Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
22903/21.9T8LSB.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: ACTA DA ASSEMBLEIA GERAL DE CONDÓMINOS
TÍTULO EXECUTIVO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 11/15/2022
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Sumário:
1 – A Lei n.º 8/2022 de 10 de Janeiro entrou em vigor 90 dias após a sua publicação, a 10 de Abril de 2022, ou seja em 11 de Janeiro de 2022, com excepção da alteração ao artigo 1437º do Código Civil, que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
2 – O título executivo que possuía esse valor no momento em que foi instaurada a execução não perde essa força executiva em virtude de lei nova que venha estabelecer novos requisitos de exequibilidade, não podendo esta lei aplicar-se aos processos já pendentes.
3 – Entendimento diverso violaria intoleravelmente o princípio constitucional da protecção da confiança, consagrado no art. 2º da CRP.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
I – RELATÓRIO
Na presente execução sumária, instaurada pelo exequente Condomínio…, contra o executado C…, veio a ser proferido pela Senhora Juíza titular do processo o despacho que vem a ser o recorrido, e que passamos a transcrever:
Na presente execução, verifica-se que o título executivo dado à execução pelo exequente nos termos do artigo 54.º do Código de Processo Civil consiste nas actas da assembleia de condóminos, sendo que as mesmas, como o próprio exequente admite, são omissas quanto ao prazo de pagamento das cotas.
Nos termos do artigo 734.º do Código de Processo Civil, o juiz pode conhecer oficiosamente até à transmissão das questões que poderiam ter determinado o indeferimento liminar do requerimento executivo.
A exequibilidade das actas de condomínio como títulos executivos está prevista no artigo 6.º do Decreto-lei n.º 268/94, de 25 de Outubro.
Nos termos deste artigo, «1 - A ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições a pagar ao condomínio menciona o montante anual a pagar por cada condómino e a data de vencimento das respetivas obrigações.»
Pelo teor do artigo transcrito, constata-se que a data de vencimento da obrigação é um dos requisitos da exequibilidade das actas, o que foi introduzido pela alteração da Lei n.º 8/2022, de 10/01, que se julga ser imediatamente aplicável, por ser de natureza interpretativa.
No caso, as actas são omissas quanto ao vencimento das obrigações, pelo que falta título executivo.
Face ao exposto, decide-se, nos termos do artigo 726.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, indeferir o requerimento executivo.”
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II – O RECURSO
Não se conformando com o decidido, a exequente interpôs então o presente recurso, cuja motivação termina com as seguintes conclusões:
“I -O presente recurso vem interposto do despacho saneador-sentença de 13/6/2022 que indeferiu o requerimento executivo porque considerou que, uma vez as atas de assembleia de condóminos são omissas quanto ao vencimento das obrigações, falta título executivo.
II- Assim, a convicção do Tribunal a quo, baseia-se na alteração da Lei n.º 8/2022, de 10/01 que introduz a data de vencimento da obrigação como um dos requisitos de exequibilidade das atas de assembleia de condóminos.
III- Sucede que as atas de condomínio foram redigidas muito antes da entrada em vigor da nova Lei, ou seja, antes de a data de vencimento da obrigação ser um dos requisitos de exequibilidade das atas.
IV- Ora, como é entendimento pacífico na doutrina, as normas civis só podem ser retroativas no caso de a lei habilitante o permitir, o que, no caso em concreto, não sucede.
V- Ademais, ao julgar imediatamente aplicável a nova Lei, por considerar ser de natureza interpretativa, o Tribunal a quo faz um juízo erróneo, uma vez que, uma lei apenas pode ter natureza interpretativa por determinação do legislador, mediante declaração expressa ou inequívoca feita no texto da lei, o que não acontece.
VI- Pelo que, face ao acima aduzido, deverá o despacho proferido ser revogado e ordenado o prosseguimento da execução.”
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III – DOS FACTOS
A factualidade com relevância para efeitos da apreciação do recurso é a que ficou exposta no relatório inicial, complementado com o conteúdo das conclusões acima transcritas, onde se encontram os elementos processuais necessários.
Acrescentamos ainda, vistos os autos, que:
- O requerimento executivo que deu início aos autos deu entrada a 28 de Setembro de 2021.
- Os títulos executivos apresentados são actas de condomínio respeitantes aos anos de 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021.
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IV – OBJECTO DO RECURSO
Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Nessa tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, a questão colocada ao tribunal de recurso consiste em saber se devem os autos de execução prosseguir os seus trâmites, ao contrário do decidido na decisão impugnada, tal como requerido pelo recorrente, ou se pelo contrário deve considerar-se extinta a instância, por falta de título executivo, como decidiu a primeira instância.
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V – DA DECISÃO SINGULAR
Vistos os autos, afigura-se que é possível conhecer de imediato do recurso interposto.
Diz o art. 652º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil, sobre as funções do relator nos recursos de apelação, que compete ao relator, além do mais, “julgar sumariamente o objeto do recurso, nos termos previstos no artigo 656º”.
E estabelece o art. 656º do CPC, com a epígrafe “decisão liminar do objeto do recurso” que “quando o relator entender que a questão a decidir é simples, designadamente por ter já sido jurisdicionalmente apreciada, de modo uniforme e reiterado, ou que o recurso é manifestamente infundado, profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para as precedentes decisões, de que se juntará cópia.
Ficaram assim previstas pelo legislador situações em que não se justifica a intervenção da conferência, considerando a simplicidade da questão a decidir, apontando-se nomeadamente, a título exemplificativo, os casos em que essa questão já esteja suficientemente esclarecida pela jurisprudência existente, ou por o que vem pedido no recurso se apresentar manifestamente infundado.
Por outras palavras: a lei processual pretende que nas situações em que surja como claro e pacífico que o recurso não pode proceder, ou em que a decisão se apresente notoriamente simples, seja isso dito pelo relator em decisão sumária, sem as delongas que implicaria a intervenção do colectivo no tribunal superior.
Afigura-se que é essa a situação do presente recurso, já que, atento o teor da decisão recorrida, e vistos os factos a considerar e o direito aplicável, o recurso se apresenta como manifestamente procedente.
Assim passaremos a conhecer do recurso, apreciando e decidindo como se segue.
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VI - APRECIANDO E DECIDINDO
Como se pode verificar, a questão que se discute resume-se em saber se os autos de execução devem prosseguir ou se pelo contrário os documentos aqui apresentados como tal (actas das reuniões de condomínio) não revestem agora a força de títulos executivos que lhes foi atribuída pelo exequente, como foi entendimento da primeira instância.
Recorde-se antes do mais que à data em que foi instaurada esta execução, 28 de Setembro de 2021, estava em vigor o artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 268/94 de 25 de Outubro, o qual estabelecia o seguinte:
1 - A acta da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte.
Estamos, portanto, perante documentos a que, por disposição especial, foi atribuída força executiva (cfr. previsto no art.º 703º, n.º 1, alínea d) do CPC), sendo que ficou exarado no preâmbulo do mencionado diploma que era objectivo declarado do legislador “procurar soluções que tornem mais eficaz o regime da propriedade horizontal, facilitando simultaneamente o decorrer das relações entre os condóminos e terceiros”.
Conforme salienta o acórdão do STJ de 14.10.2014, no processo n.º 4852/08.8YYLSB-A.L1.S1, relator Fernandes do Vale, publicado no “site” da dgsi, “pretendeu-se assim dotar o condomínio dum instrumento célere e eficaz para a prossecução e realização das atribuições a seu cargo, dispensando-o do recurso a fastidiosas, longas e desgastantes acções declarativas, em ordem ao cumprimento coercivo das obrigações impendentes sobre condóminos recalcitrantes, oportunistas e relapsos.”
Ou seja, o quadro legal decorrente do disposto no artº. 6º, nº. 1, do DL nº. 268/94, de 25/10, 703º, nº. 1, al. d), do Cód. de Processo Civil e 1424º, nº. 1, do Cód. Civil, atribui força executiva à acta da assembleia de condóminos, sem que o condomínio, de forma a obter o reconhecimento do seu crédito e consequente pagamento deste, tenha que lançar previamente mão da acção declarativa, permitindo, assim, desde logo, a instauração de acção de natureza executiva contra o proprietário da fracção, condómino devedor, relativamente à contribuição deste, na proporção do valor da sua fracção, para as despesas elencadas naquele art. 1424º, do Cód. Civil, ou seja, despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum.
A questão colocada pelo despacho impugnado tem a ver com a sucessão de leis no tempo, visto que, entretanto, já na pendência destes autos, entrou em vigor a Lei n.º 8/2022, de 10/01, a qual deu nova redacção ao citado artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 268/94 de 25 de Outubro, o qual passou a dispor que:
“1 - A ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições a pagar ao condomínio menciona o montante anual a pagar por cada condómino e a data de vencimento das respetivas obrigações.
2 - A ata da reunião da assembleia de condóminos que reúna os requisitos indicados no n.º 1 constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte.
3 - Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante, bem como as sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio.
4 - O administrador deve instaurar ação judicial destinada a cobrar as quantias referidas nos n.os 1 e 3.
5 - A ação judicial referida no número anterior deve ser instaurada no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento do condómino, salvo deliberação em contrário da assembleia de condóminos e desde que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respetivo ano civil..”
Importa neste ponto realçar que a citada Lei n.º 8/2022, de 10 de Janeiro, que alterou o regime da propriedade horizontal, introduzindo alterações ao Código Civil, ao Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de Outubro e ao Código do Notariado, entrou em vigor 90 dias após a sua publicação, ou seja, a 11 de Abril de 2022 (cfr. art. 9º da citada Lei).
Terá a disposição do n.º 1 do artigo 6º supra transcrito, na parte em que veio exigir novos requisitos de exequibilidade para os documentos em causa, aplicação imediata nos processos já pendentes aquando da sua entrada em vigor, retirando mesmo a natureza de títulos executivos aos documentos que, não revestindo todas essas características, fundamentavam as execuções já instauradas? O despacho recorrido entendeu que sim, o recorrente defende que não.
Julgamos que a razão está do lado do recorrente.
Com efeito, examinando a Lei n.º 8/2022 de 10 de Janeiro não é possível deixar de reparar no disposto no seu art. 8º, sob a epígrafe “produção de efeitos”:
“A alteração ao artigo 1437.º do Código Civil é imediatamente aplicável aos processos judiciais em que seja discutida a regularidade da representação do condomínio, devendo ser encetados os procedimentos necessários para que esta seja assegurada pelo respetivo administrador.”
Significa isto que o legislador teve bem presente quais as inovações legislativas que pretendeu aplicar de imediato aos processos pendentes, caso das disposições relativas à representação do condomínio, dispondo expressamente sobre isso. E no restante, obviamente, manteve a obediência aos princípios gerais, segundo os quais a lei só dispõe para o futuro.
Como estatui o artigo 12º n.º 1 do Código Civil, a lei só dispõe para o futuro e ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
Temos assim que a referida Lei n.º 8/2022 de 10 de Janeiro entrou em vigor 90 dias após a sua publicação, a 10 de Abril de 2022, ou seja em 11 de Janeiro de 2022, com excepção da alteração ao artigo 1437º do Código Civil, que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
Sendo assim, não estando colocadas dúvidas sobre a força executiva dos documentos dados à execução no momento em que a execução foi instaurada, não podia o tribunal de primeira instância ter recorrido ao indeferimento da execução com base na ausência de título executivo, apontando a este uma falta superveniente à instauração da execução.
Esta questão, naquilo que nela é crucial, tem sido repetidamente analisada pelo nosso Tribunal Constitucional, sobretudo na sequência da publicação do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que eliminou do elenco dos títulos executivos os “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas deles constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.
Essa alteração, perda da força executiva desses documentos particulares, resulta das disposições conjugadas do artigo 703.º, do novo Código, com o n.º 3 do artigo 6.º da lei que o aprovou. Assim, anteriormente aqueles documentos eram dotados da característica da exequibilidade conferida pela alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º, do anterior Código, posteriormente deixaram de revestir essa natureza, face à sua exclusão do elenco de títulos executivos fixado no art. 703º do novo diploma.
E tem-se afirmado repetidamente que a “perda de valor de título executivo dos documentos particulares que o possuíam à luz do CPC revogado, sem uma disposição transitória que gradue temporalmente essa aplicação é uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição” (cfr. decisão sumária de 3 de Junho de 2015, proferida Processo n.º 517/15, 3ª Secção, Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro, no site do tribunal Constitucional).
Sublinhe-se que assim é em relação aos documentos que perdem o valor de título executivo por força de lei nova mas ainda não basearam uma execução; e muito mais inadmissível será, atento o aludido princípio constitucional, o caso de retirar valor executivo a um documento que na altura da instauração de uma execução já pendente tinha essa natureza à face da lei então em vigor.
O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015 de 14 de Outubro, declarou com força obrigatória geral, “a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho”.
Repare-se que o artigo 6º da Lei n.º 41/201, a que se reporta o aresto, era bem explícito quando referia que as normas do novo CPC apenas se aplicam, no que diz respeito a títulos executivos, a acções executivas que se iniciem após a sua entrada em vigor – pelo que a questão em análise era referente à perda do valor executivo daqueles documentos que à luz da lei anterior tinham esse valor e todavia ainda não tinham sido invocados em juízo para basear uma execução.
A questão que se debate nos presentes autos, que se sintetiza em saber se perde o valor executivo aquele título que o tinha no momento em que teve início a execução, nem sequer era objecto da aludida controvérsia.
Concluímos, em suma, que o título executivo que possuía esse valor no momento em que foi instaurada a execução não perde essa força executiva em virtude de lei nova que venha estabelecer novos requisitos de exequibilidade, não podendo esta lei aplicar-se aos processos pendentes, desde logo por tal ofender intoleravelmente o princípio constitucional da confiança.
Deste modo julgamos procedente o recurso em apreciação, nos termos expostos, devendo processo de execução prosseguir como requerido pelo recorrente, se nada mais obstar a tal.
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VII - DECISÃO
Pelo que fica dito, decide-se julgar procedente o recurso, ao qual se concede provimento, revogando-se a decisão recorrida, e determinando o prosseguimento dos autos.
Sem custas, dado o vencimento e a ausência de oposição (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC),
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Évora, 15 de Novembro de 2022
O Desembargador Relator
José Lúcio