Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
11/25.3T8SLV.E1
Relator: ANTÓNIO MARQUES DA SILVA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
TRANSACÇÃO JUDICIAL
PAGAMENTO
INCUMPRIMENTO
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

- a transacção, judicialmente homologada, na qual se prevê ser devido o pagamento de certa quantia pecuniária em caso de incumprimento de certa obrigação também prevista naquela transacção, não constitui título executivo no que ao pagamento daquela quantia pecuniária respeita.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I. AA intentou execução para pagamento de quantia certa contra BB, pretendendo obter o pagamento da quantia decorrente do incumprimento de obrigação assumida pelo executado em transacção, obrigação pela qual aquele, segundo os termos da sua alegação, se obrigou ao «pagamento de sanção pecuniária no valor de € 2.000,00 caso até 31.12.2021 não desonerasse a exequente da obrigação de mútuo no empréstimo à habitação, acrescido de € 500,00 euros mensais subsequentes».


Prosseguindo a execução sem intervenção judicial, foi, sem prévia auscultação, proferido depois o seguinte despacho:


Através da presente acção executiva, a Exequente pretende compelir o Executado a cumprir o acordo alcançado em sede de acção de divisão de coisa comum, que correu termos pelo Juízo Local Cível de Portimão com o n.º 1873/16.0... (J2).


Mediante tal acordo, o Executado ter-se-á obrigado a desonerar a Exequente da hipoteca incidente sobre a fracção “BG” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão com o n.º 7888.


Ora, este tipo de execução, à partida, não é sequer viável se, como se antecipa, a Credora hipotecária não tiver concordado com a desoneração.


Várias acções propostas neste sentido neste Juízo, com indeferimento, confirmado pelo Tribunal da Relação de Évora.


E, de facto, compulsada a acção em causa, verifica-se que a Credora “Banco Santander Totta, S.A.”, por requerimento de 08 de Junho de 2021, declarou expressamente que:


“BANCO SANTANDER TOTTA S.A., credor nos autos supra identificados, notificado que foi do requerimento de transacção apresentado por requerente e requerido, vem mui respeitosamente informar V. Exa. que, uma vez que as responsabilidades reclamadas nos autos têm vindo a ser cumpridas atempadamente, nos termos contratados, a posição do banco credor é a de não exigir o pagamento imediato das mesmas, não se opondo ao acordo agora celebrado entre as partes, com a ressalva de não desonerar nenhuma das mesmas das obrigações contratuais perante o credor”.


Agora, temos uma execução em que a Exequente pretende obter do Executado o cumprimento de uma obrigação impossível – porque não é viável o seu cumprimento sem o acordo da Credora hipotecária, e esta já declarou expressamente nos autos que não desonera a Exequente da responsabilidade pelo pagamento da dívida.


Carece, por isso, de fundamento legal e factual a propositura desta acção executiva que, como se vê, jamais deveria ter sido intentada por carecer de efeito útil….


Pergunta-se: o Executado diligentemente dirige-se ao Banco para tratar da desoneração da Exequente; o Banco recusa, como já manifestou amplamente perante o Tribunal de Portimão.


E depois? Com que fundamento legal ou moral se condena o Executado a cumprir um acordo manifesta e obviamente inexequível? Cujo cumprimento ultrapassa a sua esfera de vontade?


Não há.


Neste conspecto, o título executivo apresentado não tem suficiência para sustentar esta execução, pois, a bastar para os efeitos pretendidos, ter-se-ia de entender que contempla implicitamente uma prestação a cargo de quem nele não foi parte – a Credora hipotecária – e que logo manifestou a sua discordância quanto à exoneração que, por esta via, se pretende conseguir coercivamente.


Trata-se de um caso de falta de título executivo, ou dito doutra forma, da apresentação de um título executivo não é idóneo, ou bastante, para a pretensão apresentada a este Tribunal.


Não sendo caso, neste momento, de indeferimento liminar, tendo em conta o andamento do processo, impõe-se a absolvição do Executado da presente instância – artigo 726.º n.º 2 alínea a) do Código de Processo Civil.


Pelos fundamentos aduzidos, o Tribunal absolve o Executado da presente instância executiva.


Desta decisão vem interposto o presente recurso, no qual a exequente formula as seguintes conclusões:


I. Vem a recorrente impugnar a decisão recorrida, em sede de direito, porquanto:


II. Nos presentes autos de execução foi o executado absolvido da instância executiva, considerando o tribunal a quo, in casu, havia lugar ao indeferimento liminar da execução, nos termos considerados na decisão que ora se recorre.


Posto isto, Venerandos Julgadores,


III. Em suma o tribunal a quo vem veio colocar em crise uma sentença homologatória transitada em julgado.


IV. Errando o tribunal a quo, pelo teor da decisão impugnada, que não terá percebido o teor e alcance da transação homologada por sentença, errando no julgamento feito na decisão ora em crise.


Posto isto,


V. A recorrente impugnou a decisão recorrida, por violação do disposto nos arts. 291º nº 2 e 729º, al i) e 726º nº 2, al. a) todos do CPC, porquanto:


VI. Atenta a fundamentação proferida pelo tribunal a quo, na decisão que ora se recorre, e que em suma se alegou em sede de motivação do presente recurso de apelação, temos que, considerou o tribunal a quo: “(…) o título executivo apresentado não tem suficiência para sustentar a execução, pois, a bastar para os efeitos pretendidos, ter-se-ia de entender que contempla implicitamente uma prestação a cargo de quem nele não foi parte – a credora hipotecária – e que logo manifestou a sua discordância quanto à exoneração que, por esta via, se pretende conseguir coercivamente.


Trata-se de um caso de falta de título executivo, ou dito de outra forma, da apresentação de um título executivo não idóneo (sentença???), ou bastante (sentença???) para a pretensão apresentada a tribunal.


Não sendo caso, neste momento, de indeferimento liminar, tendo em conta o andamento do processo, impõe-se a absolvição do executado da presente instância – art. 726º nº 2, al. a) do CPC (…).”.


VII. Ora, Venerandos Julgadores o teor da transação homologada por sentença consta dos autos.


VIII. Com efeito, o pedido constante nos presentes autos de execução, consubstancia o pagamento das quantias pecuniárias assumidas pelo executado, face ao seu incumprimento em agir em conformidade com a transação a que se obrigou com a exequente.


IX. Logo, o tribunal a quo, com a sua decisão, violou o disposto nos art. 291º nº 2 do CPC, porquanto, a norma estabelece que o transito em julgado da sentença proferida sobre a confissão, desistência ou a transação não obsta a que se intente a acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento sem prejuízo da caducidade do direito à anulação.


In casu, Venerandos Julgadores,


X. Em momento algum (até porque não existe) o tribunal a quo veio alegar para fundamentar a inexistência do título executivo – sentença – que houve, com procedência, acção visando a anulação ou nulidade da transação, ou, ainda, recurso de revisão da sentença considerando a mesma improcedente.


XI. Tanto que, se entende, somente constitui fundamento para oposição baseada em sentença homologatória, como é o caso nos autos, qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses actos, tal e qual dispõe o art. 729º, al) i do CPC;


XII. A propósito e na senda antagónica do decidido pelo tribunal a quo, temos o AC. do TRC, proferido em 9.4.2024, em que foi relator o Dr. Carlos Moreira, no proc. nº 1185/23.3T8ANS-A.C1, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:


“I - A execução não pode ser suspensa por causa prejudicial, mas apenas por outro «motivo justificado» e desde que não seja externo mas antes inerente ao processo executivo – artº 272º nº1, in fine, do CPC.


II – Porque no caso de sentença homologatória de transação, já transitada em julgado, o título executivo é esta sentença, a oposição à execução com base na invocação de vícios da vontade que determinaram o teor da transação – artº 291º nº2 e 729º al. i) do CPC - não basta, exigindo-se ainda a invalidação de tal sentença, ex vi de tais vícios, o que apenas pode ser feito mediante recurso de revisão – artº 696º al. d) do CPC.”.


XIII. Logo, em momento algum o tribunal a quo fundamentou a sua decisão invocando (até porque não existe), a existência de uma acção de anulação ou de nulidade da transação, ou, ainda, a procedência de recurso de revisão da sentença homologatória que constitui o título executivo nos presentes autos.


E, assim sendo, Venerandos Julgadores,


XIV. Resultou que, somente no entender do tribunal a quo, este órgão entendeu decidir indeferir liminarmente a execução, absolvendo o executado da instância ao abrigo do art. 726º, nº 2 al. a) do CPC, porquanto, a juíza a quo concluiu pela insuficiência ou falta de título executivo.


XV. Ora, atentos os fundamentos expostos supra, mormente que estamos perante sentença homologatória de transação que já transitou em julgado;


XVI. Era necessário ao tribunal a quo, que previamente à presente execução o executado tivesse comprovado a existência de acção de anulação ou nulidade da transação ou recurso de revisão da sentença. - Factos que não ocorreram em momento algum!


XVII. Logo, o tribunal a quo, violou as disposições legais supra alegadas, porquanto, entendeu que uma sentença homologatória transitada em julgado não era título executivo bastante, sem que houvessem sido reunidos os pressupostos para o efeito;


XVIII. Reitera-se, um acto judicial donde resultasse que a transação era inválida ou decisão de revisão da sentença judicial homologatória.


XIX. Logo, estamos, pois, salvo melhor opinião, perante um título executivo com total força executiva!!!


XX. Violando, pois, o juiz a quo as normas legais ora alegadas nas presentes conclusões de recurso e errando no julgamento feito ao julgar o indeferimento liminar da execução a favor do executado, pois, que, o título executivo dado à execução é dotado de total força executiva (sentença!).


XXI. Impondo-se, pois, a revogação da decisão recorrida.


Não foi apresentada resposta.


II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».


Assim, importa avaliar se o título executivo contempla a obrigação em causa.


III. Os factos relevantes reconduzem-se, de um lado, aos dados constantes do relatório, e, de outro lado, ao teor do título executivo, particularmente quanto aos seguintes termos do acordo (homologado por sentença, que julgou válida e eficaz a transacção) alcançado:


1. Requerente e Requerido são donos em comum da fracção autónoma designada pelas letras “BG” (...).


2. Sob tal fracção autónoma incidem duas hipotecas voluntárias, constituídas a favor do Credor Reclamante Banco Santander Totta S.A, (...) para garantia dos mútuos concedidos à Requerente e Requerido, para aquisição da fracção autónoma antecedentemente identificada (...).


3. Requerente e Requerido atribuem à fracção autónoma o valor de € 79.978,80 (setenta e cinco mil quinhentos € setenta e oito euros e oitenta cêntimos).


4. Pelo presente termo Requerente e Requerido acordam em adjudicar a este último a identificada fracção autónoma pelo valor atribuído, a qual se destina a sua habitação própria permanente, ficando este responsável pela amortização do remanescente dos empréstimos, cujo valor em dívida, actualmente, é de € 69.576,80 (sessenta e nove mil quinhentos e setenta e oito euros e oitenta cêntimos).


5. Face à adjudicação da fracção autónoma, e deduzindo ao valor desta o valor do passivo (empréstimos bancários), o Requerido pagará de tornas, com a assinatura do presente acordo, à Requerente o valor de 3.000,00 euros (três mil euros).


6. O Requerido obriga-se, com efeitos imediatos, a liquidar integralmente as prestações mutuárias em curso, renunciando a reclamar da Requerente qualquer montante a esse título.


7. O Requerido obriga-se a diligenciar e a formalizar, até ao dia 31 de Dezembro de 2021, junto do Credor Reclamante (Banco Santander Totta S.A) pela desoneração da Requerente dos empréstimos contraídos, ficando o Requerido como responsável único pela sua liquidação integral, mantendo-se as hipotecas registadas sob a fracção para garantir o cumprimento integral das obrigações resultantes dos mútuos.


8. À Requerente obriga-se a colaborar com o Requerido em tudo quanto necessário seja para a formalização da sobredita exoneração, nomeadamente facultando documentação ou identificação na sua posse e assinando tudo quanto seja exigido pela entidade bancária.


9. Caso o Requerido não cumpra, no prazo fixado, o estabelecido no ponto 8. do presente termo de transacção, pagará à Requerente, a título de penalização, o montante de € 2.000,00 (dois mil euros), à qual acrescerá, por cada mês e a esse mesmo título, a quantia de € 500,00 (quinhentos euros) até à efectiva exoneração da Requerente dos empréstimos. (...)


IV.1. Previamente, cabe esclarecer um ponto: a cláusula 9 da transacção, que sustenta a pretensão executiva, estabelece que funcionará se o «requerido» não cumprir o estipulado no ponto (cláusula) 8 da transacção. Sucede que este ponto 8 respeita a um dever acessório da «requerente», por cujo incumprimento não pode ser responsabilizado o «requerido». Notoriamente, visaram as partes, com aquela cláusula 9, reportar-se ao incumprimento da cláusula 7, o que se afere, além do mais, pelo facto de a cláusula 9 dever funcionar «até à efectiva exoneração da Requerente dos empréstimos», obrigação esta (de exoneração) que consta justamente da cláusula 7. Neste sentido se atenderá, pois, ao estipulado pelas partes.


2. A questão posta passa pela avaliação do título executivo. Este título (sentença homologatória de transacção judicial) apresenta uma natureza específica, pois, estando embora em causa uma sentença judicial, o seu conteúdo não se define por aquela decisão judicial mas pelos termos acordados pelas partes na transacção. Assim, ao contrário da sentença condenatória, a sentença homologatória da transacção não contém logo por si nenhuma imposição exequível. A sua exequibilidade reporta-se aos termos da transacção e assim ao que foi acordado entre as partes, acordo este que pode exceder, e em regra excede (como ocorre no caso), os parâmetros comuns do dispositivo de sentença comum (não homologatória). Ora, se mesmo nesta sentença haverá sempre que aferir o alcance da condenação para definir o objecto da execução que vai suportar, tal necessidade de aferição vem reforçada quando estão em causa convenções com disposições variadas, contemplando realidades diversas. Por isso que não seja possível, como faz a recorrente, invocar o carácter vinculativo da sentença para daí retirar sem mais efeitos executivos. Previamente, haverá que, partindo do sentido funcional do título executivo, delimitar o objecto da decisão homologatória (no sentido amplo referido), pois, como o título define o objecto da execução (art. 10º n.º5 do CPC), esta só poderá ser implementada em conformidade com os termos daquele título.


3. O título executivo é um documento que representa os elementos constitutivos da prestação exequenda (quer os incorpore, quer apenas os reconheça ou enuncie).


A sua força executiva deriva da lei mas justifica-se pelo acertamento dos direitos e obrigações que contém, acertamento este que assenta no facto de comprovar a existência da relação jurídica de que aqueles direito e correspondente obrigação derivam (com «a certeza tida por bastante pelo sistema»), estando a obrigação em condições de ser exercida. O título deve ser, por isso, tendencialmente auto-suficiente, contendo em si todas as condições necessárias à aquisição do direito e ao seu exercício, nessa medida dispensando indagações sobre a efectiva existência ou subsistência do direito: o direito decorre do título [1].


Aceita-se que algumas das condições de exercício do direito, não contidas no título executivo, possam ser preambularmente acertadas na execução (e por isso será o título apenas tendencialmente auto-suficiente). Mas estas condições estão balizadas de duas formas: de um lado, trata-se de elementos que não respeitam à constituição do próprio direito (ao seu nascimento), mas apenas à sua determinação precisa ou ao seu modo de exercício; e, de outro lado, trata-se de condições sujeitas a tipificação legal clara, restringindo-se à certeza, exigibilidade e liquidação da obrigação (art. 713º e ss. do CPC) [2]. A conjugação dos dois elementos revela que os factos constitutivos da própria obrigação (e não apenas factos atinentes a uma característica ou qualidade da obrigação já constituída) não podem ser demonstrados na própria execução (mormente no quadro do art. 715º do CPC).


Assim, não basta que o título reflicta por algum modo uma obrigação (a preveja), sendo também necessário que a constituição dessa obrigação decorra logo do título, e assim que este, para além daquelas condições legalmente ressalvadas (certeza, exigibilidade e liquidez), se reporte a direito cuja aquisição o título revela por si, sem dependência de elementos adicionais ou eventos destacados e externos ao título executivo.


Esta asserção é inerente à natureza do título executivo, enquanto documento tido legalmente por demonstrativo do direito exequendo (força executiva esta distinta, como se sublinha correntemente, da força probatória legal do documento). E revela-se ainda no regime processual pela forma como se regula a executoriedade de obrigações futuras, no art. 707º do CPC. Esta norma contempla duas situações: o acordo em que se estipula a realização de prestações no futuro (ficando logo estipulada a sua realização futura certa, sendo obrigações futuras em sentido estrito), e o acordo em que se prevê a constituição de obrigações futuras (em que a vinculação à prestação depende ainda de convenções posteriores constitutivas da obrigação - obrigações eventuais). Em particular neste segundo caso, o título prevê a possibilidade da obrigação mas não comprova a sua existência pois as partes não se obrigaram logo à prestação (não a constituíram), estando esta dependente de eventos posteriores (em tese, de nova convenção), que a criam [3]. Por isso que o art. 707º do CPC apenas admita a executoriedade de obrigações futuras, no sentido exposto, quando se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas do título ou dotado de força executiva própria, que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes. Esta previsão ilustra os limites do título executivo quanto aos eventos nele não contidos, futuros (e eventuais): o título não os cobre.


4. No caso, as partes acordaram em que o executado iria diligenciar pela desoneração da exequente de empréstimos existentes (de modo a só o executado por eles responder), constituindo esta a obrigação principal assumida por aquele executado.


Adicionalmente, e para o caso de incumprimento daquela obrigação (primacialmente visada), estipularam, em segundo plano, uma obrigação do pagamento, pela parte inadimplente, de certa quantia fixa, acrescida de outra quantia diária devida durante o período de incumprimento.


Esta segunda previsão corresponde notoriamente a uma cláusula penal, criando uma obrigação adicional, dependente de prévia obrigação principal (do seu incumprimento). No caso, os termos da previsão (especialmente pelo facto de os pagamentos diários serem devidos até ao cumprimento da obrigação principal) indiciam estar em causa uma cláusula penal compulsivo-sancionatória, caracterizada por ser prevista como algo que acresce à execução específica da prestação ou à indemnização pelo não cumprimento (adoptando a categorização de P. Monteiro [4]). É o direito a esta prestação que a exequente pretende exercer na execução.


5. Trata-se, na obrigação principal, de uma obrigação «completa», face ao título executivo, no sentido de que nada mais era necessário para o devedor ter que cumprir o estipulado (para ficar constituído o direito do credor àquela prestação). O título revelava a aquisição do direito.


Já não assim, porém, quanto à cláusula penal estipulada. Isto porquanto:


i. funcionalmente, esta cláusula penal permite ao credor exigir uma prestação adicional (a pena).


ii. a exigibilidade da pena não é livre ou potestativa mas condicionada: a cláusula prevê também as circunstâncias nas quais pode ser accionada. Trata-se da sua hipótese ou previsão, a qual condiciona o funcionamento da sua estatuição (a consequência): esta só opera se aquelas circunstâncias se verificarem.


iii. assim, a mera estipulação da cláusula penal, que está notoriamente contida no título, não confere logo ao credor o direito à prestação pecuniária. Apenas prevê essa possibilidade (a possibilidade de o direito vir a nascer) e apenas em caso da verificação de certos eventos nela descritos.


iv. estes eventos condicionadores ou desencadeadores do funcionamento da cláusula penal correspondem ao incumprimento de outra obrigação acordada (a obrigação de desoneração da exequente). Tal incumprimento constitui facto constitutivo do direito à pena. O direito não existe (não se adquire) sem tal facto.


v. este incumprimento da obrigação principal não consta do título: neste não vem aquele incumprimento afirmado nem muito menos demonstrado ou acertado. Logo, o título não comprova o facto (o incumprimento) constitutivo do direito à prestação exequenda e não revela, por isso, a existência da correspondente obrigação. Não é, assim, título executivo do direito à prestação.


vii. o que se compreende, em termos funcionais, pois a transacção criou um programa contratual a executar após a celebração de tal transacção, e a cláusula penal depende de uma patologia na execução desse programa, o incumprimento, o qual só pode, por natureza, ocorrer em momento posterior à formação do título (não podendo, por isso, estar logo integrado no título: trata-se de uma impossibilidade lógica e ontológica). Assim, o direito não está contido no título pois o seu nascimento constitui, face ao título, mera possibilidade dependente de eventos futuros que o título prevê (ou descreve) mas não atesta. E eventos que, no momento da criação do título, não são sequer de ocorrência futura segura (o incumprimento pode, ou não, ocorrer, o que também postula a sua necessária demonstração futura, se e quando ocorrer).


Em suma, o título prevê apenas a possibilidade de constituição da obrigação (nesse sentido vinculando as partes), mas não constitui logo essa obrigação (não faz nascer o direito pecuniário correspondente), pois o direito ao pagamento estipulado depende de factos adicionais que o título não demonstra.


6. A solução é ainda confortada do ponto de vista do referido regime das obrigações futuras. A situação vertente, quanto à obrigação de pagamento, não parece corresponder precisamente à previsão legal (mormente ao seu segundo segmento) na forma como esta é comummente interpretada (quer por não se tratar de prever acordo futuro, quer por existir já uma estipulação vinculativa e não apenas uma mera previsão dessa futura vinculação), embora se aproxime dela na medida em que da cláusula deriva a possibilidade de futura (mas eventual) constituição de uma obrigação pecuniária. Ora, esta aproximação é bastante para revelar que vale também aqui a forma como o sistema trata estas situações futuras: o título executivo não contempla as prestações futuras, ficando a sua executoriedade dependente da existência de título próprio.


7. Repetindo, o título contém a previsão, pelas partes, da causa da obrigação (do seu fundamento), mas dela não consta a verificação de tal causa e assim o efectivo nascimento do direito à prestação. Isto revela também que se não trata de uma questão de exigibilidade, em sentido estrito, da obrigação, mas de questão atinente à própria existência da obrigação. Aquela exigibilidade parte de uma obrigação preexistente e discute seu aspecto parcelar (em regra, e em termos que excedem o âmbito executivo, o decurso de prazo certo - embora este se revele por si -, a realização prévia ou simultânea de prestação do credor ou de terceiro; a condição suspensiva; a cláusula cum potuerit; o prazo indefinido nos termos do art. 777º n.º2 CC; ou situações de mora do credor). No caso, é aquela preexistência da obrigação que o título não revela.


8. É certo que se afirma que o título executivo incorpora o direito à prestação mas não tem que revelar o incumprimento da correspondente obrigação, não sendo este incumprimento condição de executoriedade: a acção executiva não depende da demonstração do incumprimento. Tal também vale, no caso, para a obrigação exequenda: o exequente, dispondo de título aquisitivo do direito, não teria que revelar o seu incumprimento (a falta de pagamento do valor clausulado). Sucede que a questão é prévia: antes do incumprimento, é o surgimento da obrigação que é preciso demonstrar, e este surgimento, repete-se, não decorre do título pois assenta em factos (o incumprimento de outra obrigação) que o título não atesta.


Deste modo, o título não compreende a prestação exequenda, para a qual não existe, assim, título executivo [5]. E como é o título executivo que, como referido, determina os limites da acção executiva (art. 10º n.º5 do CPC), esta não pode subsistir por não estar suportada em título executivo.


9. A realidade adicional ao título (inadimplemento) e que sustentaria o funcionamento da cláusula penal apenas surge no processo através da declaração da exequente. O que não vale para integrar o título executivo, sendo também para o efeito irrelevante que o incumprimento da obrigação principal seja tido por evidente, ou seja de aparente demonstração segura (pois eventual facilidade de demonstração do incumprimento não é critério de exequibilidade, o que conta é o acertamento constante do título) - asserção esta usada a título meramente argumentativo, sem a afirmar, até porque, como ponto prévio, a cláusula que prescreve a obrigação principal alegadamente incumprida postula ainda um esforço interpretativo que pode legitimamente conduzir à qualificação da obrigação nela prevista como uma obrigação de meios, e não de resultados, com imediatos reflexos na avaliação do seu (in)cumprimento [6].


10. No recurso, a recorrente invoca a violação dos art. 291º n.º2 e 729º al. i) do CPC, de onde decorreria a violação do art. 726º n.º2 al. a) do CPC.


A invocação das duas primeiras normas, relativas à invalidade substantiva da transacção, assenta, salvo o devido respeito, num equívoco.


De um lado, a recorrente parece entender que a execução baseada em sentença homologatória de transacção só poderia ser discutida com base na invocação da nulidade ou anulabilidade da transacção. Tal não é correcto, como a mera leitura do art. 729º do CPC revela: para além desse fundamento [al. i)], outros existem que podem ser opostos àquele título executivo. E, de entre estes e em primeiro lugar, avulta logo a conexão entre a obrigação exequenda e o título executivo, só servindo aquela sentença como título executivo para as obrigações que o título constitua, certifique ou prove (art. 729º al. a) do CPC).


De outro lado, a avaliação realizada respeita exclusivamente à fixação do alcance da transacção realizada (transacção a que a sentença empresta a sua especial força vinculativa), sem avaliar a sua validade. Como já referido, a sentença homologatória da transacção (integrada por esta transacção) vale, tal como qualquer outro título executivo, em função dos seus próprios termos, e assim em razão do que foi acordado (e depois homologado). Este é um limite intrínseco do título executivo por delimitar o seu objecto. E o que se verificou foi que o título atesta a previsão mas não o nascimento da obrigação exequenda (a aquisição do direito correspondente a tal obrigação). Esta aquisição fica, assim, fora do título. Ora, esta avaliação nada tem a ver com a invalidação da transacção, pois não se trata de discutir vícios intrínsecos da transacção mas, como referido, apenas o seu âmbito ou alcance, alcance este que se projecta na exequibilidade do título (art. 10º n.º5 e 720º al. a) do CPC).


Deste modo, também não existe qualquer violação do invocado art. 762º n.º2 al. a) do CPC (pois a sua violação, na lógica da recorrente, seria mero efeito da violação das outras duas normas indicadas).


11. Persiste, assim, a constatação de que o título executivo não suporta a obrigação exequenda, o que significa que inexiste, para essa obrigação, título executivo (art. 729º al. a) do CPC), justificando-se assim manter a decisão extintiva impugnada (embora por razões não inteiramente coincidentes com aquelas em que tal decisão se baseou).


Os termos formais do dispositivo da decisão impugnada (absolvição da instância) não foram impugnados e, na verdade, não relevam autonomamente, e por isso não justificam pronúncia quanto ao seu rigor (embora fosse mais exacto rejeitar e julgar extinta a execução - pois a avaliação quadra nos art. 734º n.º2 e 551º n.º3 do CPC - , os efeitos são funcionalmente equivalentes).


12. Decaindo, suporta a recorrente as custas do recurso (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).


V. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.


Custas pela recorrente.


Notifique-se.


Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):


(…)

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).

António Marques da Silva - Relator

Elisabete Valente - Adjunta


Maria João Sousa e Faro - Adjunta

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1. Por isso se afirma que o título é condição suficiente da execução, tornando desnecessária «qualquer indagação prévia sobre a existência ou subsistência do direito a que se refere», fazendo o título «as vezes do direito que vai ser realizado» (Anselmo de Castro).↩︎

2. Ainda que, por vezes, o alcance das categorias (em especial da exigibilidade) não seja fixado com precisão.↩︎

3. A determinação dos exactos contornos das obrigações futuras, sobretudo na referida segunda modalidade, que estariam incluídas neste regime não se mostra pacífica, mas trata-se de questão que não releva autonomamente nesta sede.↩︎

4. V., por último, Cláusula penal e cláusula de fixação antecipada de indemnização no direito português, RLJ 154/275 e ss., em particular pág. 284 (em solução comummente aceite pela jurisprudência).↩︎

5. Trata-se de solução aparentemente pacífica: para a transacção judicial, v. Ac. do STJ de 30.04.2015, proc. 312-H/2002.P1.S1, de 12.07.2018, proc. 309/16.1T8OVR-B.P1.S1, ou de 12.11.2020, proc. 1139/18.1T8CBR-A.C1.S1, Ac do TRP de 28.10.2021, proc. 1596/19.9T8AGD-C.P1, ou, para outro título mas de forma válida também para a transacção, Ac. do TRP de 15.09.2022, proc. 21669/20.4T8PRT-B.P1, este último citando outras decisões e Autores (todos em 3w.dgsi.pt).↩︎

6. Sendo, de qualquer modo, precoce e precipitada a sua qualificação como obrigação impossível, como sustenta a decisão impugnada.↩︎