Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | FRANCISCO MATOS | ||
Descritores: | INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS | ||
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Data do Acordão: | 01/28/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | As alterações às leis eleitorais consequentes à revogação do instituto da interdição não obstam a que a sentença de acompanhamento determine o impedimento do exercício do direito de voto pelo acompanhado. (Sumário do Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 690/19.0T8SSB.E1 Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório 1. O Ministério Publico instaurou ação especial de acompanhamento de maiores em benefício de (…), nascido a 27/2/1957, residente na Rua (…), lote (…), Quinta do Conde. Alegou que o requerido sofre de alcoolismo crónico, com alterações graves e permanentes da memória e deterioração cognitiva que o impossibilitam de exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos e de cumprir os seus deveres. Requereu a medida de representação geral do requerido e indicou (…), irmã do requerido, para exercer as funções de acompanhante. Verificada a impossibilidade do requerido receber a citação foi-lhe nomeado defensor oficioso, o qual não apresentou contestação.
2. Procedeu-se à audição pessoal do requerido e após a produção das provas julgadas convenientes seguiu-se decisão em cujo dispositivo designadamente se consignou: “Pelo exposto, declaro: a) - O acompanhamento da maior, (…), por sua irmã, (…), residente no Bairro da (…), Ruas de (…), nº 24, 7005-395 Évora; b) - Atribuir, à acompanhante poderes de representação geral do beneficiário; c-) Bem como poderes de representação especial, concretamente os de, em substituição do beneficiário, realizar os atos necessários à gestão dos bens do mesmo, proceder à abertura de contas bancárias em nome do beneficiário, receber a pensão do beneficiário, por forma a poder custear as despesas diárias da mesma, visando o bem-estar de (…), e exclusivamente para este fim; c)- Declarar que a medida de acompanhamento se tornou conveniente desde 01 de novembro de 2019 (artº 900º, nº 1, do CPC); d-) - Que nos termos do art. 147º do C.C., o beneficiário não pode: - Casar ou constituir situações de união de facto, - Procriar, - Perfilhar, - Adotar, - Cuidar e educar filhos biológicos ou adotados, - Votar, - Se deslocar no país ou no estrangeiro sozinho, - Fixar domicílio e residência, - Assinar documentos oficiais. e) – Que, para os efeitos do disposto no artº 2189º, al. b) do C.C., o beneficiário é incapaz de testar; f) – Que, para os efeitos do disposto no artº 1601º, al. b) do C.C., a presente decisão de declaração de situação de acompanhamento, constitui impedimento dirimente absoluto; g) – Que, para os efeitos do artº 4º, nº 1, do DL nº 272/2001, de 13/10, a acompanhada não pode aceitar ou rejeitar liberalidades, a seu favor; i)- Que a situação de acompanhamento ora declarada, não faculta o exercício direto de direitos pessoais, nos termos do artº 5º, nº 3, da Lei de Saúde Mental; j) - Que, para os efeitos do artº 13º da Lei Saúde Mental, ocorre restrição de direitos pessoais, com a presente declaração da situação de acompanhamento, pelo que o acompanhante tem legitimidade para requerer as providências previstas no referido diploma legal; l) - Estabelecer o prazo de cinco anos para a revisão oficiosa da medida de acompanhamento (artº 155º do C.C.); m) - Que transitado em julgado, comunique, nos termos do disposto nos arts. 1920º-B do C.C., aplicável ex vi artº 902º, nº 2 e 3, do C.P.C., dispensando o tribunal a publicidade da sentença; n) - Declarar que não existe testamento vital e procuração para cuidados de saúde relativamente ao beneficiário (artº 900º, nº 3, do CPC); o) - Dispensar a constituição de conselho de família; p) - sem custas (artº 4º, nº 1, al. l), do RCP, na redação da Lei nº 41/2018, de 14/08); q) - Fixar, à presente causa, o valor de € 30.000,01 (artº 303º, nº 1, do CPC); r) – Que se proceda ao registe e notificação da presente sentença.”
3. O Ministério Público recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso: 2. O direito ao sufrágio consubstancia um direito fundamental e universal, atribuído a todos os cidadãos maiores de dezoito anos. 3. A Lei Orgânica nº 3/2018, de 17 de agosto, conferiu nova redação aos artigos relativos a incapacidades eleitorais ativas constantes das leis eleitorais do Presidente da República, da Assembleia da República, dos Órgãos das Autarquias Locais e do regime do referendo local, estabelecendo não gozarem de capacidade eleitoral ativa, apenas, «os que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos» e «os cidadãos que estejam privados de direitos políticos, por decisão judicial transitada em julgado.» 4. Mais revogou a citada lei as alíneas que previam não gozarem de capacidade eleitoral os interditos por sentença com trânsito em julgado. 5. Pretendeu, pois, o legislador não operasse a restrição da capacidade eleitoral decorrente de sentença proferida no âmbito de processo de acompanhamento de maior. 6. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência operou uma mudança de paradigma, através da qual se reconhece a dignidade inerente a todas as pessoas com deficiência, bem como, se reconhecem as pessoas com deficiência como sujeitos do direito. 7. A Convenção visa promover as condições e os meios necessários para garantir o acesso e exercício dos direitos humanos, bem como, assegurar a participação ativa das pessoas com deficiências em todas as decisões e processos que lhe respeitam. 8. Do artigo 29.º da Convenção decorre a obrigação de os Estados partes garantirem às pessoas com deficiência os direitos políticos e a oportunidade de os gozarem, em condições de igualdade com as demais pessoas, comprometendo-se, mormente a assegurar o direito a votarem e serem eleitas. 9. O Regime Jurídico do Maior acompanhado foi aprovado à luz da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotando o novo paradigma que privilegia a dignidade inerente a todas as pessoas com deficiência. 10. Nos termos do disposto no artigo 147.º do Código Civil, o exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário, não fazendo o n.º 2 expressa referência ao direito de voto. 11. Atento a que o Código Civil não regula sobre matéria de direito de voto, bem como que a Lei do Recenseamento Eleitoral apenas permite a eliminação das inscrições relativas a cidadãos que não gozem de capacidade eleitoral ativa, nos termos previstos nas leis eleitorais, todas as incapacidades eleitorais ativas dos cidadãos encontram-se exclusivamente previstas nestas leis eleitorais. 12. Deste modo, perante a nova redação das normas que dispõem sobre as “incapacidades eleitorais ativas”, conferida pela Lei Orgânica nº 3/2018, de 17 de agosto, inexiste fundamento legal para restringir o direito de voto aos beneficiários de acompanhamento de maior e, consequentemente, excluí-los dos cadernos eleitorais. 13. Efetivamente, a restrição do direito de voto, no âmbito do acompanhamento de maior, não se encontra prevista quer na lei civil quer nas leis eleitorais, pelo que, o direito de voto deve ser reconhecido aos beneficiários de acompanhamento maior, quer por força das disposições legais supra citadas, quer como um elemento relevante da dignidade humana. 14. Nesta conformidade, deverá o tribunal de recurso revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que permita ao beneficiário exercer o seu direito fundamental e pessoal de voto. Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente, a decisão recorrida ser revogada, mantendo o maior (…) o direito pessoal de voto, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.” Não houve lugar a resposta. 2. O requerido sofre de alcoolismo crónico, com consequências do ponto de vista médico, nomeadamente alteração grave da memória já numa fase de Síndrome Demencial, de caráter permanente e irreversível, bem como crises epiléticas, ataxia e deterioração cognitiva; 3. Desde novembro de 2019; 4. O que impossibilita o requerido de: - Manter uma comunicação simples e com sentido com as pessoas que o rodeiam, - Movimentar contas bancárias, efetuar pagamentos, levantamentos e depósitos, - Falar de factos ocorridos no seu passado recente e memorizar factos novos, - Realizar sozinho qualquer tarefa em casa, por mais simples que seja, designadamente as associadas à sua própria subsistência, - Entender a realidade e se relacionar com ela, - Caminhar com equilíbrio, - Gerir a sua própria medicação, - Descolocar-se a uma consulta médica, de colocar as suas dúvidas ou entender as prescrições que lhe são feitas, - Ler e escrever; - Gerir a sua pensão pela aquisição excessiva de álcool; 5. É acompanhado na especialidade de medicina geral e familiar, e neurologia; 6. Frequenta o Centro Comunitário da Quinta do (…) no período diurno, sendo lá que faz as suas refeições, higiene pessoal e toma da medicação; 7. Não tem testamento vital, nem procuração para cuidados de saúde; 8. Reside atualmente na companhia da sua irmã e cunhado, em Évora. 2.1. Se a sentença de acompanhamento pode impedir o acompanhado do exercício do direito de voto A sentença recorrida decretou o acompanhamento do maior (…) e impediu o acompanhado de exercer direitos pessoais que discriminou e, entre eles, o direito de votar; o Ministério Público, requerente e ora recorrente, não converge com a decisão, argumentando que a sentença de acompanhamento não pode, em qualquer caso, impedir o acompanhado de votar. O recurso não questiona a aplicação do direito aos factos, questiona o direito na vertente da sua interpretação, importando assim determinar, em abstrato, se a sentença que decreta o acompanhamento de maior pode impedir o acompanhado de votar; a resposta a esta questão ditará a solução do caso concreto. É, pois, a impossibilidade/possibilidade legal da sentença de acompanhamento impedir o exercício do direito de voto do acompanhado que cumpre decidir. Determina o artigo 49.º da Constituição da República Portuguesa (CRP): “1. Têm direito de sufrágio todos os cidadãos maiores de dezoito anos, ressalvadas as incapacidades previstas na lei geral. 2. O exercício do direito de sufrágio é pessoal e constitui um dever cívico”. Esta norma tem por epígrafe “direito ao sufrágio” e insere-se no capítulo I (direitos, liberdades e garantias pessoais) do título II (direitos, liberdades e garantias) da Parte I (direitos e deveres fundamentais) da Constituição. O direito ao sufrágio é, a par de outros (v.g. o direito à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação, o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade – artºs 26.º, n.º 1 e 36.º, n.º 1, ambos CRP), um direito fundamental, assiste a todos os cidadãos maiores de 18 anos e constitui um dever cívico. Tal qualificação não significa que seja um direito absoluto, no sentido de não lhe ser oponível, em caso algum, qualquer restrição ou limitação, uma vez que os direitos, liberdades e garantias podem ser restringidos pela lei nos casos expressamente previstos na Constituição, desde que as restrições se limitem ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) e também assim o direito ao sufrágio. A Constituição prevê expressamente restrições ao princípio da universalidade do sufrágio, ao estabelecer que as incapacidades previstas na lei geral excecionam a este princípio. “Embora não seja absolutamente líquido o sentido da expressão «incapacidades previstas na lei», a letra do preceito aponta para o sentido de incapacidades civis (vedando o exercício de sufrágio apenas aos incapazes segundo a lei civil, nomeadamente os interditos) …”.[1] O legislador infra constitucional veio estabelecer nos diplomas que regulam, respetivamente, a eleição do Presidente da República (artº 3º do D.L. n.º 319-A/76 de 3/5), as eleições para a Assembleia da República [als. a) e b) do nº1 do artº 2º da Lei nº 14/79 de 16/5, aplicável supletivamente ao regime do referendo (artº 254º da Lei n.º 15-A/98 de 3/4)], a Eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais [al.s a) e b) do artº 3º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14/8] e o regime jurídico do referendo local [al.s a) e b) do artº 36º da Lei Orgânica n.º 4/2000 de 24/8], a incapacidade eleitoral ativa – ou o impedimento de participação no referendo – dos (i) interditos por sentença com trânsito em julgado e dos (ii) notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não interditos por sentença, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos. Vigorava, à data, o instituto da interdição regulado pelos artºs 138º e segs. do Código Civil, na versão aprovada pelo D.L. nº 47.344, de 25/11/1966, com as alterações do D.L. nº 496/77, de 25/11, segundo os quais, no que agora releva, podiam ser interditos dos seus direitos todos aqueles que por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostrassem incapazes de governar as suas pessoas e bens, caso em que a representação do interdito e a administração dos seus bens era confiada a um tutor, assistido por um conselho de família, ambos sujeitos à fiscalização do tribunal (139º, 124º, 1878º, nº 1, 1924º, nº 2, 1925º, nº 1, todos do Código Civil). A interdição gerava então “uma incapacidade genérica de exercício, graduada pela menoridade, e suprida por tutela (incluindo conselho de família e protutor).”[2] Densificando o conceito das incapacidades previstas na lei geral, enquanto ressalva ou limite ao princípio constitucional da universalidade do sufrágio (ativo), as referidas leis eleitorais declaravam como incapazes de exercer tal direito e dever cívico: - os interditos por sentença com trânsito em julgado; e - os notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não interditos por sentença, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos. Situações distintas quanto à forma mas que convergiam na substância: a incapacidade do cidadão eleitor de formar uma vontade livre e de agir de acordo com ela; no primeiro caso judicialmente reconhecida e declarada; no segundo caso, sujeita a duas condicionantes cumulativas, uma subjetiva a apreensão da demência notória do eleitor (v.g. pelos membros da mesa de voto, por qualquer delegado das listas ou até por qualquer eleitor inscrito na assembleia de voto, uma vez que todos têm o direito de suscitar dúvidas e apresentar por escrito reclamações, sobre as quais deverá recair deliberação da mesa de voto, v.g. artº 99º da Lei n.º 14/79, de 16/5- Lei Eleitoral para a Assembleia da República) e uma condicionante objetiva alternativa: (i) mostrar-se o notoriamente demente internado em estabelecimento psiquiátrico ou haver sido, o notoriamente demente, declarado como tal por uma junta de dois médicos. Solução com razões de fácil apreensão; para além de um direito subjetivo, o sufrágio representa também um dever cívico, ou seja, constitui um “elemento objetivo da ordem democrático-constitucional, assente na responsabilidade cívica dos cidadãos”[3] e a comunidade não pode exigir esta responsabilidade cívica – não lhe seria lícito fazê-lo – a todos aqueles que se mostrem incapazes de governar as suas pessoas e bens, ou seja, a todos aqueles que reconhecidamente não revelam aptidão para tomar decisões consequentes com uma vontade livremente formada, seja porque assim o reconheceu e declarou uma sentença judicial, seja porque a sua notória demência se mostra declarada por uma junta de dois médicos ou levou ao internamento em estabelecimento psiquiátrico. Por razões, para alguns, menos evidentes os que ainda não perfizeram 18 anos também não podem votar. A Lei n.º 49/2018, de 14/8, veio – decorre da sua epígrafe – criar o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação. Tornou-se então necessário compatibilizar o regime das incapacidades eleitorais previstas nas leis eleitorais com o regime jurídico decorrente da referida Lei 49/2018, mormente na parte em que revogou o instituto da interdição, desiderato prosseguido pela Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17/8, que alterou os artºs 3º do D.L. n.º 319-A/76 de 3/5 (Eleição do Presidente da República), artº 2º, nº1, als. a) e b) da Lei nº 14/79 de 16/5 (Lei Eleitoral para a Assembleia da República), artº 3º als. a) e b) da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14/8 (Lei que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais) e artº 36º, als a) e b) da Lei Orgânica n.º 4/2000 de 24/8 (Regime jurídico do referendo local), por forma a eliminar – revogando as respetivas previsões – a incapacidade eleitoral ativa e o impedimento do direito de participação no referendo, dos interditos por sentença com trânsito em julgado [al. a) do artº 3º do Decreto-Lei n.º 319-A/76 de 3/5, al. a) do nº1 do artº 2.º da Lei n.º 14/79 de 16/5, al. a) do artº 3º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14/8 e al. a) do artº 36º, da Lei Orgânica n.º 4/2000 de 24/8] e a alterar a redação das previsões que estabeleciam a incapacidade eleitoral ativa e impediam o exercício do direito de participação no referendo, dos notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não estejam interditos por sentença, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos [al. b) do artº 3º do Decreto-Lei n.º 319-A/76 de 3/5, al. b) do nº1 do artº 2.º da Lei nº 14/79 de 16/5, alínea b) do artº 3º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14/8 e al. b) do artº 36º da Lei Orgânica n.º 4/2000 de 24/8], por forma estabelecer a incapacidade eleitoral ativa e o impedimento do direito de participação no referendo, daqueles que “notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos”. O recurso tem por fundamento estas alterações legislativas e parte do princípio que, por força delas, o legislador pretendeu obstar a que a sentença proferida no processo de acompanhamento impedisse o direito ativo ao sufrágio (v.g. cclª. 5) dos beneficiários de medida de acompanhamento. As alterações apontadas não conduzem, estamos em crer, a uma tal solução. A compatibilização das incapacidades eleitorais com as alterações introduzidas ao Código Civil pelo Regime do Maior Acompanhado, introduzida pela Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17/8, pode esquematizar-se assim: onde se previa a incapacidade eleitoral ativa e impedimento do direito de participação no referendo (i) dos interditos por sentença com trânsito em julgado e (ii) dos notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não estejam interditos por sentença, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos passou a prever-se a mesma incapacidade e impedimento dos que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos. Pondo de parte a eliminação da interdição por sentença transitada que, por deixar de vigorar na ordem jurídica e expressamente revogada, não suscita quaisquer dúvidas, a comparação da redação dos preceitos – vigente e pregresso – relativamente aos notoriamente reconhecidos como dementes, ou na terminologia atual, aos que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais permite extrair duas conclusões relevantes para a solução do recurso; em primeiro lugar as incapacidades eleitorais ativas dos que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais não foram eliminadas pela lei, mantêm-se desde que, como acontecia de pretérito, ocorra internamento em estabelecimento psiquiátrico ou hajam sido como tais declarados por uma junta de dois médicos; depois, as normas vigentes adotaram técnica legislativa idêntica à das redações alteradas, ou seja, onde se dizia “dos notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não estejam interditos por sentença” passou a dizer-se “dos que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento”. A expressão “ainda que não estejam interditos por sentença” não suscitava, de pretérito, dúvidas interpretativas, porquanto a interdição por sentença transitada constituía então causa de incapacidade eleitoral ativa, ou seja, o que a norma expressava então com clareza era a incapacidade eleitoral ativa dos interditos e, para além destes, dos notoriamente reconhecidos como dementes desde que internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos. Idêntica clareza não ocorre com a vigente expressão “ainda que não sujeitos a acompanhamento”, uma vez que a sentença de acompanhamento não constitui causa expressa (e automática) de incapacidade eleitoral ativa como ocorria com a sentença de interdição; não constitui nem, a nosso ver, poderia constituir pois regendo-se o regime do maior acompanhado por princípios da necessidade e da especificação (artigo 145.º do CC) pode muito bem acontecer que a conformação ou âmbito do acompanhamento não justifique qualquer restrição ao exercício do direito de voto. Por isto que não se poderá, sem mais, concluir que o beneficiário do acompanhamento não tenha capacidade eleitoral ativa, ou seja, que a expressão “ainda que não sujeitos a acompanhamento” tem o mesmo alcance da sua correspondente – “ainda que não estejam interditos por sentença” – nas previsões revogadas. Mas algum sentido há-de o intérprete encontrar-lhe, como prevê e impõe, o artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil e a solução defendida pelo Recorrente, sem bem vemos, nenhuma utilidade lhe atribui; ou seja, não podendo a sentença de acompanhamento, em caso algum, como se afirma, impedir o acompanhado de votar, a notória limitação ou alteração grave das funções mentais, acompanhada de internamento em estabelecimento psiquiátrico ou declarada por uma junta de dois médicos constituiria a única causa de incapacidade eleitoral ativa surgindo, de todo, irrelevante a sujeição, ou não, a acompanhamento e assim desprovida de qualquer alcance a expressão “ainda que não sujeitos a acompanhamento. A interpretação suposta pelo Recorrente suprime um segmento da norma o que evidencia, estamos em crer, que não pode estar certa. O sentido útil da expressão tem, a nosso ver, o alcance oposto daquele que o Recorrente defende, ou seja, significa, para efeitos da norma em que se insere, que não têm capacidade eleitoral ativa os maiores acompanhados nos casos em que a respetiva sentença assim o declare. Nesta leitura, o alcance final da norma é o de estabelecer que não são cidadãos eleitores (i) os sujeitos a acompanhamento cuja sentença assim o declare e (ii) aqueles que não sujeitos a acompanhamento cuja sentença declare o impedimento – “ainda que não sujeitos a acompanhamento” – apresentem notória limitação ou alteração grave das funções mentais quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos. É este o sentido que, numa aproximação literal, permite uma leitura da norma sem ablação de nenhum dos seus segmentos, necessariamente significantes, a que acresce um elemento teleológico da interpretação, a nosso ver não menos impressivo, que consiste na falta de justificação ou de razão – não faria sentido – que a notória limitação ou alteração grave das funções mentais, acompanhada de internamento em estabelecimento psiquiátrico ou declarada por dois médicos, constituísse causa relevante de incapacidade eleitoral ativa e a sentença de acompanhamento proferida com observância do princípio do contraditório, depois da imprescindível audição do acompanhado e de produzidas as provas, mormente periciais por médicos da especialidade quando for o caso (artigo 139.º, n.º 1, do Código Civil e artigos 891.º a 900.º do Código de Processo Civil) não houvesse de poder concluir por idêntica incapacidade eleitoral, ou seja, que a lei permitisse a incapacidade eleitoral ativa atestada sem formalidades (v.g. perceção da alteração grave das funções mentais e internamento em estabelecimento psiquiátrico) e não permitisse a estatuição de idêntica incapacidade no âmbito de um procedimento judicial, formal por natureza, cujo principal e único desiderato se circunscreve precisamente em assegurar o bem-estar do maior acompanhado, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres (artigo 140.º, n.º 1, do CC). Em conclusão, as alterações introduzidas às leis eleitorais pela Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17/8, não obstam a que a sentença de acompanhamento determine a incapacidade eleitoral ativa do maior acompanhado. Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.
2.2 Custas O processo mostra-se isento de custas (artigo 4.º, n.º 2, alínea h), do Regulamento das Custas Judiciais). Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…) |