Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | MAFALDA SEQUINHO DOS SANTOS | ||
Descritores: | OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO PRISÃO PREVENTIVA | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | Mesmo que o arguido possa regressar à residência que outrora partilhou com o ofendido e onde este já não se encontra (esbatido o risco de continuação da atividade criminosa), na verdade, a obrigação de permanência na habitação, ainda que com vigilância eletrónica e proibição de contactos, não salvaguarda o risco de fuga e o risco de inquinamento da prova. A OPH pressupõe a capacidade de contenção dos comportamentos, que a atuação do recorrente evidencia se encontrar fortemente comprometida. E a vigilância eletrónica apenas sinalizaria a sua ausência não autorizada, sendo que a miríade de meios de comunicação disponíveis também não permite afirmar (como parece alegar o recorrente) que ficaria impedido de contactar com o ofendido e demais testemunhas. Assim, apenas a medida de coação de prisão preventiva se afigura adequada à salvaguarda das prementes exigências cautelares no presente caso, sendo para o efeito necessária e proporcional à pena que se antevê aplicada em sede de julgamento. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acórdão deliberado em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: * 1 – RELATÓRIO 1.1 Decisão recorrida Por despacho de 30/12/2024, após realização de interrogatório judicial, foi aplicada ao arguido AA a medida de coação de prisão preventiva, nos termos previstos nos arts. 191.º a 193.º, 202.º, n.º 1, al. b) e 204.º als. a), b) e c), todos do Cód. de Processo Penal. 1.2 Recurso O arguido interpôs recurso peticionando a substituição da prisão preventiva pela medida de obrigação de permanência na habitação, concluindo, nas suas alegações: «1. O tribunal recorrido aplicou ao arguido a medida de coação mais gravosa, prisão preventiva, quando se afigura suficiente a medida de coação de permanência na habitação através dos meios eletrónicos. 2. O agora recorrente, com o devido respeito que é muito, distancia-se frontal e absolutamente, do entendimento que fora vertido no despacho ora em crise. 3. Por isso afigura-se que o tribunal recorrido andara muito mal ao não ter considerado a circunstância prevista no corpo do art.º 193.º, n.º3 do CPP. 4. O arguido ficará com esta medida, afastada da possibilidade de continuar a ter contactos com o ofendido, ou pessoas relacionadas com ele. 5. Assim sendo, a manutenção da medida de coação de prisão não deverá manter-se, mas sim, ser aplicada nova medida de permanência na habitação, por esta ser a que melhor satisfará as necessidades da prevenção.» * Pese embora interposto tempestivamente, o recurso apenas veio a ser admitido em 9/04/2025, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo. Entretanto, teve lugar revisão da medida de coação, sendo mantida a prisão preventiva por despacho de 26/03/2025. Proferida acusação, em 5/05/2025, voltou o Tribunal a apreciar os pressupostos da medida de coação, mantendo o arguido em prisão preventiva, por decisão de 7/05/2025. Nenhuma destas ulteriores decisões foi objeto de recurso. * O Magistrado do M.º P.º apresentou resposta na qual, no essencial, pugna pela rejeição do recurso e consequente manutenção da medida de coação aplicada. Designadamente refere, em sede de conclusões, que: «1. A prova documental e testemunhal recolhida até ao momento permitem, com segurança, indiciar fortemente os factos e crime acima imputado ao arguido, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 131º, 132º, nºs 1 e 2, alínea e), todos do CP. 2. Dispõe o artigo 191.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, consignando o princípio da legalidade, que “a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei”. 3. Nessa medida, a aplicação das medidas de coação – que vão além do TIR – no nosso ordenamento jurídico-processual, está sujeita não só às condições gerais contidas nos artigos 191.º a 195.º do Código de Processo Penal, em que avultam os princípios da necessidade e adequação às exigências cautelares que o caso requer e da proporcionalidade à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, bem como dos requisitos gerais ínsitos no artigo 204.º do mesmo diploma legal, ou seja, fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova ou, ainda, perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas. 4. O arguido é estrangeiro, sem qualquer vínculo ao país, podendo deixar o país a qualquer momento, nomeadamente, para regressar ao seu país de origem. 5. A moldura penal dos crimes pelos quais está fortemente indiciado é apta a suscitar no arguido a vontade de se quererem eximir ao exercício da acção penal. 6. Existe também um evidente perigo de perturbação do inquérito, mantém uma relação de grande proximidade com a vítima e as testemunhas, que, dada a sua personalidade demonstrada nos factos pode causar receio e constrangimento àqueles que possam vir a ter de testemunhar sobre os factos aqui indiciados. 7. Por último, existe também um perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas (art.º 204.º al. c) do CPP), pois que se trata de um caso de crimes contra as pessoas, de um modo particularmente violento, feito numa pequena e pacata localidade (…) e, consequentemente, com muito maior projecção em termos de alarmismo social. 8. Pelo que devem ser mantidas as medidas de coacção aplicadas em sede de primeiro interrogatório, por serem as necessárias, adequadas e proporcionais: ➢Obrigações decorrentes do TIR. ➢Prisão Preventiva.» * Neste Tribunal da Relação, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando a argumentação já apresentada pelo M.º P.º na primeira instância, pugnando pela rejeição do recurso e manutenção da medida de coação aplicada. * Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Cód. de Processo Penal, não tendo o arguido apresentado resposta. Teve lugar a conferência. * 2. QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância (artigos 379.º, 403.º, 410.º e 412.º do Cód. Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (AUJ de 19/10/1995, D.R. 28/12/1995) pelo que no presente caso cumpre apreciar e decidir da verificação dos pressupostos legais para a aplicação da medida de coação de prisão preventiva e se esta é necessária, adequada e proporcional no caso concreto. * 3. FUNDAMENTAÇÃO a) Decisão recorrida (transcrição) « Valido a detenção do arguido, ao abrigo dos art.ºs 254.º, n.º 1, alínea a) e 257.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal (CPP). Não foi excedido o prazo de detenção máxima de 48 horas previsto pelo art.º 28.º da CRP e art.º 254.º, n.º 1, alínea a) do CPP para apresentação do arguido a 1.º interrogatório judicial, pelo que a mesma é tempestiva. * Dos elementos constantes nos autos e daqueles apurados em sede de primeiro interrogatório judicial, resultam fortemente indiciados os seguintes factos: 1. No dia 28 de Dezembro de 2024, cerca das 02h00m, na Rua …, próximo da Junta de Freguesia de …, o arguido AA, após uma discussão motivada pelo fumo de tabaco, aproximou-se de BB e, fazendo uso de um objecto corto-perfurante de que se munira, cujas características não foi ainda possível apurar, desferiu-lhe três golpes no corpo, designadamente no tórax e no braço esquerdo, enquanto lhe dizia que o iria matar. 2. BB, por via das dores sofridas, começou a gritar, o que fez com que CC, DD e EE fossem ver o que se passava. 3. Ao aperceber-se da presença destes, de mediato AA cessou as agressões a BB e saiu em corrida daquele local. 4. BB, por via dos ferimentos infligidos, foi conduzido ao Hospital …, em …, e, posteriormente, dada a gravidade dos ferimentos, ao Hospital de …, em …. 5. BB apresentava os seguintes ferimentos: - no tórax, do lado esquerdo: um ferimento cortoperfurante, com rebordos rectilíneos e paralelos, infiltrados bilateralmente. Ferimento recente e sangrante e com deslizamento em profundidade pela epiderme, derme, hipoderme, penetrando camada muscular e atingindo zona interna torácica; - no braço esquerdo (lado anterior e posterior): dois ferimentos cortoperfurantes, com rebordos rectilíneos e paralelos, infiltrados bilateralmente. Ferimento tipicamente defensivo. 6. O arguido sabia da perigosidade da utilização do objecto utilizado para a prática dos factos e que o mesmo era adequado a causar a morte. 7. Fez uso do referido objecto, visando uma zona corporal que aloja órgãos vitais, pelo que sabia que a sua actuação era adequada a causar a morte de BB, resultado que queria e para o qual adequou a sua conduta, não o tendo conseguido por razões alheias à sua vontade. 8. O arguido agiu sempre livre e deliberadamente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei penal. Mais se indiciou que: 9. O arguido trabalha como pintor de peças para aviação, tendo contrato sem termo e auferindo o salário mínimo nacional. 10. Reside com o ofendido e com a testemunha CC, suportando a quantia mensal de €170,00 a título de despesas fixas. 11. Não tem qualquer outra residência de amigo ou familiar onde possa residir. 12. O arguido não tem averbado ao seu CRC qualquer antecedente criminal. * A factualidade supra referida resulta indiciada dos meios de prova indicados no despacho de apresentação do arguido, para onde se remete, e de onde se destacam os depoimentos do ofendido BB e das testemunhas CC, DD e EE, conjugados com o relatório do episódio de urgência do Hospital … e auto de diligência de análise aos ferimentos de BB. O arguido, optando por prestar declarações, confirmou parcialmente os factos, designadamente que, na data e hora indicadas na factualidade fortemente indiciada teve uma discussão com o ofendido, a propósito do fumo de tabaco. De igual modo, fez menção à presença de um objeto corto-perfurante no decurso dessa discussão, que acabou por referir tratar-se de uma faca de cozinha, acrescentando que não desferiu os golpes no ofendido, apenas se tendo apercebido dos mesmos já no decurso da referida discussão e confronto físico mútuo que se lhe seguiu, momento em que cessou a sua conduta. A sua versão, porém, não nos mereceu qualquer credibilidade, porquanto as suas declarações foram absolutamente confusas e contraditórias, ora referindo que a discussão ocorreu no interior da cozinha quando se encontrava a preparar o jantar, assim procurando justificar a presença do objeto corto-perfurante, ora referindo, em momento posterior, que afinal os factos ocorreram na rua, já muito após a hora em que se encontrava a preparar a dita refeição. Certo é que da prova junta aos autos resulta fortemente indiciado que efetivamente o ofendido sofreu três golpes, um deles no tórax e próximo de zona vital, e dois deles no braço, estes últimos compatíveis com uma postura defensiva da sua parte. Aliás, o próprio arguido admitiu ter empunhado uma faca de cozinha na direção do ofendido, ainda que, na sua versão, apenas com o intuito de se defender, não se compreendendo como o poderia ter atingido por três vezes sem disso se ter dado conta. Para além disto, a versão apresentada pelo ofendido, além de ser corroborada pelas próprias lesões por si sofridas nos termos acima descritos, encontra igualmente arrimo nos depoimentos das referidas testemunhas CC, DD e EE. O arguido não podia ignorar que o uso do objeto corto-perfurante de que se muniu se revelava idóneo para produzir a morte do ofendido, e bem assim, de que o seu comportamento era proibido e punido por lei, pois tal é de conhecimento geral. Não obstante este conhecimento, que representou, indiciou-se que o arguido quis agir da forma descrita, além do mais, em resultado da expressão que havia proclamado em momento anterior ao desferir os golpes na vítima, conjugado igualmente com o local em que um dos mesmos a atingiu (tórax). Acresce que nada nos autos nos leva a concluir que, no momento da prática dos factos, o arguido era portador de qualquer incapacidade que o impedisse de avaliar a ilicitude dos mesmos ou de se determinar de acordo com essa avaliação, tendo-se indiciado que agiu de forma livre, voluntária e consciente. As condições socioeconómicas do arguido mostram-se indiciadas, em resultado das declarações do mesmo e a ausência de antecedentes criminais do teor do CRC junto aos autos. * Os factos fortemente indiciados consubstanciam a prática pelo arguido, em autoria material de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 131º, 132º, nºs 1 e 2, alínea e), todos do CP. * Atendendo à factualidade indiciada, dúvidas não nos restam quanto subsunção jurídica ao tipo legal de homicídio, p. e p. pelo artigo 131º do CP, na medida em que o objeto utilizado pelo arguido, a persistência da sua conduta, bem como a forma como se dirigiu ao ofendido e os locais onde o atingiu, eram idóneas a produzir o resultado típico – a morte. No que toca ao elemento subjetivo, indiciou-se que o arguido agiu com dolo direto (artigo 14º), pois representou o resultado, bem como a sua ilicitude, e ainda assim, conformando-se, quis agir do modo descrito. Pese embora não tenha havido a consumação do crime, indiciou-se que o arguido apenas cessou a sua conduta por razões alheias à sua vontade, designadamente devido ao facto de o ofendido ter começado a gritar e terem chegado ao local CC, DD e EE. Temos, assim, que os factos indiciados consubstanciam a prática de atos de execução do crime de homicídio qualificado, o qual foi praticado na forma tentada (artigo 22º do CP). Importa, no entanto, tecer algumas considerações acerca da subsunção jurídica ao homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 132º do CP, que pressupõe, como cláusula geral, que o crime tenha sido cometido em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade. Ao lado desse critério aferidor da qualificação, o legislador previu exemplos-padrão indicadores dessa especial censurabilidade ou perversidade, no nº 2 do mesmo preceito legal. Contudo, as circunstâncias supramencionadas não são de aplicação automática, cumprindo ao Tribunal a sua aferição em concreto. Neste sentido, e no que importa ao caso dos autos, da análise conjugada da factualidade indiciariamente apurada resulta, de forma cristalina, que o arguido praticou os factos por motivo fútil, na medida em que os mesmos ocorreram na sequência de uma mera discussão motivada pelo fumo de tabaco. Estamos, assim, de uma situação que se reconduz a um motivo “que não se pode razoavelmente explicar ou justificar, sem qualquer tipo de valor ou em que este se mostre insignificante ou irrelevante”, evidenciando manifesta inadequação e desproporcionalidade “entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou”. Assim sendo, este Tribunal entende que os factos indiciados são de molde a ser enquadrados na qualificativa da alínea e) do nº 2, do artigo 132º do CP, consubstanciando a conduta do arguido um homicídio qualificado, na forma tentada. * Face ao exposto, cabe agora apreciar e decidir quais as exigências cautelares que o caso dos autos reclama. A aplicação de medidas de coação, por contender com a compressão de direitos fundamentais, encontra-se subordinada a restritos pressupostos, tendo, desde logo, de obedecer ao princípio da legalidade, nos termos do artigo 191º do CPP, que implica que apenas se possam ter em conta as medidas tipificadas na lei, funcionando, igualmente como um limite, no sentido em que apenas pode ter lugar por razões de «natureza cautelar» e num «quadro de necessidade». Por sua vez, o artigo 193º do CPP, prevê o princípio da necessidade, adequação e proporcionalidade, exigindo que, com base num juízo de prognose acerca do caso concreto, devem as medidas ser necessárias e adequadas às exigências cautelares, devendo realizar os fins pretendidos e, ainda, ser proporcionais à gravidade do crime e consequentes sanções que previsivelmente lhe venham a ser aplicadas. No seu n.º 2, este preceito legal consagra o princípio da subsidiariedade, com base no qual se prevê que as medidas de prisão preventiva e de obrigação de permanência na habitação são medidas de “ultima ratio”, podendo apenas ser aplicadas quando as demais se mostrem inadequadas ou insuficientes. Se, com base nas provas já reunidas, se concluir que as mesmas são aptas a uma condenação no futuro, cabe analisar a gravidade do crime e as sanções penais que lhe correspondem, de forma a podermos ponderar as exigências cautelares que o caso comporta e optar pela medida de coação que se julgar mais necessária, adequada e proporcional. Atendendo ao exposto, legislador previu, além dos princípios já mencionados, requisitos para que sejam aplicadas, elencados no artigo 204º do CPP, que devem verificar-se em concreto e no momento da aplicação da medida. No caso, e face à factualidade supra exposta, resulta que, independentemente da motivação que levou o arguido a prosseguir a sua conduta, os factos descritos são graves, evidenciando grande violência, manifestamente desproporcional, e atentando contra um bem jurídico eminentemente pessoal. Por estas razões, entendemos que o arguido é portador de uma personalidade agressiva e particularmente avessa ao dever ser jurídico, porquanto só assim se pode compreender o seu comportamento. Por outro lado, não se pode olvidar o impacto que um crime desta natureza tem na comunidade em geral, gerando um enorme alarme social e criando um elevado sentimento de insegurança, em concreto, pelos motivos e circunstâncias em que foi cometido, contra um colega de casa. Ademais, cabe assinalar que está fortemente indiciado que o arguido só cessou a sua conduta por motivos alheios à sua vontade, designadamente, por outras pessoas terem acorrido ao local dos factos em virtude dos gritos do ofendido. Deste modo, entende-se que o arguido não se absteria de prosseguir o seu intento, pelo que se mostra evidente que poderá continuar a sua atividade criminosa, tanto mais que estava em causa uma pessoa do seu círculo próximo, com o qual coabitava, o que não foi de molde a afastá-lo da prática dos factos fortemente indiciados. Por outro lado, os factos ocorreram relativamente perto da área de residência do arguido, tendo acorrido ao local as testemunhas já acima identificadas, que presenciaram parte dos mesmos, assim se concluindo também que existe o sério risco de que este venha a intimidar tais testemunhas. De igual modo, e pese embora o arguido tenha atualmente o seu centro de vida em Portugal, facto é que tem facilidade em sair do território nacional, nomeadamente para o seu país de origem, assim se eximindo à atividade da justiça. Deste modo, entendemos que no caso também se verifica o perigo de fuga, nos termos propugnados pelo Ministério Público. Por fim, cabe assinalar que os factos ocorreram em plena via pública, pelo que resulta clara a perturbação da ordem e a tranquilidade públicas, sobretudo tendo em conta a gravidade dos mesmos. Posto isto, atenta a natureza do crime em questão e a personalidade do arguido, mostra-se premente salvaguardar os perigos de continuação da atividade criminosa, de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de perturbação do decurso de inquérito e de fuga, nos termos do artigo 204º, alíneas a), b) e c), do CPP. * Atentos os critérios previstos no art.º 193.º do CPP, nomeadamente os princípios da necessidade, proporcionalidade e subsidiariedade que regem a aplicação das medidas de coação, com igual consagração constitucional nos artigos 18.º, 27.º n.º 3 e 28.º da Constituição da República Portuguesa, não se mostra suficiente a sujeição do arguido a TIR. E em face do que se deixou exposto supra, considerando a personalidade do arguido tal como nos surgiu revelada e ponderando as sanções que previsivelmente serão de aplicar no âmbito do presente processo, entende-se que a única medida de coação necessária, proporcional e adequada às exigências cautelares dos presentes autos será a medida de coação de prisão preventiva, não o sendo a medida de obrigação de permanência na habitação ( artigo 193º n.º3 do CPP) por se mostrar inadequada a remover o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, bem como o perigo de fuga, pois o dispositivo eletrónico (pulseira) não impede a fuga apenas sinaliza o incumprimento da medida. Ademais, o arguido, questionado a esse propósito, referiu não ter outra residência além da que partilha com o ofendido, sendo igualmente de afastar tal medida de coação por essa razão. Assim, e ao abrigo do disposto nos art.ºs 191.° a 193.°, 202.°, n.º 1, alínea b) e 204°, alíneas a), b) e c), todos do Código de Processo Penal, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a Termo de Identidade e Residência, já prestado nos autos e a prisão preventiva ( artigos 1º, als. j) e l), 191º a 196º, 200º, nº 1, al. d), 202º, nº 1, als. a) e b) e 204º, als. a), b) e c), todos do Código de Processo Penal.(…)» * b) Verificação dos pressupostos legais para a aplicação da medida de coação de prisão preventiva e se esta é necessária, adequada e proporcional no caso concreto As medidas de coação são «meios processuais de limitação da liberdade pessoal … dos arguidos … e têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias» (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, pág. 285/286, 4.ª ed.). A aplicação de medidas de coação rege-se pelos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade (arts. 191.º a 193.º do Cód. Processo Penal). Determina o primeiro destes princípios, concretização dos princípios de direito internacional de direitos humanos (arts. 3.º, 9.º e 29.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; art. 9.º do Pacto internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; art. 5.º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais) e de princípios constitucionais (arts. 27.º e 28.º da CRP) que só pode ser aplicada medida de coação prevista na lei e com os fins de natureza cautelar legalmente estatuídos. Em suma, a restrição de direitos necessariamente reportada à aplicação de uma medida cautelar terá de encontrar justificação na defesa de outros direitos fundamentais com consagração legal. Já os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade (art. 193.º do Cód. Processo Penal) determinam que as medidas de coação a aplicar em cada caso concreto devem ser necessárias para salvaguardar as exigências cautelares (um dos perigos enunciados no art. 204.º do Cód. Processo Penal), devem ser as adequadas a esse fim e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente serão aplicadas. São pressupostos de aplicação de uma medida de coação: a existência de um processo penal; a verificação de indícios da prática de crime (logo, também de inexistência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal) e a constituição do visado como arguido. A aplicação de qualquer uma das medidas (com exceção do termo de identidade e residência) pressupõe a verificação, cumulativa ou não, dos perigos enunciados no art. 204.º do Cód. Processo Penal, devendo o perigo ser concreto, atual, real e iminente. Prevê o n.º 1/al. a), a necessidade de acautelar a fuga ou perigo de fuga. Uma anterior fuga do arguido constitui um pressuposto já verificado e em função do qual se pode justificar a aplicação de uma medida de coação. Já o perigo de fuga (à imagem dos demais indiciados nas alíneas b) e c)) requer a formulação de um juízo de prognose, sustentado em factos e circunstâncias concretas, em função das quais é de recear seriamente que o arguido esteja a tentar eximir-se à ação do aparelho judicial. A al. b) prevê o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova: acautelam-se, aqui, as condutas que visam perturbar a descoberta da verdade e a aquisição da prova (por ex. que visam atemorizar testemunhas, alterar o sentido dos seus depoimentos, arquitetar com os demais coarguidos explicações para os factos, desfazer-se de provas ou fabricar/colocar elementos de prova) salvaguardando-se o perigo de inquinamento da prova. Abrangem-se, também, as condutas que atentam contra a atividade instrutória (entendida como de recolha, manutenção e produção de prova) independentemente da fase processual em que ocorra (inquérito, instrução ou julgamento). Na al. c) prevê-se o perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa (por que está indiciado) ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas. Uma vez aplicadas, as medidas de coação manter-se-ão enquanto se mantiverem os pressupostos em que a decisão foi exarada, devendo ser revogadas ou substituídas por medida menos gravosa quando se concluir pela atenuação das exigências cautelares (condição rebus sic stantibus). O juízo subjacente à aplicação de medidas de coação assenta numa prognose a respeito do comportamento do arguido ao longo do desenrolar do processo, cautelosamente fundada nas circunstâncias concretas conhecidas no momento da sua aplicação. Mas esse juízo, tratando-se de um juízo de prognose, não equivale a uma certeza absoluta, bastando-se com uma expectativa fundada de suficiência e eficácia das medidas decretadas, no balancear da força indiciária dos factos em investigação e dos riscos a acautelar. A aplicação da medida de coação mais gravosa pressupõe inadequação ou insuficiência das medidas de coação previstas nos artigos anteriores (196.º a 201.º do Cód. Processo Penal) – princípio da subsidiariedade - e o juízo de forte indiciação da prática, nomeadamente, de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos ou de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta (como é o caso). A privação da liberdade tem, no nosso ordenamento jurídico-penal caráter excecional, como decorre do art. 28.º n.º 2, da C.R.P. e do art. 193.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal e, tal privação da liberdade, só poderá ter lugar verificados que sejam, obviamente, os pressupostos legais, nomeadamente quando se mostre necessária e proporcional, isto é, adequada às exigências cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas e quando nenhuma das outras medidas de coação previstas seja apta a salvaguardar os perigos verificados. Foi considerada fortemente indiciada a prática, pelo recorrente, de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, 131.º, 132.º, ns. 1 e 2, al. e), todos do Código Penal. Mais se considerou verificado, em concreto, o perigo de fuga, de continuação da atividade criminosa, de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de perturbação do decurso do inquérito, entendendo-se a medida de coação de prisão preventiva como a única adequada a debelá-los. O recorrente não questiona a forte indiciação da prática de factos que se integram no tipo legal de homicídio qualificado na forma tentada e também este Tribunal não vê qualquer razão para entender que a decisão recorrida tenha, neste vetor, aplicado a medida de coação fora das condições legais. A prova, consubstanciada nas inquirições documentadas nos autos de notícia, de diligências iniciais, de apreensão, de inspeção ao local e na documentação clínica das lesões e intervenções médicas da vítima, corroboram fortemente a indiciação dos factos acima enunciados, os quais integram a prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada p. e p. nos arts. 22.º, ns. 1 e 2, 131.º e 132.º, ns. 1 e 2, al. e) do Código Penal. Também não questiona o recorrente a existência de exigências cautelares, pugnando pela aplicação de medida de coação que as pressupõe. Na verdade, não pode este Tribunal deixar de concordar que se verifica o apontado perigo de fuga, pois que o arguido é de nacionalidade estrangeira, sendo a sua integração ténue (apenas laboral) e enfrenta a séria probabilidade de aplicação de uma pena privativa da liberdade. É, por isso, em juízo de prognose, fundado o risco de fuga. O arguido atuou com a mais elementar desconsideração pela integridade física e a vida do ofendido, quer pelo meio utilizado, quer pelas zonas do corpo atingidas e número de golpes desferidos. Os factos fortemente indiciados demonstram uma personalidade violenta, indiferente a bens jurídicos fundamentais, colocados em causa por motivo irrelevante e quanto a pessoa do seu círculo próximo, pelo que existe risco de repetição da conduta nas mesmas condições – atacando o ofendido com objeto perfurante, em plena via pública, em circunstâncias idóneas a colocar em risco a vida do mesmo. Fundado, por isso, o perigo de continuação da atividade delituosa e de que a mesma, repetindo-se as condições, perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas. E, de igual forma, existe risco para a conservação da prova, pois que o ofendido e o arguido coabitavam, à data dos factos, existindo relações de proximidade entre o arguido e as restantes testemunhas. Sendo certo que já foi proferida acusação e o ofendido ouvido para memória futura, permanece o risco, que cumpre acautelar, de preservação da prova, nomeadamente da fidedignidade dos depoimentos das testemunhas. Por tudo isto, este Tribunal não pode, senão, secundar o juízo do Tribunal a quo no que respeita à verificação dos referidos perigos, por manifestos. E tendo em mente as especificidades do caso concreto, qualquer medida de coação não detentiva da liberdade não é idónea, em nosso entender, a evitar o risco de fuga, a repetição de atos da mesma natureza, a salvaguardar a ordem e tranquilidade públicas e a preservar a prova. Quanto a este aspeto, convêm realçar que o recorrente veio juntar, em recurso, um atestado de residência para comprovar que o ofendido reside em distinta localidade (o que também se tornou evidente da tramitação processual subsequente à decisão). Parece invocar que o termo da coabitação torna a medida adequada a acautelar os perigos que se evidenciam. Tal documento, não obstante, não foi apresentado ao Tribunal recorrido e solicitado, com o apontado fundamento, a alteração da medida aplicada. E, após a decisão cujo recurso agora se aprecia, foram proferidas duas decisões de revisão da medida de coação, mantendo a aplicada, quando já era conhecida a alteração de morada do ofendido. O arguido não reagiu a qualquer uma destas decisões, sequer se pronunciando quanto aos pressupostos da revisão. Mas mesmo que o arguido possa regressar à residência que outrora partilhou com o ofendido e onde este já não se encontra (esbatido o risco de continuação da atividade criminosa), na verdade, a obrigação de permanência na habitação, ainda que com vigilância eletrónica e proibição de contactos, não salvaguarda o risco de fuga e o risco de inquinamento da prova. A OPH pressupõe a capacidade de contenção dos comportamentos, que a atuação do recorrente evidencia se encontrar fortemente comprometida. E a vigilância eletrónica apenas sinalizaria a sua ausência não autorizada, sendo que a miríade de meios de comunicação disponíveis também não permite afirmar (como parece alegar o recorrente) que ficaria impedido de contactar com o ofendido e demais testemunhas. Assim, apenas a medida de coação de prisão preventiva se nos afigura adequada à salvaguarda das prementes exigências cautelares no presente caso, sendo para o efeito necessária e proporcional à pena que se antevê aplicada em sede de julgamento. Desta forma, a decisão recorrida não merece qualquer censura, observando os parâmetros legais e constitucionais que orientam a aplicação da medida de coação mais gravosa. * 4. DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se a decisão do Tribunal a quo que determinou a sujeição do mesmo a prisão preventiva. Custa pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, sem prejuízo do disposto no art. 4.º/1/j) do RCP. Notifique. * Comunique-se de imediato à 1ª instância, com cópia. * Évora, 10 de julho de 2025 Mafalda Sequinho dos Santos Laura Goulart Maurício Manuel Ramos Soares |