Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
655/25.3T8EVR-A.E1
Relator: RICARDO MIRANDA PEIXOTO
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
COMPRA E VENDA
DEPÓSITO DO PREÇO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: SUMÁRIO (art.º 663º, n.º 7, do CPC):

I. A norma constante do n.º 1, do artigo 1410.º, do Código Civil, na parte em que exige o depósito integral do preço da venda como condição para o exercício do direito de preferência pelo arrendatário habitacional, não viola os preceitos constitucionais dos artigos: 20.º, n.º 1, acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva; 13.º, igualdade e não discriminação por condição económica entre arrendatários ricos e arrendatários pobres; 65.º, direito à habitação e dever de promoção pelo Estado; 18.º, n.º 2 e n.º 3, proporcionalidade e salvaguarda do conteúdo essencial dos direitos; 1.º e 2.º, Estado de direito democrático – proteção da confiança e justiça.


II. Na fiscalização sucessiva concreta da constitucionalidade vigente na nossa ordem jurídica não está previsto o recurso prejudicial para o Tribunal Constitucional porque os Tribunais Comuns são também órgãos de justiça constitucional e decidem das questões de constitucionalidade levantadas em cada caso concreto, só posteriormente sendo as suas decisões recorríveis para aquele tribunal com o âmbito restrito à questão da conformidade constitucional.

Decisão Texto Integral: *

Apelação 655/25.3T8EVR-A.E1


Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo Central Cível e Criminal de Évora - Juiz 2


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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo


Relator: Ricardo Miranda Peixoto;


1º Adjunto: Francisco Xavier;


2º Adjunto: José António Moita.


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I. RELATÓRIO


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A.


Ao abrigo do disposto no artigo 1410.º do Código Civil, AA propôs a acção constitutiva de preferência dos autos principais contra Y... - Sociedade Imobiliária, Lda. e BB, pedindo:


- o reconhecimento do direito de preferência do Autor sobre a fracção de prédio identificada na p.i., determinando-se a sua substituição na posição de adquirente na escritura de compra e venda; e


- se ordene o cancelamento de todos e quaisquer registos que os Réus tenham efetuado a seu favor em decorrência da aquisição do imóvel, designadamente o constante da apresentação AP. 5258 de 2024/09/23, a favor do 2.º Réu, bem como outros registos que venham a ser realizados, com as consequências legais inerentes.


Para tanto alegou que vem habitando, na qualidade que teve de Presidente do Conselho de Administração da sociedade “L..., Mármores e Granitos, SA”, aquela fracção autónoma - designada pela letra “E”, tipologia “duplex” correspondente aos 2º e 3º andares, destinada a habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua 1, 23, Local 1, em Cidade 1, inscrito na matriz sob o artigo 209 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 72 da freguesia de Local 1 - que a sociedade “A..., Engenharia e Construção, SA”, na qualidade de proprietária e entretanto declarada insolvente, deu de arrendamento à “L..., Mármores e Granitos, SA”, com início em 22 de Janeiro de 2009 e pelo prazo de 30 anos, automaticamente renovável.


No âmbito do processo de insolvência da “A..., Engenharia e Construção, SA”, no qual nunca foi invalidado o contrato de arrendamento, a fracção foi adquirida pelo “Novo Banco, SA” que mais tarde a vendeu à 1.ª Ré e esta, por sua vez, veio depois a transmiti-la à 2ª Ré, sem que ao Autor tivesse sido facultado o exercício do direito de preferência.


B.


Notificado, em cumprimento de despacho proferido a 14.05.2025, da informação prestada pela secção no sentido de que não se havia procedido à citação porque se não mostrava comprovado o depósito do preço previsto no n.º 1, do art.º 1410.º do Código Civil, veio o Autor, em requerimento apresentado no dia 29.05.2025, deduzir incidente de averiguação de constitucionalidade contra a exigência de depósito integral do preço, nos termos do artigo 204.º e à luz do disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 20.º, 65.º, 13.º e 18.º, todos da Constituição da República Portuguesa.


C.


Sobre tal requerimento foi produzido o despacho de 03.06.2025 que:


- negou a declaração da alegada inconstitucionalidade e, bem assim, a admissão do exercício do direito de preferência pelo Autor sem o depósito, imediato e integral, do preço; e


- determinou a notificação do Autor para, em dez dias, proceder ao depósito do preço.


D.


Inconformado, o Autor interpôs o presente recurso de apelação.


Concluiu as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial sem sublinhado e negrito da origem):


“(…)


A. Face a todo o alegado, impõe-se concluir que a norma constante do artigo 1410.º, n.º 1, do Código Civil, na parte em que exige o depósito integral do preço da venda como condição para o exercício do direito de preferência pelo arrendatário habitacional, é suscetível de violar os seguintes preceitos constitucionais: artigo 20.º, n.º 1 (acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva), artigo 13.º (igualdade e não discriminação por condição económica), artigo 65.º (direito a habitação e dever de promoção pelo Estado), artigo 18.º, n.º 2 e n.º 3 (proporcionalidade e salvaguarda do conteúdo essencial dos direitos), artigo 1.º e artigo 2.º (Estado de direito democrático – proteção da confiança e justiça) da Constituição da República Portuguesa.


B. O douto despacho recorrido, ao indeferir liminarmente o incidente de inconstitucionalidade requerido e aplicar da mencionada norma sem a submeter ao crivo do Tribunal Constitucional, violou, por seu turno, o disposto no artigo 204.º da CRP e os princípios subjacentes aos artigos 70.º, 72.º e 73.º da LTC, privando o Recorrente do direito a ver a questão constitucional decidida pela instância competente.


C. Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas. Venerandos Desembargadores doutamente suprirão, deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente, revogando-se o douto despacho recorrido.


D. Em consequência, requer-se a este Venerando Tribunal que seja declarada, com força limitada ao caso concreto, a inconstitucionalidade da norma do artigo 1410.º, n.º 1, do Código Civil, na parte em que impõe o depósito integral do preço como condição de exercício do direito de preferência pelo arrendatário habitacional, por violação dos preceitos constitucionais acima indicados;


E. Consequentemente, seja admitido o exercício do direito de preferência pelo Recorrente sem a necessidade do depósito prévio integral do preço, prosseguindo a ação principal de preferência, podendo ser fixadas, se assim se entender, medidas alternativas adequadas (v.g. prestação de caução, garantia bancária ou depósito parcial) para acautelar os interesses do alienante, de forma proporcional e não impeditiva do acesso à justiça;


F. Para a hipótese de V. Exas. entenderem que a questão envolve matéria de inconstitucionalidade com relevância para além do caso sub judice, seja ordenada a remessa da dúvida de constitucionalidade ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da LTC, para apreciação em sede de fiscalização concreta pelo tribunal competente, ficando suspenso o presente feito até decisão daquele Alto Tribunal.


G. Dando-se assim pleno cumprimento ao primado da Constituição e a assegurar que o Recorrente não veja frustrado um direito que lhe é fundamental. Só assim se evitará que a justiça seja denegada por motivos económicos, devolvendo-se efetividade ao direito de preferência e resguardando-se a confiança dos cidadãos na ordem jurídica. (…)”


E.


Proferida que foi decisão sumária do recurso, veio a Recorrente requerer a prolação de acórdão.


Designada a data para a Conferência, colheram-se os vistos dos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.


F.


Questões a decidir


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (art.ºs 635º, n.º 4, 636º e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC).


Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art.º 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).


Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.


São as seguintes, as questões em apreciação no presente recurso:


1. Se deve ser desaplicada no caso concreto a norma constante do n.º 1, do artigo 1410.º, do Código Civil, na parte em que exige o depósito integral do preço da venda como condição para o exercício do direito de preferência pelo arrendatário habitacional, por violação dos preceitos constitucionais dos artigos: 20.º, n.º 1 (acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva); 13.º (igualdade e não discriminação por condição económica); 65.º (direito a habitação e dever de promoção pelo Estado); 18.º, n.º 2 e n.º 3 (proporcionalidade e salvaguarda do conteúdo essencial dos direitos); 1.º e 2.º (Estado de direito democrático – proteção da confiança e justiça).


2. Se devia o tribunal de 1ª instância, antes de proceder à aplicação da aludida norma, submeter a apreciação da sua constitucionalidade ao crivo do Tribunal Constitucional.


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II. FUNDAMENTAÇÃO


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A. De facto


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O recurso é exclusivamente de direito e os elementos relevantes para a decisão constam do relatório antecedente.


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B. De direito


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Da inconstitucionalidade da parte final do n.º 1 do artigo 1410º do Código Civil


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Como fundamentos da alegada inconstitucionalidade do n.º 1, do artigo 1410.º, do Código Civil, na parte em que impõe o depósito integral do preço da venda como condição para o exercício do direito de preferência pelo arrendatário habitacional, invoca o Recorrente a violação dos artigos da Constituição da República Portuguesa (doravante C.R.P.):


a) 20.º, n.º 1 - acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva;


b) 13.º - igualdade e não discriminação por condição económica;


c) 65.º - direito a habitação e dever de promoção pelo Estado;


d) 18.º, n.º 2 e n.º 3 - proporcionalidade e salvaguarda do conteúdo essencial dos direitos;


e) 1.º e 2.º - vertente da protecção da confiança e justiça do Estado de direito democrático.


Sem razão, porém.


Vejamos porquê.


a)


O despacho recorrido não viola o acesso dos cidadãos à justiça e à tutela efectiva dos tribunais para defesa dos seus direitos, constitucionalmente previsto no artigo 20º da C.R.P., na medida em que o Autor tem à sua disposição um meio processual justo e equitativo para fazer valer o arrogado direito em juízo, vendo dirimida a questão de saber se tem ou não preferência no negócio de compra e venda celebrado entre as Rés.


A obrigação de depositar o preço correspondente ao valor do negócio preferido é justificada pela circunstância de que a procedência do pedido desta acção com natureza constitutiva, determina a substituição do preferente na posição do adquirente da escritura de compra e venda correspondente ao negócio preferido. O preferente assume a condição do adquirente oneroso do bem e este, sendo por aquele substituído, tem de ser reembolsado dos gastos correspondentes ao preço e despesas suportadas com a celebração do negócio.


Por isso, para além do direito de preferência que lhe assista, o Autor da acção tem que ter interesse no negócio celebrado entre os Réus e de dispor de recursos financeiros que lhe permitam cumprir aquela obrigação de pagamento decorrente do exercício do correspondente direito.


O acesso ao direito é, assim, instrumental do exercício do direito de preferência que, por sua vez, está dependente do pagamento do preço do negócio preferido ao comprador.


A garantia de acesso a uma tutela jurisdicional efectiva não corresponde, como parece supor o Recorrente, à obrigação do Estado assegurar o sucesso da preferência sem que o arrogado titular do direito cumpra os pressupostos fundamentais do seu exercício – de que o pagamento do preço ao comprador preferido é um exemplo paradigmático -, mas apenas que deve facultar-lhe um meio processual adequado, justo e equitativo para fazer valer o seu direito.


A norma da parte final do n.º 1 do artigo 1.410º do Código Civil destina-se, precisamente, a acautelar que o preferente reúne tais condições, evitando a propositura de acção judicial por quem não disponha de meios para cumprir a contraprestação da preferência.


A utilização dos recursos escassos do Estado através do aparelho judicial e a demanda das partes outorgantes do negócio preferido, acarreta para estas despesas e o cumprimento de outras obrigações processuais que só fazem sentido se o preferente / demandante estiver apto a substituir o adquirente.


Caso contrário, estaremos perante puro desperdício de recursos e de tempo.


Fenece, por isso, o argumento aventado pelo Recorrente.


b)


Relativamente à violação do princípio da igualdade por alegada discriminação em função da condição económica (cfr. art.º 13º da C.R.P.), o argumento afigura-se manifestamente descabido.


O direito de preferência tem, no caso vertente, por objecto um negócio oneroso, de compra e venda, em que o adquirente suportou o pagamento de determinado preço como contrapartida da transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel.


Faz-se nas mesmas condições de preço do negócio preferido, sendo evidente que a obrigação incidente sobre o preferente é, nos termos da lei, precisamente igual à que foi suportada pelo adquirente.


Ao substituir a posição do adquirente, o preferente assume a obrigação do adquirente no negócio preferido, pelo que só quem dispõe de capacidade de pagamento do preço pode preferir.


É claramente falacioso afirmar que há, nesta realidade incontornável, tratamento discriminatório da lei entre arrendatários ricos e arrendatários pobres.


A aquisição do direito de propriedade sobre determinado bem por compra e venda, está sujeita ao pagamento de um preço.


Numa economia de mercado como a nossa, em que o preço é influenciado pela lei da oferta e da procura, os bens são transmitidos onerosamente para quem puder e se dispuser a pagar o seu valor.


É, pois, dado assente que as coisas à venda têm um preço e só quem tem dinheiro para o pagar as pode comprar.


Como refere o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2003 (publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de Junho de 2003 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 56.º Vol., págs. 7 e segs.), “[o] princípio da igualdade obriga a que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda á lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio.” (sublinhado meu).


Não há, por isso, violação do princípio da igualdade quando se provar que a diferença de tratamento tem a justificá-la um qualquer fundamento racional bastante.


Tendo presentes estes ensinamentos, é bom de ver que o princípio constitucional da igualdade não impõe que todas as pessoas vivam em iguais condições sociais, económicas ou financeiras.


Num Estado, como o nosso, em que se protege a livre iniciativa económica e a propriedade privada, haverá sempre pessoas com assinaláveis diferenças patrimoniais entre si e, por consequência, também quem possa, e quem não possa, comprar determinados bens.


A diferente facilidade no exercício do direito de preferência, entre arrendatários ricos e arrendatários pobres, é um evidente reflexo deste princípio elementar da nossa ordem social, económica e jurídica, com assento nos artigos 61º e 62º da Constituição da República Portuguesa onde se preveem a liberdade de iniciativa económica privada e a defesa do direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida e por morte.


Não há, portanto, violação do princípio da igualdade porque, percute-se, este não pressupõe que todas as pessoas tenham os mesmos meios para aceder à propriedade de bens. Nem há qualquer tratamento discriminatório, dependente que estaria do desfavorecimento do Autor, de maneira injustificada, entre pessoas com idênticas condições materiais ou com base nas suas características pessoais como raça, etnia, género, idade, deficiência, orientação sexual, religião, etc..


Pelo contrário, o Autor beneficia do mesmo preço pago pelo comprador em condições de mercado.


Discriminatório, mas para o adquirente, seria isentar o preferente da obrigação do depósito do preço, admitindo-lhe o exercício do direito em condições mais favoráveis do que as suportadas pelo comprador da compra e venda preferida.


c)


Quanto ao argumento da violação do direito à habitação e do correspectivo dever de promoção pelo Estado (art.º 65º da C.R.P.), é clara a confusão do Recorrente entre direito à habitação e direito de propriedade.


O Recorrente / Autor arroga-se, na p.i., arrendatário do imóvel objecto do negócio preferido, condição da qual faz depender também a titularidade do direito de preferência.


A questão do direito à habitação do Autor está relacionada com a subsistência ou manutenção do direito de arrendamento de que se arroga titular, já que só por via deste negócio obrigacional será, alegadamente, titular do direito de gozo que lhe vem proporcionando a utilização do imóvel em apreço para fins habitacionais.


Porém, a demanda dos autos principais não versa a manutenção do direito ao arrendamento do Autor.


Incide, antes, sobre questão distinta – o direito de preferência na compra e venda do imóvel - com o escopo de fazer ingressar na esfera patrimonial do Autor um novo direito, de propriedade, sobre a fracção autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal, mediante o pagamento da contrapartida (preço) acordada pelas partes do negócio preferido, bem como das despesas e dos encargos elegíveis.


Não é incumbência constitucional do Estado Português assegurar que os cidadãos sejam proprietários da sua habitação mas, tão somente, criar condições para que todos possam habitar com as suas famílias em espaços de dimensão adequada, com higiene, conforto e preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar.


Para tanto, poderá o Estado lançar mão dos instrumentos mencionados nas alíneas do n.º 2 do art.º 65º da C.R.P.: “a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social; b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais; c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada; d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.”


Deste elenco de instrumentos constitucionais não consta, como é evidente, a obrigação do Estado suportar o pagamento do preço da compra de habitação própria pelos seus cidadãos.


Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, “…o direito à habitação não se reduz ao direito a habitação própria (o que o transformaria num caso de direito à propriedade), podendo ser realizado também por via do direito de arrendamento…” (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2014, pág. 836).


Assim, o exercício de preferência pelo Autor nos autos principais, está excluído do âmbito das obrigações constitucionais do Estado Português em matéria do direito dos cidadãos à habitação, previsto pelo artigo 65º da C.R.P..


d)


Debruçando-nos agora sobre a alegada violação do princípio da proporcionalidade na restrição dos direitos constitucionalmente protegidos, impõem os números 2 e 3 do artigo 18º da C.R.P. que: “2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.”


Já vimos que não há, na exigência contida na parte final do n.º 1 do artigo 1410º do Código Civil, qualquer compressão dos direitos constitucionais do Autor a um tratamento igual, ao acesso à justiça e à habitação (artigos 13º, 20º e 65º da C.R.P.).


De todo o modo, ainda que estivessem em causa estes direitos, sempre os também constitucionalmente protegidos direitos a uma justiça célere, através de um processo equitativo (cfr. n.º 4 do artigo 20º), à livre iniciativa económica (artigo 61º) e à propriedade privada (artigo 62º), imporiam a cautela da obrigação de depósito prevista pela parte final do n.º 1 do artigo 1410º do Código Civil, com acolhimento no preceituado pelos citados números 2 e 3 do artigo 18º da C.R.P..


Se a livre iniciativa económica e a propriedade privada justificam a necessidade da correspondência entre o montante que o preferente terá de desembolsar para ser colocado na posição do comprador do bem e o preço por este pago no negócio preferido, o depósito de outro valor que ficasse aquém do necessário ou a prestação de uma qualquer garantia que não assegurasse a imediata disponibilidade do montante total, não asseguraria que, corridos os autos e reconhecido que fosse do direito de preferência, se produzisse o resultado pretendido pela demanda, já que sempre estaria dependente do reforço ou de uma prestação adicional ao montante inicialmente depositado que poderia nunca ocorrer.


Isto, ao arrepio das obrigações do Estado prover a uma justiça célere e em condições de igualdade de armas entre as partes, com o prejuízo inerente ao empenho de recursos públicos, da actividade dos tribunais estaduais numa lide incerta quando poderiam estar a dedicar o seu tempo a outros processos, a que acresce o desequilíbrio de uma posição de supremacia do demandante relativamente à das partes intervenientes no negócio preferido, demandadas na acção de preferência que não obrigasse o primeiro ao depósito da totalidade, pois estariam estas forçadas a defender-se e a empenhar meios numa acção em que não disporiam da mesma opção final de não cumprir uma condição necessária à produção dos efeitos da preferência.


O exercício do direito assim desenhado, prestar-se-ia seguramente a utilizações abusivas apenas com o intuito de submeter os réus ao desgaste e à despesa de um processo judicial sem a garantia firme de que a parte contrária assumiria o negócio preferido.


Conclui-se, portanto que não há, na norma sindicada, violação do princípio da proporcionalidade na compressão de direitos fundamentais do Recorrente / Autor.


e)


Por fim, quanto ao princípio da protecção da confiança, decorrente do Estado de direito democrático (artigos 1º e 2º da C.R.P.), entende o Recorrente que a aplicação da norma impugnada frustra a sua legítima expectativa, “…fundada na lei, de que se o senhorio decidisse vender a casa arrendada, ele teria a possibilidade real de exercer o direito de preferência e adquirir o imóvel, cumprindo as condições do negócio.” (sublinhado nosso).


Mas mais adiante, acrescenta que “…a exigência do depósito integral, aplicada de forma literal e inflexível, defraudou totalmente a confiança legítima do Recorrente.”, apodando tal depósito de “…requisito procedimental draconiano…” que “…tornou aquele direito inútil justamente quando dele necessitou.”


Deixando de lado o que se afigura ser uma contradição de expectativas entre o Autor que pretendia exercer o direito de preferência “cumprindo as condições do negócio” - que só podemos interpretar como pagando a totalidade do valor correspondente ao preço do negócio preferido - e o Autor que se considera defraudado pela “…exigência do depósito integral”, dir-se-á apenas que se não compreende, nem o Autor explica, como é que a lei ou a jurisprudência existentes sobre o tema, o teriam levado a criar a expectativa de que poderia exercer tal direito sem cumprir a obrigação prévia de depositar a totalidade do preço, na medida em que esta imposição decorre, há décadas, da lei e da jurisprudência consensual sobre o tema.


Se como alega, “…o Recorrente jamais poderia prever que o exercício do direito que a lei lhe conferia dependeria de uma condição tão difícil…”, só a si próprio será imputável tal imprevidência, já que deflui da norma em apreço e do entendimento unânime dos tribunais.


Para além do mais, são bem claras e justificadas as preocupações do legislador ao estabelecer semelhante obrigatoriedade, dando-se, sobre o tema, por reproduzidas as considerações expendidas em d) supra da presente decisão, onde se enunciam razões ponderosas para evitar que a propositura da acção dependa do cumprimento de outra obrigação que não corresponda à totalidade do preço.


Termos em que não há, pela norma em apreço, violação do princípio constitucional da protecção da confiança, decorrente do Estado de direito democrático.


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Da submissão da aplicação da norma em crise ao crivo do Tribunal Constitucional


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Mais entende o Recorrente que o despacho recorrido, ao indeferir liminarmente o incidente de inconstitucionalidade requerido e ao aplicar a mencionada norma sem a submeter ao crivo do Tribunal Constitucional, violou o disposto no artigo 204.º da C.R.P. e os princípios subjacentes aos artigos 70.º, 72.º e 73.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante L.T.C.), privando o Recorrente do direito a ver a questão constitucional decidida pela instância competente.


Também aqui não é de acompanhar o entendimento do Recorrente.


Decorre da conjugação do disposto nos artigos 70º e 71º da L.T.C. com o artigo 204º da C.R.P. que no sistema português de fiscalização da constitucionalidade, os tribunais comuns são também órgãos de justiça constitucional e decidem das questões de constitucionalidade levantadas em cada caso concreto, sendo as suas decisões sempre recorríveis para o Tribunal Constitucional, embora o âmbito desse recurso seja restrito à questão da inconstitucionalidade.


Uma vez esgotadas as possibilidades de recurso ordinário da decisão do tribunal comum que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no decurso do processo, cabe recurso da mesma, em sede de fiscalização concreta, para o Tribunal Constitucional (cfr. al.ª b) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 70º da L.T.C.) que julga em última instância os recursos das decisões de todos e cada um dos demais tribunais em matéria constitucional.


Deste modo, não estava o tribunal de 1ª instância obrigado, antes de tomar posição sobre a inconstitucionalidade da norma da parte final do n.º 1 do artigo 1410º do Código Civil, a submeter a questão ao crivo do Tribunal Constitucional, como também não está o Tribunal da Relação de Évora enquanto o Autor não deduzir da presente decisão recurso para aquele Tribunal.


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Deste modo, conclui-se que não merecem acolhimento os argumentos suscitados no presente recurso do Recorrente contra a decisão do tribunal de 1ª instância.


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Custas


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Não havendo norma que preveja isenção (art. 4º, n.º 2 do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (art.º 607º, n.º 6, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do CPC).


No critério definido pelos artigos 527º, n.ºs 1 e 2 e 607º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.


No caso, o Recorrente não obteve vencimento pelo que deve suportar as custas do recurso.


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III. DECISÃO


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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em:


Julgar improcedente a presente apelação, confirmando a decisão recorrida.


Condenar o Recorrente no pagamento das custas do presente recurso.


Notifique.


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Évora, d.c.s.


Os Juízes Desembargadores:


Ricardo Miranda Peixoto;


Francisco Xavier; e


José António Moita.