Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
46/21.5GBPSR.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
CONTRADITÓRIO
DIREITO DE DEFESA
DIREITO À PROVA
NULIDADE
Data do Acordão: 02/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Suscitado em audiência, oficiosamente, incidente de alteração do quadro factológico, ampliando significativamente o âmbito temporal em que se circunscreve a prática de factos ilícitos imputados ao arguido, deve proporcionar-se a este não apenas a possibilidade de os contraditar, como também, relativamente à nova factualidade, produzir provas.
II. Requerendo-se a inquirição de uma testemunha e indicando-se quanto à mesma o conhecimento da vivência subjacente aos novos factos aditados ao objeto do processo, não há razão para não ser admitida.
III. O poder funcional adstrito ao tribunal pelo artigo 340.º do Código de Processo Penal, de conhecer das provas que conduzam à verdade material e à boa decisão da causa, está sujeita ao critério da necessidade da sua produção.
IV. O indeferimento do requerimento de produção de prova oferecido nas referidas circunstâncias vulnera as garantias de defesa do arguido (artigo 32.º/10 da Constituição), constituindo nulidade prevista artigo 120.º/2-d) do Código de Processo Penal, que por ter sido tempestivamente alegada determina a nulidade da sentença.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório

No processo Comum Singular supra identificado proveniente do Tribunal Judicial da Comarca de ... Juízo Local Criminal de ..., foi acusado,

AA, filho de BB e de CC, natural de ..., nascido em .../.../1963, agricultor, divorciado, e residente no ..., ..., ..., ... (TIR a fls. 91);

imputando-lhe os factos contantes da acusação pública e que, no seu entender, integram a prática, dolosamente, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo disposto no artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), 2, alínea a), e n.ºs 4 e 5, com referência aos artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1 e 26.º, 1ª modalidade, todos do Código Penal.

O arguido apresentou contestação, com o teor de fls. 272-273, alegando em súmula o seguinte:

i) o arguido sentia ultimamente que a sua mulher se queria divorciar e como o arguido não lhe deu motivo para tal a sua mulher construiu a autojustificação que o Ministério Público veicula na acusação;

ii) a queixosa recorre à mentira, sendo tudo falso o que consta da acusação;

iii) o arguido nunca foi possessivo nem manipulador;

iv) o arguido sempre respeitou a mulher;

v) o arguido nunca maltratou a sua mulher, aqui queixosa;

vi) deve o arguido ser absolvido.

Arrolou testemunhas.

Não foi deduzido pedido de indemnização civil. O Ministério Público requereu que fosse atribuída uma indemnização a favor da queixosa DD. A queixosa, em audiência de julgamento, não se opôs a que lhe fosse arbitrada uma quantia destinada a reparar os prejuízos sofridos.

No decorrer da audiência procedeu-se a uma alteração não substancial dos factos, tendo disso sido o arguido informado e dada a oportunidade de se defender (artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal), tendo o mesmo requerido prazo para defesa, o que foi deferido, tendo sido apresentado requerimento de defesa pelo arguido, em relação ao qual o Tribunal tomou posição, indeferindo a inquirição de uma testemunha.

O arguido pediu para prestar declarações adicionais, após a comunicação da alteração não substancial dos factos, tendo o Tribunal permitido o exercício desse direito.


*

Em face do supra exposto, o Tribunal decidiu por sentença lavrada em 11 de outubro de 2022:

a) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 02 (dois) anos e 06 (seis) meses de prisão;

b) Suspender a execução da pena de prisão de 2 (dois) anos e 06 (seis) meses, aplicada ao arguido AA, por igual período de 02 (dois) anos e 06 (seis) meses, mediante: 1) Regime de prova, assente em plano de reinserção social a elaborar pela D.G.R.S.P., com relatórios de acompanhamento, executado com vigilância e apoio da D.G.R.S.P, durante o tempo de duração da suspensão, visando sensibilizar o arguido para a problemática da violência doméstica.

O Tribunal impõe ainda, no regime de prova, como parte integrante do Plano de Reinserção Social, o cumprimento da seguinte regra de conduta: i) Regra de conduta de, no período da suspensão, o arguido frequentar programa para agressores de violência doméstica/programa de prevenção de violência doméstica, devendo a D.G.R.S.P. orientar, apoiar e supervisionar o arguido quanto ao concreto programa a frequentar - artigos 50.º, 51.º, n.º 4, 52.º, n.ºs 1, alínea b), e 4, 53.º, 54.º do Código Penal e artigo 34.º-B da Lei n.º 112/2009.

c) Não aplicar qualquer pena acessória (artigo 152.º n.º 4 do Código Penal);

d) Condenar o arguido AA a pagar à queixosa DD a indemnização arbitrada nos termos conjugados do artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, no valor de 800,00€ (oitocentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, que atualmente se cifra em 4%, contados desde a data da presente sentença até ao efetivo e integral pagamento;

e) Condenar o arguido AA, no pagamento das custas criminais (artigos 513.º e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em 02 (duas) UC´s (artigo 513.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa ao Regulamento), e sendo responsável pelo pagamento dos encargos a que a sua atividade houver dado lugar (artigo 514.º do Código de Processo Penal e artigo 16.º do Regulamento das Custas Processuais), sem prejuízo do apoio judiciário de que eventualmente beneficie.


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O tribunal, por despacho lavrado em acta a 11-10-2022 (Ref.ª citius n.º ...40), o tribunal decidiu indeferir a inquirição de uma testemunha após comunicação de alteração dos factos constantes da acusação:

“Na sessão anterior, o Tribunal comunicou ao arguido uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação pública, conforme consta da Ata e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
O arguido, na pessoa da sua Il. Defensora, requereu prazo de defesa, o que lhe foi concedido, tendo sido apresentado o requerimento de 06-10-2022 sob a refª ...57, em resposta, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Foi concedido o contraditório ao Ministério Público, que promoveu o indeferimento do requerido.
Cumpre apreciar e decidir.
Quanto à concreta defesa do arguido quanto aos factos descritos no despacho de alteração, o Tribunal irá ter em consideração os seus argumentos em sede de sentença, no que considerar relevante, aquando dos factos provados e não provados e na fundamentação de facto.
Relativamente à prova requerida:
Vem o arguido requerer a inquirição de EE, na qualidade de testemunha, madrinha da queixosa, alegando o arguido que esta pessoa “conviveu amiúde com arguido e queixosa, desde que casaram, tendo passado temporadas com eles, em casa do casal e nas férias”.
Ora, desde logo se diga que não se compreende qual a concreta relevância do requerido para estes autos, neste momento.
O agora requerido não se relaciona com a alteração não substancial dos factos. A defesa prevista no artigo 358.º do Código de Processo Penal deve ser apresentada face à alteração comunicada, não servindo como “porta aberta” para o arguido repetir a produção de meios probatórios ou requerer meios de prova que já há muito poderia ter requerido, mas que simplesmente não requereu por sua própria escolha.
Não se vê que utilidade/relevância possa assumir para o objeto do processo a diligência probatória agora requerida pelo arguido, sendo certo que a mesma não se conexiona minimamente com a alteração de factos comunicada.
Não se compreende porque razão, só agora, após produção de toda a prova, tendo o arguido apresentado contestação e carreado prova, ouvindo o Tribunal quatro testemunhas arroladas por si, é que vem o arguido requerer a inquirição de mais uma testemunha. Não se percebe porquê que só agora é que aquela testemunha passou a assumir relevância. Se o arguido considerava que a madrinha da queixosa tinha conhecimento dos factos deveria, em momento próprio a ter indicado, até porque as alterações factuais agora comunicadas não modificaram a acusação nem o objeto em litígio, continuando a analisar-se o mesmo “pedaço de vida”, sendo o mesmo crime o imputado, e sendo os contornos factuais em questão comunicados bastante semelhantes aos já constantes da acusação pública.
Atendendo a toda a prova produzida, entende o Tribunal que a inquirição da testemunha agora requerida apenas tem um objetivo dilatório, com o intuito de protelar o andamento do processo.
Por outro lado, mesmo que assim não se entendesse, sempre se diga que o Tribunal não considera a inquirição desta testemunha essencial ou necessária à boa decisão da causa ou à descoberta da verdade, não se vislumbrando qualquer utilidade para os autos na inquirição desta pessoa.
Desde logo, não resultou apurado dos autos que esta pessoa tenha presenciado qualquer factualidade com relevo para a matéria em discussão, sendo que ninguém referiu a presença desta pessoa no momento e local da factualidade em dissídio. Não resultou apurado ou sequer indiciado que esta pessoa tenha efetivo conhecimento da factualidade em causa. Ademais, também nem o arguido, nem a queixosa, nem nenhuma das testemunhas, referiram que esta pessoa fosse particularmente íntima do casal ao ponto de frequentar todos os dias e constantemente a casa do casal. Também não foi referido que esta pessoa fosse a confidente do arguido ou da queixosa nas matérias em discussão. De salientar ainda que, como se sabe, a maior parte dos factos referentes à violência doméstica costumam ser praticados no interior da residência, na intimidade do lar, longe de terceiros e a maior parte das vezes sem quaisquer testemunhas, presenciando os factos apenas os dois sujeitos envolvidos. Este cenário é bastante recorrente nos casos de violência doméstica. Ora, no caso, não resultou apurado que a madrinha da queixosa tivesse assistido ou tivesse conhecimento de factos com relevo para os autos.
A própria queixosa afirmou que não confidenciava os factos que relatou em Tribunal à sua madrinha (uma senhora de 96 anos, que vive em ...), e que esta até ficou chateada com a queixosa por ela ter saído de casa, esclarecendo a queixosa que a sua madrinha “tem uma mentalidade à antiga”, que considera que “o casamento é para a vida”, e que se eventualmente visse ou ouvisse alguma discussão dizia para “se calar” e que “os homens é que mandavam”, motivo pelo qual a queixosa não lhe confidenciava o que se passava. A queixosa declarou tal de forma credível, até visivelmente magoada por não ter uma rede de apoio familiar nas circunstâncias que relatou.
Por conseguinte, tudo conjugado, entende o Tribunal que a inquirição de EE não assume qualquer relevo ou utilidade para a matéria em discussão.
Tudo exposto, o Tribunal indefere o requerido.
Por conseguinte, nos termos do artigo 358.º do Código de Processo Penal, determino a alteração não substancial dos factos em conformidade com o despacho anteriormente proferido, passando-se de imediato à prolação de sentença, nesta considerando a factualidade comunicada.”

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O arguido não se conformou com a decisão proferida pela Mmª Juíza em audiência e assim interpôs recurso interlocutório do despacho lavrado em acta a 11-10-2022, bem como da sentença final, concluindo:

I - Da ilegalidade do despacho de 11-10-2022 que indeferiu a audição da testemunha EE
1- Em audiência de discussão e julgamento de dia 29-09-2022, o tribunal recorrido proferiu despacho de alteração não substancial dos factos constantes da acusação.
2- Por via dessa alteração o Recorrente, arguido, foi confrontado com vários novos factos, que, isoladamente, fora da moldura penal da violência doméstica, preencheriam até a moldura penal de vários novos crimes de ofensa à integridade física e de injúria, e que se situam em período diferente daquele que constava inicialmente na acusação.
3- No seguinte consistiu a alteração:
- foi alargado o período durante o qual os factos teriam sido praticados – já não só em 2020 e 2021, mas agora a partir do ano de 2015 e até à data de saída da queixosa da residência do casal, em Março de 2021;
- foram aditadas novas e diferentes injúrias e praticadas agora em contextos diferentes – já não apenas durante discussões não determinadas no tempo, mas agora concretamente no dia 5 de Março de 2021;
- foram aditadas novas e diferentes agressões físicas, em circunstâncias também diferentes e já não apenas pontuais (“vários estalos na face da vítima e empurrões, projetando-a”), mas agora continuadas durante a discussão do dia 5 de Março de 2021 (“tendo retirado o telefone das mãos da queixosa”, “agarrou nos pulsos da queixosa, abanou-a, puxou-lhe os cabelos, e empurrou-a, conduzindo a que a queixosa embatesse com a cabeça nos azulejos da cozinha”, “a queixosa caiu no chão, tendo de seguida se levantado”, “e tendo novamente sido empurrada pelo arguido, o que conduziu a que mesma caísse novamente no chão”, “desferiu ainda vários estalos na face, na cabeça e nas mãos da queixosa”)-;
- foi aditado que, após as agressões de dia 5 de Março de 2021, a queixosa “saiu para o exterior da residência”;
- foi aditado que a queixosa saiu da residência do casal e em que data,“dia 12 de março de 2021” e “que o fez sem avisar previamente o arguido das suas intenções, tendo ingressado numa Casa Abrigo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e tendo posteriormente ido residir para casa do seu irmão.”
4- Todos estes factos, vários e muito graves, são completamente novos. Eles não alteram a qualificação jurídica do crime, mas alteram o momento da sua prática e configuram novas imputações.
5- Notificado deste despacho, o Recorrente, no exercício do seu direito de defesa, para tentar provar que também não praticou estes novos factos, nem havia fundamento para dar como provado os iniciais, requereu a audição de uma nova testemunha, EE.
6- Alegou que a testemunha é “madrinha da queixosa que conviveu amiúde com arguido e queixosa, desde que casaram, tendo passado temporadas com eles, em casa do casal e nas férias”.
7- O tribunal recusou ouvir a testemunha. Pensa-se que sem fundamento; e contra a lei.
8- O tribunal “deve ter especiais cautelas” quando indefere a produção de provas suplementares, em casos como os dos autos em que, não havendo alteração substancial dos factos descritos na acusação, há aditamento de vários novos factos. (cfr., nesse sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-11-2014 in www.dgsi.pt)
9- As diligências de prova requeridas só devem ser indeferidas se, da análise feita, o tribunal concluir que não podem vir a reputar-se essenciais para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa.
10- Não basta, para concluir pela recusa de audição da testemunha, argumentar-se, como se faz no despacho recorrido que o arguido “já há muito poderia ter requerido, mas que simplesmente não requereu por sua própria escolha”; admirar-se de “só agora é que aquela testemunha passou a assumir relevância”; dizer-se que a testemunha “não se conexiona minimamente com a alteração de factos comunicada”; que as alterações factuais agora comunicadas continuam “a analisar o mesmo “pedaço de vida”; que são “os contornos factuais em questão comunicados bastante semelhantes aos já constantes da acusação pública”, que “não resultou apurado ou sequer indiciado que esta pessoa tenha efetivo conhecimento da factualidade em causa, que nem o arguido, nem a queixosa, nem nenhuma das testemunhas, referiram que esta pessoa fosse particularmente íntima do casal ao ponto de frequentar todos os dias e constantemente a casa do casal, que não foi referido que esta pessoa fosse a confidente do arguido ou da queixosa nas matérias em discussão; enfim, concluir-se que se tratou de uma manobra dilatória, “com o intuito de protelar o andamento do processo”.
11- Ao argumentar-se assim não se teve em conta que as alterações factuais agora comunicadas não continuam “a analisar o mesmo “pedaço de vida” e que “os contornos factuais em questão comunicados” são, afinal,“bastante semelhantes aos já constantes da acusação pública”.
12- O tempo é outro, as agressões físicas e as injurias são outras. A acusação situava os factos nos anos de 2020 e 2021. Agora o período temporal passou a ser entre o ano de 2015 e Março de 2021. É outro “pedaço de vida”, muito mais alargado, e sobre o qual o Recorrente não teve oportunidade de se defender indicando prova.
13- Acresce que as injurias agora imputadas pelo tribunal como tendo sido praticadas também antes de 2020 são novas - “incompetente”, “malcriada”, “uma coitadinha”, “uma desgraçada”, que “nunca fez nada na vida”, que “não faz nada”, que “não vale nada”, “que não presta para nada”, que se não fosse ele ela não era ninguém, e que “não sabe qual é o seu braço direito”; e que também são novas as agressões físicas alegadamente praticadas no dia 5 de Março, aliás muito diferentes das que constavam na acusação.
14- Nova também a imputação ao arguido de ter “retirado o telefone das mãos da queixosa”, de ter agarrado “nos pulsos da queixosa” de a ter abanado, de lhe ter puxado os cabelos, de a ter empurrado “conduzindo a que a queixosa embatesse com a cabeça nos azulejos da cozinha”, de a ter atirado ao chão mais do que uma vez, de lhe ter desferido “ainda vários estalos na face, na cabeça e nas mãos”.
15- Nada disso constava da acusação inicial.
16- Por serem novos os factos, as testemunhas indicadas pelo arguido na contestação não foram (não podiam ter sido) ouvidas sobre eles.
17- O Recorrente tinha, por isso, o direito de se defender destas novas e graves imputações indicando novamente prova, fosse ela qual fosse.
18- O despacho de indeferimento da audição da testemunha EE é, por isso, ilegal. A Meritíssima Juiz ao indeferir a audição da testemunha impediu ilegalmente produção de prova indispensável para a boa decisão da causa, que podia claramente vir a reputar-se essencial para a descoberta da verdade, pelo menos dos novos factos, violando, assim, o disposto no artigo 340º, nº1 e nº4, alíneas b) e c) do C.P.Penal.
19- O despacho judicial em causa é recorrível ao abrigo do disposto no artigo 399º do C.P.Penal (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7-11-2017, in www.dgsi.pt)
20- Deve, por isso, revogar-se o despacho proferido e substitui-lo por outro que admita a inquirição da testemunha, dando-se sem efeito, consequentemente, a douta sentença e ordenando-se a reabertura da audiência de julgamento.

II Dos vícios da sentença

21- O Recorrente foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período, mediante o cumprimento de um regime de prova. Foi ainda condenado a pagar à queixosa uma indemnização de €800,00.
22- Foi injustamente condenado. É inocente.
23- A prova produzida nos autos - basicamente o depoimento da queixosa - é de tão duvidosa credibilidade, que a condenação que nela se apoiou não resiste à denúncia, que aqui se faz, de se ter violado o princípio “in dubio pro reo”, consagrado no artigo 32º, nº2, 1ª parte da CRP e de se ter incorrido em erro de julgamento e em erro notório da apreciação da matéria de facto.
24- A queixosa disse na audiência de julgamento de dia 20-09-2022, nas suas declarações que tiveram início pelas 10 horas e 09 minutos e termo pelas 11 horas e 21 minutos, o seguinte (cfr. acta do julgamento):
1- Em resposta à Senhora Procuradora:
- ao minuto 9:31: que o arguido lhe disse que era “incompetente, nunca faz nada na vida, não sabe qual é o braço direito, se não fosse eu não era ninguém, não vale nada, ordinária, varina, estúpida, malcriada”;
- ao minuto 1:00:07: “ordinária, varina, peixeira
- ao minuto 14:06: que as agressões aumentaram em “2014, 2013”.
2- Posteriormente, em resposta à Meritíssima Juiz:
- ao minuto 58:30: que “piorou em 2015, 2014, 2015
- ao minuto 1:01:40: “o AA desligou o telefone com o contabilista, olhou para mim e disse “como é que foi capaz de fazer uma coisa destas?” e começou aos gritos, com as mãos na cabeça, a dizer-me sua estúpida, sua malcriada, como é que foi capaz de me trair, que eu era uma estúpida, uma ordinária, uma malcriada, depois voltou a gritar mas assina, mas assina”;
- ao minuto 1:03:22: “estávamos na sala, eu levantei-me e disse vou-me embora e peguei na agenda e no telefone, ele desconfiou que eu ia telefonar, tirou-me a agenda, atirou com o telefone e disse que eu não saía dali sem assinar os papeis, levantei-me e fui para a cozinha, acendi um cigarro, ele ficou na sala, voltou à cozinha, começou outra vez a gritar comigo, eu estava encolhida, comecei a ter medo, correu para mim, agarrou-me os pulsos, abanou-me, puxou-me os cabelos, atirou-me com a cabeça para a parede, eu tentei levantar-se, empurrou-me, cai na cadeira, tentei ir para a sala, ele foi atrás de mim”
Perguntada pelos estalos disse:
- ao minuto 1:05:10: “foi nessa altura em que me empurrou contra parede, me agarrou os pulsos, puxou-me o cabelo, deu-me uns estalos, eu disse que ia sair da cozinha, empurrou-me outra vez e deu-me outro estalo
Onde? Pergunta a Meritíssima Juiz:
- ao minuto 16:06.30: “cara, cabeça e mãos
Disse ainda ao minuto 1:09:47: “fiquei com dores nos pulsos, dores na cabeça, não fiquei com marcas”, ao minuto 1:09:51 “um galaroco por ter batido com a cabeça nos azulejos”, e ao minuto 1:09:02: “fiquei com um risco preto nos pulsos”.
25- A maior parte destes factos não foram referidos pela queixosa quando apresentou queixa, nem ao longo do inquérito.
26- Nenhum destes factos foi corroborado por testemunhas. A queixosa não indicou nenhuma, nem sequer o seu irmão, com quem disse que passou a viver (cfr. ponto 21 da matéria de facto provada) e que podia testemunhar o seu estado de espírito, nem a amiga a quem disse que pediu ajuda.
27- Na audiência de julgamento de dia 20-09-2022, nas suas declarações que tiveram início pelas 10 horas e 09 minutos e termo pelas 11 horas e 21 minutos, ao minuto 19:05 disse: “pedi apoio à APAV e a uma amiga minha”.
28- Também não foi apresentada uma só fotografia das lesões que agora alega ter sofrido na cabeça, na cara, nos pulsos, nem um só documento médico.
29- A lógica da vida e as regras da experiência comum dizem-nos que quem apresenta várias versões - ora diz uma coisa, ora diz outra - muito provavelmente não está a dizer a verdade.
30- E essa óbvia constatação devia ter criado uma dúvida insanável no espírito do julgador sobre a veracidade das declarações prestadas pela queixosa em julgamento e levado à sua absolvição.
31- Louvando-se na prova assim exposta, em desfavor do arguido, violou-se o princípio “in dubio pro reo” (artigo 32º, nº 2, 1ª parte, da CRP).
32- A par disso, entende o Recorrente que as justificações apontadas pelo tribunal para as discrepâncias do depoimento da queixosa e para a ausência de outra prova directa, não têm lógica, nem estão de acordo com as regras da experiência comum.
33- Entende o Recorrente, e isso invoca, que o tribunal incorreu em erro de julgamento e, também, em erro notório na apreciação da prova:
- ao considerar “normal – de acordo com os padrões de normalidade – que uma pessoa não se lembre à letra e vírgula de todas as expressões” (cfr. pp. 10 da sentença), mesmo quando vai mudando o seu depoimento, como lhe apetece, ao longo do processo;
- ao acreditar em tudo o que a queixosa disse porque “os maus tratos ocorrerem por via de regra na residência comum do casal, sem testemunhas” (cfr. pp. 11 da sentença);
- ao afirmar que “a queixosa não relatou nenhum episódio de violência física em que a mesma tenha necessitado de assistência hospitalar, referindo apenas dores”, “não mencionou, em nenhum momento, que tenha permanecido com hematomas ou feridas visíveis.” (cfr. p.13), tendo ela dito “fiquei com dores nos pulsos, dores na cabeça, não fiquei com marcas”, ao minuto 1:09:51 “um galaroco por ter batido com a cabeça nos azulejos” e ao minuto 1:09:02: “fiquei com um risco preto nos pulsos”.
- ao admitir que não haja registos das lesões por “simplesmente não se ter lembrado na altura de guardar registo para esse efeito (até porque a vitima poderia nem sequer estar a pensar em fazer prova de alguma coisa, preferindo antes resguardar-se).” (p. 13 da sentença), quando nunca disse ela que não se lembrou de guardar registo;
- ao não ter valorizado a favor do Recorrente, mas contra ele, o facto de nunca mais ter contactado a queixosa, depois de esta sair de casa;
- ao não ter valorizado a favor do Recorrente o facto de a queixosa ter declarado que não sente medo, actualmente, dele;
- ao ter desvalorizado o facto de a queixosa ter alegado ter sido vítima de agressões no dia 5 de Março, mas ter saído de casa só 7 dias depois;
- ao ter considerado que a queixosa não forneceu a sua localização à GNR porque “tinha receio que algo lhe acontecesse e que não queria que o arguido soubesse da sua localização, compatível assim com as suas declarações prestadas em tribunal.” (p.12 da sentença);
- ao se socorrer da queixa que o arguido fez de desaparecimento da queixosa para credibilizar o depoimento desta, ao invés de a ter como factor a favor do arguido.
34- A fundamentação da convicção do tribunal baseada apenas no depoimento da queixosa sobre factos que foram alegadamente praticados dentro de casa, longe dos olhares de terceiros, sem que haja sequer provas documentais sobre as alegadas agressões físicas, acarreta um especial cuidado do julgador, pois o arguido, inocente até prova em contrário, face ao contexto relatado pela queixosa, não tem sequer ao seu dispor meios de prova que lhe permitam contraditar o depoimento da queixosa.
35- Violou-se o artigo 127º do C.P.Penal por se ter incorrido em erro de julgamento e em erro notório na apreciação da matéria de facto.
36- A duvidosa credibilidade do depoimento da queixosa e a ausência de outras provas impunham, impõem, que se considerem como não provados todos os factos dos pontos 3 a 19 a saber:
3. Desde o início dessa relação que o arguido, AA, demonstrou ser possessivo e manipulador.
4. Com efeito, sempre que DD saía de casa tinha de informar o arguido onde ia e com quem estava.
5. Não obstante a queixosa informar para onde ia, e com quem ia estar, o arguido ligava-lhe a perguntar onde estava e com quem estava.
6. Em data não concretamente apurada, mas, pelo menos a partir do ano de 2015 e até à data de saída da queixosa da residência do casal (isto é, em março de 2021), o arguido, no interior da residência do casal, com uma periodicidade semanal, iniciava discussões com DD, e, durante essas discussões gritava-lhe que esta era “incompetente”, “ordinária”, “estúpida”, “malcriada”, “uma coitadinha”, “uma desgraçada”, assim como gritava-lhe que ela “nunca fez nada na vida”, que “não faz nada”, que “não vale nada”, “que não presta para nada”, que se não fosse ele ela não era ninguém, e que “não sabe qual é o seu braço direito”.
7. No dia 05 de março de 2021, o arguido AA iniciou uma discussão com DD, motivada por duas empresas que ambos exploram.
8. AA pretendia que DD assinasse alguns documentos para que a tesouraria destas empresas passasse a ser feita em conjunto, designadamente através de uma conta bancária em conjunto, o que DD recusou.
9. Durante essa discussão, o arguido em tom elevado apelidou DD de “estúpida”, “malcriada”, “ordinária”, “varina” e “peixeira”, e em tom elevado e sério disse a DD “ai assina, assina”, “quem manda sou eu”, tendo retirado o telefone das mãos da queixosa, projetando-o para o chão, e dito à queixosa que dali não saía sem assinar os papéis.
10. Após, a queixosa dirigiu-se para a cozinha da residência, tendo o arguido ido ao seu encontro momentos depois, aos gritos, e agarrou nos pulsos da queixosa, abanou-a, puxou-lhe os cabelos, e empurrou-a, conduzindo a que a queixosa embatesse com a cabeça nos azulejos da cozinha.
11. No decorrer da discussão e dos empurrões desferidos pelo arguido, quando se encontravam na cozinha, a queixosa caiu no chão, tendo de seguida se levantado, e tendo novamente sido empurrada pelo arguido, o que conduziu a que mesma caísse novamente no chão.
12. No decorrer da referida discussão o arguido desferiu ainda vários estalos na face, na cabeça e nas mãos da queixosa.
13. Enquanto agia desta forma, o arguido AA ia-lhe gritando para assinar os documentos.
14. Posteriormente a queixosa saiu para o exterior da residência, tendo os ânimos se acalmado.
15. Como consequência da conduta do arguido, DD sentiu dores no seu corpo.
16. Ao agir da forma descrita o arguido fê-lo com o objetivo concretizado de menosprezar e ofender DD na sua honra e consideração, fazendo com que esta se sentisse humilhada, resultado esse que representou.
17. O arguido teve sempre a intenção de maltratar física e psicologicamente DD, nela criando e potenciando sentimentos de vergonha, humilhação, diminuição e frustração, sabendo que era sua companheira e que praticava os factos descritos no interior da residência que partilhava com a mesma, agindo com esse intuito.
18. O arguido bem sabia que, ao agir conforme descrito, desrespeitava os deveres de respeito e de solidariedade que devia a DD, como sua companheira e, não obstante, não se coibiu de agir da forma descrita.
19. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
37- Impunha-se, impõe-se, ainda que se declare que, do ponto 23, apenas ficou provado que:Não existe registo entre os sujeitos envolvidos, de episódios de agressões físicas e/ou verbais, após a separação.” E que o mais do ponto 23 – que “Não existe registo de repetição dos episódios supra descritos entre os sujeitos envolvidos” - não ficou provado.
38- Decidindo-se como se decidiu, violou-se o disposto no artigo 32º, nº 2, 1ª parte, da CRP (que consagra o principio “in dubio pro reo”) e o artigo 127º do C.P.Penal (erro, de forma notória, na apreciação da matéria de facto e erro de julgamento), vícios que, reconhecidos, devem levar à absolvição do arguido, depois de se ter corrigido (dando-se como não provados os factos dos pontos 3 a 19 que, no julgamento de facto da sentença, foram dados como provados e de se ter alterado, como se indicou, o facto do ponto 23) a matéria de facto da sentença impugnada no presente recurso.
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Respondeu a Digna magistrada do MP, concluindo:

i. A requerida audição da testemunha EE, em sede de defesa, após comunicação da alteração não substancial dos factos vertidos na acusação pública, afigurou-se não conexionada com a referida alteração, bem assim desprovida de fundamento e efeito útil, já que a factualidade aditada não modificou o objeto fixado pela acusação, os contornos dos factos em dissídio e o crime em apreço.
ii. Não resultou apurado em julgamento que alguém tivesse assistido a qualquer dos episódios sob cogitação, pelo que não se vislumbra de que forma a audição desta pessoa poderia ter contribuído para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. Mais, não se percebe como a sua audição foi tida por desprovida de significância em momento prévio ao do encerramento da audiência de discussão e julgamento, e, tenha a mesma assumido (de repente) relevância, após a comunicação da alteração não substancial dos factos, que não extravasou os limites do tipo legal de crime em causa, bem assim os contornos da factualidade descrita na acusação.
iii. O indeferimento do requerimento probatório, por despacho datado de 11/10/2022, não foi de molde a impedir ilegalmente produção de prova indispensável para a boa decisão da causa e que poderia vir a reputar-se essencial para a descoberta da verdade, pelo que o Tribunal a quo não violou o disposto no artigo 340.º, n.ºs 1 e 4, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.
iv. As declarações prestadas pela queixosa em sede de audiência de discussão e julgamento revelaram um discurso escorreito, franco, convincente, prestado com naturalidade, não buscando efabular os factos e consentâneo com o relatar de experiências vivenciadas, denotando assim isenção e credibilidade.
v. Não corresponde à verdade que a queixosa tenha apresentado várias versões dos factos, de molde a criar no espírito do julgador uma dúvida insanável. Quanto muito, aquela terá circunstanciado a narrativa que apresentou aquando da formalização da queixa, sendo, contudo, inegável que aborda sempre os mesmos segmentos factuais que denunciou e relatou em sede de inquérito.
vi. Tais declarações, nos moldes em que foram prestadas, não suscitaram dúvidas quanto à sua veracidade, pelo que, e também valorada a demais prova pré-constituída e produzida, o Tribunal a quo não violou o princípio in dubio pro reo.
vii. A queixosa não relatou nenhum episódio de violência física em que a mesma tenha necessitado de assistência hospitalar ou em que tenham ficado visíveis hematomas ou outras lesões. As menções ao «galaroco na cabeça» e ao «risco preto nos pulsos», pela forma como a queixosa se exprimiu, deixaram claro que tais lesões não foram de molde a deixar marcas profundas e ostensivas, daí ter utilizado a expressão «galaroco», quase que minimizando a lesão em causa, e ter referido «Doíam-me os pulsos. Talvez tivesse aqui um risco preto, de me apertar aqui os pulsos, mas isso não foi relevante para ir ao hospital».
viii. Portanto, foi feita prova da inexistência de lesões graves e ostensivas, que tivessem justificado assistência hospitalar.
ix. O Tribunal a quo não incorreu em erro de julgamento em matéria de facto (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal) ao afirmar que a queixosa não relatou nenhum episódio de violência física em que a mesma tenha necessitado de assistência hospitalar ou em que tenham ficado visíveis (de forma evidente e segura) hematomas ou outras lesões.
x. Bem andou o Tribunal a quo ao reputar de estranha a circunstância de, em sede de declarações, o (então) arguido afirmar que a sua mulher saiu de casa sem lhe dar explicações, estando alegadamente tudo bem; e ele, após a participação, nas autoridades, do desaparecimento da mesma, não mais a ter tentado contactar. E, na verdade, como compreender que numa relação em que esteja tudo bem, perante a saída de casa da mulher, sendo desconhecido o seu paradeiro e (alegadamente) as razões subjacentes ao seu desaparecimento, o arguido não mais a tenha tentado contactar? Será este comportamento consentâneo com as regras do normal viver? Ainda que existisse uma queixa-crime por violência doméstica formalizada contra si, seria perfeitamente normal que tentasse contactar a queixosa, até para a confrontar com o sucedido.
xi. Bem andou o Tribunal a quo ao ter considerado plausível e admissível a justificação apresentada pela queixosa para o facto de apenas ter abandonado a casa de morada de família sete dias decorridos sobre o episódio do dia 05 de março de 2021, por ter necessitado de preparar a sua saída, tendo estabelecido contacto com a APAV de forma a poder integrar uma casa de acolhimento, já que era frágil o seu suporte familiar. Ademais, não estamos a falar de um contexto de violência doméstica em que a vítima sente existir um risco iminente para a sua vida, que a obriga a encetar fuga, no imediato, numa tentativa de se salvar. Na verdade, o episódio do dia 05 de março de 2021 constituiu o mais grave dos episódios relatados pela queixosa, mas este foi o culminar de uma sucessão de acontecimentos, pelo que foi nesse momento que a queixosa sentiu que tinha mesmo de sair de casa.
xii. Não se reputa de ilógica a opção da queixosa em não revelar o seu paradeiro, sequer às autoridades. As razões que levam as pessoas a adotar determinados comportamentos em situações-limite podem parecer insondáveis, mas fará sentido pensar que a queixosa quis, de facto, “recolher-se”, omitindo em pleno a sua localização.
xiii. O facto de o (então) arguido se ter deslocado ao Posto da G.N.R. para apresentar queixa pelo desaparecimento da queixosa, comprova efetivamente que a mesma saiu subitamente de casa, nada dizendo ou justificando àquele. O Tribunal limitou-se a constatar tal facto, configurando mero juízo conclusivo qualquer outra ilação a retirar de tal circunstância.
xiv. O Tribunal a quo não incorreu em erro notório na apreciação da prova (alínea c), do n.º 2, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal) no que respeita às conclusões que alcançou, vertidas nos antecedentes pontos x., xi, xii e xiii.
Nesta conformidade, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida, nos seus precisos termos, a douta decisão recorrida.

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O Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer onde se pronunciou no sentido da improcedência do recurso.

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B - Fundamentação

B.1.1 - Factos provados


Da acusação e do julgamento

1. O arguido AA e DD, casaram em 06 de dezembro de 1997, tendo vivido em comunhão de mesa, leito e habitação desde então e fixando residência em ..., em ....

2. Desta relação não nasceu qualquer filho.

3. Desde o início dessa relação que o arguido, AA, demonstrou ser possessivo e manipulador.

4. Com efeito, sempre que DD saía de casa tinha de informar o arguido onde ia e com quem estava.

5. Não obstante a queixosa informar para onde ia, e com quem ia estar, o arguido ligava-lhe a perguntar onde estava e com quem estava.

6. Em data não concretamente apurada, mas, pelo menos a partir do ano de 2015 e até à data de saída da queixosa da residência do casal (isto é, em março de 2021), o arguido, no interior da residência do casal, com uma periodicidade semanal, iniciava discussões com DD, e, durante essas discussões gritava-lhe que esta era “incompetente”, “ordinária”, “estúpida”, “malcriada”, “uma coitadinha”, “uma desgraçada”, assim como gritava-lhe que ela “nunca fez nada na vida”, que “não faz nada”, que “não vale nada”, “que não presta para nada”, que se não fosse ele ela não era ninguém, e que “não sabe qual é o seu braço direito”.

7. No dia 05 de março de 2021, o arguido AA iniciou uma discussão com DD, motivada por duas empresas que ambos exploram.

8. AA pretendia que DD assinasse alguns documentos para que a tesouraria destas empresas passasse a ser feita em conjunto, designadamente através de uma conta bancária em conjunto, o que DD recusou.

9. Durante essa discussão, o arguido em tom elevado apelidou DD de “estúpida”, “malcriada”, “ordinária”, “varina” e “peixeira”, e em tom elevado e sério disse a DD “ai assina, assina”, “quem manda sou eu”, tendo retirado o telefone das mãos da queixosa, projetando-o para o chão, e dito à queixosa que dali não saía sem assinar os papéis.

10. Após, a queixosa dirigiu-se para a cozinha da residência, tendo o arguido ido ao seu encontro momentos depois, aos gritos, e agarrou nos pulsos da queixosa, abanou-a, puxou-lhe os cabelos, e empurrou-a, conduzindo a que a queixosa embatesse com a cabeça nos azulejos da cozinha.

11. No decorrer da discussão e dos empurrões desferidos pelo arguido, quando se encontravam na cozinha, a queixosa caiu no chão, tendo de seguida se levantado, e tendo novamente sido empurrada pelo arguido, o que conduziu a que mesma caísse novamente no chão.

12. No decorrer da referida discussão o arguido desferiu ainda vários estalos na face, na cabeça e nas mãos da queixosa.

13. Enquanto agia desta forma, o arguido AA ia-lhe gritando para assinar os documentos.

14. Posteriormente a queixosa saiu para o exterior da residência, tendo os ânimos se acalmado.

15. Como consequência da conduta do arguido, DD sentiu dores no seu corpo.

16. Ao agir da forma descrita o arguido fê-lo com o objetivo concretizado de menosprezar e ofender DD na sua honra e consideração, fazendo com que esta se sentisse humilhada, resultado esse que representou.

17. O arguido teve sempre a intenção de maltratar física e psicologicamente DD, nela criando e potenciando sentimentos de vergonha, humilhação, diminuição e frustração, sabendo que era sua companheira e que praticava os factos descritos no interior da residência que partilhava com a mesma, agindo com esse intuito.

18. O arguido bem sabia que, ao agir conforme descrito, desrespeitava os deveres de respeito e de solidariedade que devia a DD, como sua companheira e, não obstante, não se coibiu de agir da forma descrita.

19. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.


Da contestação

20. O arguido sentia que a sua mulher ultimamente se queria divorciar.

Mais se apurou:

21. DD saiu da residência do casal no dia 12 de março de 2021, sem avisar previamente o arguido das suas intenções, tendo ingressado numa Casa Abrigo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e tendo posteriormente ido residir para casa do seu irmão.

22. O arguido e a queixosa encontram-se atualmente divorciados, estando separados desde 12 de março de 2021, ambos trabalhando.

23. Não existe registo de repetição dos episódios supra descritos entre os sujeitos envolvidos, nem de quaisquer outros novos episódios de agressões físicas e/ou verbais, após a separação.


Quanto à condição socioeconómica provou-se:

24. AA de 58 anos de idade, é o mais novo de dois irmãos, de uma família tradicional, na qual os papéis masculino e feminino são recordados como bem definidos.

25. O pai era agricultor por conta própria e a mãe doméstica. Refere uma situação económica sempre estável, alicerçada no trabalho do pai.

26. O arguido refere-se ao funcionamento familiar valorizando a harmonia e a ausência de conflitos entre os pais, aspeto que se revela coerente com as referências encontradas junto de outras fontes.

27. AA refere não ter tido qualquer experiência pessoal de violência, em criança. 28. O arguido frequentou o Colégio ..., onde frequentou até ao 11.º ano, o qual não concluiu.

29. Cumpriu o Serviço Militar Obrigatório durante 24 meses, entre ... e Lisboa, após o termo do mesmo, ingressou na Escola ..., no curso de empresário agrícola, que, entretanto, também não terminou.

30. AA conheceu o futuro cônjuge, que estava internada no “...”, onde frequentava o Liceu de ..., namoraram durante cerca de 12 anos, com alguns interregnos pelo meio.

31. Para AA a esposa não foi a primeira mulher por quem se interessou.

32. AA contraiu matrimónio com a queixosa aos 36 anos; o arguido e a queixosa estiveram casados cerca de 22 anos, e não têm filhos.

33. Perante os 22 anos de vida em comum, o arguido faz uma avaliação positiva do relacionamento.

34. Desde março de 2021, altura em que o cônjuge saiu de casa, que o arguido reside sozinho.

35. AA continua a residir na morada de família, pertença dos seus progenitores. A habitação recuperada possui todas as infraestruturas básicas necessárias ao seu conforto.

36. O arguido trabalha como empresário agrícola, é proprietário da empresa “... auferindo um vencimento mensal de 750€, e no final do ano, após o apuramento dos lucros, recebe os mesmos. Considera a sua situação económica minimamente estável, sendo, no entanto trabalhosa.

37. Mantém uma relação próxima com a irmã, e com os progenitores, sendo estes um referente em termos afetivos e emocionais.

38. AA é considerado um bom profissional.

39. As relações de amizade que mantém são importantes para o arguido, visto que lhe servem de apoio e auxílio.

40. Atualmente e segundo os OPC, não existem novos processos em relação ao arguido.

41. O presente processo tem causado no arguido e na família uma sensação de desconforto e de preocupação.

42. AA apresenta um percurso de vida organizado, socialmente inserido, centrado no trabalho e na sua imagem social.


Quanto aos antecedentes criminais provou-se:

43. O arguido não tem averbados quaisquer antecedentes criminais no seu registo criminal.

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Factos não provados

Da acusação
A. O arguido, nas circunstâncias referidas em 5), ligava à vítima insistentemente.
B. Se a queixosa não atuasse nos termos referidos em 4) e 5), quando chegava a casa, o arguido iniciava discussão consigo.
C. As expressões referidas em 6) ocorreram apenas entre os anos de 2020 e 2021.
D. O arguido durante as discussões gritava a DD que ela era “uma puta”, “uma suja”, “uma porca”, “uma burra” e dizia “que não tens habilidade para nada”.
Da contestação
E. O arguido não sabe porquê que a sua mulher se queria divorciar.
F. O arguido nunca deu motivo à queixosa para o divórcio, pelo que a queixosa construiu ela a sua autojustificação.
G. A queixosa recorre à mentira por falta de coragem em assumir a rutura.
H. O arguido nunca foi possessivo nem manipulador.
I. O arguido sempre respeitou a sua mulher.
J. O arguido nunca injuriou a queixosa, nunca lhe desferiu estalos nem deu empurrões.
K. A queixosa nunca sofreu qualquer dor no corpo causada pelo comportamento do arguido.
L. A discussão referida em 7) não ocorreu.
*

Os restantes factos alegados, não especificamente dados como provados ou não provados, ou são a repetição ou negação de outros já dados como provados, ou são conclusivos (em termos factuais ou por encerrarem questões de Direito ou adjetivações), ou são irrelevantes para a decisão.

Tenha-se ainda em consideração a alteração não substancial dos factos que ocorreu, e que foi comunicada pelo Tribunal ao arguido, tendo essa nova factualidade sido inserida nos actos, existindo assim diferenças face à matéria factual contida inicialmente na acusação pública.

Face à alteração não substancial dos factos, devidamente comunicada ao arguido, foram esses novos factos carreados para os factos provados. Em particular, o ponto n.º 7 da acusação foi alterado, nos termos constantes do facto n.º 6 supra dado como provado; o ponto n.º 10 da acusação foi igualmente alterado, passando a ter a redação dos factos n.ºs 9, 10, 11, 12 e 14 dados supra como provados.


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Motivação da matéria de facto

«No apuramento da factualidade provada o Tribunal formou a sua convicção com base na apreciação crítica das declarações prestadas pelo arguido; das declarações da queixosa DD; do auto de notícia de fls. 106-109 (original); do registo do cartão de cidadão do arguido de fls. 36; do assento de nascimento do arguido, de fls. 42-43; do assento de nascimento da queixosa DD de fls. 44-45; da informação fornecida pela GNR a fls. 69 (e fls. 145); das informações fornecidas pela APAV a fls. 75, 104, 149 e 154; das fichas de avaliação do risco juntas aos autos; do expediente de fls. 97-101 (e fls. 184-192), referente à entrega do equipamento de teleassistência; do Termo de Juntada de fls. 130 e da informação de pessoa desaparecida de fls. 131-135 (e suporte fotográfico de fls. 137-138); dos documentos de fls. 211, 212, 217 (quanto à suspensão provisória do processo); do relatório social elaborado pela DGRSP (refª eletrónica n.º ...96); e do certificado de registo criminal junto aos autos (refª n.º ...85); tudo de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, o qual impõe uma apreciação de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinem uma convicção racional, objetivável e motivável. Isto tudo conjugado com as regras da experiência comum e os padrões de normalidade e lógica.
O facto n.º 1 decorre das declarações da queixosa DD e das declarações do arguido, a par dos assentos de nascimento juntos aos autos (de onde resulta o averbamento do casamento – cf. fls. 42-43 e 44-45).
Facto n.º 2: deriva das declarações da queixosa e das declarações do arguido.
No que respeita aos factos n.ºs 3 a 18 a convicção do Tribunal formou-se, desde logo, nas declarações da queixosa, DD, tendo esta revelado conhecimento direto dos factos, por ter sido vítima dos mesmos. Com efeito, a queixosa foi relatando os factos que ao longo de um determinado período temporal foram ocorrendo entre ela e o arguido, descrevendo a relação que teve com o arguido, o tempo que durou, as suas vicissitudes, a residência onde viveram, as discussões existentes, os insultos proferidos (descrevendo-os, a par do local onde eram proferidos, normalmente no interior da residência comum), as expressões proferidas pelo arguido contra si, as imputações, as agressões físicas praticadas pelo arguido contra si, a personalidade revelada pelo arguido (manipulador, impulsivo, agressivo, possessivo e controlador, não aceitando ser contrariado), a postura revelada pelo arguido nas discussões e as dores e humilhações que sentiu. DD relatou como era viver com o arguido, as discussões existentes, a sua personalidade, as pressões psicológicas, as expressões proferidas pelo arguido, o controlo, as agressões e os insultos. Clarificou igualmente os sentimentos por si vivenciados. Descreveu de forma séria e credível vários episódios que ocorreram, assim como os insultos e agressões que sofreu. Circunstanciou na medida do possível os factos que ia relatando, não se podendo olvidar aqui da dificuldade que é – naturalmente – de uma pessoa lembrar-se com exatidão dos dias e meses concretos em que tudo acontece, principalmente quando trata-se de factualidade de base semanal e/ou repetida ao longo de meses e anos ou de factos que já aconteceram há algum tempo (devendo-se atender a que está aqui em causa uma relação com muitos anos). Não obstante, mesmo não conseguindo precisar os dias e meses concretos em que os episódios sucederam, a verdade é que tal não retira, no entender do Tribunal, a credibilidade a esta testemunha, pois a mesma notoriamente foi descrevendo aquilo que se lembrava, no máximo daquilo que era possível às suas capacidades, atestando sem hesitações os factos dados como provados.
A queixosa revelou um depoimento credível, mostrando-se afetada e perturbada por toda a situação que descreveu (tendo inclusive chorado durante o julgamento). Teve uma postura em julgamento, que se revelou ao Tribunal, como sincera, demonstrando, de modo natural, a forma como esta situação a afetou. Verbalizou os sentimentos experienciados com e pela conduta do arguido, e o impacto que estas atitudes tiveram. Atendendo à factualidade em causa e ao tempo decorrido, é natural que a queixosa não consiga relatar todas as expressões proferidas com absoluta exatidão, nem consiga descrever com absoluto rigor todos os concretos dias em que os episódios ocorreram. Tal é natural, e a memória das pessoas não funciona toda da mesma forma, sendo normal – de acordo com os padrões de normalidade – que uma pessoa não se lembre à letra e vírgula de todas as expressões e dos exatos dias. Contudo, a queixosa recordava-se perfeitamente de ter sido alvo de insultos e agressões por parte do arguido, e da personalidade que o mesmo revelou ao longo dos anos, tendo relatado e descrito os episódios na medida daquilo que se lembrava e do que a sua memória alcançava. Em particular, quanto ao episódio de 05 de março de 2021, questionada pelo Tribunal, a mesma explicou o sucedido de forma congruente e séria, descrevendo por mais do que uma vez o sucedido, sem particulares incoerências ou contradições.
O seu depoimento revelou-se sincero, não discernindo o Tribunal nenhuma razão para a queixosa estar a mentir. Não revelou nenhum indício de falsidade no seu depoimento, e apesar das circunstâncias em causa também não foi patente nenhuma especial animosidade sentida para com o arguido ao ponto de mentir. O Tribunal teve também em consideração, em relação à queixosa, a sua forma de estar na sala, a sua postura, a sua forma de reagir, o modo como estava sentada e como ia relatando os factos, como respondia às questões, a par dos seus movimentos, emoções e reações. A queixosa foi relatando os factos à medida do que se recordava, de forma espontânea, denotando-se que não estava a seguir um guião pré-elaborado; com efeito a queixosa não relatou tudo de forma seguida e absolutamente precisa, mas foi antes contando os episódios de modo simples e natural, saltando na narrativa, o que é normal, narrando o que se lembrava e conforme ia se recordando, não se coibindo ademais de referir, espontaneamente, os problemas patrimoniais das empresas e a existência de dissídios entre ela e o arguido também por força das empresas que ambos geriam (não tentando esconder propriamente essas informações).
Realce-se que, como é de conhecimento geral, a prova da maioria dos factos do foro íntimo ou subjetivo é normalmente uma prova indireta, pelo que se torna essencial o recurso às regras da experiência comum, sendo necessário refletir em termos de normalidade das relações pessoais do quotidiano.
Aliás, neste tipo de criminalidade as declarações da vítima devem merecer especial valorização, uma vez que os maus tratos ocorrem por via de regra na residência comum do casal, sem testemunhas, num espaço fechado e preservado de olhares alheios, não se olvidando o sentimento de constrangimento ainda existente que as pessoas, terceiras à relação, têm em se imiscuir na vida privada de um casal.
As declarações da queixosa, prestadas perante o Tribunal, revelaram-se como coerentes, objetivas e merecedoras de credibilidade e, assim, foram tomadas em consideração e valoradas positivamente.
Saliente-se que no tipo de criminalidade dita de «violência doméstica», as declarações das vítimas não podem deixar de merecer ponderada valorização, pois que, reconhecidamente, os maus-tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem, por via de regra, dentro do domicílio conjugal, no recato da impunidade não presenciada, preservado da observação alheia, garantido até pelo generalizado pudor que os mais próximos têm de se imiscuir na vida privada do casal. A vítima acaba por guardar muitas vezes para si o sofrimento e passados anos, é que acaba por reagir. É que este tipo de crimes ainda provoca nas suas vítimas a vergonha pela situação e muitas vezes levam a casos psicológicos em que estas se sentem como culpadas e não vítimas, como o são na realidade, o que lhes tira a coragem para denunciar a situação. [neste sentido, cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-12-2005, processo n.º 2489/05-1].
É natural que, passando-se a maior parte dos eventos entre quatro paredes, na residência do casal, longe de olhares indiscretos, e sem um quadro de agressões físicas particularmente grave que necessite de assistência médica, a prova nestes casos tenha de se apoiar em grande parte nas declarações da queixosa – pessoa que diretamente viveu a factualidade -, e depois por via indireta, amparada nos depoimentos de testemunhas que viram ou ouviram alguma coisa (ainda que não propriamente diretamente), isto caso existam essas testemunhas (sendo que por vezes não existem, guardando a vítima tudo para si e acontecendo os factos na intimidade do lar sem ninguém a presenciar), e noutros indícios se existirem, tudo de forma conjugada, com recurso às regras da experiência comum e seguindo-se aqui as regras da lógica, não se olvidando ainda o critério do homem médio.
Há assim in casu que conjugar os vários elementos existentes nos autos.
De ter em consideração que a queixosa apresentou queixa no Posto da GNR no dia 12-03-2021, o que é compatível com a informação fornecida pela mesma, que referiu que saiu da residência comum do casal por essa altura.
A queixosa explicou, de forma que se revelou credível, as razões pelas quais não saiu logo no dia 05 de março de 2021 da residência, tendo necessitado de alguns dias para organizar a sua vida e preparar a saída, estabelecendo contacto com a APAV (sendo que a queixosa referiu a falta de apoio familiar).
Da informação fornecida pela GNR, a fls. 69 (e fls. 145), verifica-se que a queixosa após a denúncia dos factos, ainda em março de 2021, ausentou-se para parte incerta, não fornecendo a sua localização à GNR, o que indicia que a queixosa tinha receio que algo lhe acontecesse e que não queria que o arguido soubesse da sua localização, compatível assim com as suas declarações prestadas em Tribunal.
A APAV, a fls. 75, 104, 149 e 154, informou que a queixosa efetivamente encontrou-se acolhida numa Casa Abrigo, durante determinado período de tempo, e que posteriormente foi viver para casa do irmão. Estas informações foram igualmente referidas pela queixosa DD, de forma espontânea, em Tribunal. Esta ida para a casa abrigo também serve como um indício, a conjugar com todos os restantes factos.
Do expediente de fls. 97-101 resulta que foi entregue à queixosa o equipamento de teleassistência em 19-05-2021.
A saída da residência do casal, por parte da queixosa, sem a queixosa ter informado o arguido, além de resultar das declarações da mesma e das declarações do arguido, também deriva da própria análise dos documentos de fls. 130-138. Com efeito, a queixosa saiu subitamente da casa onde residia, nada dizendo ou justificando ao arguido, sendo que o arguido apresentou queixa no Posto da GNR, por não saber do paradeiro da sua mulher. As fotografias de fls. 137 e 138 não foram entregues à GNR pela queixosa, mas antes pelo arguido, face à denúncia de pessoa desaparecida.
Verifica-se, tudo conjugado, que a queixosa “fugiu” de casa, nada dizendo ao arguido precisamente para ele não saber, nem estar a contar com o sucedido, estando inicialmente em parte incerta, tendo ingressado numa casa abrigo e posteriormente ido para casa de familiares. Este tipo de comportamento é compatível e coadunável com uma pessoa vítima de maus-tratos, que pretende fugir ao seu agressor, e compatível com as declarações da queixosa prestadas em Tribunal.
Atente-se ainda que a queixosa não relatou nenhum episódio de violência física em que a mesma tenha necessitado de assistência hospitalar, referindo apenas dores, não se apurando particulares lesões a atender. É assim natural que não existam registos médicos, pois não foram descritos maus-tratos ao ponto de ser necessária ajuda hospitalar. O facto de não existirem fotografias de eventuais lesões também não retira credibilidade às declarações da queixosa, pois a mesma também não mencionou, em nenhum momento, que tenha permanecido com hematomas ou feridas visíveis. Igualmente, mesmo que existissem lesões visíveis, o facto de não existir registo não conduz a que a vítima esteja a mentir, podendo simplesmente não se ter lembrado na altura de guardar registos para esse efeito (até porque a vítima poderia nem sequer estar a pensar em fazer prova de alguma coisa, preferindo antes resguardar-se).
A queixa na GNR também não comprova nenhum intuito vingativo por parte da queixosa, sendo que a queixosa em Tribunal explicou o desenrolar da relação ao longo dos anos e a razão pela qual saiu de casa, percebendo-se que o episódio de 05 de março de 2021 foi na realidade “a gota de água”.
Há que ter em consideração as regras da normalidade da vida, não sendo normal uma pessoa sair da casa que habita há vários anos, indo para uma casa abrigo, simplesmente porque “lhe apetece” ou “do nada”, sem que exista algum motivo. É certo que o arguido considera que a queixosa está a mentir e que tudo é motivado com o intuito de “lhe extorquir dinheiro”, mas, tudo conjugado, o Tribunal não compreende essa afirmação. No caso, atenta toda a prova produzida, não compreende o Tribunal porque razão a queixosa iria inventar os factos que relatou, aceitando submeter-se a todo um processo intrusivo da sua vida íntima, com a sua vida a ser “escamoteada” por todos, se isso não fosse efetivamente a verdade.
Não existe nos autos qualquer razão para acreditar que a queixosa fabricou toda uma narrativa, apenas para prejudicar o arguido. O referido intuito de “extorquir dinheiro”, referido pelo arguido como justificação para a versão apresentada pela queixosa, não é plausível, até porque de acordo com as declarações do arguido eles foram casados em regime de comunhão de adquiridos, estando atualmente divorciados e estando agora a correr o processo de partilhas, não tendo por ora chegado a um entendimento a esse respeito. Não obstante, a questão das partilhas e da repartição de bens é uma questão cível, a resolver de acordo com o regime de bens (comunhão de adquiridos), e tendo em consideração os bens existentes, não se compreendendo em que medida uma queixa de violência doméstica pode afetar essas partilhas. E tendo em consideração o regime de bens de comunhão de adquiridos haverá vários bens a serem partilhados, tendo a queixosa direito a uma parte, assim como o arguido, naturalmente pelo regime que escolheram quando se casaram.
Ademais, sempre se diga, que analisando todo o processo, verifica-se que a queixosa deu a sua expressa concordância para a suspensão provisória do processo (sendo o arguido que não concordou – cf. fls. 220 e 222-223), sendo que das injunções/regras de conduta propostas não constava qualquer obrigação de pagamento de indemnização à queixosa (cf. fls. 211, 212 e 217). Ou seja, a queixosa revelou, com a concordância com a suspensão provisória, que não pretendia levar o arguido a julgamento a “todo o custo”, e não obtendo sequer nenhuma quantia pecuniária com essa suspensão. Acresce que a queixosa não deduziu pedido de indemnização civil nos autos, apenas não se tendo oposto à atribuição de uma indemnização, mas sendo certo que a regra de atribuição de uma indemnização decorre expressamente da lei.
A queixosa explicou ainda a falta de suporte familiar, tendo sido criada por uma madrinha e não tendo uma relação próxima com os irmãos (não sendo criada em conjunto com eles), o que na sua perspetiva motivou a que tivesse deixado a relação com o arguido continuar durante tanto tempo (apenas tendo recorrido ao irmão quando fugiu de casa e precisou mesmo de ajuda). Foi visível a inexistência de uma rede de apoio em relação à queixosa, o que confere assim plausibilidade ao facto de não existirem testemunhas indicadas pela queixosa. A queixosa referiu ainda que apesar de ter uma relação próxima com a madrinha, não lhe confidenciava o que sucedia fruto da mentalidade da referida familiar, acreditando que o casamento é para a vida e considerando que os “homens é que mandavam” e que as mulheres tinham de obedecer, sendo que se assistisse a alguma discussão considerava que a razão era do marido. A queixosa admitiu que a madrinha não gostou da sua atitude, de sair de casa, o que é compatível com as declarações do arguido, que já tinha referido este tipo de descontentamento. Ao mesmo tempo a queixosa afirmou que tinha esperança que as coisas melhorassem, e que não quis contar nada. Tudo conjugado, compreende-se a razão pela qual inexistem outras testemunhas dos factos.
A queixosa DD fez alusão a algumas situações ocorridas fora de casa, mas pontuais, mais de pressão psicológica e maus-tratos psicológicos, em que apesar de ser em público, ocorreu apenas entre os dois, desconhecendo a queixosa quem se encontrava em redor e se as pessoas tinham ou não ouvido o que foi dito. Fez apenas referência a uma situação de um casal amigo, em que a mesma fez algumas confidências, mas algo genérico e vago, tudo indiciando que esse casal não tinha assistido a nada, nem tinha conhecimento efetivo e particular da situação.
Os sentimentos provocados em DD, dados como provados, resultam da articulação e conjugação de toda a prova valorada positivamente, sendo necessário igualmente aqui recorrer às regras da experiência comum e da coerência, seguindo-se raciocínios de lógica e o padrão de vivência em sociedade. Assumiram especial pendor as declarações da queixosa.
O arguido prestou declarações em sede de audiência de julgamento. Confirmou a relação amorosa que teve com a queixosa e o casamento celebrado, assim como a residência onde se fixaram. O arguido relatou como, na sua perspetiva, o relacionamento ocorreu, ao longo dos anos, negando, no essencial, os factos imputados, no que diz respeito à sua responsabilidade criminal. Disse que sempre partilhou tudo com a sua mulher, que ela podia sair à vontade e ir onde quisesse e que ele não a controlava, que ela podia gastar o dinheiro à vontade, negando ser possessivo ou manipulador, e que relativamente ao episódio de 05 de março de 2021 apenas existiu uma conversa quanto à contabilidade das empresas e à unificação das contas bancárias, mas negou a existência de papéis para assinar ou de discussões. Narrou que a sua mulher saiu subitamente de casa, “do nada”, sem lhe ter dado explicações, e que ele foi à GNR, sabendo mais tarde por intermédio de um familiar que a sua mulher se encontrava bem. Na sua perspetiva este processo existe como uma forma da queixosa lhe “extorquir dinheiro”. Parte das suas declarações centraram-se nos problemas existentes quanto à gestão das empresas que o casal explorava, mas que sinceramente o Tribunal não considerou tal com interesse para a causa.
Diga-se que se estranha o facto de o arguido dizer que a sua mulher saiu de casa sem lhe dar justificações, estando alegadamente tudo bem, e ele não a ter contactado mais nenhuma vez a partir daí. Disse que a partir de determinado momento soube por intermédio de terceiros que a queixosa estava bem, e, do que se depreendeu das suas declarações, não existiu mais qualquer contacto, nem o arguido tentou contactar a queixosa, o que é estranho, se atender-se nas declarações do arguido de que “estava tudo bem”. É que se estava tudo bem, estranho é o arguido, após a queixa na GNR e o contacto de terceiros, não ter mais procurado a queixosa. O mais normal e coadunável com as regras da experiência comum, é o arguido não ter mais procurado a queixosa precisamente por ter percebido que a mesma tinha apresentado queixa contra ele e por saber perfeitamente dos problemas entre eles.
O arguido tentou sempre passar a ideia de que a queixosa estava a mentir ou a inventar, sem conseguir, porém, justificar de modo plausível a razão para tal suceder.
Apesar do alegado pelo arguido em julgamento, a verdade é que o Tribunal não descortina nos autos qualquer razão que permita infirmar a versão apresentada pela queixosa, não se afigurando qualquer indicador de mentira ou falsidade nas declarações que a mesma prestou, não existindo uma razão explicativa sustentável que permita descredibilizar a versão apresentada e dada como provada.
As declarações prestadas pelo arguido quanto à sua desresponsabilização criminal e quanto à negação dos factos, revelaram-se ao Tribunal como inverosímeis e pouco credíveis, tendo em consideração a análise de toda a prova produzida e valorada positivamente, e acima analisada, razão pela qual não foram acolhidas. No entender do Tribunal, as declarações prestadas pelo arguido em sede deste julgamento, negando os factos, mais não foram do que uma tentativa do arguido em se desresponsabilizar criminalmente pela sua conduta, ou seja, uma tentativa de fuga às suas reais responsabilidades, procurando a todo o custo afastar a credibilidade das declarações da queixosa. As declarações do arguido, na parte em que tentou afastar a sua responsabilidade criminal, não convenceram o Tribunal, não tendo sido alegado de modo razoável um motivo crível no sentido de permitir afastar a veracidade do depoimento de DD.
Foram ouvidas em julgamento ainda as testemunhas FF, GG, HH e II, arroladas pelo arguido, mas que não assumiram particular relevância para os presentes autos, uma vez que as testemunhas não presenciaram nenhuma factualidade com especial interesse para o processo (isto do ponto de vista criminal, de imputação de um crime). Estas testemunhas não presenciaram diretamente os factos aqui em análise.
O facto de as testemunhas em causa declararem que nunca presenciaram agressões, discussões ou insultos, não pode claramente conduzir à conclusão de que os factos descritos na acusação não ocorreram, até porque nem sequer foi apurado que estas pessoas se encontravam à data no local dos factos, não se tratando como tal de factualidade do seu conhecimento direto.
Em particular, a testemunha FF, mecânico de profissão, não era frequentador assíduo da residência do casal. Prestou alguns serviços para o casal, ao longo dos anos, e foi algumas vezes à propriedade tratar de avarias dos veículos automóveis, contactando quer com a queixosa, quer com o arguido. Declarou que nunca presenciou discussões, nem agressões físicas ou qualquer episódio de violência. No entanto, sempre se diga que é natural não ter presenciado, pois não decorreu da prova produzida que esta testemunha fosse uma pessoa íntima do casal ou frequentador habitual da casa, sendo assim normal que nada tivesse visto, pois a própria queixosa referiu que a maior parte dos factos sucederam no interior da residência, longe de olhares alheios. Mesmo que eventualmente esta testemunha fosse todas as semanas lá a casa, a verdade é que não era amigo íntimo do casal, mas antes um trabalhador, que prestava serviços, pelo que não seria expectável que os factos provados decorressem à sua frente.
Por sua vez, as testemunhas GG e II (pessoas que conhecem o arguido e a queixosa, tendo prestado alguns trabalhos na propriedade do arguido), apresentaram em Tribunal depoimentos claramente tendenciosos, procurando favorecer o arguido, denotando-se alguma relutância nas respostas, devendo-se atentar ainda na postura, na forma de falar, no modo como se movimentavam na cadeira, e nos olhares e expressões que faziam, respondendo apenas ao que essencialmente era perguntado e não mostrando vontade em desenvolver. Estas testemunhas são pessoas bastante próximas do arguido, sendo que o próprio arguido admitiu que conhecia as testemunhas desde pequenos, ajudando-os em termos monetários e alimentares, providenciando muitas vezes pela alimentação dos mesmos. Denotaram uma especial relação de dependência para com o arguido. Aliás, a própria queixosa DD já havia referido que estas testemunhas muito provavelmente não iriam relatar tudo o que sabiam, atentas as relações que tinham com o arguido (sendo funcionários dos mesmos e existindo uma relação de dependência), apesar de terem visualizado algumas discussões. Acresce que estas testemunhas afirmaram que não estavam todos os dias na residência do casal, não sendo amigos íntimos da queixosa (referindo apenas conversas de circunstância com a queixosa).
A testemunha HH referiu que conhecia o arguido e a queixosa há uns 06-07 anos e que era amiga do casal. Tentou passar a ideia que era “muito amiga” de DD e sua confidente, mas o Tribunal não ficou convencido dessa afirmação, até porque o que se concluiu foi que atualmente a testemunha já nem sequer fala com a queixosa (desde a saída de casa), falando apenas com o arguido. Ademais, esta testemunha não era presença assídua na residência do casal, encontrando-se pessoalmente com pouca frequência. Disse que não viu nada, nem ouviu nada, isto quanto a violência física ou psicológica, mas como referido o certo é que esta testemunha não vivia com o casal, nem era íntima ao ponto de frequentar a casa dos mesmos com regularidade. O facto de conversar ao telefone com a queixosa com regularidade e de esta não lhe ter confidenciado nenhum episódio de violência, a ser verdade, não infirma os factos dados como provados, até porque a este respeito o Tribunal só ouviu a versão da testemunha, mas não da queixosa (quanto à alegada relação de proximidade), acrescendo a circunstância de a própria queixosa ter dito que guardava as coisas para si e que não as confidenciava normalmente. Atente-se ainda na factualidade provada.
Acrescente-se ainda que, como se sabe, a maior parte dos factos referentes à violência doméstica costumam ser praticados no interior da residência, na intimidade do lar, longe de terceiros e a maior parte das vezes sem quaisquer testemunhas, presenciando os factos apenas os dois sujeitos envolvidos. Este cenário é bastante recorrente, nos casos de violência doméstica, vivendo a vítima muitas vezes episódios de violência física e/ou psicológica durante anos, sem que ninguém saiba do sucedido, fruto por vezes da própria mentalidade e cultura da vítima, não querendo a mesma queixar-se a ninguém da situação, guardando para si os episódios (ou tendo medo e receio do que lhe possa suceder caso apresente queixa), não se podendo olvidar da relutância ainda existente na população em se imiscuir na vida do casal, particularmente em gerações mais antigas. Diga-se ainda, que nos casos de violência doméstica é comum o agressor transmitir ao público e terceiros uma imagem que muitas vezes não corresponde à realidade, só realmente mostrando a sua personalidade com quem tem efetiva confiança. É ainda natural que o agressor não pretendendo ser “apanhado” na ilicitude que pratica, atue à margem do público, escondendo os seus atos dentro de quatro paredes, ou em momentos que considere que ninguém está a ouvir ou a ver. O que se afirma decorre das regras da experiência comum, a par dos estudos que se vão efetuando ao longo dos anos, sendo que os crimes de violência doméstica surgem em Tribunal cada vez com maior frequência, pelo que o que se afirma decorre também do próprio conhecimento profissional e experiência do julgador.
Atente-se ainda nas declarações prestadas pelo arguido (sempre dizendo que a queixosa estava a mentir e que a versão dela tinha sido previamente pensada, sendo tudo “encenado”, mas não tendo o Tribunal ficado convencido dessa “encenação”, antes pelo contrário) e na sua postura e personalidade reveladas em audiência de julgamento, ponderando-se aqui o princípio da imediação. O arguido centrou grande parte das suas declarações em questões patrimoniais e de índole monetária entre ele e a queixosa, mas não se podendo olvidar que o objeto aqui em discussão é um crime de violência doméstica.
Igualmente a circunstância de estas testemunhas (indicadas na contestação) terem o arguido como bom patrão ou bom amigo/vizinho, tal não infirma a demais prova, e não é por isso que o arguido deixa de praticar os factos aqui em discussão.
Os factos n.ºs 16, 17, 18 e 19 (relativos à intenção, propósito, consciência, vontade e conhecimento da lei) resultam igualmente do cotejo de todas as provas valoradas positivamente nos autos, ancorando-se o Tribunal numa análise conjunta, com recurso a um raciocínio lógico-dedutivo e apelando às regras da coerência, experiência e da normalidade do acontecer. Chega-se, assim, à autoria dos factos por parte do arguido, ao conhecimento e vontade de atuação contra a lei nos termos apurados, tendo os mesmos sido praticados de forma consciente e livre. O arguido é adulto, maior de idade e capaz, conhecedor das regras de convivência em sociedade, sabendo assim que a lei não lhe permitia comportar-se da forma como o fez.
O Tribunal, conjugada toda a prova existente nos autos, não vislumbrou qualquer causa passível de excluir a ilicitude ou a culpa do arguido. Não foram juntos pelo arguido elementos passíveis de efetivamente infirmar a demais prova acima analisada. Não foi junta prova no sentido de desresponsabilizar o arguido pelo seu comportamento. Face à prova carreada e analisada, cumpre notar que caberia ao arguido fazer a prova da existência de eventuais causas justificativas – excludentes da ilicitude ou da culpa - para a sua conduta, o que, porém, in casu não sucedeu.
Há igualmente que recorrer às presunções naturais (atenta a idade do arguido, experiência de vida e da normalidade das coisas). Faz-se aqui uso também de presunção legalmente admitida, assente num raciocínio indutivo e lógico.
No que concerne ao facto n.º 20 tal decorre das declarações da queixosa e do arguido.
Relativamente ao facto n.º 21 tal emerge das declarações da queixosa e do arguido, a par das informações fornecidas pela APAV juntas aos autos.
Factos n.ºs 22 e 23: resultam das declarações do arguido e da queixosa, a par da própria reavaliação do risco (refª ...11), sendo que a queixa foi apresentada na GNR em 12-03-2021.
A queixosa não revelou sentir medo atualmente do arguido.
Da última ficha de avaliação do risco junta aos autos, surge assinalado risco “baixo”, não constando apontado qualquer registo de repetição dos episódios, nem descrito qualquer novo episódio de agressões físicas e /ou verbais.
Quanto às condições socioeconómicas, a sua prova resulta essencialmente do relatório social elaborado pela DGRSP, considerando o Tribunal que o mesmo pode ser valorado, mas com algumas restrições. Assim, o Tribunal excluiu os juízos de valor e subjetivos, valorando o relatório apenas quanto a factos objetivos, eliminando qualquer factualidade que pudesse colocar em causa o princípio da presunção da inocência. O Tribunal não teve o relatório em consideração para prova da factualidade da acusação, mas apenas para efeitos da condição socioeconómica do arguido e sua inserção em sociedade.
Relativamente aos antecedentes criminais teve-se em linha de conta o teor do certificado de registo criminal junto aos autos, do qual não resulta averbada qualquer condenação criminal.

*
No que respeita à factualidade não provada, vertida na acusação, a convicção do Tribunal decorreu da ausência de prova consistentemente produzida quanto à mesma ou devido, em alguns casos, em se terem provado factos contrários. Na realidade, não foi feita prova bastante que permitisse ao Tribunal formar uma convicção segura e séria quanto à veracidade do aí descrito. Ou seja, não foi produzida prova de modo a convencer o Tribunal.
Tenha-se em consideração o que já foi analisado supra, em termos de análise da prova produzida.
Alínea A) – falta de prova suficiente e segura. Não se fez prova que o arguido contactasse a vítima “insistentemente”.
Alínea B) – falta de prova segura e firme. Não se fez prova que o arguido naquelas circunstâncias iniciasse discussões, até porque a queixosa disse que naqueles casos “não havia discussões, mas notava que ele não gostava”.
Alínea C) – provou-se factualidade distinta. Com efeito, provou-se que na realidade as expressões já eram proferidas pelo menos desde 2015, pelo que assim sendo não se provou que ocorreram apenas entre 2020 e 2021.
Alínea D) – falta de prova bastante. A queixosa não referiu aquelas expressões.
Alíneas E) a L) – falta de prova suficiente e segura. Provou-se ainda factualidade distinta e contrária.
No mais não especificamente analisado supra, diga-se que não foi produzida prova segura, certa e suficiente nesse sentido.»
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Cumpre conhecer.

B.1 - Em função das conclusões do recurso e sua simultaneidade, são questões a resolver a matéria relativa ao direito de defesa (recurso interlocutório) e os vícios imputados à sentença recorrida (recurso da decisão final), articulados em conjunto em função de ambas as decisões terem ocorrido no mesmo dia, tramitação unitária por isso admissível visto o disposto no nº 3 do art. 410º do CPP.

Quanto à primeira questão é indubitável que o arguido tem o direito, reconhecido pelo nº 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa em qualquer processo sancionatório, de audiência e defesa.

Deste direito complexo decorre que o arguido tem o direito a saber quais os factos de que é acusado, a que acresciam os direitos, subsequentes de ser ouvido e de apresentar a sua defesa antes de ser proferida decisão.

A não observância concreta destes direitos constitui nulidade processual sanável nos termos do artigo 120º, nº 2, al. d) do Código de Processo Penal, a apresentar em 10 dias por aplicação do prazo geral contido no artigo 105º do Código de Processo Penal por inaplicável qualquer das alíneas do nº 3 do artigo 120º do diploma.

Ou, coincidindo com o recurso da decisão final, no prazo deste, o que é o caso, de onde se deduz que o prazo da sua arguição foi cumprido.


*

B.2 – O arguido entendeu exercer o seu direito de defesa requerendo a inquirição de uma testemunha tendo em vista a alteração – qualificada como não substancial – introduzida pelo tribunal recorrido à matéria de facto.

Na essência esta alteração factual – não obstante se poder inserir na mesma unidade criminosa - alarga de forma desproporcionada o tempo da prática do delito, pois que se da acusação constava que os factos tinham ocorrido nos anos de 2020 e 2021, o tribunal recorrido alargou tal prazo para o tempo decorrido «a partir do ano de 2015 e até à data de saída da queixosa da residência do casal (isto é, em março de 2021)

Ora, é por demais evidente que o arguido se teve hipótese, depois de deduzida a acusação e no prazo de dedução da sua defesa, de se defender do feixe de factos decorridos em 2020 e 2021, não teve a mínima hipótese de se defender dos factos imputados de motu próprio pelo tribunal recorrido relativamente aos factos que lhe imputou desde 2015, numa continuação criminosa que se distendeu por mais 5 anos.

E a hipótese de defesa dessa alargada continuação criminosa só lhe surge depois da comunicação da alteração factual.

Por isso que haverá que concluir-se que o direito de defesa do arguido só surge e só se podia concretizar no momento da alteração factual, sendo incompreensível que se argumente com a possibilidade prévia de apresentação de prova para factos que se desconheciam anteriormente a essa comunicação.

Aliás, para isso serve a previsão do artigo 358º do CPP que, numa diversa interpretação, surgiria como inútil. O que corresponderá à afirmação de que o arguido, nos termos desse preceito, tem direito de defesa relativamente a esses novos factos, desde que não apresente nova prova! O que redunda na questão de saber para que servirá esse direito de defesa se o arguido não pode apresentar prova para se defender dos novos factos! De facto, o arguido tem direito à produção de prova.

É claro que esse direito está limitado, no entanto, pela sua admissibilidade, relevância jurídica e necessidade (artigos 124º e 340º, nº 1 e 3 do Código de Processo Penal).

Se essa concretização é inútil para os autos, o princípio da necessidade impõe que não se admita. Ou seja, não há um direito absoluto à produção de qualquer prova de forma não controlada.

Como afirma o Prof. Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal - 2º vol., 4ª edição, Lisboa – São Paulo, Verbo, 2008, pag. 134) “a preocupação do legislador em estabelecer o controlo judicial das provas permanece ao longo da história do direito e surge da necessidade de as limitar às que são imprescindíveis para a decisão, eliminando as que não têm que ver com os factos objecto do processo ou as que, ainda que tendo relação com eles, não representam novidade alguma que possa influir na decisão.

Na fase do julgamento o poder do tribunal de recusar a admissão e produção de prova requerida pela acusação e pela defesa é limitado pela sua inadmissibilidade, irrelevância ou superfluidade, inadequação, inobtenibilidade ou por ser meramente dilatória (artigo 340º, nº 3 e 4”).

Daqui decorre que se o direito de defesa se pode concretizar no peticionar de produção de um meio de prova, dele não resulta o automatismo descontrolado da sua produção.

Mas há que reconhecer que o arguido não requereu prova que se revele prima facie como desnecessária. A que requereu revela-se limitada e com razões atendíveis, a vivência em comum.

Acresce, que o tribunal recorrido argumenta para sustentar a sua tese de não aceitação do depoimento de testemunha que não ouviu, com razões que incluem um prévio juízo sobre a apreciação da prova produzida em julgamento, supondo finda a produção de prova e a formulação de um juízo probatório típico de uma decisão final, o que não lhe era permitido, porquanto ainda não encerrada a fase probatória.

O actual Código de Processo Penal português perfila-se como um processo de “máxima acusatoriedade … compatível com a manutenção, na instrução e em julgamento, de um princípio de investigação judicial”, tal como afirmado pelo Prof. Figueiredo Dias em nome da Comissão de Reforma do Código de Processo Penal, [1] expressão que ficou a constar do nº 4, nº 2 do artigo 2º da Lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, Lei nº 43/86, de 26 de Setembro.

Enfim, a consagração do sistema acusatório com princípio da investigação, já defendido por aquele ilustre penalista nas suas lições de 1974, [2] reafirmadas no processo legislativo [3] e elogiado pelo que significa de “superação da tradicional antinomia entre os modelos «inquisitório» e «acusatório»”, como salientou a Prof. Mireille Delmas--Marty. [4]

Cerne dessa característica processual é a previsão do artigo 340º do Código de Processo Penal, ao atribuir ao Juiz de julgamento (e às “partes”) a possibilidade de acrescentarem prova no decurso da audiência de julgamento, normativo essencial na consagração do princípio da investigação e da busca da verdade material

Como afirmámos no acórdão desta Relação de 24-05-2011, no processo nº 846/08.1TASTR.E1, de que fomos relatores, (1). a obrigação (poder/dever) imposta ao tribunal pelo artigo 340º do Código de Processo Penal de conhecer das provas que conduzam à verdade material e, logo, à boa decisão da causa, está sujeita a um critério inultrapassável, o da necessidade da sua produção. (2.) Essa necessidade pode ser evidente ou aparente pela própria análise casuística das provas produzidas ou a produzir em função dos factos que se impõe apurar face à integração jurídica a efectuar, sempre balizada pelo objecto do processo. (3.) Se esse critério da necessidade não resultar evidente ou aparente por uma análise projectiva, cabe ao interessado na sua produção convencer o tribunal da sua existência.

Ora, no caso, foi o próprio tribunal a acrescentar factos que se estendem no tempo de forma extensa e a abrir a porta à possibilidade de o arguido deles se defender.

E justificou essa necessidade com a circunstância de essa testemunha ter percepcionado factos com relevo para a boa decisão da causa, o que tanto basta para o seu deferimento, independentemente do juízo que se venha a fazer sobre o seu futuro depoimento.

Não quer isto dizer que aspectos formais não tenham relevo, designadamente a circunstância de essa testemunha não dever ser inquirida sem que os sujeitos processuais disso tenham sido advertidos com a antecedência possível. E, no caso, a defesa requereu a inquirição dessa testemunha com a devida antecedência.

A circunstância de a testemunha indicada não ter sido arrolada no momento em que foi deduzida a acusação e em cumprimento do disposto no artigo 316º do Código de Processo Penal não impede o pleno exercício subsequente do direito de defesa e do princípio da investigação, pois que impedir esse poder de requerer a produção de prova para factos acrescentados pelo próprio tribunal resultaria numa violação do princípio da igualdade de armas e reservá-la ao conhecimento oficioso do tribunal transformaria o princípio da investigação numa mera assunção da inquisitoriedade.

Permitida em abstracto a inquirição da testemunha e justificada em concreto a sua necessidade, nenhuma violação ocorre de preceitos da lei ordinária ou da lei constitucional.

É, pois, procedente o recurso interlocutório interposto.

O que acarreta, necessariamente, a nulidade da sentença recorrida, lavrada em violação de um direito de defesa do arguido e a inutilidade de conhecimento dos vícios apontados a essa mesma decisão recorrida.


*

C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora, em declarar procedente o recurso interposto, declarando-se nula a sentença recorrida e determinando-se a inquirição da testemunha indicada pela defesa, decidindo-se, então, em conformidade.

Sem tributação

Évora, 07 de Fevereiro de 2023

(processado e revisto pelo relator).
João Gomes de Sousa
Carlos Campos Lobo
Ana Bacelar

__________________________

[1] - “Grandes princípios orientadores da elaboração do projecto de Código de Processo Penal”, 1984, in “Jornadas de Processo Penal” – Revista do MP, Cadernos 2 – pag. 330.
[2] - “Direito Processual Penal” – Coimbra Editora, 1974, pags. 71-72.
[3] - “Código de Processo Penal – Processo Legislativo”, vol. II – Tomo II, Assembleia da República, 1999, pag. 24.
[4] - DELMAS-MARTY, Prof. Mireille - “A caminho de um modelo europeu de processo penal” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 9, Fasc. 2º, Abril-Junho, pag. 229-231, 1999 e “Conferência Parlamentar – A Revisão do Código de Processo Penal”, in “Código de Processo Penal – Processo Legislativo”, Vol. II – Tomo II, Assembleia da República, Lisboa, pag. 33, 1999.