Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | RICARDO MIRANDA PEIXOTO | ||
Descritores: | PODERES DO JUIZ OBTENÇÃO DE PROVA | ||
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Data do Acordão: | 10/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. O exercício do poder-dever oficioso de providenciar pela obtenção das provas que permitam demonstrar a realidade dos factos controvertidos, previsto pelos artigos 411.º, 436.º e 7.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, exige ponderação prévia que evidencie a presença dos seguintes pressupostos: a necessidade da junção desses elementos de prova para o apuramento / esclarecimento da verdade e a justa composição do litígio; e a atinência da necessidade desses elementos com os factos que ao juiz é lícito conhecer. II. Tais factos são, não só os essenciais da causa de pedir, alegados pelas partes, mas também os instrumentais que resultem da discussão da causa, e os complementares ou concretizadores dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução ou discussão da causa, sujeitos a prévio exercício do contraditório. III. Em acção contendo pedido de condenação da Ré a pagar à Autora quantia certa resultante da reparação dos vícios de que padecia o bem comprado, constitui legítimo exercício do poder mencionado em I., o despacho, proferido por iniciativa do juiz em julgamento, tendo por conteúdo a notificação da Autora para juntar aos autos uma factura com conteúdo divergente, no que ao valor respeita, de outra junta com a p.i. para prova do custo da reparação dos alegados vícios. (Sumário do Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Apelação 323/22.8T8GDL-A.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Local Cível de Grândola * Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):*** (…) Acordam os Juízes na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo Relator: Ricardo Miranda Peixoto; 1º Adjunto: António Fernando Marques da Silva; e 2ª Adjunto: Filipe Aveiro Marques. * I. RELATÓRIO*** * A.Veio “Universal (…), Lda.”, na presente acção declarativa comum proposta contra “(…) – Comércio de Automóveis, Lda.”, pedir: “A - Ser declarado nula, e sem nenhum efeito, toda e qualquer declaração assinada pelo gerente da Autora que exclua ou limite os seus direitos, nomeadamente a garantia de bom funcionamento do veículo adquirido. B - Ser a Ré condenada, nos termos das disposições conjugadas da Lei 24/96, na redação dada pelo D.-L. n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro e do D.-L. n.º 84/2021, de 18 de outubro, a pagar à Autora a quantia de € 19.218,95, resultante da reparação dos vícios de que padecia o bem adquirido, a qual foi por si custeada; à qual acrescerão os respetivos juros de mora vencidos e vincendos, calculado à taxa legal e até efetivo pagamento, ou Caso assim se não entenda: C - Ser a Ré condenada, nos termos preceituados aos artigos 913.º e ss. do C.C., a pagar à Autora a quantia de € 19.218,95, resultante da reparação dos vícios de que padecia o bem adquirido, a qual foi por si custeada; à qual acrescerão os respetivos juros de mora vencidos e vincendos, calculado à taxa legal e até efetivo pagamento”. Alegou para o efeito que comprou à Ré um veículo automóvel, de que esta assegurou, na ocasião da compra, o bom funcionamento. A Ré levou o gerente da Autora a assinar uma declaração abdicando de qualquer tipo de garantia, sem que este tivesse tido a possibilidade de se aperceber dos vícios do bem vendido. Decorrido pouco mais de um mês e percorridos 1.000 Km, a Autora notou um ruído anormal do motor e, depois de avaliado numa oficina, constatou que este padecia de avaria grave cuja reparação era imperativa e montava a € 19.218,25. Apesar das solicitações da Autora, a Ré nunca assumiu responsabilidade pela reparação da viatura. A declaração assinada pelo gerente da Autora é nula, nos termos previstos pelos artigos 51.º do D.L. n.º 84/2021, de 18 de Outubro e 16.º da Lei 24/96, de 31 de Julho. * B.Contestou a Ré. Manteve que alertou o comprador para a necessidade de realizar uma revisão extraordinária imperativa ao veículo, tendo-lhe feito, por conta da mesma, um desconto de € 7.000,00 no preço. Os danos do veículo não se teriam verificado se a Autora, em vez de circulado com ele 1.000 Km, tivesse promovido a sua revisão numa oficina certificada pela Porsche. Face à denúncia dos defeitos, a Ré propôs à Autora a resolução do contrato com a devolução do respectivo preço, solução que esta não aceitou, mandando reparar o automóvel à revelia da Ré. Não estando de acordo com a revogação do contrato proposta pela Ré, a Autora poderia exigir da Ré a reparação ou optar pela redução proporcional do preço, mas não ordenar a reparação a uma entidade da sua escolha, sem qualquer intervenção ou controlo da Ré. Na declaração subscrita pelo legal representante da Autora na ocasião da compra, reproduzida no documento 1 da contestação, limitou-se a reconhecer o estado em que o automóvel se encontrava e que recebera (rectius, deixara de pagar) € 7.000,00 como comparticipação da Ré no custo da revisão de que o carro carecia. * C.Realizada audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, no qual, entre outras coisas, foram elencados: 1. Os seguintes factos provados por acordo e documentos: “A) A Autora, fora do âmbito da sua actividade comercial, adquiriu à Ré, que tem por objecto de negócio o comércio de veículos automóveis, o veículo de marca Porsche, modelo 997 Turbo (com a designação comercial 911 Turbo), e com a matrícula (…). B) A referida aquisição foi efectuada no transacto dia 11.04.2022, através de contrato verbal de compra e venda de veículo automóvel. C) Em consequência daquele contrato, a titularidade do veículo foi então registada a favor da Autora encontrando-se titulada através do certificado de matrícula n.º (…), de 18.04.2022. D) Pela aquisição, a Autora pagou o preço acordado de € 82.000,00. E) Pagamento que efectuou da seguinte forma: a. Transferência bancária da quantia de € 40.000,00; b. Entrega de veículo usado em retoma, que foi avaliado em € 42.000,00. F) Em 13-04-2022, a Autora subscreveu documento denominado «Ficha de Identificação de Cliente» onde consta «declaro que compro a viatura no estado em que se encontra, que tenho conhecimento de é um bem usado e que abdico da sua garantia», encontrando-se ainda manuscrito, na sequência de tal declaração, «tendo sido feito um desconto de € 7.000,00 para futuros melhoramentos». G) A Autora remeteu à Ré email de 23-05-2022 junto como doc. 4 com a petição inicial, que aqui se dá por reproduzido, acompanhado de um orçamento para reparação do veículo elaborado pela empresa (…), Lda.. H) À comunicação da Autora datada de 23.05.2022, a Ré respondeu por correio electrónico junto como doc. 5 da petição inicial que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.” 2. Os seguintes temas de prova: “Os fins a que se destina o veículo. As qualidades asseguradas pela Ré à Autora no acto da venda. A utilização do veículo após a compra e venda. A constatação de avaria no veículo, a sua natureza e custo de reparação. Os contactos estabelecidos com a Ré para resolução da questão. O conhecimento que a Ré detinha sobre o estado do veículo. Os factores relevantes na determinação do preço da venda. Impossibilidade da Autora de se aperceber de quaisquer vícios ou defeitos do veículo. O valor suportado pela Autora com a reparação do veículo. (…) As advertências/alertas feitas pela Ré à Autora no acto da venda, relativamente ao veículo. A inexistência de certificação da (…). Lda. para reparação de veículos Porsche. A natureza ou fins que justificaram o desconto de € 7.000,00 no valor de aquisição”. * D.Designada data para o efeito, realizou-se, no dia 19 de Junho de 2024, sessão da audiência de julgamento, no decurso da qual foi proferido pela Exm.ª Sr.ª Juíza, o seguinte despacho exarado em acta: “Da produção de prova realizada, designadamente do depoimento de (…) resultou que a fatura que consta dos autos não corresponde à fatura total da reparação efetuada pela autora. Deste modo, e por se entender que a junção de tal fatura se afigura relevante e indispensável para a decisão a proferir, designadamente para aquela que constitui os temas de prova, notifique a autora para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos a fatura que corresponde à reparação que liquidou. Para continuação da presente audiência de julgamento, designa-se o próximo dia 15 de outubro, pelas 15h30. (…) Notifique.” * E.Inconformada com o assim decidido, a Ré interpôs o presente recurso de apelação. Concluiu as suas alegações nos seguintes termos (transcrição, mantendo as referências em itálico da origem): “(…) a) O presente recurso de apelação (autónoma) tem por objecto o, aliás douto, despacho proferido pela Mma. Juiz a quo na sessão da audiência de discussão e julgamento que teve lugar no dia 19 de Junho de 2024, que teve por conteúdo a notificação da Autora para juntar aos autos um documento em poder dela própria e cuja apresentação ela não poderia proceder, face ao disposto no artigo 423.º do CPCivil. b) Discute-se na acção a obrigação de a Ré indemnizar a Autora pelos custos em que esta, alegadamente, incorreu com a reparação de um automóvel que aquela lhe vendeu. c) Para prova do montante alegadamente gasto com essa reparação, invocada no art. 36º. da petição inicial, a Autora juntou, sob doc. n.º 6 desse articulado, uma factura emitida pela oficina (…), Unipessoal, Lda., em 13 de Setembro de 2022, pelo montante de € 19.218,95. d) Na referida sessão da audiência de discussão e julgamento, foi ouvido, como testemunha, o sócio-gerente da (…), Lda., que declarou que a reparação tivera um custo superior ao constante da factura junta sob doc. n.º 6 da petição inicial, factura essa que fora, aliás, anulada e substituída por outra, essa sim correspondente à reparação efectuada. e) A factura verdadeira encontrava-se em poder da Autora que, alegadamente, a pagara e contabilizara na sua escrita mercantil. f) Tendo sido comprometida a força probatória do doc. n.º 6 da petição inicial e não podendo já a Autora juntar aos autos a factura verdadeira (por a isso obstar o artigo 423.º do CPC), a Mma. Juiz a quo ordenou à aqui apelada que apresentasse tal factura. g) O dever de gestão processual consagrado no artigo 6.º do CPC não pode suprir os ónus que impendem sobre as partes, designadamente os de alegar e provar os factos que integram fundamentos da acção ou da defesa. h) Ao determinar a junção de um documento cuja iniciativa de apresentação cabia especialmente à Autora, a Mma. Juiz a quo procedeu a errada interpretação e aplicação dos artigos 6.º e 423.º do CPCivil. Pelo exposto e pelo douto suprimento do Venerando Tribunal ad quem deve ser concedido provimento ao recurso e revogado o, aliás douto, acórdão recorrido, como é de inteira JUSTIÇA”. * F.Os Recorridos não responderam às alegações dos Recorrentes. * G. Colheram-se os vistos dos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos. * H. Questões a decidir O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos Recorrentes, sem prejuízo da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC). Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação. Deste modo, são as seguintes as questões exclusivamente jurídico-processuais, em apreciação no presente recurso: 1. Se tem cabimento nos poderes facultados ao juiz pelos artigos 7.º, n.ºs 2 e 3, 411.º e 436.º, n.º 1, do CPC, ordenar a junção, por sua iniciativa e na fase do julgamento, de elemento de prova documental. 2. Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, quais os requisitos do exercício desse poder. 3. Se tais pressupostos se mostram preenchidos quando a actuação do juiz resulta de dúvida suscitada no decurso do julgamento sobre a idoneidade probatória de documento junto com a p.i. para suporte de danos cujo ressarcimento vem pela Autora peticionado. * II. FUNDAMENTAÇÃO*** * A. De facto* O recurso é exclusivamente de direito e os elementos relevantes para a decisão constam do relatório antecedente.* B. De direito* Vem o presente recurso interposto de despacho, proferido em julgamento por iniciativa da Sr.ª Juíza do processo, tendo por conteúdo a notificação da Autora para juntar aos autos um documento (factura) com conteúdo divergente, no que ao valor total respeita, de outro junto com a p.i. para prova do custo da reparação dos alegados vícios do veículo automóvel objecto do contrato de compra e venda.Sintetizando as razões da discordância apresentadas nas conclusões do recurso interposto, considera a Ré que o despacho recorrido fez errada interpretação e aplicação dos artigos 6.º e 423.º do CPC porque o dever de gestão processual não pode suprir o ónus que impende sobre a Autora, de alegar e provar os factos que integram fundamentos da acção, no contexto do processo em que: - a Autora alegou na p.i. que o custo da reparação do veículo ascendeu a € 19.218,95 e juntou sob o documento n.º 6 daquele articulado, factura no mesmo montante; - a Autora tinha na sua posse a factura cuja junção foi pela Sr.ª Juíza ordenada no despacho em crise, alegadamente paga e contabilizada na sua escrita mercantil, reflectindo custo superior ao da reproduzida no referido documento 6 da p.i. e que, de acordo com testemunha ouvida em julgamento, terá resultado de anulação e substituição desta; - no momento do julgamento tinha sido comprometida a força probatória da factura constante do documento n.º 6 da petição inicial e encontrava-se já esgotado o prazo para a Autora proceder à junção da factura que a substituiu (cfr. artigo 423.º CPC). * O recurso em apreciação incide sobre despacho de junção oficiosa de meio de prova documental, proferido pelo juiz do processo no uso dos seus poderes-deveres de instrução.É sabido que o processo civil tem como estruturante o princípio do dispositivo pelo qual “[à]s partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas” (cfr. artigo 5.º, n.º 1, do CPC). Com José Lebre de Freitas (in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 465) o princípio dispositivo impõe que às partes caiba “…a formação a matéria de facto da causa, mediante a alegação nos articulados, dos factos principais, isto é, dos que integram a causa de pedir, fundando o pedido, e daqueles em que se baseiam as excepções peremptórias. Sem prejuízo de os factos da causa poderem ser alegados por qualquer das partes, cada uma tem o ónus da alegação daqueles que têm um efeito que lhe é favorável (…) cuja inobservância dá lugar, consoante o caso, à improcedência da acção ou à improcedência da excepção…”. O ónus de alegação projecta-se, por seu turno, no ónus da prova dos factos constitutivos do direito arrogado por aquele que invocar o direito em juízo, assim como dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado por aquele contra quem a invocação é feita (cfr. artigo 342.º do Código Civil). Não obstante, ainda na vigência da versão do CPC anterior à reforma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, a nossa lei processual previa elementos do princípio do inquisitório, de que é exemplo “…o artigo 264.º que, ao definir poderes do juiz na condução do processo, inclui à cabeça destes o de «realizar ou ordenar oficiosamente as diligências que considere necessárias para o apuramento da verdade», embora acrescente, restritivamente, «quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer».”, como refere Antunes Varela in “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 414. A reforma de 1996 acentuou significativamente a influência do princípio inquisitório no processo, conferindo-lhe expressa referência no artigo 265.º (em parte correspondente ao artigo 411.º do actual CPC). Como consta do Preâmbulo do DL n.º 329-A/95, “…no que se refere à exacta definição da regra do dispositivo, estabelece-se que a sua vigência não preclude ao juiz a possibilidade de fundar a decisão não apenas nos factos alegados pelas partes mas também nos factos instrumentais que, mesmo por indagação oficiosa, lhes sirvam de base. E, muito em particular, consagra-se - em termos de claramente privilegiar a realização da verdade material - a atendibilidade na decisão de factos essenciais à procedência do pedido ou de excepção ou reconvenção que, embora insuficientemente alegados pela parte interessada, resultem da instrução e discussão da causa, desde que o interessado manifeste vontade de os aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o contraditório. Para além de se reforçarem os poderes de direcção do processo pelo juiz, conferindo-se-lhe o poder-dever de adoptar uma posição mais interventora no processo e funcionalmente dirigida à plena realização do fim deste, eliminam-se as restrições excepcionais que certos preceitos do Código em vigor estabelecem, no que se refere à limitação do uso de meios probatórios, quer pelas partes quer pelo juiz, a quem, deste modo, incumbe realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente e sem restrições, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer” (sublinhados do relator). Deste modo, com o fito de privilegiar o aproveitamento do processo e a realização da verdade material, a reforma do processo de 1996 conferiu ao juiz poderes-deveres: - de regularização formal do processo, como a promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção ou a sanação da falta de pressupostos processuais (n.ºs 1 e 2 do artigo 265.º do anterior CPC, em parte correspondente ao artigo 6.º do actual); - nos planos material e probatório, com a possibilidade expressa de o juiz fundar a decisão não apenas nos factos alegados pelas partes mas também nos factos instrumentais que, mesmo por indagação oficiosa, resultem da instrução e discussão da causa, assim como os factos essenciais que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam alegado e resultem da instrução ou discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório (n.ºs 2 e 3 do artigo 264.º do anterior CPC, em parte correspondentes ao n.º 2 do artigo 5.º do actual), incumbindo-lhe realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (n.º 3 do artigo 265.º do anterior CPC, correspondente ao artigo 411.º do actual), determinar, em qualquer estado do processo, a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento sobre facto que interessem à decisão a causa (n.º 1 do artigo 552.º do anterior CPC, em parte correspondente ao artigo 452.º do actual) e ordenar por sua iniciativa a comparência de qualquer pessoa, não oferecida como testemunha, em julgamento quendo haja razões para presumir que tem conhecimento de facto importantes para a boa decisão a causa (n.º 1 do artigo 645.º do anterior CPC, correspondente ao artigo 526.º do actual). Com a última grande reforma do processo civil, introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, mantiveram-se algumas e aprofundaram-se outras matizes do princípio do inquisitório, sobretudo no domínio da aquisição do facto a considerar na decisão final. Da exposição preambular de motivos do diploma legal em apreço consta, sobre o tema, “…[como] é sabido, fruto de uma visão assaz formalista e fundamentalista do ónus de alegação, o entendimento prevalecente na prática forense vem sendo o de que qualquer omissão ou imprecisão na alegação implica o risco de privação do direito à prova sobre matéria que o fluir do pleito viesse a revelar. Agora, homenagear o mérito e a substância em detrimento da mera formalidade processual, confere-se às partes a prerrogativa de articularem os factos essenciais que sustentam as respetivas pretensões, ficando reservada a possibilidade de, ao longo de toda a tramitação, naturalmente amputada de momentos inúteis, vir a entrar nos autos todo um acervo factual merecedor de consideração pelo tribunal com vista à justa composição do litígio” (sublinhados do relator). Dispensou-se, por isso, a necessidade da parte interessada manifestar vontade de se aproveitar dos factos complementares ou concretizadores dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução ou discussão da causa, podendo o juiz utilizá-los oficiosamente conquanto as partes tenham tido oportunidade de se pronunciar sobre eles (alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da actual redacção do CPC). Podemos, assim, concluir que, embora regido pelo princípio do dispositivo – na medida em que compete às partes definir da causa de pedir alegando os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (n.º 1 do artigo 5.º do CPC), sendo também sobre estas que impende o ónus da prova dos mesmos factos –, o apuramento da verdade material e o aproveitamento do processo para realizar uma justa composição do litígio, muito presentes no espírito do legislador, proporcionam ao juiz um conjunto de poderes-deveres de longo alcance no domínio da aquisição do facto complementar ou concretizador que, sem alterar ou suprir o cerne da causa de pedir, se mostra necessário a uma decisão justa e efectiva da questão em apreciação, assim como no domínio da prova que se mostre imprescindível ao apuramento dos factos de que depende a decisão da lide. * No que respeita à prova documental, o artigo 423.º do CPC prevê que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes (n.º 1), podendo ainda ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final (sujeitando-se a parte apresentante a condenação em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado) (n.º 2). Depois dos 20 dias anteriores à realização do julgamento, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior (n.º 3). Sobre as situações excepcionadas pelo n.º 3, José Lebre de Freitas refere constituir exemplo de “…impossibilidade de apresentação o de o documento se encontrar em poder de terceiro, que só posteriormente o disponibiliza, de a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente ser emitida ou de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento. (…)” e de “…ocorrência posterior que torna necessário o documento, (…) uma causa de transmissão do direito litigioso, determinante da habilitação da parte (art. 377), ou a própria sentença, que haja decidido com base em facto novo oficiosamente cognoscível (art. 514) ou em solução de questão de direito não discutida, com desrespeito do princípio do contraditório (artigo 3.º-3), (in “Op. Cit.”, Volume 2º, Coimbra Editora, 2001, págs. 426 e 427). ([1]) Não podemos também deixar de ter presente que, como lembram Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, em anotação ao artigo 423.º do CPC, “[a]pesar da rigidez para que o preceito parece apontar, em parte associada ao princípio da autorresponsabilidade das partes, o mesmo não pode deixar de ser compatibilizado com outros preceitos ou com outros princípios que justificam a iniciativa oficiosa do tribunal na determinação da junção ou requisição de documentos que, estando embora fora daquelas condições, sejam tidos como relevantes para a justa composição do litígio, à luz, pois, de um critério de justiça material, cabendo realçar em especial o princípio do inquisitório consagrado no artigo 411.º e concretizado ainda no artigo 436.º (acerca do necessário equilíbrio entre a autorresponsabilidade das partes e a oficiosidade do inquisitório, cfr. Paulo Pimenta, ob. cit., págs. 372-373)” (in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume I, Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, 2018, págs. 500 e 501), (sublinhados do relator), No caso vertente, o documento em causa é uma factura que se encontrava na posse da Autora, pelo que o momento próprio para esta requerer a sua junção seria, em princípio, com os articulados ou até aos 20 dias anteriores à data de realização da audiência de julgamento (neste caso, sujeitando-se à aplicação de uma multa) como previsto nos n.ºs 1 e 2, respectivamente, ambos do artigo 423.º do CPC. Sucede que a junção do documento em apreço não foi suscitada por requerimento das partes, mas pela Sr.ª Juíza do processo que, considerando-o “relevante e indispensável para a decisão a proferir”, a ordenou oficiosamente no decurso do julgamento. Vimos já que o juiz deve providenciar pela obtenção das provas que permitam demonstrar a realidade dos factos controvertidos (artigos 7.º, n.º 1, do CPC e 341.º do CC), realizando ou ordenando, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (artigos 411.º e 436.º, n.º 1, ambos do CPC). Este poder-dever processual deve ser exercitado até ao encerramento da fase de instrução contraditória, podendo, nas situações excepcionais previstas pela 2ª parte do n.º 1 do artigo 607.º do CPC, sê-lo até depois de encerrada a audiência, se o juiz não se considerar suficientemente esclarecido, impondo-se-lhe então reabri-la para realizar as diligências que repute necessárias, sempre com respeito pelo princípio do contraditório (artigo 3.º, n.º 3, do CPC). Assim, não se vislumbra no argumento do decurso do prazo de que a Autora dispunha para juntar o documento em apreço, contributo relevante para pôr em crise o despacho proferido pela Sr.ª Juíza da 1ª instância. Por outro lado, diversamente da situação prevista pelo artigo 423.º do CPC que regula o direito das partes requererem, por sua vontade e em função do seu critério quanto à respectiva pertinência para a prova dos factos, a junção ao processo de documentos, o exercício do poder-dever oficioso previsto pelos artigos 411.º e 436.º do CPC, exige uma ponderação prévia que evidencie a presença de pressupostos mais exigentes. Concretamente: i. A necessidade da junção desses elementos de prova para o apuramento / esclarecimento da verdade e a justa composição do litígio; e ii. A atinência dessa necessidade com os factos que ao juiz é lícito conhecer. Tais factos, como já se aludiu, são não só os essenciais da causa de pedir, alegados pelas partes, mas também os instrumentais que resultem da discussão a causa, e os factos complementares ou concretizadores dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução ou discussão da causa (sujeitos a prévio exercício do contraditório), (cfr. do n.º 2 do artigo 5.º do CPC). Por isso, a bondade do despacho recorrido, deve ser indagada a partir do preenchimento destes requisitos na concreta situação que motivou a intervenção oficiosa em questão. Neste conspecto, a razão fundamental para a Sr.ª Juíza ordenar a junção da factura em apreço está, como informa no seu despacho, em ter resultado do depoimento de … (gerente da empresa que alegadamente realizou a reparação da viatura) que acabara de ser ouvido, suspeita da falta de correspondência entre a factura junta aos autos com a p.i. e o valor total da reparação efectuada pela Autora. A dúvida surgida naquele momento da sessão de julgamento quanto à actualidade ou validade do elemento de prova apresentado como documento n.º 6 da p.i., só através da junção do documento que o terá substituído poderia ser cabalmente superada, na medida em que estamos perante elementos de prova com valor contabilístico integrados na escrita de sociedades comerciais. Por outro lado, a ocorrência dos problemas de motor do veículo e o custo da sua reparação, constituem factos essenciais da causa de pedir da presente acção – vícios do objecto vendido e consequente dano sofrido pela Autora – incluídos, aliás, na descrição dos temas da prova “[a] constatação de avaria no veículo, a sua natureza e custo de reparação” e “[o] valor suportado pela Autora com a reparação do veículo”. A Recorrente considera que no momento do julgamento tinha sido comprometida a força probatória da factura junta pela Autora como documento n.º 6 da p.i., parecendo com isso convicta de que não teria relevância probatória dos danos e do custo da reparação da viatura comprada pela Autora à Ré. Parece-nos, com o devido respeito, uma conclusão precipitada. Em primeiro lugar porque a prova de que a factura junta pela Autora foi anulada ou ficou sem efeito está, como se disse, dependente da junção do instrumento contabilístico que a anulou ou deu sem efeito (nova factura, nota de crédito, etc.) e, na falta deste, dificilmente se formará tal convicção. Depois porque, mesmo que tenha sido anulada na contabilidade da sociedade emitente, sempre a factura que acompanha a p.i. pode, na livre apreciação a que será sujeita pelo juiz quando do julgamento da matéria de facto (artigo 607.º, n.º 5, do CPC), assumir valor probatório dos danos evidenciados pela viatura e dos respectivos custos aí discriminados, tanto mais quanto o confronto com outros elementos de prova (como, por exemplo, os testemunhos de …, gerente da oficina reparadora, ou dos mecânicos …, … e …) permitir aferir da correspondência, ainda que parcial, de danos e de valores parcelares aí discriminados com danos efectivamente padecidos pela viatura e valores de reparação praticados pelo mercado. Deste modo, longe de suprir uma lacuna do cumprimento do ónus da prova a cargo da Autora, a Sr.ª Juíza da 1ª instância, no despacho recorrido, ordena uma diligência que se impunha para aferir da credibilidade do testemunho de (…) e se o documento junto como meio de prova com a p.i. é, ou não, o único e o mais indicado, para formar a sua convicção e tomar posição segura sobre factos essenciais da causa de pedir, alegados pela Autora, atinentes aos vícios danos evidenciados pela viatura e ao custo da respectiva reparação. Assim, não merece qualquer reparo o despacho recorrido, antes revelando atenção e proactividade no estrito cumprimento dos poderes-deveres que o princípio do inquisitório faculta ao juiz do julgamento com o objectivo de decidir a matéria controvertida carreada pelas partes. ([2]) Consequentemente, nenhuma razão se encontra para proceder à sua revogação. * Custas *** * Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no vencimento ou decaimento na causa ou, não havendo vencimento, no proveito. No caso vertente, a Ré / Recorrente foi vencida, pelo que deverá suportar as custas do recurso. * III. DECISÃO*** * Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em:Julgar improcedente a presente apelação, confirmando o despacho recorrido. Condenar a Recorrente no pagamento das custas do presente recurso. Notifique. * Évora, 10 de Outubro de 2024*** Relator: Ricardo Manuel Neto Miranda Peixoto 1º Adjunto: António Fernando Marques da Silva; e 2ª Adjunto: Filipe Aveiro Marques. __________________________________________________ [1] Quanto à densificação do critério da necessidade de apresentação em virtude de ocorrência posterior, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.09.2018, relatado pelo Juiz Desembargador Rijo Ferreira no processo n.º 744/11.1TBFUN-D.L1-1, considerou que o grau dessa necessidade não tem de ser significativo, bastando que a apresentação do documento se revele útil como meio de prova, sendo que a ocorrência posterior deve ser relacionada com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialéctica que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa, e consistirá, na generalidade dos casos, na revelação de factos instrumentais, complementares ou concretizadores. Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/ada14cc39642658c802583160036f513?OpenDocument [2] Com entendimento próximo do que aqui se apresenta, vide o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.10.2021, relatado pelo Juiz Desembargador Fonte Ramos no processo n.º 852/20.8T8FIG-A.C1, cujo sumário reza: “1. Desde a fase da instrução do processo (artigos 410.º e seguintes do CPC) até à sentença (artigo 607.º, n.º 1, do CPC), o juiz poderá/deverá realizar ou ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (artigo 411.º do CPC). 2. Salvaguardado o dever de imparcialidade (equidistância), tal poder-dever, inerente ao indeclinável compromisso do juiz com a verdade material, emerge e justifica-se independentemente da vontade das partes na realização das diligências/produção de meios de prova (e da tempestividade dessa iniciativa). 3. Ponderados os princípios do dispositivo, do inquisitório e da auto-responsabilidade das partes, situações de conduta grosseira e indesculpavelmente negligente da parte (v. g., na junção tempestiva dos documentos) poderão ditar a inobservância daquela regra.” Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/c5c99432a7a30c3d8025877d004e6cbf?OpenDocument |