Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA JOÃO SOUSA E FARO | ||
Descritores: | PRÁTICA DE ACTO PROCESSUAL FORA DE PRAZO JUSTO IMPEDIMENTO ATESTADO MÉDICO | ||
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Data do Acordão: | 11/24/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. Nada obsta a que seja invocado como justo impedimento um facto ocorrido num dos três dias úteis previstos no nº 5 do artigo 139º do Código de Processo Civil. II. O conceito de “justo impedimento” assenta na não imputabilidade do facto obstaculizador da prática atempada do acto à parte ou ao mandatário justamente por se evidenciar que não houve culpa (e seu juízo de censurabilidade) na sua produção. III. O atestado médico não pode fazer menção à doença de que o senhor advogado padece, salvo consentimento expresso do mesmo, pelo que ter-se-á de aceitar o juízo de impossibilidade de exercício da profissão que é dado pelo clínico que o subscreve. IV. Mas mesmo que por hipótese o atestado especificasse o diagnóstico de que o doente sofre, nem por isso, o Tribunal ficaria habilitado, à míngua de um juízo médico, a determinar se a doença X, no caso daquele paciente, era ou não impeditiva da prática do acto processual. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | ACÓRDÃO I. RELATÓRIO 1. AA, executado/embargante nos autos à margem referenciados, nos quais figura como exequente /embargado o MINISTÉRIO PÚBLICO, inconformado com a decisão que julgou inverificado o justo impedimento para a dedução dos embargos no 2º dia útil após o termo do prazo e determinou o cumprimento do disposto no nº6 do art.º 139º do CPC, dela veio interpor recurso, formulando na sua apelação as seguintes conclusões: A. A 12.05.2022, o Recorrente apresentou Oposição à Execução mediante Embargos de Executado, fora de prazo, alegando justo impedimento da Mandatários, e juntando a respetiva prova. B. Acontece que, por despacho de 31.05.2022, o Recorrente foi notificado do indeferimento da alegação do justo impedimento, e consequentemente aplicação da muta prevista no art.º 139.º n.º 5 do Código de Processo Civil, sob pena da não admissão dos Embargos apresentados. C. A Mandatária, Dra. BB, encontrava-se impedida, por motivo de doença incapacitante, de laborar desde 10.05.2022, Cfr. Doc. n.º 1 junto aos autos. D. E por essa razão não apresentou os Embargos de Executado, nos termos dos artigos 728.º e 785.º do Código de Processo Civil num prazo de 20 dias, ou seja, até a dia 10.05.2022. D. Por isso, e nos termos dos arts. 139.º, n.º 4 e 140.º do C.P.C, a Mandatária apresentou os Embargos de Executado no dia logo seguinte à cessação do impedimento. E. Acontece que o Tribunal a quo decidiu considerar a alegação e prova do impedimento improcedente, F. O que, com o devido respeito, não se compreende nem se pode aceitar. G. Primeiramente, dispõe o art. 140.º, n.º 2 do C.P.C. que a parte que alegar o justo impedimento terá de oferecer a respetiva prova, H. Impedimento este que se cinge à prática do ato processual, cujo prazo se encontra a decorrer, mormente a apresentação de Embargo de Executado, I. Não existindo qualquer indicação na lei que a parte que alegar o impedimento deve provar não só esse mesmo impedimento como também a impossibilidade de substabelecimento, J. Que aliás é facultativa, e não obrigatória, isto é, concede ao Mandatário a possibilidade de substabelecer em Colega os poderes que lhe foram conferidos, se aferir que o próprio Colega se encontra em condições de praticar o ato. K. Ora verifica-se que no atestado médico junto pela Mandatária Subscritora se refere que a mesma “Se encontra doente e impossibilitada”. L. E, se se tratasse de justificar uma mera falta de presença, não estavam assinalados dois (2) dias, como consta do atestado da Mandatária Subscritora. M. Diga-se ainda que a Mandatária se encontra acometida de doença no último dia do prazo, e não nos últimos três dias do prazo. N. A pergunta que se impõe é necessariamente o que é razoável exigir a Mandatário acometido de doença, no último dia de prazo, e que tem direito a esgotá-lo, contando com o dia de trabalho para o efeito, e é surpreendido com doença inesperada. O. Assim como á razoável compreender que o Mandatário subscritor, estando impossibilitado de cumprir o prazo, não podendo deslocar-se ao escritório ainda que fosse para terminar e tentar a entrega eletrónica, também não deixaria de estar impossibilitado de tal deslocação para contactar Colegas que pudesse aceitar cumprir um prazo no último dia, cujo processo não acompanham nem conhecem, e formalizar um substabelecimento, P. Aliás, foi no sentido da procedência do justo impedimento alegado que se pronunciou o douto Ministério Público, por estarem preenchidos os pressupostos legalmente exigidos no art. 140.º do Código de Processo Civil, e realizada a respetiva prova. Q. E, se o homem comum está incapacitado para cumprir um determinado prazo, no seu último dia, muito mais estará com certeza para substabelecer em Colegas, que implica diligenciar e formalizar tal substabelecimento a poucas horas de terminar tal prazo. R. É, na verdade, um imperativo ético-jurídico não se exigir a quem se encontra acometido de doença súbita incapacitante que pratique o ato ou, menosprezado as indicações médicas e a situação de saúde, diligencie em substabelecer, ainda que algum Colega o aceitasse. S. Diga-se ainda, e não menos importante, que o estado clínico de qualquer paciente constitui uma matéria sensível e que está sujeita ao sigilo dos respetivos profissionais. T. Razão pela qual os médicos que atestam qualquer incapacidade ou impossibilidade inibem-se de explicações sobre a respetiva gravidade associada à descrição da doença. U. Até porque a conclusão de tal incapacidade ou impossibilidade é uma conclusão médica, que resulta da análise do estado clínico do paciente. V. Neste sentido, encontram-se violadas as normas constantes nos arts. 139.º, n.º 4 e 140.º do C.P.C., tendo o Tribunal a quo exigido que a alegação e prova do justo impedimento abrangesse o substabelecimento, quando a norma apenas exige a alegação e prova de justo impedimento para a prática do acto cujo prazo encontra-se a decorrer, devendo ter sido neste sentido tais normas interpretadas e aplicadas, e por consequência não ser aplicada a multa. X. Pelo exposto, deve o Embargado de Executado ser admitido, nos termos dos arts. 139.º, n.º 4 e 140.º do C.P.C., sem a aplicação da multa, por se ter verificado justo impedimento, revogando-se a decisão que considerou aplicou a mesma. Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve o presente Recurso ser admitido, devendo em consequência ser revogada a Decisão recorrida, sendo substituída por outra que considere procedente a alegação e prova do justo impedimento da Mandatária, por verificação dos seus pressupostos legais, e consequentemente não ser aplicada a multa prevista no art.º 139.º n.º 5 do Código de Processo Civil. 2. Contra-alegou o Ministério Público defendendo a manutenção do decidido. 3. O objecto do recurso – delimitado pelas conclusões do apelante- circunscreve-se à questão de apreciação da (in) existência de justo impedimento da ilustre mandatária do executado para entregar a petição de embargos de executado antes de dia 12.5.2022. II. FUNDAMENTAÇÃO 4. Para decisão do recurso, deverá ter-se em consideração o seguinte: 4.1. O executado, ora apelante, foi citado no apenso A (Execução) nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 728.º e 785.º do Código de Processo Civil, por funcionário judicial, em 06-04-2022, no Tribunal de Vila Franca de Xira; 4.2. Nos termos do artigo 728.º do Código de Processo Civil, o prazo para que o Executado deduzisse oposição à execução mediante embargos era de 20 dias, ao qual acresceu a dilação de 5 dias prevista no artigo 245.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, uma vez que o mesmo Executado foi citado fora da área da Comarca de Santarém; 4.3. O prazo para o Executado deduzir oposição à execução mediante Embargos de Executado terminou no dia 10-05-2022. 4.3. A petição inicial que deu origem aos presentes embargos foi apresentada em 12-05-2022, sem que tenha sido paga a multa prevista no artigo 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil. 4.4. No mesmo articulado, a Ilustre Mandatária do Executado (com procuração junta no processo principal) alegou que “a apresentação é feita nesta data devido ao facto de a mandatária subscritora ter estado acometida por doença súbita que a impediu de fazer a Oposição à Execução e à Penhora atempadamente, nem tendo tido qualquer possibilidade de substabelecer em Colega para o efeito, conforme atestado médico cuja junção desde já se requer”; 4.5.Em tal atestado médico, datado de 12.5.2022, a médica que o subscreve declarou que a referida mandatária “ por estar doente, encontrou-se impedida de exercer a sua actividade profissional e qualquer acto com esta relacionado no decorrer dos dias de 10 a 11 de maio de 2022”. 5. Do mérito do recurso Como se viu, a petição de embargos deu entrada em juízo no 2º dia útil subsequente ao termo do prazo assinado por lei para o efeito. Desde já se adianta que nada obsta a que seja invocado como justo impedimento um facto ocorrido num dos três dias úteis previstos no nº 5 do artigo 139º do Código de Processo Civil.[1] Posto isto, vejamos se se pode concluir estarmos em presença de um evento não imputável à mandatária do ora apelante que tenha obstado à prática atempada do acto (art.º 140º, nº1 do CPC). Atente-se que o conceito de “justo impedimento” assenta na não imputabilidade do facto obstaculizador da prática atempada do acto à parte ou ao mandatário (ou a um auxiliar deste: art. 800º, 1, C.Civ.), justamente por se evidenciar que não houve culpa (e seu juízo de censurabilidade) na sua produção[2]. De acordo com o atestado médico junto, a senhora advogada esteve doente no decorrer dos dias 10 a 11 de Maio de 2022 e por esse motivo impedida do exercício da sua actividade profissional e de qualquer acto com esta relacionado. Não se descortina motivo , à luz do NCPC, para afirmar, como se afirmou no despacho recorrido, que a “doença do advogado da parte só será considerada justo impedimento se for súbita e tão grave que o impeça quer de praticar o acto, quer de substabelecer o mandato, quer de avisar o respetivo constituinte para que este possa fazer-se representar por outro mandatário, ainda que em gestão de negócios”. Aliás, o pretérito artigo 146º, nº1 na versão dada pelo DL nº329-A/95, de 12.12, introduziu uma definição conceitual de “justo impedimento” muito mais flexível que a anterior, como se refere no respectivo Relatório, “em termos de permitir a uma jurisprudência criativa uma elaboração e densificação e concretização, centrados essencialmente na ideia de culpa, que se afastem da excessiva rigidificação que muitas decisões, proferidas com base na definição constante da lei em vigor, inquestionavelmente revelam.” A norma foi integralmente transposta , sem alterações, para o novo CPC e, de acordo com a mesma, para ocorrer “justo impedimento” basta que o facto obstaculizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao mandatário, por não ter tido culpa na sua produção. Como bem referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[3] : “À luz do novo conceito, basta, para que estejamos perante o justo impedimento, que o facto obstaculizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao seu mandatário, por ter tido culpa na sua produção. (…) Passa assim o núcleo do conceito de justo impedimento da normal imprevisibilidade do acontecimento para a sua não imputabilidade à parte ou ao mandatário.” Sendo apodíctico que o atestado médico não pode fazer menção à doença de que o senhor advogado padece, salvo consentimento expresso do mesmo, ter-se-á de aceitar o juízo de impossibilidade de exercício da profissão que é dado pelo clínico que o subscreve. Mas mesmo que por hipótese o atestado especificasse o diagnóstico de que o doente sofre, nem por isso, o Tribunal ficaria habilitado, à míngua de um juízo médico, a determinar se a doença X, no caso daquele paciente, era ou não impeditiva da prática do acto processual[4]. Rege, a este propósito, o art.º 44.º do Regulamento n.º 707/2016, de 21 de Julho ( REGULAMENTO DE DEONTOLOGIA MÉDICA), sob a epígrafe: “ O Atestado médico”: 1 - Por solicitação livre e sem qualquer coação do interessado ou seu legal representante, o médico tem o dever de atestar e registar os estados de saúde ou doença que verifique durante a prestação do ato médico. 2 - Os atestados médicos, certificados, relatórios ou declarações são documentos particulares, assinados pelo seu autor de forma reconhecível e só são emitidos a pedido do interessado, ou do seu representante legal, deles devendo constar a menção desse pedido. 3 - Os atestados de doença, além da correta identificação do interessado, devem afirmar, sendo verdade, a existência de doença, a data do seu início, os impedimentos resultantes e o tempo provável de incapacidade que determine; não devem especificar o diagnóstico de que o doente sofre, salvo por solicitação expressa do doente, devendo o médico, nesse caso, fazer constar esse condicionalismo ( realce e sublinhado nossos). 4 – (…); 5 – (…). 6 – (…). Não sendo posta em causa a fidedignidade do atestado médico, não há qualquer dúvida que o mesmo é idóneo a comprovar a situação de doença e a incapacidade que ela gera no caso. Por isso, não se entende a afirmação constante do despacho recorrido de que o atestado médico junto aos autos “foi a única prova apresentada para o invocado impedimento” e que “ este documento por si só não permite ao Tribunal concluir pela demostração de que a doença que acometeu a Ilustre Mandatária do Executado (e que não é sequer identificada[5]) a impediu de praticar o ato dentro do prazo e/ou de substabelecer em Colega que assegurasse o cumprimento do prazo”. Cremos, pois, ao invés, estar demonstrado, perante o atestado médico junto aos autos, o (justo) impedimento da senhora advogada na apresentação (tempestiva) dos embargos de executado em razão de doença – evento não imputável- que a impediu do exercício da sua actividade profissional e da prática de qualquer acto com esta relacionado. Como proficientemente se afirma no Acórdão do TCA norte, de 20.03.2015 “o instituto do justo impedimento tem o seu fundamento num imperativo de natureza ético-jurídica, cuja inteleção é de fácil apreensão e que se prende com o facto de não poder exigir-se a ninguém que pratique actos, em processos judiciais ou administrativos, que esteja absolutamente impossibilitado de, em determinado momento, levar a cabo, por razões que não lhe sejam imputáveis. O contrário consubstanciaria uma restrição inaceitável ao núcleo essencial do direito fundamental de acesso ao Direito previsto no art. 20.º da CRP”. Não pode, pois, manter-se a decisão recorrida. III. DECISÃO Face a todo o exposto, acorda-se na procedência do recurso e, revogando a decisão recorrida, julga-se verificado o justo impedimento da ilustre mandatária do executado para entregar a petição de embargos de executado antes de dia 12.5.2022 determinando-se a sua permanência nos autos sem haver lugar ao pagamento de multa fixada no nº5 do art.º 139º do CPC. Sem custas. Évora, 24 de Novembro de 2022 Maria João Sousa e Faro (relatora) Florbela Moreira Lança Elisabete Valente ______________________________________ [1] Neste sentido, Ac. STJ de 23.2.2021 (Fátima Gomes). [2] Neste sentido, Ac. STJ de 13.7.2021( Ricardo Costa). [3] In Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª Edição, Almedina, pág. 274. [4] Como bem se salienta no Ac. do TRL de 6.12.2017 ( Carlos Oliveira) : “Um atestado médico tem a força probatória própria que a lei atribui a um juízo pericial sobre os factos que atesta (Art. 388º do C.C.) e, mesmo sendo certo que esse juízo está sujeito à livre apreciação do tribunal (Art. 389º do C.C.), só se o juiz tiver especiais conhecimentos técnicos sobre a matéria e se encontrar devidamente habilitado a julgar doutro modo é que poderá afastar as conclusões duma prova assim produzida”. [5] Só por lapso se pode ter feito tal afirmação: o nome da senhora advogada consta expressamente do atestado médico. |