Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
247/22.9T8GDL.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
MORA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Data do Acordão: 10/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário:

Tendo ficado apurado que os promitentes vendedores, perante a mora dos promitentes compradores, não converteram a mora em incumprimento definitivo, mormente interpelando-os admonitoriamente, o que lhes permitiria resolver o contrato promessa se não fosse celebrado o contrato definitivo nos termos da interpelação, e fazerem seu o sinal entregue, e, ao invés, efetuaram a venda do imóvel a terceiro, tal quadro fático evidencia a inequívoca vontade de não celebrar o contrato prometido, tornando essa prestação impossível, entrando, assim, em incumprimento definitivo, e, concedendo, desse modo, aos promitentes compradores o direito de receberem em dobro o sinal prestado como previsto no artigo 442.º, n.º 2, segunda parte, do CC.

Decisão Texto Integral: Processo n.º 247/22.9T8GDL.E1 (Apelação)

Tribunal recorrido: TJ Comarca Setúbal, Juízo Local Cível de Grândola

Apelantes: AA e BB

Apelada: CC




Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO

1. DD e mulher, EE intentaram a ação declarativa sob a forma de processo comum contra AA e mulher, BB formulando os seguintes pedidos:

I. Seja reconhecido o incumprimento definitivo por parte dos Réus do contrato promessa de compra e venda celebrado com os Autores em 21-10-2021.

II. Sejam os Réus condenados a pagar aos Autores a importância de €28.000,00 correspondente ao dobro do valor pago por estes a título de sinal e princípio de pagamento do preço do imóvel que lhes havia prometido vender, acrescido de juros moratórios vincendos calculados à taxa anual de 4% desde a data de citação e até efetivo e integral pagamento.

III. Sejam os Réus condenados nas custas e demais encargos com o processo.

Alegam, em síntese, que, em 21-10-2021, celebraram com os Réus um contrato promessa de compra e venda mediante o qual estes prometeram vender e os Autores prometeram comprar, a fração autónoma designada pela letra “B” do prédio urbano sito no Bairro de ..., Lote 18, 1.º andar, Vila 1, de que os Réus eram proprietários, tendo na mesma data pago aos Réus €14.000,00 a título de sinal e princípio de pagamento e acordado que a data da escritura pública se realizaria no prazo de 180 dias.


Mais alegaram que assinaram uma Adenda ao contrato promessa de compra e venda através da qual prorrogaram por mais 30 dias a marcação da escritura pública, nomeadamente até ao dia 21-05-2022 e que, em momento posterior, os Réus venderam a fração autónoma a terceiro adquirente mediante o preço de €125.000,00.

2. Contestaram os Réus alegando, em suma, que a celebração do contrato de compra e venda não se concretizou porque os Autores incumpriram com a respetiva obrigação, uma vez que no período compreendido entre 21-10-2021 e 21-05-2022 os Autores não procederam ao agendamento da outorga da escritura de compra e venda.


Mas alegaram que a obrigação de marcação da data da outorga da escritura de compra e venda que, nos termos convencionados impendia sobre os Autores, estava sujeita a prazo certo e absoluto, a realizar-se impreterivelmente até ao dia 21-05-2022, o que dispensava, por isso, a interpelação dos Réus para o efeito.


Concluem, propugnando pela inexistência de qualquer fundamento legal ou contratual que legitime o pedido dos Autores à restituição do sinal em dobro.

3. Em sede de despacho saneador foi proferida sentença que julgou a ação totalmente procedente condenando os Réus no pedido.

4. Inconformados, apelaram os Réus apresentando as seguintes CONCLUSÕES:

«1. Os presentes autos estribam-se nos pedidos dos Autores, concretamente:

• Seja reconhecido o incumprimento definitivo por parte dos Réus do Contrato Promessa de Compra e Venda celebrado com os Autores em 21/10/2021.

• Sejam os Réus condenados a pagar aos Autores a importância de 28.000,00 € (vinte e oito mil euros) correspondente ao dobro do valor pago por estes a título de sinal e princípio de pagamento do preço do imóvel que lhes havia prometido vender, acrescido de juros moratórios vincendos calculados à taxa anual de 4% desde a data de citação e até efetivo e integral pagamento.

• Sejam os Réus condenados nas custas e demais encargos com o processo.

2. Em face da matéria de facto considerada provada, o Mmo. Tribunal “a quo” proferiu a douta decisãoora posta em crise, de acordo com a qualjulgou a acção procedente.

3. Pelo que foi proferida sentença nos seguintes termos:

- Declarooincumprimento definitivo docontrato-promessacelebrado imputável aos Réus.

- Condeno os Réus a pagar aos Autores a quantia de €28.000,00,

correspondente ao dobro do sinal prestado pelos Autores, acrescidos de juros moratórios vincendos calculados à taxa anual de 4% desde a data de citação e até efectivo e integral pagamento.

- Custas a suportar pelos Réus, por totalmente vencidos na presente demanda, ao abrigo dos n.os 1 a 3 artigo 527.º do Código do Processo Civil, sem prejuízo de apoio judiciário de que beneficiem.

4. Não podem assim os RR., Apelantes concordar com a apreciação da prova levada a cabo discordando, consequentemente dos fundamentos que suportam a douta decisão prolatada, quanto à matéria de facto e quanto à solução de direito.

I - IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

5. Consideram os RR., que o Mmo. Tribunal “a quo” levou a cabo uma desadequada apreciação da prova testemunhal e documental, e com a inerente errada decisão de facto, e no que diz respeito à factualidade que se passa a elencar, e que constitui o objecto da presente impugnação.

• Ressuma provado supra em A.) a C.) que em 21/10/2021 os Autores celebraram com os Réus um contrato-promessa de compra e venda sobre a fração autónoma designada pela letra “B” do prédio urbano sito no Bairro de ..., Lote 18, 1.º andar, Vila 1, de propriedade dos segundos e que na mesma data, os Autores pagaram aos Réus 14.000,00 €, a título de sinal e princípio de pagamento.

• E resulta também provado em D.) e G.) que inicialmente ficou convencionado entre os Autores e os Réus que a escritura pública se realizaria no prazo de 180 dias, tendo a mesma data sido alterada para até dia 21/05/2022 por mútuo acordo reduzido a escrito.

• Acresce ainda como factualmente demonstrado em O.) e P.) que em 01/06/2022 os Réus venderam a terceiro a fração prometida vender aos Autores.

• Ora, esta venda ulterior efetuada pelos Réus a terceiro com o mesmo objecto, traduz a intenção inequívoca destes não quererem celebrar o contrato prometido.

• Com a venda a terceiro da fração prometida vender, os Réus impossibilitaram definitivamente a execução do contrato-promessa de compra e venda celebrado com os Autores.

• Invocam os Réus que o prazo fixado para a celebração do contrato definitivo constitui um prazo absoluto e que os Autores incumpriram definitivamente obrigação que lhes competia ao não agendar a outorga da escritura pública nesse prazo.

• E, efectivamente os factos fixados como provados em J.) e K.) a N) permitem concluir que os Autores não observaram o último prazo acordado para cumprir a sua obrigação de marcação da data para outorga da escritura pública do contrato definitivo.

• Com efeito e nos termos à adenda do contrato que subescreveram, acordaram as partes em prolongar por mais 30 dias o prazo para a realização da escritura, nomeadamente até ao dia 21-05-2022, sendo que a escritura – à qual os Réus não compareceram – apenas foi marcada para o dia 17-06-2022.

• Todavia, os Réus não lograram demonstrar da essencialidade ou fatalidade de tal prazo para os Autores, em concreto, não provaram que esgotado tal prazo a finalidade da obrigação incumprida já não poderia ser alcançada, não sendo impeditivo de tal juízo a prorrogação em que acordaram.

• Perante as circunstâncias do caso, e não tendo ficado expressamente reduzido a escrito, quer no contrato-promessa quer na adenda ao mesmo, as consequências em específico do decurso do prazo para a marcação da data da escritura pública do contrato definitivo, este tem-se como um prazo relativo que não obsta à possibilidade de a obrigação ainda ser prestada e de cumprir a sua finalidade e permite aquilatar que era da vontade das partes que o interesse na outorga do contrato definitivo se mantinha para além da última data convencionada.

• Daqui decorre que, à data da alienação da fração a terceiro, o contrato-promessa mantinha-se em vigor e que os Autores incorriam em simples mora relativamente à obrigação que sobre eles impendia de agendar a outorga do contrato definitivo.

• Recorrendo ao enquadramento jurídico e posição jurisprudencial acima discorridos, dir-se-á que perante o retardamento da prestação pelos Autores, aos Réus competia demonstrar a perda de interesse que a mora lhes provocou ou interpelá-los admonitoriamente para que os mesmos a cumprissem, sob pena de a mora se converter em incumprimento definitivo.

• Ora, não o tendo feito e ao venderem o bem a terceiro, os Réus violaram o contrato-promessa celebrado e de modo definitivo uma vez que a obrigação a prestar se tornou com a venda impossível.

• Procede assim o pedido em I. de reconhecimento do incumprimento definitivo por parte dos Réus do Contrato Promessa de Compra e Venda celebrado com os Autores em 21/10/2021.

6. Em ordem a julgar provados os factos supra descritos o Mmo. Tribunal “a quo”

deu exclusiva importância ao Contrato Promessa de Compra e Venda e a Adenda ao Contrato Promessa de Compra e Venda.

7. Preterido a demais produção de prova arrolada pelas partes, concretamente a que seria obtida pelo depoimento das testemunhas arroladas.

8. A testemunha FF, arrolada pelos Réus, por ser a agente imobiliária que intermediou o negócio de compra e venda do imóvel prometido vender/adquirir, foi a pessoa e ponto de contacto único entre promitentes vendedores e promitentes compradores e que apresentou e disponibilizou ás partes, quer o contrato promessa compra e venda, quer a adenda datada de 19 de abril de 2022.

9. Testemunha esta arrolada pelos RR., que por conhecer e intermediar o negócio prometido, conhecia a vontade de AA., e RR., concretamente da essencialidade (subjectiva) do termo fixado a 21 de maio de 2022.

10. Assim, e no que diz respeito à matéria factual, o Mm. Tribunal “a quo” preterindo a produção da prova testemunhal, incorreu na inerente errada decisão de facto, e consequentemente na aplicação do direito, o que padece ser corrigido.

11. Concretamente a inquirição da testemunha FF.

12. A propugnada alteração da decisão sobre a matéria de facto implicaria, como

consequência directa e necessária e salvo o devido respeito por diverso entendimento, a improcedência da presente acção.»

5. Na foi apresentada resposta ao recurso.


II- FUNDAMENTAÇÃO

A. Objeto do Recurso


Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:


- Impugnação da decisão de facto


- Do mérito da sentença recorrida


B- De Facto


A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto com base na qual foi proferida a decisão recorrida:


«Embora nos presentes autos existam factos que se encontrariam dependentes da prova a produzir, mostram-se absolutamente provada, quer pelos documentos com força probatória plena, quer porque relativamente a estes a partes não divergem a seguinte factualidade:

A. No dia 21/10/2021 os Autores e os Réus celebraram um acordo escrito particular denominado de Contrato Promessa de Compra e Venda no qual os primeiros, na qualidade de promitentes compradores, declaram prometer comprar e os segundos, na qualidade de promitentes vendedores, declaram prometer vender, livre de ónus e encargos, a fração autónoma designada pela letra “B” do prédio urbano sito no Bairro de ..., Lote 18, 1.º andar, na vila e concelho de Vila 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila 1 sob o n.º 440/19860411-B da freguesia de Vila 1 e inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias de Vila 1 sob o artigo 3681 -B.

B. No documento referido em A. os Autores e os Réus estipularam que o preço da compra e venda seria de 140.00,00 € a pagar da seguinte forma:

- a) 14.000,00 € na data das assinaturas do presente contrato, a título de sinal e princípio de pagamento que os promitentes vendedores declaram ter recebido por transferência bancária (IBAN ...) ou cheque e que após boa cobrança do mesmo, servirá o presente contrato de respectiva quitação.

b) O remanescente do preço, no montante de 126,000,00 € (cento e vinte e seis mil euros), será pago pelos PROMITENTES COMPRADORES no acto da escritura notarial de compra e venda/Procedimento Casa Pronta, através de cheque visado ou cheque bancário.

C. Na mesma data referida em A. os Autores pagaram a quantia de 14.000,00 € (catorze mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento, mediante transferência bancária para a conta dos Réus.

D. Consta da Cláusula Quarta do acordo mencionado em A. que [o]s PROMITENTES COMPRADORES ficam responsáveis pela marcação da escritura de compra e venda/procedimento Casa Pronta, que fica desde já acordado realizar-se em Vila 1 e os PROMITENTES COMPRADORES terá que avisar os PROMITENTES VENDEDORES, através de carta registada com pelo menos 10 (dez) dias úteis de antecedência, do local, data e hora de realização da mesma, a qual se realizará no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias a contar da data de assinatura do presente contrato.

E. E na Cláusula Quinta do mesmo acordo identificado em A. que 1- Salvo por motivos não imputáveis às partes, o incumprimento de qualquer das obrigações assumidas no presente contrato pelos PROMITENTES VENDEDORES implicará a restituição do sinal, em dobro, aos PROMITENTES COMPRADORES. 2- Salvo por motivos não imputáveis às partes, no caso de incumprimento de qualquer das obrigações assumidas no presente contrato pelos PROMITENTES COMPRADORES, os PROMITENTES VENDEDORES têm o direito de fazer sua a quantia entregue por aqueles a título de sinal e princípio de pagamento do preço (…).

F. De acordo com o n.º 2 da Cláusula Nona do referido acordo descrito em A. [a] presente venda do imóvel supra identificado na cláusula primeira, foi objeto de mediação imobiliária pela sociedade comercial Estrategisboço – Mediação Imobiliária Unipessoal, Lda. – Licença n.º 13687 AMI.

G. Em 19/04/2022 os Autores e os Réus assinaram um documento escrito particular denominado de Adenda ao Contrato Promessa de Compra e Venda no qual estabelecem como Cláusula Segunda e Cláusula Terceira respetivamente que [o] referido contrato previa a marcação de escritura de compra e venda/procedimento Casa Pronta, a realizar-se em Vila 1 com um prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias a contar da data da assinatura do contrato promessa de compra e venda e que [e]entretanto e por motivos alheios as partes, não foi possível efetuar a escritura pública até ao prazo estipulado, pelo que, é acordado entre o PRIMEIRO OUTORGANTE e o SEGUNDO OUTORGANTE prolongar mais de 30 dias para a realização da mesma, nomeadamente até 21-05-2022.

H. Em 25/11/2021, GG representada por EE, requereu junto do Sr. Presidente da Câmara de Vila 1 ,a emissão de Certidão em como a edificação está dispensada de licença de utilização por ser anterior a 1963, ano de entrada em vigor do Regulamento de Edificação Urbana da Câmara Municipal de Vila 1.

I. Em 20/05/2022 foi emitido o alvará de autorização de utilização n.º 46/22, em nome de GG, contribuinte ..., que titula a autorização de utilização do edifício do implantado no prédio denominado “...”, sito no ..., em Vila 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila 1 sob o n.º 5087/20091222 e inscrito na matriz rústica sob o artigo 15 da secção C, e inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º 3539 (…).

J. Os Autores agendaram a outorga da escritura pública de compra e venda para as 11:00 do dia 17/06/2022 no Cartório Notarial de Vila 1.

K. As Autores remeteram aos Réus uma carta registada com aviso de receção com o seguinte teor:

- “EXMOS SENHORES AA Dª. BBRua 1 Nº 5, R/C DTº. ... Cidade 2 Exmos Senhores, ASSUNTO: DD E MULHER, Dª. EE ESCRITURA DE COMPRA E VENDA Com os meus respeitosos cumprimentos, dirijo-me a V. Exªs. na qualidade de Advogado e em representação do Sr. DD e mulher, EE, residentes em ..., Vila 1, que convosco outorgaram um Contrato Promessa de Compra e Venda referente à fração autónoma designada pela letra “B” do prédio urbano sito no Bairro de ..., Lote 18, 1º., andar na União das Freguesias de Vila 1, concelho de Vila 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila 1 sob o nº 440/19860411-B da freguesia de Vila 1 e inscrito na matriz predial urbana da mencionada União de Freguesias sob o artigo 3681-B. Nessa qualidade, venho notificá-los que a escritura de Compra e Venda da referida fração autónoma se encontra agendada para as 11 (onze) horas do próximo dia 17 de maio, no Cartório Notarial do Dr. HH, em Vila 1, onde V. Exªs. deverão entregar toda a documentação de vossa responsabilidade para instrução da mencionada escritura até ao próximo dia 14 de junho de 2022. Reiterando a apresentação dos meus respeitosos cumprimentos, creiam-me ao dispor e MUITO ATENTAMENTE.

L. Os Réus rececionaram a carta identificada em K. em 14/06/2022.

M. No dia 17/06/2022, pelas 11h00, apenas a parte compradora compareceu.

N. Os Réus não compareceram no dia e horas agendados e supra referidos em J., K. e L. para a outorga da escritura pública do contrato de compra e venda da fração identificada em A..

O. Por escritura pública denominada de Compra e Venda outorgada em 01/06/2022, os Réus venderam a II, casada em regime de comunhão de adquiridos com JJ, a fração autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao primeiro andar – habitação e garagem, parte integrante do prédio urbano em propriedade horizontal, sito em Bairro de ..., União das Freguesias de Vila 1, concelho de Vila 1, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 3681 -B, com o valor patrimonial referente à fração de € 81.067.38, descrito na competente conservatória do registo predial sob o número quatrocentos e quarenta, da freguesia de Vila 1, submetido ao regime da propriedade horizontal pela apresentação um, de onze de maio de mil novecentos e noventa.

P. Mediante apresentação n.º 244 de 07/06/2022 mostra-se descrito a favor de II a aquisição por compra da fração identificada em A. e O..

Q. A compra e venda referida em O.) e P.) foi mediada pela sociedade comercial Estrategisboço – Mediação Imobiliária Unipessoal, Lda.

Encontra-se controvertida a seguinte factualidade:

1. Ficou desde sempre acordado e reciprocamente aceite entre Autores e Réus que os Promitentes Compradores só poderiam proceder à aquisição da fração autónoma identificada em A., quando procedessem à venda do imóvel de que a Autora era cotitular, inscrito quanto à sua parte urbana na matriz predial da União das Freguesias de Vila 1 sob o n.º 3539.

2. E cuja escritura de compra e venda só poderia ser outorgada quando os Autores obtivessem junto da Câmara Municipal de Vila 1 a competente licença de utilização ou Certidão dispensando e emissão de tal licença quanto ao mencionado artigo 3539.

3. Com a finalidade de reagendarem a outorga da escritura de compra e venda por mais cerca de 15 dias, tentaram os Autores, por diversas vezes, contactar telefonicamente os Réus.

4. O que não conseguiram, porquanto os mesmos não lhes atenderam o telefone, nem lhes retribuíram as diversas tentativas de contacto que fizeram.

5. Contacto que os Autores igualmente não conseguiram através da sociedade comercial Estrategisboço – Mediação Imobiliária Unipessoal, Lda., que havia mediado o negócio.

6. Onde foram informados pela Consultora Imobiliária, D.ª FF, que os Réus, “tinham levado toda a documentação referente ao imóvel e que também não lhes atendia o telefone”.


A restante matéria alegada em sede de petição inicial considerou-se desprovida de relevância para a decisão da causa.»

R. s R

C. Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso


1. Impugnação da decisão de facto


Os Apelantes invocam no seu recurso que pretendem impugnar a matéria de facto alegando que o tribunal a quo «levou a cabo uma desadequada apreciação da prova testemunhal e documental, e com a inerente errada decisão de facto, e no que diz respeito à factualidade que se passa a elencar, e que constitui o objecto da presente impugnação» (conclusão 5), reproduzindo de seguida o que consta da fundamentação da sentença recorrida na parte em que aprecia de mérito. Ou seja, o teor dos vários pontos da Conclusão 5 foi extratado dessa parte da sentença como resulta de uma leitura comparativa dos dois textos (embora a reprodução não tenha sido posta entre aspas).


De seguida referem que foi preterida a apreciação da prova testemunhal arrolada pelos mesmos, embora a restrinjam à não audição da testemunha FF, dizendo que a mesma por ter sido a intermediária do negócio «conhecia a vontade dos AA. e RR., concretamente a essencialidade (subjectiva) do termo fixado a 21 de maio de 2002» (Conclusão 9), para concluírem que a preterição da audição da prova testemunhal determinou que o tribunal a quo tivesse incorrido «na inerente errada decisão de facto e consequentemente na aplicação do direito, o que padece de ser corrigido», acrescentando «Concretamente a inquirição da testemunha FF», concluindo que a «propugnada alteração da decisão sobre a matéria de facto implicaria, como consequência directa e necessária (…) a improcedência da presente ação» (Conclusões 11 a 12).


Analisando a alegação, não nos suscita dúvida que os Apelantes manifestam que pretendem impugnar a decisão de facto por existência de erro ao nível do julgamento de facto e, simultaneamente, pretendem que a prova testemunhal arrolada, sobretudo a referida testemunha, seja ouvida, o que coloca em causa a pertinência da prolação da sentença em sede de saneador sentença.


São duas questões distintas, na verdade.


Começando pela questão da impugnação da decisão de facto, a mesma só poderia ser admitida se os recorrentes tivessem cumprindo os ónus que sobre si impendem nessa qualidade e que se encontram previstos no artigo 640.º, do CPC.


Adiantando-se, desde já, que tais ónus não foram acatados.


Efetivamente, os requisitos da impugnação da decisão de facto correspondem a ónus a cargo do recorrente impugnante, determinando a falta de acatamento dos mesmos a rejeição da impugnação na parte afetada, sendo que a jurisprudência tem vindo a proclamar em diversos arestos que não é admissível o convite ao aperfeiçoamento quanto ao cumprimento destes ónus.1


Assim, decorre deste normativo que o ónus de impugnação da matéria de facto julgada exige que, cumulativamente, o recorrente indique os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios que constem dos autos ou do registo ou gravação nele realizada (se for o caso), que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, e a decisão que, o seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões impugnadas, e, finalmente, a indicação das exatas passagens dos depoimentos que os integrem que determinariam decisão diversa da tomada em primeira, também se for o caso (artigo 640.º, n.º 1, alíneas a, b), e c) , e n.º 2, do CPC).


Ora, os recorrentes não invocam quais os concretos pontos que julgam incorretamente julgados – limitando-se a transcrever a fundamentação jurídica da sentença onde são mencionados alguns dos factos provados – sem que, na verdade, sequer digam em que termos os pretendem impugnar.


Também não indicam os meios de prova em que se baseiam para essa impugnação, pois os factos que constam das alíneas referidas na fundamentação jurídica da sentença (alíneas A) a C), D) e G), O) e P), J), K) a N) dos factos provados) foram dados como provados com base em documentos, mais concretamente, o contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes, o documento particular assinado pelas partes a alterar o prazo para a celebração da escritura, a escritura pública de compra e venda do imóvel a terceiro, a notificação dos ora Apelantes para comparecerem na escritura de compra e venda por si marcada. Apenas a alínea K) se reporta ao facto referente à não comparência dos Réus no dia marcada para a escritura pública, facto esse que os próprios não contestam. Como também não impugnaram os documentos acima referidos até porque nalguns até tiveram intervenção.


Portanto, não se percebe em que meios de prova se baseiam os recorrentes para impugnar a factualidade que consta das referida alíneas da decisão de facto.


Sendo que, como os próprios recorrentes invocam, a testemunha que pretendem que seja ouvida, não iria depor sobre os factos daquelas alíneas, mas sobre outra questão que é a da essencialidade do prazo para os Réus. Situação diversa, pois.


Também não referem a decisão (de facto) que deveria ter sido proferida, como impõe a alínea c), do n.º 1, do artigo 640.º do CPC.


Pelo que a conclusão que se impõe é a falta total de cumprimentos dos ónus a cargo dos recorrentes que impugnem a decisão de facto, o que determina a rejeição da impugnação, o que aqui se declara para todos os efeitos legais.


Vejamos, agora, a segunda vertente da alegação dos recorrentes e que se relaciona com a falta de requisitos que permitem ao tribunal de 1.ª instância proferir uma sentença em sede de saneador, ou seja, sem que os autos tivessem prosseguido para a fase da audiência de discussão e julgamento.


Decorre do artigo 591.º do CPC (audiência prévia onde é cumprido o princípio do contraditório no que diz respeito à audição e pronúncia das partes sobre as questões de facto e de direito quando o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa – cfr. alínea b) do n.º 1 do preceito) conjugado com o artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma legal, que no despacho saneador o juiz pode conhecer do mérito da causa, sempre que o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas.


A jurisprudência dominante tem interpretado este preceito no sentido que sempre que a solução jurídica da causa, de acordo com as diversas soluções plausíveis, dependa de factos que ainda não se encontram assentes em face das regas de direito probatório material, deve o juiz abster-se de proferir uma sentença de mérito em sede de despacho saneador.


No caso, da análise que fazemos da causa de pedir, dos pedidos e dos documentos juntos aos autos, o estado dos autos naquela fase processual já permitia o conhecimento de mérito tal como consta fundamentadamente da sentença.


Efetivamente, a questão em apreciação consistia em apurar se os Réus tinham entrado em incumprimento definitivo do contrato promessa e esse facto está documentado com a escritura de compra e venda do imóvel prometido vender aos Autores.


A questão que os ora Apelantes pretendem ver discutida é se foram os Autores quem incumpriu definitivamente o contrato promessa antes dos Réus, louvando-se no facto dos Autores não terem marcado a escritura definitiva durante o prazo contratualizado para esse efeito, invocando que, para eles Réus, era um prazo essencial, e que, por isso, os Autores entraram em incumprimento definitivo, o que pretendiam demonstrar através do depoimento da referida prova testemunhal.


Só que o contrato promessa é regido por regras próprias (artigos 410.º a 413.º, 442.º a 444.º e 830.º do CC), donde resultam que mesmo tendo sido aposto um prazo fixo para a celebração do contrato prometido, a mora não faz incorrer automaticamente em incumprimento definitivo o promitente que não cumpriu o prazo.


Sendo que no contrato promessa e na adenda posterior a prorrogar o prazo de celebração do contrato, nada é dito sobre a natureza essencial da fixação do prazo inicial ou prorrogado. E a prorrogação tout court evidencia que as partes ao fixarem um prazo certo para cumprimento não arredaram as regras gerais da mora e do incumprimento definitivo. Aliás, o contrato promessa não estabeleceu um regime específico para a conversão da mora em incumprimento definitivo, pelo que lhe são aplicáveis as regras gerais.


Portanto, não estando controvertida a matéria referente à não celebração do contrato prometido no tempo aprazado e tendo os Réus, subsequentemente, vendido a terceiro o imóvel, o testemunho invocado pelos ora Apelantes é despiciendo para a resolução do caso concreto, pelo que o seguimento dos autos para julgamento seria um ato inútil e, como tal, proibido por lei (artigo 130.º do CPC).


Nestes termos também improcede esta segunda vertente da questão suscitada pelos Apelantes.


2. Do mérito da sentença recorrida


A magna questão que os Apelantes colocam à apreciação desta instância consiste em saber se os Autores entraram em incumprimento definitivo, afastando, assim, o direito de reclamarem dos Réus o pagamento do dobro do sinal.


Como já acima se mencionou, o argumento principal reside no facto de ter sido aposto no contrato promessa celebrado entre as partes, um prazo fixo, que foi uma vez prorrogado por vontade de ambas, sendo o dies ad quem desse prazo o dia 21-05-2022, tendo os promitentes compradores marcado a escritura pública de compra e venda para data posterior ao fim do prazo.


Vejamos, então.


Tendo sido prestado sinal, como foi no caso, o n.º 2 do artigo 442.º do CC consagra as regas sobre a perda e/ou devolução do sinal em dobro, ao prescrever «Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe é imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou.»


Como decorre da própria literalidade do preceito, o mesmo exige o incumprimento da obrigação de prestar (artigo 801.º do CC), o que é diverso da situação de retardamento do cumprimento da prestação que determina tão só que o faltoso incorra em mora (artigo 804.º do CC).


Apenas o incumprimento definitivo de um dos promitentes, e não o mero retardamento da prestação decorrente da mora, confere o direito à contraparte à resolução do contrato e, consequentemente, acionar o disposto no n.º 2 do artigo 442.º do CC.


Sendo pacificamente aceite em termos doutrinários e jurisprudenciais que a mora pode ser convertida em incumprimento definitivo desde que se verifique algum dos seguintes pressupostos: se em consequência da mora, a realização do contrato definitivo se tornar impossível (artigo 801.º. n.º 1, do CC); se, em consequência da mora do promitente faltoso, o promitente fiel perder o interesse na celebração do contrato prometido (artigo 801.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC); se, na sequência da mora, o promitente fiel interpretar o promitente faltoso, fixando-lhe um prazo razoável para a celebração do contrato prometido, e este não o outorgar (artigo 801.º, n.º 1, 2.ª parte, do CC); e, finalmente, se o promitente faltoso declarar, expressa ou tacitamente (de modo claro, inequívoco e perentório), que não quer celebrar o contrato prometido (situação que tem sido enquadrada, ainda que por via extensiva, no artigo 808.º, n.º 1, do CC).


A aposição de um prazo fixo para a marcação da escritura pública de compra e venda (fique essa obrigação a cargo do promitente comprador ou do promitente vendedor) significa que, caso a prestação não ocorra nesse prazo, sendo ainda possível, a parte entra numa situação de mora (artigo 804.º, n.º 2, do CC).


O que decorre, como se refere no Acórdão do STJ de 24-05-2022,2 do «artigo 805º, nº 2, alínea a) do CCivil relacionando este trecho com o nº 1 do mesmo artigo, na medida em que acaba por definir uma delimitação negativa da “regra” estabelecida nesse n.º 1 da necessidade de interpelação para efeito de desencadear a mora.»


Poderá haver situações de prazo certo (dito absoluto por oposição a relativo) por via do qual as partes fixam um prazo de vencimento no próprio negócio constitutivo ou em ulterior acordo, ou seja, pelo decurso do mesmo o credor deixa de ter interesse no negócio.3


Nesses casos, o prazo acordado e estipulado é um termo final, em regra, improrrogável. De outro modo, como acentua o acórdão do STJ acima referido, «o seu decurso gera uma simples mora que terá de ser convertida em incumprimento (definitivo).», lendo-se consequentemente no seu sumário:


«I – Incorrem em mora os contraentes que estando obrigado pelo contrato promessa a marcarem a escritura do contrato definitivo dentro de um prazo certo o não fazem.


II – A conversão da mora em incumprimento definitivo realiza-se através de interpelação admonitória através da qual o credor comunica ao devedor a intimação para o cumprimento da obrigação de marcar a escritura; fixa um termo perentório para o efeito e adverte para a cominação de se considerar definitivamente incumprida a obrigação de marcação da escritura se não for observada dentro daquele prazo, sendo nos termos do art. 808.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Civil que se aprecia a razoabilidade do prazo fixado;».


No caso dos autos, consta do contrato promessa de compra e venda que os outorgantes acordarem que a escritura seria realizada no prazo de 180 dias a contar da data da assinatura do contrato, ou seja, foi fixado um prazo certo para a sua realização, dado que era possível conhecer o seu início e fim.


Porém, nada ficou a constar do contrato que, decorrido o prazo ali fixado, a parte promitente vendedora perdia interesse na celebração do negócio e a obrigação do promitente comprador se tinha por definitivamente incumprida. E de facto não era essa a vontade das partes, pois acordaram posteriormente na prorrogação do prazo inicial, sem nada mais dizerem, o que indicia que o prazo não era absoluto (fatal, na terminologia da sentença), ou seja, que, em caso de mora dos promitentes compradores, que tinham a obrigação de marcar a escritura, os promitentes vendedores perdiam interesse no negócio, entrando, assim, os promitentes compradores automaticamente em incumprimento definitivo.


Tendo ficado apurado que os promitentes vendedores, perante a mora dos promitentes compradores, não converteram a mora em incumprimento definitivo, mormente interpelando-os admonitoriamente, o que lhes permitiria resolver o contrato promessa se não fosse celebrado o contrato definitivo nos termos da interpelação, e fazerem seu o sinal entregue, e, ao invés, efetuaram a venda do imóvel a terceiro, tal quadro fático evidencia a inequívoca vontade de não celebrar o contrato prometido, tornando essa prestação impossível, entrando, assim, em incumprimento definitivo, e concedendo, desse modo, aos promitentes compradores o direito de receberem em dobro o sinal prestado como previsto no artigo 442.º, n.º 2, segunda parte, do CC.


Consequentemente, nenhuma censura merece a sentença, improcedendo o recurso.


Dado o decaimento, as custas ficam a cargo dos Apelantes (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.


III- DECISÃO


Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.


Custas nos termos sobreditos.


Évora, 30-10-2025


Maria Adelaide Domingos (Relatora)


José António Moita (1.º Adjunto)


Manuel Bargado (2.º Adjunto)

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1. Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 14-02-2023, proc. n.º 1680/19.9T8BGC.G1.S1 (Jorge Dias); Ac. STJ, de 02-02-2022, proc. n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1 (Fernando Samões), em www.dgdi.pt↩︎

2. Proferido no proc. n.º 3025/20.6T8FAR.E1.S1 (Manuel Capelo), em www.dgsi.pt.↩︎

3. Cfr. Ac. STJ, de 07-02-2008, proc. n.º 07A4437 (Paulo Sá), em www.dgsi.pt↩︎