Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
306/22.8T8LAG.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
ÁGUAS
FORNECIMENTO
LESÃO GRAVE E DIFICILMENTE REPARÁVEL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O procedimento cautelar em que se pede a reposição do fornecimento de água e do serviço de internet ao imóvel, onde já não se reside, não consubstancia uma lesão actual e dificilmente reparável.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

AA, residente em Quinta ..., ..., ... ... intentou procedimento cautelar comum contra BB, com domicílio profissional na Rua ..., ... ...; CC, residente em ..., ..., ... ...; Z... Limited, sede em ...; e DD, residente em ... ..., pedindo: a religação provisória do fornecimento do serviço de internet e de água junto daquela, com a instalação, neste último caso, de um contador de água em seu nome, para o local onde a mesma reside; e de ii. condenação dos Requeridos a absterem-se de praticar quaisquer atos que a impeçam de usufruir de tais serviços, até ao trânsito em julgado da sentença a proferir na ação principal.
Por sentença proferida em 16.01.2023 foi homologada a desistência da instância relativamente ao Requerido DD.
Foi proferida decisão que julgou totalmente improcedente, por não provada, a presente providência cautelar inominada, absolvendo-se os Requeridos da mesma e Julgou não verificada a litigância de má-fé quer da Requerente, quer dos Requeridos.
Inconformada com tal decisão, a requerente veio interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
«1. A Recorrente não pode forma nenhuma se conformar com a decisão a quo que julgou totalmente improcedente, por não provada, a presente providência cautelar inominada, absolvendo-se os Requeridos da mesma.
2. Já que o douto Tribunal a quo só por erro manifesto de facto e de direito assim decidiu, já que a lesão dos direitos quer da Requerente quer do seu filho menos mantêm-se.
3. Já que os mesmos não encontraram outra morada de família – uma nova casa.
4. Os mesmos têm vivido entre não ter água e passar temporadas em alojamentos turísticos, na esperança que o Estado de Direito faça a sua constituição ser cumprida – i. e. que o Tribunais apliquem a Constituição Portuguesa, e todo o restante ordenamento jurídico de forma una – numa visão ampla e integradora dos princípios, da lei substantiva e da lei processual.
Senão vejamos,
5. Por despacho a fls. no dia 04/05/2022, o douto Tribunal a quo proferiu sic: ” Uma vez que não se entende que a citação prévia coloque em causa o fim do procedimento cautelar, cite nos termos do disposto no artigo 366.º do Código de Processo Civil.”.
6. Para a agora vir, no dia 21-02-2023, fundamentar na douta Sentença que sic: “As providências cautelares têm a sua justificação no princípio processual civil segundo o qual a demora de um processo não deve prejudicar a parte que tem razão ou, ainda, na medida em que o processo deve conferir ao/à Autor(a), quando vencedor(a), a tutela que ele receberia se não ocorresse o litígio”.
7. Repita-se, a Requerente e o seu filho menor andam de hotel em hotel, confiando que a JUSTIÇA irá decretar a presente providência cautelar, estando todos os seus bens a deteriorar numa habitação sem água à há quase um ano!!!
8. Um alojamento turístico não é uma casa de morada de família!!!!
Recuando, e historiando,
9. A Requerente, que reside com o seu filho menor na Quinta ..., ... ..., foi surpreendida no dia 28 de abril de 2022, com o corte de fornecimento de água e do saneamento básico, como medida de coação pelos Requeridos (senhorio da requerente, e representantes do mesmo) para que a mesma deixasse de forma imediata e sem os seus direitos, o locado arrendado por tempo indeterminado, tudo como a mesma fará prova na ação principal.
10. O acesso à água potável e ao saneamento básico são direitos humanos fundamentais para o pleno gozo da vida humana, e por isso Constitucionalmente protegidos.
11. E assim a Requerente intentou o presente procedimento cautelar, requerendo a religação provisória do fornecimento de água, com um contador sem que os RRs a estes se pudessem opor, abstendo-se de praticar quaisquer actos que impedissem o uso da água por parte da Requerente, tudo sem citação e audiência prévia das partes contrárias.
12. Ora, considerou o douto Tribunal a quo que protelar que a Requerente e o seu filho menor ficassem sem água e sem poder usar o saneamento básico, não constituía facto suficiente para decretar a procedência sem a audiência prévia dos RRs.
13. Desconsiderou o douto Tribunal a quo, o facto notório dos riscos para a saúde, quer da Requerente e do seu filho menor, quer da comunidade onde a mesma reside.
14. Ora um homem normal, médio, perante o circunstancialismo próprio do caso concreto, sempre conseguiria avaliar que sem água se torna impossível o uso da casa de banho, o tratar da higiene e limpeza da casa, da confecção de refeições e o lavar da roupa, constituindo um risco a vida e a segurança do Requerente e do seu filho menor.
15. Deveria ter sido previsível, na ótica de um homem médio, que a audiência prévia dos Requeridos, no presente procedimento cautelar retardaria o decretamento da providência, potenciando o periculum in mora, uma vez que tal diligência comprometeria a utilidade da providência ou o fim que com ela se pretendia (e ainda se pretende!) conseguir – In casu acautelar, em especial, o Direito Fundamental à Água da Requerente e do seu filho menor.
16. E com o exercício do contraditório, antes do decretamento da providência resultou demora processual, que teve como resultado efectivo, aumentar e prolongar o dano já efetivado.
17. E que se mantém à presente data!!!
18. Ora ponderando o alegado direito da Requerente e do seu filho menor, Direito Fundamental à Água.
19. Ponderando ainda, a residência em país fora dos Estados Membros da UE, e a dificuldade de citação pessoal dos Requeridos (n.º 4, artigo 366.º do CPC).
20. Ponderada por fim a factualidade exposta e a documentação carreada para os autos, com o preenchimento cabal do fumus bónus iuris e do periculum in mora.
21. Em suma, justificava-se (mais que se justificava!) a tramitação do procedimento cautelar sem a audiência prévia dos Requeridos, cfr. dispõe o n.º 1 do artigo 366.º do CPC.
22. Pelo que houve erro de facto e de direito na douta Sentença recorrida e denegação de Justiça, ao se sentenciar sic: “ (…) Ora, in casu, considerando a causa de pedir e os pedidos formulados pela Requerente, verifica-se que o direito cuja ameaça/risco de lesão aquela pretende acautelar é, precisamente, o seu direito à habitação, englobado nos chamados direitos de personalidade (cfr. artigo 70.º do Código Civil), aqui se incluindo o direito à saúde, à integridade física e ao bem-estar. Sucede que, como já acima se aludiu, a própria Requerente admite, em requerimento datado de 27.06.2022 (cf. ref.ª citius ...07), que está alojada num outro apartamento – que não, portanto, o imóvel em apreço nestes autos - desde o dia 09 de maio (necessariamente) de 2022 até, pelo menos, ao dia 28 de junho do mesmo ano, sendo que imediatamente antes desta última data deu entrada, nestes autos, do dito requerimento. Inexiste, assim, qualquer ameaça/risco de lesão – entenda-se, do seu direito à habitação e daqueloutros inerentes ao mesmo (v.g., saneamento básico) – que importe acautelar. Nomeadamente, por reporte ao imóvel de que é proprietária a Requerida Z... Limited, e mediante recurso ao presente procedimento, caracterizado, aliás, pela sua sumaridade, provisoriedade e instrumentalidade, mormente, em relação à ação principal -de reconhecimento da existência de contrato de arrendamento – de que a própria Requerente admite ser esta providência meramente preliminar. Em face do exposto, não estando reunidos todos os pressupostos necessários à procedência desta providência, tal como previstos no sobredito artigo 362.º do Código de Processo Civil, deverá a mesma, sem necessidade de mais considerações, ser julgada totalmente improcedente.”
23. Ora o que a Requerente deu a conhecer ao douto Tribunal a quo é que anda com o seu filho menor de alojamento turístico em alojamento turístico, sempre e só na esperança que num Estado de Direito, seja respeitada a Constituição Portuguesa, e seja com caracter de urgência salvaguardados os mais elementares direitos da Requerente e do seu filho menor.
24. Nomeadamente os Direitos Constitucionalmente reconhecidos, os seus Direitos, Liberdades e Garantias – tais como e prima face a Dignidade Pessoal de ambos – o corte da água foi um corte na possibilidade Requerente e do seu filho menor poderem viver com essa Dignidade.
25. Assim como foi sonegado o direito ao desenvolvimento da personalidade do menor, impedindo a integridade moral de ambos, que passaram a ter de viver em condições desumana, a usar água da piscina do condomínio para despejar os dejetos da casa de banho, sem água para se lavarem ou limparem a sua habitação.
26. Vivendo entre períodos sem água, e períodos em alojamentos turísticos.
27. E têm agora de voltar a mudar-se e nem sabem para a onde até ao dia 30 de Março, conforme foi plenamente informado, o douto Tribunal a quo.
28. E ainda o direito à família, à saúde, ao bem-estar, à vida em família, à habitação – também estes constitucionalmente protegidos.
29. O artigo 9.º da Constituição da República Portuguesa define as “Tarefas fundamentais do Estado” e na alínea d) do referido artigo, afirma que compete ao Estado “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais.”
30. Acresce que é no artigo 84.º da nossa CRP, que encontramos que a água pertence ao domínio público – quanto se poderia escrever sobre esta matéria!
31. A finalizar sempre não podemos deixar de dizer, salvo todo e o devido respeito, que caberá ao julgador – não visto como o Juiz de Montesquieu ou Beccaria, na concepção de mera “boca da lei” – proceder à interpretação da lei reconstruindo o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, e SEMPRE, tendo por base, a Constituição da República Portuguesa.
32. Ora a lesão dos direitos da Requerente e do seu filho menor MANTÊM- SE, pelo que deverá a douta sentença ser anulada e substituída por outra que venha determinar a ligação imediata dos serviços de água e saneamento, os quais foram retirados por um comportamento ilícito, e por isso censurável pelo DIREITO e pela JUSTIÇA, para que os mesmos possam regressar à sua morada de família.
Nestes Termos, E nos demais de Direito doutamente supridos por V.as Exas deve o presente recuso ser julgado procedente, por erro manifesto de facto e de Direito, sendo a douta sentença recorrida substituída por outra que ordene a ligação de água e saneamento básico da ora Requerente e do seu filho menor, por parte dos Requeridos, abstendo-se os mesmos à pratica de demais actos ilícitos que impeçam o uso norma e comum da água e do saneamento básico municipal, só assim se fazendo a tão douta e costumada JUSTIÇA!»
Não há contra-alegações.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. A Requerida, Z... Limited, é dona e legítima proprietária do prédio urbano composto por um edifício de dois pisos, destinado a habitação de tipo T2, denominado de lote ...2, sito em Urbanização ... (Quinta ...), freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...64 da respetiva freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...45 de idêntica freguesia.
2. Em 01.10.2020, entre a Requerida, Z... Limited, e DD foi celebrado um acordo, por escrito, intitulado “Contrato de Comodato”, tendo por objeto o imóvel supra descrito e de cuja cláusula 2.ª consta o seguinte: “Pelo presente contrato, a primeira outorgante entrega ao segundo o prédio atrás identificado para que este se sirva dele (…); (a) O comodatário compromete-se a utilizar, com mobiliário e equipamento, o imóvel referido na cláusula primeira, única e exclusivamente para fins habitacionais, podendo, no entanto, utilizá-lo para fins de alojamento local ou para arrendamento de longa duração.” – conforme documento n.º 2 junto pelos Requeridos, Z... Limited e CC, com o seu articulado de oposição e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
3. Em 16.02.2021, a Requerente, AA, enviou ao Requerido, CC, enquanto representante legal da Requerida, Z... Limited, uma mensagem de correio eletrónico solicitando: i) a elaboração, por esta última, do contrato de arrendamento referente ao imóvel acima descrito em 1. e que a Requerente refere ter arrendado, em outubro de 2020, a DD; bem como ii) o envio das faturas pertinentes à água e eletricidade consumidas, para além da emissão dos recibos de arrendamento – conforme documento número 4 junto pela Requerente com o seu requerimento inicial, cuja tradução foi junta sob a ref.ª citius ...07 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
4. O Requerido, CC, em resposta à mensagem remetida pela Requerente nos termos acima expostos, enviou-lhe uma mensagem de correio eletrónico com o seguinte teor: “Só para vos explicar a situação no número 42, a ... acordámos um preço de compra com DD no ano passado, ele pagou-nos 50% do preço de compra e venda e estamos à espera que os outros 50% nos sejam pagos, por isso é que a eletricidade e a água ainda estão em nosso nome. Enviamos cópias das faturas a DD e ele paga-nos. Assim, do nosso ponto de vista, a casa está sob controlo do DD e é esse o acordo que tínhamos com ele. Não recebemos qualquer renda da casa. Estamos apenas à espera que DD nos pague o resto do saldo. Portanto, se tivéssemos uma reunião, essa é a única coisa que vos posso dizer. Não sabíamos que o DD estava a fazer com a casa porque, como eu disse, pensávamos que DD estava a controlar a casa. Esperemos que isto ajude. Não posso dizer mais nada, estamos apenas à espera do equilíbrio do DD e a casa será transferida da empresa para ele.” – conforme documento número 4-A junto pela Requerente com o seu requerimento inicial, cuja tradução foi junta sob a ref.ª citius ...07 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
5. Os Requeridos, CC e Z... Limited, procederam ao cancelamento dos contratos de fornecimento de água e de serviço de internet ao imóvel acima descrito em 1.
6. Desde 09.05.2022 – pelo menos – até 28.06.2022 que a Requerente e o seu filho menor se encontram alojados no Condomínio ..., Edifício ....


2 – Objecto do recurso.

Questão a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3, do CPC: Saber se se verificam os requisitos do procedimento cautelar comum.


3 - Análise do recurso.

A sentença considerou que a montante da chamada “aparência do direito”, isto é, de saber a que título (legítimo ou não) a Requerente ocupa o dito imóvel falta um pressuposto indispensável para o deferimento da providência cautelar não especificada, requerida nos autos pelo requerente, nomeadamente, a ameaça/risco de lesão do seu direito à habitação que a requerente pretende salvaguardar, pois como a requerente admite está alojada num outro desde o dia 09 de maio de 2022 até, pelo menos, ao dia 28 de junho do mesmo ano, sendo que imediatamente antes desta última data deu entrada, nestes autos, do requerimento.
Discorda a recorrente, alegando que, o direito cuja ameaça/risco de lesão aquela pretende acautelar é o seu direito à habitação e o direito ao uso normal e comum da água e do saneamento básico municipal e anda com o seu filho menor de alojamento turístico em alojamento turístico, pelo que, se mantem a lesão dos direitos da Requerente e do seu filho.
Adiantamos desde já que não cremos que tenha razão.
Analisando:
O procedimento cautelar comum está previsto no:
Artigo 362.º do CPC
Âmbito das providências cautelares não especificadas
1 - Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
2 - O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor.
3 - Não são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte.
4 - Não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado.
Bem como no:
Artigo 368.º do CPC
Deferimento e substituição da providência
1 - A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.
2 - A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.
Os requisitos da providência cautelar não especificada são os seguintes:
- A possibilidade séria da existência do direito que o requerente invoca (fumus bónus iuris);
- O justo e fundado receio que outrem lhe cause lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora);
- A não existência de providência cautelar diversa adequada a proteger eficazmente tal direito;
- Que o prejuízo resultante do decretamento da providência não supere o que com ela se pretende acautelar (assim, vide Moitinho de Almeida, Providências cautelares não especificadas, Coimbra Editora, 1991, páginas 18 e seguintes; Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III, Almedina, 1998, pags. 82 a 90; Acs. STJ 22/03/1974, BMJ 235-237; RP 19/10/1992, CJ, 4, 246).
Trata-se de impedir que, durante a pendência de uma acção, a situação de facto se altere, de modo a que a sentença que vier a ser proferida, se favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela. Pretende-se combater o periculum in mora a fim de que a sentença não se torne uma decisão platónica (vide Antunes Varela in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, página 23).
Já no que concerne ao dano, a providência cautelar só pode ser decretada desde que este seja grave e irreparável ou de difícil reparação, isto é, quando não seja viável a reintegração do direito de forma específica ou por equivalente no decurso de um juízo de mérito (e a gravidade deve se aferida tendo em conta a repercussão na esfera jurídica do interessado).
Para que o recurso à tutela cautelar possa ser considerado justificado é ainda necessário que o periculum in mora seja atual e iminente.
Enquanto a aparência do direito se basta com um juízo de verosimilhança ou de probabilidade, o requisito do fundado receio de lesão grave e irreparável ou de difícil reparação exige, pelo contrário, um juízo de certeza – valorado em função das particularidades de cada caso em concreto – que se revele suficientemente forte para convencer o julgador acerca da necessidade de decretamento da providência, cabendo ao requerente a demonstração da gravidade do dano e da sua natureza irreparável ou de difícil reparação.
Como se pode ler in Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2015, Almedina, págs. 197, 198, 202, 206-213: “Um dos principais fundamentos para o recurso à via cautelar reside no fundado receio de que outrem cause uma lesão grave e irreparável ou de difícil reparação de um determinado direito, quer pelos danos que possam advir dessa conduta, quer pela demora na tutela definitiva desse direito.
O periculum in mora é constituído por dois elementos essenciais: a demora e o dano decorrente dessa demora.
Relativamente à demora, o procedimento cautelar visa proteger o justo receio de alguém se ver prejudicado por uma conduta de terceiro, inquietação que poderia ser agravada de forma efetiva, com as delongas normais dum pleito judicial.
Já no que concerne ao dano, a providência cautelar só pode ser decretada desde que este seja grave e irreparável ou de difícil reparação, isto é, quando não seja viável a reintegração do direito de forma específica ou por equivalente no decurso de um juízo de mérito.
(…) O periculum in mora pressupõe, assim, um juízo qualificado ou um temor racional, isto é, deve assentar em factos concretos e consistentes que permitam afirmar, com objetividade e distanciamento, a seriedade e a atualidade da ameaça, bem como a necessidade de serem adotadas medidas urgentes, que permitam evitar o prejuízo. O mesmo é dizer que só a presença de um prejuízo atual, concreto e real, reconhecido como efetivamente grave, iminente e irreparável, resultante da demora da sentença definitiva de mérito, pode justificar o acolhimento do pedido apresentado pela via da urgência. Exige-se, no fundo, um juízo de probabilidade “forte e convincente”, a ser valorado pelo julgador segundo um critério objetivo”.
Assim de uma maneira geral tem-se entendido que:
“Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao Tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão” (Abrantes Geraldes in Temas da Reforma do CPC, volume IV, página 83).
Como critério aferidor da gravidade da lesão ter-se-á de entrar em linha de conta com a repercussão negativa ou desvantajosa que a mesma determinará na esfera jurídica do interessado lesado (Abrantes Geraldes in Ob. cit., página 84).
Ora, revertendo ao caso em apreço, cumpre dizer, desde já, não decorre da matéria de facto indiciariamente provada factos concretos e consistentes, que permitam, afirmar com objetividade, a seriedade, a atualidade da lesão e que seja dificilmente reparável (os procedimentos cautelares não podem ser utilizados como meros “meios de pressão” fora dos seus pressupostos legais.
Com efeito, neste caso, basta considerar que, por um lado, a Requerente pede a reposição do fornecimento de água e do serviço de internet ao imóvel, onde já não se encontra a residir e por outro lado ainda que lhe tenha causado danos a necessidade de mudar de habitação tal facto é susceptível de reparação pecuniária, pelo que o procedimento dos autos carece dos requisitos legais, improcedendo o recurso.

Sumário: (…)

4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
Évora, 11.05.2023
Elisabete Valente
Ana Isabel Pessoa
José António Moita