a quo, “A instauração da presente ação não constitui vontade da A.”


XVII. Tal facto resultou manifestamente provado, conforme resulta expressamente do depoimento da testemunha DD, depoimento gravado na sessão de julgamento de 07/05/2024 com início às 10:48h e fim às 11:27h, ao longo do qual a mesma confirma por três vezes que a decisão de instaurar a presente ação foi sua e da sua filha, esclarecendo que a Autora à data já não sabia nada disso, concretamente ao minuto 00:28:41, novamente ao minuto 00:29:55 e mais uma vez ao minuto 00:36:43.


XVIII. Considerando o depoimento desta testemunha não poderia o tribunal a quo deixar de considerar como provado o facto constante sob numero 26 da sentença, pelo que foi corretamente julgado.


XIX. Da prova produzida em audiência resulta inequivocamente provado que o Reu é herdeiro da Autora.


XX. Atento ainda o depoimento prestado pela referida testemunha DD, na já indicada sessão de 07/05/2024 com início às 10:48h e fim às 11:27h, quando a mesma confirma ao minuto 00:21:06 a 00:21:46, que tem conhecimento da existência do testamento e de quem são os contemplados no mesmo.


XXI. Também o facto dado como provado constante da sentença sob número 37, encontra-se cabalmente provado que a Autora padece de demência progressiva desde o ano de 2017.


XXII. Relativamente a esta matéria o Tribunal a quo refere especificamente que teve em consideração para além do relatório médico junto aos autos os depoimentos das testemunhas EE e DD.


XXIII. Pelo que, considerando os depoimentos prestados pelas referidas testemunhas em sede de julgamento, conjugados com a prova documental, outra não podia ser a convicção do Tribunal a quo senão dar como provado o facto constante da sentença sob número 37.


XXIV. Neste sentido, conclui-se que não merece qualquer censura a análise efetuada pelo Tribunal a quo que permitiu concluir que a A., padece de demência progressiva desde o ano de 2017, e que devido a esse facto não foi vontade da Autora a instauração da presente ação, nem a reclamação da liquidação do montante confessado.


XXV. Pelo que, também estes factos foram corretamente julgados não existindo qualquer contradição entre os factos dados como provados sob números 37 e nº 27 e 28.


XXVI. Nem a recorrente concretiza nas suas alegações, por que entende que tais factos estão em contradição, ónus que sobre a mesma impendia, naturalmente.


XXVII. Pese embora a sua discordância quanto ao douto entendimento do Tribunal a quo quanto á não existência de um contrato de mútuo, a recorrente não faz qualquer referência às normas jurídicas, que no seu entender, foram violadas pelo Tribunal a quo.


XXVIII. E bem assim, qual o sentido que no entender da recorrente as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas.


XXIX. Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal “ad quem” possa ou deva conhecer “ex officio”, é pelas conclusões que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.


XXX. O presente recurso apresentado pela Recorrente vem cocho ab initio enfermando de patologias sem possibilidade de cura, com alegações dispersas e com conclusões deficientes, contendo frases extensas, não identificando as concretas questões que pretende que sejam reapreciadas, colocando matérias á apreciação deste Tribunal “ad quem” sem as especificações exigidas pelo artigo 639.º do CPC, pelo que deverá o recurso interposto ser liminarmente rejeitado nos termos do artigo 641.º n.º 2 al. b) do CPC.


Pelo exposto, deve improceder o recurso interposto, nos termos ora referidos, julgando improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida como ato de inteira e sã JUSTIÇA.”


*


II. Questões a decidir.


Face às conclusões das alegações da Recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes, que se enunciam por ordem lógica:


- da impugnação da matéria de facto;


- da reapreciação do mérito da causa.


*


Corridos os vistos, cumpre decidir.


*


III. Fundamentos


III.1. Decisão de facto


III.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:


1. O R. fez uma confissão de dívida, em 24/03/2017, na qual se confessou devedor à A., da quantia de 8.000,00 euros;


2. A liquidação da referida quantia seria efetuada pelo R. de acordo com as suas possibilidades financeiras;


3. As partes estipularam que sobre tal quantia não se venceria qualquer juro.


4. Nessa confissão de dívida o R. assumiu que a não ser liquidada a quantia na sua globalidade até ao falecimento da A., responderia pelo valor em falta o quinhão do réu enquanto herdeiro testamentário da A.;


5. O R., foi criado A., grande parte da sua infância, tendo esta criado o mesmo como se de um filho se tratasse, e este a considerado sempre uma segunda mãe, razão pela qual é seu afilhado;


6. De igual modo, a A., considera e trata o filho do R., na data da contestação com 14 anos de idade, como se seu neto fosse;


7. Em virtude desta relação de afetos/familiar, apesar de não sanguínea, a A. em 01/02/2017, efetuou uma transferência bancária no montante de €8.000,00 (oito mil euros) para a conta bancária do menor, filho do R., CC, com o NIB ..., da instituição bancária C.G.D.;


8. Por não concordar, com o donativo de tal montante, ao seu filho, considerando ser um montante elevado, acordou com a A., que enquanto pai do menor, considerar-se-ia devedor desta quantia perante a mesma, formalizando o acordado através da dita confissão de divida;


9. Sendo esta a verdadeira causa, da celebração da confissão de divida objeto dos Autos;


10. A A., devido à sua idade e já não sentir confortável a viver sozinha, não obstante ter familiares de sangue, suas irmãs de nome, EE e DD, e bem assim uma sobrinha, filha desta última de nome FF, quis ir viver para a casa do R., ao invés de ir residir para um Lar de Idosos;


11. Ao que o R., desde logo acedeu, tendo nomeadamente organizado um espaço próprio na sua habitação para a A., ter a sua privacidade, partilhando todo o restante espaço da habitação com o R., e o seu agregado familiar;


12. Esta vontade da A., foi também aceite pelas suas familiares, suas irmãs e sobrinha, tendo então acordado com o R., num pagamento mensal de €300,00 (trezentos euros) a pagar a este pelo alojamento e alimentação da A., na sua habitação;


13. O R., celebrou uma Declaração de Compromisso, perante os familiares da A., aos 24 de março de 2017, e cuja declaração entregou à irmã DD;


14. O montante acordado entre o R., A., e familiares desta, contemplava o alojamento, alimentação e bons tratos à A., AA, o que efetivamente sucedeu, suportando esta as restantes despesas que fossem necessárias ao seu quotidiano, tais como, despesas de saúde e medicamentosas, deslocações, frequência do Centro Comunitário da ..., compra de produtos do seu agrado pessoal;


15. A A., permaneceu na habitação do R., desde abril de 2017 a junho de 2020;


16. Uma vez que era a irmã da A., DD, quem administrava a conta bancária e o dinheiro da mesma, era esta sua irmã, quem procedia ao pagamento mensal da quantia dos 300,00€, ao R., e bem assim todas as restantes despesas;


17. Sucede que, tais pagamentos nunca foram certos e regulares, como deveria acontecer, nomeadamente a quantia mensal de €300,00 só começou a ser liquidada na totalidade a partir de janeiro de 2020;


18. Pelo que, foi o R., quem durante o período de abril de 2017 a junho de 2020, suportou, as despesas realizadas pela A.;


19. Em junho de 2020, a irmã da A., DD e a sua sobrinha FF, contra a vontade da A., decidiram terminar com o alojamento desta na habitação do R.;


20. Perante tal decisão e após as familiares terem ido buscar a A., e os seus pertences à habitação do R., o mesmo entregou, pessoalmente e na presença da aqui sua Mandatária, à irmã e sobrinha da mesma, DD e FF, porque são quem administra os bens, conta bancária e dinheiro da A., o acerto das contas e respetivos comprovativos, referentes a todas as despesas extra alojamento e alimentação, por si suportadas ao longo do período em que AA ali viveu;


21. E remeteu á outra irmã da A., EE, via correio postal, para conhecimento desta, o referido acerto de contas e comprovativos das despesas;


22. Acerto de contas onde foi apurado que, apenas havia a liquidar pelo R., à A., o montante de 143,73€, para o pagamento global da quantia de €8.000,00;


23. O referido acerto foi conferido e aceite pelas familiares da A., tendo estas solicitado o pagamento de tal quantia ao R., o que este efetuou no dia 02/12/2020 para a conta de AA;


24. Pelo que, tendo sido aceite o acerto de contas apresentado e liquidado o remanescente, considera-se liquidada a quantia ora reclamada por efeitos da compensação efetuada entre as partes;


25. A todo o já exposto acresce ainda o facto de, não obstante a sobrinha da A., FF, ter poderes de representação forense, que lhe foram conferidos por procuração outorgada aos 01 de março de 2017;


26. A instauração da presente ação não constitui vontade da A.;


27. Não é a A. quem tem reclamado a liquidação do montante confessado, mas sim a sua irmã DD e a sua sobrinha FF;


28. A aqui A., nunca interpelou, a não ser através de Mandatária constituída pela sua sobrinha, o R., para pagamento dessa quantia monetária;


29. Desde que as familiares da A. a foram buscar à residência do R., não foi possível a este ter mais qualquer contacto com a mesma, ainda que telefonicamente;


30. Bem conhecem as familiares da A., a relação de afetos, senão mesmo familiar que existe entre o R., e a A., e o que levou o R., a celebrar a confissão de divida objeto dos autos;


31. Foi aceite por estas e liquidado o referido acerto de contas;


32. Vem a sobrinha da A., FF, munida de poderes forenses, na qualidade de procuradora da A., substabelecer em mandatária os poderes forenses que lhe foram conferidos pela mesma, para efeitos de instruir a presente ação;


33. Por vontade da A., permaneceria até hoje na habitação do R., o que só não acontece devido ao facto de a sua irmã DD e sobrinha FF, ignorarem a sua vontade própria e bem assim administrarem todos os seus bens;


34. O Réu foi interpelado, através de comunicação da aqui Autora, datada de 14/04/2021, exigindo o pagamento do referido valor de 8.000,00 euros;


35. Comunicação que foi recebida pelo Réu;


36. A A. instou o R. por diversas vezes, inclusive através da sua Mandatária, para que procedesse à devolução de 8.000,00 euros;


37. A A. padece de demência progressiva desde o ano de 2017.

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III.1.2. Factos considerados não provados em 1.ª instância:


Único. Em meados de março de 2017, a A., AA, emprestou ao R., BB, a quantia de 8.000€ (oito mil euros).

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III.2. Da impugnação da matéria de facto.


O objeto do conhecimento do Tribunal da Relação em matéria de facto é conformado pelas alegações e conclusões do recorrente – este tem, não só a faculdade, mas também o ónus de no requerimento de interposição de recurso e respetivas conclusões, delimitar o objeto inicial da apelação – cf. artigos 635º, 639º e 640º do Código de Processo Civil.


Assim, sendo a decisão do tribunal «a quo» o resultado da valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação, desde que a parte interessada cumpra o ónus de impugnação prescrito pelo artigo 640º citado, a Relação, como tribunal de instância, está em posição de proceder à sua reavaliação, expressando, a partir deles, a sua convicção com total autonomia, de acordo com os princípios da livre apreciação (artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil), reponderar as questões de facto em discussão e expressar o resultado que obtiver: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo.


No caso, embora de forma vaga e genérica, percebe-se das alegações de recurso apresentada, que a Autora pretende impugnar os factos que correspondem à versão dos mesmos apresentada pelo Réu e que o Tribunal Recorrido considerou provados, que a Apelante entende, não o deveriam ter sido, e indica, para o efeito, os meios de prova em que fundamenta tal pretensão.


Assim, por se encontrarem, no caso dos autos, minimamente preenchidos os pressupostos do artigo 640.º do Código de Processo Civil nas alegações de recurso dos Recorrentes, passamos à apreciação da referida impugnação.


Procedeu-se à audição integral da prova produzida em audiência de julgamento bem como à respetiva confrontação com a prova documental constante dos autos.


E da concatenação de todos esses meios de prova, não pode discordar-se do juízo probatório realizado nestes pontos pelo Tribunal recorrido.


Vejamos porquê.


***


Ao Tribunal foram apresentadas duas versões relativas ao acordo celebrado entre Autora e Réu respeitante à entrega da quantia de oito mil euros pela primeira ao segundo.


A versão dos factos apresentada pela Autora, segundo a qual se tratou de um empréstimo que permanece por liquidar, foi confirmada pelas testemunhas DD e FF, respetivamente irmã e sobrinhas da Autora - que para além de serem quem, atualmente, depois da saída da Autora da casa do Réu, como declararam, cuida e administra o património da Autora, tendo a primeira declarado expressamente que foram apenas as duas quem tomou a iniciativa da propositura da presente ação, tendo, consequentemente, manifesto interesse no desfecho da mesma – nenhum conhecimento direto revelaram sobre o que foi combinado entre Autora e Réu no momento do acordo.


A própria Autora, que, como se refere na decisão recorrida, evidenciou consciência e vontade diminuídas em resultado da doença de que padece, circunstância confirmada pela referida testemunha DD, revelou dos factos uma memória muito vaga, não sabendo já esclarecer com clareza os contornos do acordo celebrado.


A versão dos factos apresentada pelo Réu, por seu turno - e que tendo sido acolhida pelo Tribunal, corresponde, no essencial à que foi vertida nos factos provados - foi confirmada pelo Réu que prestou declarações de forma isenta e credível, revelando conhecimento direto sobre o que foi acordado com a Autora, sobre a vontade da mesma, que enquadrou na relação de proximidade existente entre ele e a Autora, que referiu considerar ser a de “mãe e filho”, por ter sido pela mesma acolhido aos três meses, quando o respetivo pai, que coabitava com a Autora, o levou para o seu agregado, tendo sido criado pela mesma.


Tal relação de proximidade que o Réu transmitiu existir entre o mesmo e a Autora foi confirmada por todas as pessoas ouvidas em audiência, que também, de forma unânime, referiram que a ora Autora decidiu, num momento em que ainda estava em condições de tomar decisões de forma livre e esclarecida, ir viver para casa do Réu, no início de 2017, tendo ali sido realizadas obras num anexo, por forma a construir um “anexo” onde a Autora passou a pernoitar com privacidade, fazendo no mais, a sua vida absolutamente inserida no agregado familiar do Réu, que dela cuidou até 2020, quando a mesma foi viver para cada da irmã DD.


Tal relação de proximidade, que assim foi relatada, quer com o Réu, quer com o seu agregado, designadamente com a companheira GG e com o filho CC, que o Réu referiu ser considerado pela Autora como neto, permitem enquadrar a transferência a que se refere o documento 1 junto à contestação (cf. ponto 7. dos factos provados) como alegado pelo Réu, sendo certo que, como a própria testemunha DD refere, no momento em que foi realizada, com a assinatura da ora Autora, esta possuía a sua capacidade de tomar decisões livres e esclarecidas.


A versão dos factos apresentada pelo Réu, para além de confirmada pela testemunha GG, já referida, é a que explica ainda que tal transferência tenha sido realizada para a conta do referido CC, como o documento demonstra, e não para a do Réu e também se mostra consentânea com a declaração que o Réu decidiu subscrever – como ele referiu, na sequência de oposição das referidas familiares da Autora a tal transferência - de que foi junta cópia à petição inicial, bem como com a data da procuração emitida pela Autora à sua sobrinha FF (1 de março de 2017), que coincide com o momento em que o Réu referiu que a referida FF lhe disse que não levasse mais a Autora ao Banco, porque a partir de então era a sobrinha a “tutora” da tia.


E resultando de toda a prova testemunhal e por declarações de parte que a Autora viveu mais de três anos inserida no agregado familiar do Réu, tendo em consideração o vertido nos pontos 16 a 19, factos que não foram contrariados por qualquer meio de prova, credível se mostram ainda as declarações prestadas no que respeita a despesas havidas pelo Réu com a Autora e consequentemente, ao acerto de contas que consta dos factos provados, que, de resto, encontra suporte no documento 3 junto à contestação, cujo envio foi confirmado pela testemunha EE, e no teor do documento junto com o n.º 4 junto à contestação, que corresponde à transferência mencionada no ponto 23 dos factos provados.


A Apelante insurge-se contra a decisão recorrida por entender que a sua versão dos factos deveria ter sido considerada provada, ao invés de, como sucedeu, o Tribunal Recorrido ter acolhido a versão do Réu (cf. os artigos dos factos provados e não provados).


Sucede que, para além das declarações de das referidas DD e FF - que, como se referiu, demonstraram interesse no decaimento do Réu, e conhecimento apenas indireto acerca do acordado entre a ora Autor e o Réu, conhecimento esse posterior e fundado em relatos a que fizeram referência – e das de HH, que apenas fez referência a um comentário que teria ouvido à Autora num momento em que, como resulta da prova, a mesma teria já a memória afetada pela doença e se encontrava já no agregado da sua irmã e sobrinha, os factos alegados não foram confirmados por qualquer outro meio de prova, diversamente do que sucede com as declarações do Réu, que, embora com óbvio interesse na improcedência da ação, viu a sua versão ser confirmada pelos documentos e depoimentos acima analisados.


A fundamentação da decisão de facto mostra-se criteriosa e tem pleno suporte na gravação da prova e nos demais elementos constantes dos autos, não existindo qualquer elemento que confirme, em termos objetivos e seguros, que não foi feita uma correta análise do seu valor probatório.


Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto, pois que, diversamente do que entende a Apelante, os factos foram julgados em conformidade com o que resultou da prova produzida, conjugada com as regras da experiência comum, não se surpreendendo qualquer contradição lógica, como se viu, nenhuma razão existindo para dissentir do juízo probatório realizado pelo Tribunal Recorrido.


Improcede, consequentemente, a impugnação da matéria de facto.


*


Não procedendo a impugnação da matéria de facto, é pois, em face dos factos apurados na decisão recorrida, que cumpre apreciar e decidir se a Recorrente demonstrou os pressupostos de que dependia a procedência da ação.


É a tarefa que empreenderemos de seguida.


*


III.3. Os factos e o direito.


Improcedendo, nos termos expostos, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, logo resulta que é indiscutível o acerto da decisão recorrida quanto à absolvição do Réu do pedido.


Conforme se referiu na decisão recorrida, resulta do artigo 1142º do Código Civil que o mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.


Conforme pode ler-se no Acórdão da Relação do Porto de 24.09.20181:


“O contrato de mútuo supõe, assim, enquanto contrato real quoad constitutionem [em que a atribuição patrimonial por parte do mutuante faz parte integrante e constitutiva do contrato, sem a qual o mesmo não se mostra perfeito], não apenas o mero consenso das partes ou a mera entrega de coisa fungível ou de dinheiro, mas, ainda, a obrigação da respectiva devolução da coisa ou reembolso do dinheiro emprestado, acrescida da eventual remuneração acordada. [9]


É, assim, indiscutido, a nosso ver, e conforme à posição maioritária da doutrina, que o contrato de mútuo para a sua conclusão e perfeição supõe dois elementos constitutivos, quais sejam:


i) a entrega de uma coisa fungível ou de dinheiro por parte do mutuante, sendo que sem essa entrega (datio rei) por parte do mutuante não será possível ter-se como existente o contrato de mútuo típico, mas quando muito uma promessa de mútuo [10];


ii) a obrigação de restituir outro tanto do mesmo género do que foi recebido, nomeadamente, quando está em causa o mútuo de dinheiro, a mesma quantia que foi entregue, acrescida de eventual remuneração. Esta última obrigação mostra-se essencial ao mútuo, quer ao mútuo oneroso, quer ao mútuo gratuito, destinando-se a reequilibrar a situação patrimonial das partes, colocando-as na situação em que se encontravam ao tempo da conclusão do negócio.


Esta obrigação corresponderá, assim, a uma obrigação pecuniária, quando tiver sido recebida uma quantia em dinheiro ou uma obrigação genérica no caso contrário, correspondendo sempre o género àquele da prestação recebida.


Dito isto, como é consabido, sobre o autor impende o ónus da prova dos elementos constitutivos do direito que invoca e que judicialmente pretende ver tutelado (artigo 342º, n.º 1 do Cód. Civil).


Sendo que, caso não cumpra tal ónus, ou mesmo em caso de dúvida, a questão é decidida contra si (artigos 342º e 346º do Cód. Civil e artigo 414º do CPC).


Nesta conformidade e face ao antes exposto não basta que o demandante, invocando como causa petendi da sua pretensão, um mútuo ou empréstimo, prove apenas a entrega de determinado montante pecuniário; Incumbe-lhe ainda demonstrar a obrigação de restituição a cargo do demandado, pois que só assim se perfecciona o contrato de mútuo que lhe serve de fundamento.


Se fizer prova destes dois elementos constitutivos a acção procede; se o não fizer, a acção tem de improceder.”


No caso, não é apenas a falta de prova dos elementos do contrato de mútuo citados que determinam a improcedência da ação.


É que como resulta dos factos provados, não só na declaração de “Confissão de Dívida” subscrita pelas partes, numa altura em que a Autora estava de posse das suas capacidades como resulta amplamente da prova produzida, não foi estipulado prazo para a restituição, resultando do escrito que a liquidação da quantia seria realizada “mediante as possibilidades financeiras” do ora Réu, eventualmente depois do falecimento da ora Autora, entrando-se então em contas com o valor que lhe será legado, constando ainda do documento que não vencia juros, como ainda se demonstrou que existiu acerto de contas, tendo o ora Réu entregue a quantia referida no ponto 22 dos factos provados para o “pagamento global da quantia de €8.000,00”.


Conclui-se desta forma pela improcedência da apelação.


***


IV. Decisão.


Em face do exposto, acordam em julgar improcedente o recurso, e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.


Custas pela Autora/Recorrente – artigos 527º, ns. 1 e 2 do Código de Processo Civil.


Registe e notifique.


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Évora, 2025-04-09

Ana Pessoa

Manuel Bargado (com declaração de voto, que segue)

Susana Ferrão da Costa Cabral

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"Voto a decisão, mas entendo que devia ter sido rejeitado o recurso quanto à impugnação da matéria de facto, por incumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, desde logo porque a recorrente não indicou nas conclusões os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados."


Manuel Bargado

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1. Proferido no âmbito do processo n.º 552/15.0T8FLG.P1↩︎