Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2784/21.3T8FAR.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Apesar de se propalar que o objectivo da lei não é o de castigar o culpado ou premiar o inocente, não se pode atribuir a casa de morada de família a quem inferniza a vida do seu companheiro de forma a que a este nada mais resta do que a abandonar passando a residir num apartamento três vezes menor e com uma renda seis vezes superior.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

1. AA intentou contra BB acção com processo especial de atribuição da casa da morada da família.
Alegou, para o efeito e em síntese que, viveu em união de facto com o réu desde .../.../2005 até .../.../2021. Durante o relacionamento tiveram dois filhos, nascidos em .../.../2006 e .../.../2015 e a autora subscreveu um contrato de arrendamento apoiado para habitação com o Município .... A autora devido a violência doméstica viu-se obrigada a sair de casa, estando a residir em casa de um amigo, auferindo um vencimento no valor do ordenado mínimo nacional.
Requereu que seja reconhecida a cessação da união de facto e lhe seja atribuída a utilização da casa de morada de família.
O Réu deduziu oposição, alegando que a Autora saiu de casa por sua iniciativa e de livre vontade, sendo falso que o Réu lhe tenha infligido quaisquer agressões, sendo que ambos são arguidos no processo de violência doméstica a que alude a autora, o qual se encontra na fase de suspensão provisória do processo. Mais referiu que esta é a terceira vez que a autora sai de casa, ficando o Réu sozinho a cuidar dos filhos, e é uma pessoa doente, estando desempregado e a viver do subsidio de desemprego no valor de € 438,00.
Realizada audiência final veio, subsequentemente, a ser proferida sentença que julgou a acção procedente, por provada, e em consequência, decidiu:
“a) Julgar procedente o pedido de dissolução da união de facto entre a Autora AA e o Réu BB, declarando-se dissolvida tal união de facto;
b) Julgar procedente o pedido de atribuição da casa de morada de família sita na Avenida ..., ..., à Autora.”.

2. É desta sentença que recorre o Réu, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:
A. No âmbito dos presentes autos foi proferida, em primeira instância sentença que julgou procedente o pedido de atribuição da casa de morada de família à Autora”, por entender que A. tem mais necessidade de residir na casa de morada de família do que o R..
B. A Sentença a quo baseou-se nas conclusões de que A R. é titular do arrendamento e saiu de casa devido ao ambiente de discussões e agressões para se proteger a ela e aos filhos e de que Réu tem mais capacidade económica que a Autora.
C. O A. não se pode conformar com a motivação e conclusão do tribunal da primeira instância.
D. Resulta provado dos autos, para além da ocorrência da discussão que deu origem à saída de casa por parte da A., que foi a A, que originou e provocou essa mesma discussão.
E. A A. confessa-o na petição inicial ao reconhecer que foi a própria que se dirigiu ao Requerido em tom provocatório (artigo 3.º da petição inicial), iniciando uma discussão, sendo que, conforme reconhece a Requerente “O Requerido nada disse”,
F. O que é confirmado seguinte pelo depoimento do filho de A. e R., CC, gravado na Audiência de Julgamento do dia 28 de Abril de 2022 a partir do minuto 3.22 da gravação do referido depoimento:
Juiz: Assistiu a alguma coisa (…) Quando a discussão começou estava lá?
Estava mesmo lá? Não estava no seu quarto?
Testemunha: Estava lá mas depois fui para o meu quarto.
Juiz:…e depois foi para o seu quarto. Então estava quando se iniciou?
Testemunha: Sim.
Juiz: O que é que aconteceu? Tente lá…se é que se consegue lembrar…quem
começou, se a agressão foi apenas palavras, se passaram para alguma agressão física…
Testemunha: Quem começou foi a minha mãe. Foi a minha mãe que começou….depois o meu pai continuou.
G. Pelo que não basta dar apenas como provado do que naquele dia ocorreu uma
discussão, como faz a sentença a quo; é necessário considerar provado que foi a A. a provocar a discussão, facto que a sentença a quo omite e que é de extrema relevância na medida em que a criação da discussão em causa terá sido apenas um pretexto para a A. sair de casa – como já havia feito anteriormente por mais de uma vez.
H. Do número 3. dos factos provados, deveria constar a seguinte redacção: “Em 9 de julho de 2021, na casa de morada de família, sita na Avenida ..., ... ... ocorreu uma discussão entre A. e R., iniciada pela A., que culminou em agressões mútuas”.
I. Dos factos considerados não provados, Recorrente não se pode conformar com a conclusão da sentença a quo, que entendeu não provada a alegação de que “A Requerente saiu de casa, por sua iniciativa, de livre vontade” – Facto não provado n.º5.
J. Tal decisão foi unicamente tomada com base no testemunho do filho do casal que a sentença decide dar como não provado que a A. saiu de casa de livre vontade: A A. “saiu de casa devido ao ambiente de discussões e agressões para se proteger a ela e aos filhos”.
K. Acontece que nesse mesmo depoimento, o filho do casal declara, para além de que foi a mãe que começou a discussão, que o pai nunca foi violento e que nunca acreditaria que o pai agredisse a mãe, considerando inclusivamente mais plausível que fosse a mãe a agredir o pai.
L. Existe, portanto, uma clara contradição e confusão no depoimento da testemunha – completamente compreensíveis, diga-se, face à posição de fragilidade emocional em que um depoimento deste tipo pode deixar o filho do casal - que não pode deixar de ser tida em conta.
M. Mas, não entende o Recorrente como é que a conclusão clara que a sentença a quo retira deste depoimento é que a saída de casa por parte da Autora não foi de livre vontade, quando se provou que foi a A. criou uma discussão com o R., como muitas vezes já tinha acontecido, e decidiu sair de casa, como já tinha acontecido por mais duas vezes no passado, tendo saído e regressado por livre e espontânea vontade.
N. Deveria também a sentença a quo dar como provado, ao contrário do que fez, o facto que “Foi o Requerido que tratou do processo junto da Câmara Municipal ... – a casa de morada de família, que é de habitação social, foi atribuída ao agregado
familiar, as próprias chaves foram entregues ao Requerido” – Facto não provado n.º 8.
O. Este é um facto que não foi objecto de impugnação nem, de qualquer forma, contraditado, em parte alguma, pela A. e, se a A. não replica/impugna os factos em excepção, têm-se por confessados esses mesmos factos.
P. A sentença considera ainda não provado o facto n.º 10: “O Requerido ficou, sozinho, a cuidar dos dois filhos menores do casal, na casa de morada de família.”
Q. Para além de este facto nunca ter sido contraditado pela A., o que se verifica é que se a A. saiu de casa, parece claro que o R. ficou, efectivamente, sozinho, a cuidar dos dois filhos menores do casal, na casa de morada de família.
R. Ainda como não provado foi dado o facto de o Recorrente ser doente crónico, insulinodependente, que precisa de fazer diariamente os seus tratamentos – facto não provado n.º 11, facto, que também não foi impugnado ou contraditado pela Autora, pelo que deverá ser considerado assente, por provado.
S. Relativamente à situação económica das partes, entende a sentença a quo que os depoimentos do filho do casal e do irmão do R. “demonstram que o Réu tem uma situação económica mais desafogada que a A”.
T. Para chegar a tal desiderato, refere a sentença a quo que o irmão do A. disse “que o seu irmão tem trabalho e não tem dificuldades económicas, o que fez com assertividade e sem que o rigor do seu depoimento tivesse sido beliscado pela relação familiar que tem com o Réu e contribuindo de forma decisiva para a nossa convicção”.
U. Ora, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 640.º do C.P.C., transcreve-se o seguinte excerto do depoimento do irmão do R., DD, gravado na Audiência de Julgamento do dia 17 de Maio de 2022:
minuto 6.13
Advogado: O que é que o seu irmão faz?
Testemunha: O meu irmão é pedreiro.
(…)
Advogado: Sabe se ele está a trabalhar?
Testemunha: Hum…eu acho que está…pelo menos agora no carro ele vinha a dizer…
minuto 9.06
Advogado: Sabe se o seu irmão tem a possibilidade de ir viver para outra casa, se tiver que sair?
Testemunha: Eu penso que sim…eu penso que sim…se ele trabalha… minuto 10.15
Advogado: Sabe se o seu irmão passa necessidades económicas?
Testemunha: Eu…eu não…eu não sei o que responder. Penso que ele não viva muito à larga…
V. Ou seja, o que o depoimento da testemunha em questão demonstra, essencialmente, é dúvidas, incertezas quanto à condição económica do seu irmão, pelo que não se vislumbra como pode deste depoimento a sentença a quo extrair a conclusão de que num depoimento “assertivo e rigoroso” o irmão do Autor referiu que o mesmo não tem dificuldades económicas.
W. Também do depoimento do filho do casal não é possível concluir pelo desafogo económico do Recorrente, como se vê pelo seguinte excerto do seu depoimento:
Minuto 13.45:
Advogado: O seu pai terá outras possibilidades de outras habitações?
Testemunha: Não, não tem nada. Só tem aquela casa.
Minuto 14.00:
Juiz: Olhe diga-me só agora….a mãe tem mais dificuldades económicas. O que é que quer dizer com isto?
Testemunha: que ela recebe o salário mínimo e tem eu, a minha irmã para cuidar e ela está sozinha e ainda tem as coisas dela para pagar, enquanto o meu pai está longe disso.
Juiz: Disse que o seu pai era construtor civil.
Testemunha: Sim
Juiz: Mas falou que o seu pai era construtor mas o seu pai não está desempregado?
CC: Agora está.
Juiz: Agora está?
Testemunha: Que eu saiba sim…
Juiz : Não está a exercer a profissão?
Testemunha: Sim.
X. Portanto, embora ache que o pai tem menos dificuldades económicas que a mãe, não sabe explicar porquê nem apresenta fundamentação para esse facto, sendo que reconhece que o pai está desempregado.
Y. Face ao exposto, não resulta dos depoimentos do filho do casal e do irmão do R. que o R. tenha uma situação mais desafogada que a A..
Z. Também o argumento da sentença de que o R. “adquiriu recentemente um carro, cujo valor não se apurou em concreto” não é suficiente para se retirar qualquer conclusão acerca da vantagem económica do R. sobre a A.
AA. Em sede de declarações de parte, o R. explicou de forma clara e objectiva, o veículo em questão é uma carrinha, com 25 anos de idade (de 1997), que o R. comprou por 1.000,00€, e que muito lhe custou a pagar, que teve mesmo de comprar para o reinício do exercício da sua actividade profissional.
BB. O argumento da compra da carrinha deveria ter sido interpretado de forma inversa pela Sentença a quo: o R. viu-se obrigado, por imperativos profissionais, a comprar a carrinha em questão, com as parcas poupanças que tinha e acabou por se colocar numa situação de ainda maior vulnerabilidade económica.
CC. O R. não aufere qualquer rendimento fixo. Vive dos biscates que consiga fazer e passa muito tempo sem conseguir trabalho, ao passo que a A. trabalha, é efectiva na empresa onde trabalha, e aufere um ordenado mensal na ordem dos 800,00€.
DD. É a própria A. que, nas suas declarações de parte, reconhece e acaba por confessar que o R. não trabalha, na medida em que segundo a própria A., a discussão que originou a separação do casal deu-se porque a A. se dirigiu ao R. dizendo-lhe:
Autora: Levanta-ta daí, uma vez que não trabalhas, e vai lavar a loiça! (minuto 5.38 das declarações de parte da Ré, gravadas na Audiência de Julgamento do dia 19 de Maio de 2022)
Autora: Já que não trabalhas, colabora em casa. Faz qualquer coisa, cuida da roupa! (minuto 6.19 das declarações de parte da Ré, gravadas na Audiência de Julgamento do dia 19 de Maio de 2022)
EE. Ou seja, é a A. que confirma que o R. não trabalhava, ao mesmo tempo que alega que o R. tem avultados rendimentos decorrentes do seu trabalho, o que desde logo gera uma contradição insanável.
FF. Também não se entende a conclusão de que, por existir um cofre em casa do R., tal “é demonstrativo que o Réu lidava com quantias em dinheiro que não devem ser de menosprezar”. O R. explicou de forma clara que lidou, em tempo, com quantias em dinheiro. Não o faz actualmente porque não tem dinheiro.
GG. Nos termos do artigo 990.º do Código de Processo Civil, “Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser- lhe atribuído o direito”.
HH. Da conjugação dos artigos 1793.º e 1105.º, n.º 2 do Código Civil, resulta que os critérios essenciais a que o julgador deverá atender são a necessidade de cada um dos elementos do casal e o interesse dos filhos do casal.
II. Está, portanto, em causa, como bem reconhece a sentença a quo, “a ponderação das necessidades da casa de um dos ex-cônjuges em fruir a casa e os interesses dos filhos, para além de outros factores que sejam considerados relevantes”, sendo que “O tribunal deve atribuir o direito de arrendamento da casa de morada de família ao cônjuge que precise mais dela…”.
JJ. Ficou provado que a A. tem alternativa de morada, na medida em que vive numa casa arrendada, onde paga uma renda de 270,00€ e que o R. não tem qualquer outra alternativa de morada.
KK. A Autora tem trabalho fixo, estável e sem termo, onde aufere cerca de 800€; O R. não tem trabalho nem rendimento fixo, e pode auferir 400€, 500€ ou 600€ por mês, mas também pode ficar um, dois, três meses sem trabalhar e sem auferir qualquer rendimento.
LL. É impossível ao R. ir viver para outra casa e suportar os custos de um arrendamento “normal”, aos preços actuais.
MM. A A. optou por sair de casa, restabeleceu a sua vida, arrendou uma casa e onde paga a renda e onde vive.
NN. O R. viu-se confrontado com o abandono de sua casa por parte da A., continuou a viver na casa de morada de família, com os filhos do casal, onde paga renda, onde continua a residir e a fazer a sua vida normal.
OO. O interesse dos filhos do casal é que pai e mãe tenham uma casa onde os possam receber e com eles viver e neste momento é isso que acontece: os filhos alternam semanalmente a sua vida entre a casa do pai e a casa da mãe.
PP. O cumprimento da decisão a quo implica que o pai passe a ficar sem casa. Decidindo em sentido inverso, garantir-se-ia que ambos os progenitores dispõem de casa e de condições para os filhos.
QQ. Ao decidir da forma que decidiu a sentença a quo não teve em conta o primordial interesse dos filhos, e em particular a estabilidade dos mesmos, na medida em que preconiza uma alteração da morada, quer do pai, quer da mãe, sendo certo que o pai não tem qualquer alternativa de morada onde viver com os filhos.
RR. O interesse dos filhos do casal será acautelado com a manutenção da situação actual: a mãe tem uma casa, arrendada, a um preço muito interessante, onde pode receber os filhos; tal como o pai tem. Se o pai for obrigado a sair de casa, a mãe fica com duas possibilidades de casa para viver e o pai fica sem nenhuma casa para viver.
SS. O argumento final apresentado pela sentença a quo é o de que “não podemos esquecer que a A. é titular do arrendamento”, quando é a própria sentença que, em momento anterior defende que “pouco importa a quem cabe a titularidade do prédio cujo uso e fruição é disputado pelos dois ex-cônjuges”.
TT. Ao decidir da forma que decidiu, a sentença do tribunal a quo violou o artigo 1793.º e 1105.º, n.º 2 do Código Civil, na medida em que contraria os critérios essenciais a que o julgador deverá atender para a decisão final: a necessidade de cada um dos elementos do casal, por um lado, e o interesse dos filhos do casal, por outro.
UU. Deve, assim, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a presente ação totalmente improcedente por não provada, improcedendo o pedido de atribuição de casa de morada de família deduzido pela A..
NESTES TERMOS,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida.
Só assim se decidindo, será CUMPRIDO O DIREITO E FEITA JUSTIÇA.”.

3. Não foram apresentadas contra-alegações.

4. OBJECTO DO RECURSO
Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – as questões cuja apreciação as mesmas convocam, são as seguintes:
4.1. Impugnação da matéria de facto:
- Se o facto vertido no ponto 3 dos “Factos Provados” deve passar a ter a redacção sugerida pelo apelante;
- Se os factos vertidos nos pontos 5), 8) 10 e 11) dos factos “não provados” deveriam transitar para o elenco dos provados.
4.2. Se a casa de morada de família não deve ser atribuída à Autora.

II.FUNDAMENTAÇÃO

5. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida, assinalando-se os que são objecto do dissenso do apelante:
“A) Factos Provados
Com relevância para a decisão, provaram-se os seguintes factos:
1. A Requerente AA começou a viver com o Requerido BB a partir de .../.../2005, partilhando cama, mesa e habitação.
2. Desta relação resultou o nascimento dos filhos de ambos em .../.../2006, CC e em .../.../2015, EE (conforme assentos de nascimentos juntos com a pi).
3. Em 9 de Julho de 2021, na casa de morada de família, sita na Avenida ..., ... ..., ocorreu uma discussão entre A. e R. que culminou em agressões mútuas.
4. Nesse dia a Requerente foi trabalhar, apesar de transtornada e com um hematoma na cabeça (foto de fls 8 verso).
5. Durante as duas semanas seguintes as discussões foram frequentes e em .../.../2021, a A. saiu de casa, pois o ambiente era insustentável para si e para os menores.
6. Foi apresenta queixa crime tendo à A. sido acompanhada pela APAV (declaração da APAV – vítima de crime e cujo Proc. Nº 479/21.... corre termos no DIAP ... de fls. 9).
7. O contrato de habitação apoiado para habitação encontra-se em nome da A. (fls. 9 verso a 12), assim como os contratos de fornecimento de eletricidade (fls. 12 verso -13) e de prestação de serviços – ... (fls. 14).
8. A Requerente não tem casa própria, habitando presentemente num T1 no ..., e declarou suportar a título de renda a quantia de € 270,00.
9. A Requerente é empregada de balcão e aufere vencimento que ronda o ordenado mínimo nacional (recibos de vencimento de fls. 14 verso e 15).
10. O Requerido comprou, recentemente, um veículo automóvel do ano de 1997 e é proprietário de outro veículo.
11. A Requerente, anteriormente, já tinha saído de casa por duas vezes.
12. O processo mencionado em 6. comporta a queixa da A e do R, estão apensados e em fase de suspensão provisória do processo, por acordo de ambas as partes.
13. O Requerido declarou estar desempregado, receber um subsídio de desemprego de 438€ (era, anteriormente, de 571,00€), o que já terminou.
14. O requerido faz biscates na área da construção civil e declarou como rendimento médio mensal € 500,00.
B) Factos não provados
Não se provaram os demais factos alegados, não sendo aqui de considerar a matéria de mera impugnação, conclusiva e de direito, que deverá ser ponderada em sede própria.
Nomeadamente, não se provou que:
1. O Requerido sempre que discutiam dirigia à Requerente os seguintes impropérios: “não vales nada”, “cabra de merda”, “vai prá puta que te pariu” “Tu contribuis muito para a fama de puta que as brasileiras têm aqui”.
2. A A. habita a casa mencionada no ponto 8 por especial favor de uma pessoa amiga podendo a qualquer momento ser forçada a sair.
3. O Requerido em data que a Requerente desconhece passou a viver naquela que era a sua casa de morada de família, com FF, como se de marido e mulher se tratasse.
4. O Requerido possui alternativas à casa de morada de família:
a) A casa do seu pai, sita na Rua ... em ....
b) A casa da sua namorada, FF, sita no ... em ....
5. A Requerente saiu de casa, por sua iniciativa, de livre vontade.
6. O hematoma que a Requerente apresentou foi criado pela Requerente - e nem foi na cozinha: fê-lo depois, propositadamente, na porta de entrada da habitação.
7. O filho do casal, que entretanto e face a toda a gritaria causada pela mãe, voltou do quarto e assistiu a tudo.
8. Foi o Requerido que tratou do processo junto da Câmara Municipal ... – a casa de morada de família, que é de habitação social, foi atribuída ao agregado familiar, as próprias chaves do imóvel foram entregues aos Requerido.
9. O veículo mencionado em 10 importou em € 1.000,00.
10. O Requerido ficou, sozinho, a cuidar dos dois filhos menores do casal, na casa de morada de família.
11. O Requerido é doente crónico, é insulinodependente, precisa de fazer diariamente os seus tratamentos.
12. A Requerente foi informada por GG, no dia 5 do mês de maio de 2022 que teria de abandonar a casa onde vive, sita no ..., até ao final do mês de maio de 2022, pelo que a partir de 1 de junho de 2022 a Requerente não tem onde habitar.

6. Do mérito do recurso
6.1. Impugnação da matéria de facto

Entende o apelante que o ponto 3. dos factos provados, deveria passar a ter a seguinte redacção: “Em 9 de julho de 2021, na casa de morada de família, sita na Avenida ..., ... ... ocorreu uma discussão entre A. e R., iniciada pela A., que culminou em agressões mútuas”.
Para tanto considera que a iniciativa da altercação é confessada pela própria Autora na petição inicial e que o filho de ambos no seu depoimento a corrobora.
Porém, sem razão.
O que é dito na petição inicial é precisamente o inverso: “2º- O Requerido começou uma discussão com a Requerente por causa da louça por lavar. A Requerente chamou o seu filho mais velho para a ajudar, porque a Requerente tinha que ir trabalhar, ao que este lhe respondeu que faria mais tarde e foi-se embora para o quarto.”.
Instar alguém a fazer algo que lhe compete não é iniciar uma discussão…
Rebelar-se contra tal exortação é que é susceptível de desencadear uma discussão!
Ouvimos, também, o depoimento do filho do casal, CC, que referiu residir alternadamente com o pai e com a mãe.
Reconheceu que a mãe saiu de casa por causa do pai que era muito impulsivo e reconheceu que a mãe tinha iniciado a discussão e que havia agredido o pai. Todavia não as presenciou.
De todo o modo não ficou esclarecida a razão pela qual a testemunha entendeu que a mãe é que havia desencadeado a discussão, sendo certo que a incitação a colaborar na lida da casa não se pode configurar como tal.
Admitiu que o pai nalgumas ocasiões insultava a mãe dirigindo-lhe palavrões.
Em suma: cremos que não há fundamento sério para alterar o decidido no que tange a este facto.
Como não o há relativamente aos factos que não resultaram provados.
Desde logo se diga que não foram admitidos por acordo (porque supostamente “não impugnados”) pela Autora os factos vertidos nos pontos 8 (Foi o Requerido que tratou do processo junto da Câmara Municipal ... – a casa de morada de família, que é de habitação social, foi atribuída ao agregado familiar, as próprias chaves foram entregues ao Requerido) 10 (O Requerido ficou, sozinho, a cuidar dos dois filhos menores do casal, na casa de morada de família) 11 (O Requerido é doente crónico, é insulinodependente, precisa de fazer diariamente os seus tratamentos ).
É que tais factos não configuram matéria exceptiva, i.e. não são factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor ( art.º 571º, nº2 do CPC).
Ora, o autor apenas se encontra onerado com a impugnação dos novos factos alegados pelo réu nos casos em que a réplica é admissível ou quando os mesmos configurem matéria exceptiva ( art.º587º, nº1 do CPC).
Efectivamente, o autor não está onerado com a impugnação dos novos factos alegados pelo réu numa simples defesa e, por consequência, a lei não consente sequer a existência de um articulado de resposta à contestação meramente defensiva.
Quem estava onerado com a prova de tais factos era, sim, o Réu.
Porém, não a fez e, consequentemente, como bem se decidiu, nada mais restava do que considerá-los como “não provados”.
Rejeita, igualmente, o apelante que o facto por si alegado (A Requerente saiu de casa, por sua iniciativa, de livre vontade) tenha sido carreado para o rol dos “Não Provados” por, no seu entendimento, tal decisão ter sido unicamente tomada com base no testemunho do filho do casal .
O apelante olvida-se que o motivo da saída da Autora de casa ficou expresso no ponto 5 dos factos provados : “Durante as duas semanas seguintes as discussões foram frequentes e em .../.../2021, a A. saiu de casa, pois o ambiente era insustentável para si e para os menores”.

Não tendo sido impugnado este facto, não seria possível, dada a ostensiva contradição entre ambos, dar o inserto no ponto 8 como provado.

Em conclusão: Mais uma vez se reitera a improcedência da impugnação da matéria de facto que se decide manter incólume.

6.2. Da atribuição da casa de morada de família à Autora

Insurge-se o apelante contra o decidido porque a A. tem alternativa de morada e o Réu não; a Autora tem trabalho fixo, estável e sem termo, onde aufere cerca de 800€ e o Réu não.

Vejamos então.

A atribuição da casa de morada de família objecto de um contrato de arrendamento a um dos membros da dissolvida união de facto está, no caso de falta de acordo, deferida ao Tribunal que para o efeito deverá ter “em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros factores relevantes” ( cfr. art.º 1105º, nº2 do Cód. Civil ex vi art.º 4º da Lei n.º 7/2001, de 11-05, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 23/2010, de 30.8.

Os factos apurados são escassos.

Apesar de ter sido aflorado no decurso da audiência que os filhos residiam em semanas alternadas com o pai e com a mãe, o certo é que nada ficou consignado a esse respeito no quadro fáctico enunciado.

Admitindo que assim é, cremos que a situação dos autos se assemelha à decidida no acórdão desta Relação de 11.3.2021[1]no qual se entendeu que “o factor principal ou mais preponderante para a sua atribuição a um dos unidos de facto será a avaliação da “premência da necessidade” da casa, a do unido de facto que dela mais precisa, supondo que ambos dela necessitam, e nessa avaliação contará, também, o interesse dos filhos, a situação económica de cada um dos unidos de facto, as razões que o levaram a deixar a casa de morada de família, o seu estado de saúde, a sua idade, a capacidade profissional de cada um deles, como outros factores relevantes”.

Nesse aresto entendeu-se justificar-se a atribuição da “casa de morada de família à companheira, nos termos do art.º 1105.º, n.º2, do C. Civil, por ter sido obrigada a abandonar a casa de morada de família, por ser vítima de violência doméstica, e arrendar outra casa, onde vive com os filhos de 20 e 21 anos de idade respetivamente, dela dependentes economicamente, suportando uma renda mensal de € 240,00, ter um vencimento mensal de € 580,00, socorrendo-se da ajuda de familiares e amigos para suportar algumas das suas despesas, e o requerido sobrevive de um rendimento mensal de cerca de € 500,00 por mês e habita sozinho a casa de morada de família, com uma renda social de € 73,00 mensais”.

Considerou-se na sentença recorrida ser de atribuir tal direito à Autora porque “necessita mais da casa do que o R., em face da situação económica que ficou demonstrada”.

Não podemos deixar de acompanhar o assim decidido.

É que quem trabalha e recebe um ordenado declarado não pode ser penalizado.

Ademais, nem se compreende porque é que estando a construção civil a atravessar uma fase próspera, o Réu permanece desempregado, fazendo apenas uns “biscates”.

Além disso, apesar de se propalar que o objectivo da lei não é o de castigar o culpado ou premiar o inocente, não se pode atribuir a casa de morada de família a quem inferniza a vida do seu companheiro de forma a que a este nada mais resta do que a abandonar passando a residir num apartamento três vezes menor [2]e com uma renda seis vezes superior[3] !

Não temos, pois, dúvidas que a Autora logrou provar que necessita mais da casa do que o Réu e, por isso, a decisão recorrida não merece qualquer censura.

III. DECISÃO

Por todo o exposto se acorda em julgar a apelação totalmente improcedente e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Évora, 15 de Dezembro de 2022
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente
________________________________
[1] Relatado pelo Des. Tomé Ramião e no qual a ora relatora interveio como 2ª adjunta.
[2] Efetivamente, resulta do contrato de arrendamento junto aos autos que a casa de morada de família tem tipologia T3.
[3] A renda da casa de morada de família é de € 44,72/mês como também do mesmo documento consta.