Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3295/19.2T8STR.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
RESOLUÇÃO PELO TRABALHADOR
FALTA DE PAGAMENTO PONTUAL DA RETRIBUIÇÃO
CADUCIDADE
FACTO CONTINUADO
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Para efeitos do início de contagem do prazo de caducidade previsto no art. 395.º do Código do Trabalho torna-se relevante distinguir, quanto aos factos ilícitos motivadores da resolução do contrato com justa causa, se estamos perante factos instantâneos, factos instantâneos com efeitos duradouros ou factos continuados.
II – Na primeira situação, tal prazo inicia-se após o conhecimento pelo trabalhador da sua prática; na segunda situação, tal prazo inicia-se apenas quando os efeitos provocados pela prática desses factos atingem tamanha gravidade no âmbito da relação laboral que tornam tal manutenção praticamente impossível; e na terceira situação, tal prazo inicia-se apenas quando o último ato violador do contrato de trabalho tiver sido praticado.
III – No caso de factos continuados, cuja ilicitude se perpetua no tempo, apenas após a cessação da conduta ilícita se pode considerar que ocorreu o último ato violador do contrato de trabalho, data a partir do qual se inicia, então, o prazo de caducidade.
IV – Quando a falta de pagamento da retribuição devida por parte da entidade empregadora é apenas parcial, resulta das regras da experiência comum e da normalidade da vida, que o trabalhador suporta durante vários anos tais incumprimentos, não os reivindicando ou fazendo cessar a relação laboral, não só por ter esperança de, no futuro, vir a receber os montantes em falta, como também por recear que qualquer reivindicação implique a cessação do contrato de trabalho, do qual, na generalidade das vezes, depende a sua sobrevivência.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]:
I – Relatório
N… (Autor) intentou a presente ação declarativa de condenação, emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo comum, contra “Ouro Negro, Combustíveis e Lubrificantes, S.A.” (Ré), solicitando, a final, que a ação seja julgada procedente, por provada, e em consequência, seja a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de €24.558,23, acrescida das prestações vinvendas até à data da sentença e juros legais desde a citação, bem como em custas e condigna procuradoria.
Alegou, em síntese, que o Autor foi admitido ao serviço da Ré no dia 01-07-2017 para, sob as suas ordens, direção e fiscalização, exercer as funções de lavador de automóveis na sede da Ré, tendo para o efeito sido celebrado o correspondente contrato individual de trabalho a termo certo, no qual ficou acordado que o horário de trabalho do Autor seria de 40 horas semanais e que auferiria o salário mensal de €700,00, acrescido de subsídio de refeição e da quantia de €180,57 mensais a título de prémio mensal.
Mais alegou que o Autor prestou trabalho, por ordem da Ré, para além do horário acordado, concretamente de segunda a sábado, 11 horas por dia, das 08h00 às 19h00, num total de 66 horas semanais, as quais nunca lhe foram pagas, ou seja, trabalhou 91 semanas durante todo o seu contrato de trabalho, 26 horas suplementares por semana, o que perfaz um total de 2.366 horas suplementares, sendo que trabalhou igualmente 94 sábados, 11 horas por sábado.
Alegou ainda que o contrato individual de trabalho terminou por o Autor o ter resolvido, em 16-04-2019, com justa causa, invocando o não pagamento de tais horas suplementares.
Alegou também que o Autor tem direito ao montante de €6.266,04 pelo trabalho efetuado aos sábados e €7.175,04 pelas horas suplementares trabalhadas nos outros dias, bem como a quantia de €2.550,00 a título de diferenças salariais, visto o montante salarial recebido ser inferior ao devido, e a quantia de €795,62 a título de prémio mensal por ter recebido quantia inferir à contratada.
Alegou, igualmente, que a Ré não lhe pagou o período de trabalho entre 1 e 16 de abril de 2019, no montante de €350,00, as férias não gozadas em 2017, 2018 e 2019, no montante de €1.163,52, os proporcionais por férias, subsídio de férias e subsídio de natal no montante de €420,00 e a quantia de €247,45 por não lhe ter dado formação profissional, bem como lhe deve pagar o montante de €3.490,56 por não o ter deixado gozar as férias.
Por fim, o Autor reclama, a título de indemnização em substituição da reintegração, a quantia de €2.100,00.
Realizada a audiência de partes, não foi possível resolver o litígio por acordo.
A Ré “Ouro Negro, Combustíveis e Lubrificantes, S.A.” apresentou contestação, pugnando, a final, pela procedência da exceção deduzida, absolvendo-se a Ré do pedido formulado pelo Autor, mas, caso assim se não entenda, deverá o Autor ser condenado, a título de reconvenção, no pagamento à Ré, da quantia de €2.550,00, a que deverão acrescer os respetivos juros de mora à taxa legal desde a presente data e até efetivo pagamento.
Alegou, em súmula, que, atenta a factualidade invocada pelo Autor, verifica-se que o direito a invocar os alegados fundamentos de justa causa para a resolução do contrato de trabalho, aquando da resolução desse contrato, em face do disposto no art. 395.º, nºs. 1 e 2, do Código do Trabalho, já se encontrava caducado.
Alegou igualmente que não se provando a justa causa da resolução do contrato, a Ré tem direito a receber do Autor uma indemnização correspondente, não só à retribuição base relativa a um período de 60 dias, no montante de €1.200,00, como também aos danos causados, tendo a Ré, face à atuação do Autor, sofrido uma quebra acentuada nas lavagens de veículos automóveis durante o período que mediou entre os dias 13 de abril e 14 de junho de 2019, quebra essa que contabiliza num prejuízo no montante de €1.350,00, pelo que peticiona a título de reconvenção o montante total de €2.550,00.
Alegou também que nunca foi acordado o pagamento ao Autor da retribuição base mensal de €700,00, antes sim, de um ordenado base de €565,00, de um subsídio de refeição de €99,44 e de um prémio mensal de €145,74, pelo que houve um lapso de escrita no contrato de trabalho assinado, nos seus arts. 3.º e 4.º, sendo que quer o subsídio de refeição quer o prémio mensal reportavam-se a uma compensação acordada entre as partes relativa a horas de trabalho prestadas adicionalmente pelo Autor, a pedido deste, pelo que acresceriam às 40 horas semanais mais 20 horas, concretamente, 2 horas adicionais nos dias úteis e 10 horas adicionais em cada sábado.
Alegou ainda que o Autor de segunda à sexta-feira fazia um horário diário de 10 horas, entre as 08h00 e as 13h00 e as 14h00 e as 19h00, beneficiando de uma hora para o almoço, e não de 11 horas como alegou, acrescendo que, entre os dias 1 de setembro de 2017 e 30 de junho de 2018, o Autor terminou a sua prestação de trabalho às 17h00, todas as terças, quintas e sábados, para treinar, nesse período, o escalão de iniciados do clube de hóquei, em Almeirim.
Alegou, de igual modo, que o Autor deveria ter recebido pelas horas suplementares prestadas a quantia de €7.334,39, devendo a esta quantia ser deduzida a quantia recebida a título de subsídio de refeição e de prémio mensal no total de €4.144,19, pelo que apenas terá direito à quantia de €3.190,20.
Mais alegou que, relativamente às férias não gozadas, foi o Autor quem insistiu perante a Ré para não as gozar, pelo que não é de aplicar o disposto no art. 246.º do Código do Trabalho, devendo a Ré ao Autor a esse título o montante de €5.032,80.
O Autor veio responder à exceção e à reconvenção, pugnando, a final, pela improcedência da exceção de caducidade alegada pela Ré, bem como pela improcedência do pedido reconvencional formulado pela Ré, sendo, ao invés, julgado procedente, por provada, a ação intentada pelo Autor.
Para o efeito, alegou, em súmula, que, como se tem entendido na jurisprudência portuguesa, quando a violação dos direitos e garantias do trabalhador não se esgota num só ato, o prazo de 30 dias legalmente atribuído para que o trabalhador comunique a resolução do seu contrato só se inicia a partir do momento em que a subsistência do contrato de trabalho se torna intolerável para o trabalhador, pelo que a exceção de caducidade invocada pela Ré deverá improceder.
Alegou também que improcedendo a exceção de caducidade invocada, improcede igualmente o pedido reconvencional formulado, sendo que a Ré, de qualquer modo, não sofreu qualquer prejuízo, e muito menos o montante de €1.350,00, visto que foi, de imediato, colocada outra pessoa para esse serviço de lavagens.
Concluiu, por fim, que a Ré, ao pedir a improcedência total da ação intentada pelo Autor, contradiz a aceitação e confissão, que formulou na sua contestação, da quantia que admitiu ser devedora ao Autor.
Proferido despacho saneador, foi admitida a reconvenção, fixado o valor da causa em €27.108,23, relegado para final o conhecimento da exceção de caducidade invocada pela Ré e identificado o objeto do litígio.
Realizada a audiência de julgamento de acordo com as formalidades legais, foi proferida a sentença em 02-11-2021, com a seguinte decisão:
Pelo exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente e, em consequência julgam-se verificados os fundamentos para a resolução do contrato de trabalho com justa causa pelo autor N… e, em consequência condena-se a ré OURO NEGRO – COMBUSTÍVEIS E LUBRIFICANTES, SA a pagar ao autor:
6.1. A quantia de € 2 100,00 (dois mil e cem euros), a título de indemnização pela resolução do contrato;
6.2. A quantia global de € 13 441,08 (treze mil, quatrocentos e quarenta e um euros e oito cêntimos), a título de trabalho suplementar prestado pelo autor durante a duração do contrato de trabalho;
6.3. A quantia de € 2 550,00 (dois mil, quinhentos e cinquenta euros) a título de diferenças salariais devidas na vigência do contrato de trabalho;
6.4. A quantia de € 795,62 (setecentos e noventa e cinco euros e sessenta e dois cêntimos) referente à diferença entre o valor do prémio pago e o devido durante a duração do contrato;
6.5. A quantia de € 247,45 (duzentos e quarenta e sete euros e quarenta e cinco cêntimos) referente crédito de horas de formação;
6.6. A quantia de € 4.876,80 (quatro mil, oitocentos e setenta e seis euros e oitenta cêntimos) referente ao triplo do valor do período de férias não gozadas em 2017, 2018 e 2019, a que deve ser descontado o valor de 876,80 (oitocentos e setenta e seis euros e oitenta cêntimos);
6.7. A quantia de € 660,42 (seiscentos e sessenta euros e quarenta e dois cêntimos) a título de proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal vencidos com a cessação do contrato de trabalho;
6.8. A quantia de € 440,29 (quatrocentos e quarenta euros e vinte e nove cêntimos) referente à retribuição dos dias trabalhados do mês de abril de 2019.
6.9. Juros de mora à taxa legal de 4% desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento sobre as quantias referidas nas alíneas antecedentes.
Condena-se autor e ré no pagamento das custas da ação, na proporção do respetivo decaimento.
Registe e notifique.
Não se conformando com a sentença, veio a Ré “Ouro Negro, Combustíveis e Lubrificantes, S.A.” interpor recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I - Os fundamentos de justa causa considerados pelo autor para a resolução do contato de trabalho, teriam ocorrido, pelo menos, desde 31 de julho de 2017, data em que recebeu o seu primeiro pagamento por parte da recorrente, porquanto este foi admitido ao serviço da recorrente em 1 de julho de 2017, tendo invocado que, desde que iniciou a sua prestação do trabalho por conta da recorrente, sempre trabalhou mais horas semanais para além do horário estabelecido, as quais nunca lhe teriam sido pagas.
II - Ainda que se considere aplicável o disposto no artigo 395.º, n.º 2, do Código do Trabalho, o início da contagem do prazo para o autor comunicar à recorrente a resolução do contrato de trabalho sempre teria início, no limite, em 30 de setembro de 2017, sob pena de caducidade desse direito.
III – Tendo o autor procedido à resolução do seu contrato de trabalho em 16 de abril de 2019, uma vez volvido um período superior a um ano e meio sobre a data em que teria tomado conhecimento dos factos que alega como fundamento para a justa causa da resolução do contrato de trabalho, o seu direito de resolução do contrato de trabalho, por justa causa, já se encontrava caducado nessa data.
IV - A decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, por errônea interpretação do teor do artigo 395.º do Código do Trabalho, designadamente, da conjugação dos ns. º 1 e 2 desta disposição, que estabelece um prazo concreto para o exercício do direito de resolução, sendo que a caducidade pelo decurso desse prazo se justifica, primordialmente, por razões de certeza dos direitos
V – Não tendo o autor alegado qualquer alteração à alegada atuação ilícita da recorrente, desde o início da relação laboral, aquele deveria ter, em devido tempo, procedido á resolução do contrato de trabalho, caso considerasse que se verificava o requisito causal segundo o qual, que tal atuação ilícita, pela sua gravidade e consequências, tornava imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
VI – À luz da experiência comum, não é credível que um trabalhador suporte dois anos consecutivos, as violações contratuais invocadas nos autos, sem colocar um fim à relação laboral.
VII - A sentença recorrida é nula, atento o disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, porquanto não justificou, ainda que em termos lineares, os motivos que levam a concluir pela parcialidade e incongruências imputadas ao depoimento da testemunha …, não especificando, assim, os fundamentos de facto e de direito que justificaram tal decisão.
VIII - A sentença recorrida é, ainda, nula, atento o disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, tomando em consideração que considerou provado que a ré exigia ao autor que o mesmo trabalhasse de segunda feira a sábado, das 8H00 às 19H00, no total de trabalho semanal de 66 horas, o que o autor cumpria, fundamentando tal prova na consideração segundo a qual resulta assente em face da posição da ré vertida no respetivo articulado, que aceitou que o autor efetuasse um acréscimo de duas horas diários e, bem assim, que trabalhava aos sábados.
IX – Nestes termos, os fundamentos invocados para a prova desta factualidade determinam, precisamente, o contrário daquilo que veio a ser considerado provado, ocorrendo erro manifesto do Tribunal na ponderação da matéria em questão, resultando manifesto que o ato de aceitação da ré do horário do autor não corresponde a uma exigência de tal horário, determinando até que tal correspondeu a uma solicitação do autor.
X - Ainda que se entenda que não existe contradição entre os fundamentos e a decisão na sentença recorrida, sempre se verifica manifesta ambiguidade e obscuridade.
XI - Entende ainda a recorrente que a douta sentença recorrida padece de erros de julgamento, derivados de erros notórios na apreciação e valoração da prova, decorrentes da valoração desproporcional das declarações de parte do autor em detrimento de três testemunhas.
XII – As declarações da parte sobre factos que lhe sejam favoráveis são objeto de apreciação pelo tribunal, e valoradas em obediência ao princípio da livre valoração da prova, todavia, as mesmas devem ser atendidas e valoradas com cuidado, porquanto são tendencialmente parciais, em função do óbvio interesse do declarante, pelo que, quanto a factos favoráveis e essenciais à parte, as respetivas declarações serão insuficientes, só por si, desacompanhadas de outras provas, que as sustentem.
XIII - Verificando-se a ponderação da prova em relação à referida matéria de facto considerada provada na sentença recorrida, conclui-se, que toda a prova da recorrente foi, incorretamente, desvalorizada em função das declarações de parte do autor.
XIV - As considerações de incongruência e parcialidade imputadas na sentença a quo aos depoimentos das testemunhas … e … não se verificam, nem se extraem, de tais depoimentos, pelo que, ocorreu erro na apreciação da prova dos factos constantes dos pontos 4.1.4, 4.1.5, 4.1.6. e 4.1.7. da matéria considerada provada, quando, ao invés, deveriam ter sido considerados provados os factos contantes dos pontos 4.2.1, 4.2.2. e 4.2.3 da matéria de facto não considerada provada.
XV - A matéria de facto considerada provada nos pontos 4.1.17 e 4.1.18 da decisão recorrida decorre de erro de julgamento, ao atribuir uma valoração desproporcional às declarações de parte do autor, em detrimento dos depoimentos das testemunhas … e …, valoração essa que não considerou o facto das referidas declarações de parte não terem tido suporte em qualquer outro meio de prova.
Nestes termos, nos melhores de direito, e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., sopesadas as conclusões acabadas de exarar, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso:
A) Ser declarada a nulidade da Sentença por verificação dos requisitos constantes do artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Código de Processo Civil;
B) Caso assim não se entenda, o que se configura por mera cautela de patrocínio, deverá a douta sentença ser revogada, e substituída por Acórdão que:
i) Declare a Caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho pelo autor, por decurso do prazo;
ii) Considere como não provados os pontos 4.1.4, 4.1.5, 4.1.6., 4.1.7., 4.1.17 e 4.1.18 da matéria considerada provada, considerando como provados os pontos 4.2.1, 4.2.2., 4.2.3, 4.2.4, 4.2.5, 4.2.6, 4.2.7, 4.2.8, 4.2.9, 4.2.10,4.2.11 e 4.2.12 da matéria de facto não considerada provada
Com o que, modestamente se entende, V. Exas. farão inteira e sã JUSTIÇA.
O Autor N… apresentou contra-alegações, onde pugnou pela manutenção da sentença recorrida, tendo terminado com as seguintes conclusões:
a) A recorrente impugna a decisão da Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo” que condenou a recorrente no pagamento ao recorrido de várias quantias a título laboral que totalizam o valor final de 24.234,86 €, a que acrescem juros de mora à taxa legal.
b) A recorrente alega que a douta sentença proferida é nula por verificação dos requisitos constantes do artigo 615º, n.º 1, alíneas b) e c) do Código de Processo Civil e por isso tal sentença deve ser revogada ou substituída por Acórdão que i) Declare a Caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho pelo autor, por decurso do prazo; ii) Considere como não provados os pontos 4.1.4, 4.1.5, 4.1.6., 4.1.7., 4.1.17 e 4.1.18 da matéria considerada provada, considerando como provados os pontos 4.2.1, 4.2.2., 4.2.3, 4.2.4, 4.2.5, 4.2.6, 4.2.7, 4.2.8, 4.2.9, 4.2.10,4.2.11 e 4.2.12 da matéria de facto não considerada provada.”
c) Como bem refere a douta sentença recorrida, primeiramente quanto à não verificação da caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho pelo Autor/Recorrido: “Assim, analisando os factos podemos concluir que, quando o autor declarou a resolução do contrato por carta de 16 de abril de 2019, já tinham decorrido mais de 30 dias sobre o não pagamento, há mais de 60 dias, das referidas quantias respeitantes aos meses anteriores a janeiro de 2019, mas não sobre o não pagamento respeitante a esse mês de janeiro de 2019. Todavia, como cada facto não pode ser isolado dos outros, temos que o não pagamento das retribuições anteriores pode não ter desencadeado a imediata resolução do contrato, mas a sua associação ao não pagamento da retribuição do mês de janeiro, fevereiro e março de 2019 pode ter desencadeado a opção pela resolução do contrato, por tal associação decorrer a gravidade da situação para a sustentação do recurso à resolução. Mas, quando o autor o fez, deve considerar-se que o fez em tempo em qualquer caso. Tratando-se de um facto continuado, não tinham passado mais de trinta dias sobre a cessação do facto ilícito: omissão de pagamento do trabalho suplementar e remanescente da retribuição do mês de janeiro 2019, por mais de sessenta dias. Improcede, assim, a exceção de caducidade.”
d) E já anteriormente, o recorrido tinha tido oportunidade de se pronunciar quanto a esta questão, que mantém, na íntegra e no mesmo sentido da Meritíssima Juiz do Tribunal a quo.
e) E diga-se que a recorrente nem mesmo sequer invocou qualquer base jurisprudencial ou doutrinal, que efetivamente lhe viesse dar razão quanto a esta questão, desconsiderando tratar-se de factos continuados e querendo sobrepor razões de certeza dos direitos acutelados pela caducidade, em detrimento das consequências nefastas a que chegou a relação laboral entre recorrente e recorrido.
f) A recorrente alega ainda que existe nulidade da douta sentença, por ter concluído que o depoimento da testemunha … era incongruente e difícil de perceber à luz das regras da experiência comum, mas não indica os motivos que levam a concluir pela parcialidade.
g) No entanto, tal não corresponde à verdade, pois que é referido na douta sentença que esta testemunha é trabalhadora da recorrente e terá sido a pessoa que negociou a contratação do recorrido, pelo que se percebe que deveria ser uma pessoa que pudesse trazer factos relevantes, credíveis e concretos, o que não aconteceu, já que não conseguiu responder de forma clara, concisa, baralhando e entrando em contradição com as restantes testemunhas.
h) Quanto à nulidade invocada no Ponto V. do recurso, dir-se-á que não restam dúvidas que foi a recorrente que confessou tal facto, no seu articulado.
i) Ora, não existe contradição possível no que confessou, pois não foi apenas aceite o horário de trabalho, como foi aceite expressamente um acréscimo de duas horas diárias e trabalho ao sábado, não existindo qualquer baralhação de conceitos.
j) Quanto aos erros na apreciação da prova, os argumentos apresentados pela recorrente são completamente inusitados, não fazendo sequer qualquer sentido, pois tudo parece ser visto de forma individual, e não lido como uma sentença uniforme, onde as declarações de parte do recorrido estão a ser postas em causa,
mas vejamos,
k) Esquece-se a recorrente que as declarações de parte do seu legal representante foram uma autêntica “revelação”, pois que nem conseguiu justificar as rúbricas do valor do subsídio de refeição, nem do prémio, nem do valor a pagar pelo número de horas trabalhadas, alegando desconhecimento dos factos, conjugado com o próprio contrato de trabalho, conforme página 9 da douta sentença e sabendo-se que esta matéria devia ser do conhecimento pessoal do mesmo, pois este fez questão de dizer que tudo passava por ele e tudo sabia, quando no final do seu depoimento afinal já nada sabia.
l) Quanto ao depoimento da testemunha da recorrente …, não existe qualquer transcrição da recorrente do depoimento desta testemunha, pelo que, conforme jurisprudência dominante, esta parte do recurso nem deveria ser considerada, pois não basta escrever a hora do depoimento, deveria indicar a passagem que faria periclitar a douta sentença, pelo que é o que se requer.
m) E esta testemunha foi muito clara quando referiu que nunca elaborou o contrato de trabalho do recorrido, o qual foi feito no escritório dos advogados da recorrente e que esta testemunha apenas recebe tais documentos, além de fazer a “ponte” entre funcionários e contabilidade, mas nem as negociações acompanha.
n) Relativamente às transcrições finais, apenas haverá a dizer que foram cirurgicamente escolhidas fora do seu contexto, de forma a não tornar inteligível as incongruências existentes, que são muito percetíveis para quem ouvir a totalidade dos depoimentos, pelo que se refuta igualmente o sentido que a recorrente dali quer retirar, devendo manter-se a douta sentença recorrida.
o) Neste sentido, a Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo” bem andou ao decidir como o fez, não tendo violado qualquer dispositivo legal, devendo julgar-se improcedente o recurso interposto e manter-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.
TERMOS EM QUE, por ter decidido devidamente quer de facto quer de Direito, deve ser mantida nos seus precisos termos a douta sentença impugnada, Como é de inteira JUSTIÇA.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (em face da prestação de caução), tendo tal recurso sido mantido nos seus exatos termos neste Tribunal.
Em cumprimento do disposto no art. 87.º, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de que deveria ser julgado improcedente o recurso interposto, mantendo-se a sentença recorrida.
Não foi apresentada resposta a tal parecer.
Dispensados os vistos por acordo, cumpre agora apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho por justa causa por parte do Autor;
2) Nulidade da sentença nos termos do art. 615.º, n.º 1, als. b) e c), do Código de Processo Civil; e
3) Impugnação da matéria de facto e respetivas consequências jurídicas.
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
4.1.1 A ré é uma sociedade que se dedica ao comércio por grosso e a retalho de combustíveis líquidos, sólidos, gasosos e produtos derivados; comércio a retalho de acessórios; comércio a retalho de lubrificantes, comércio a retalho de jornais e revistas; e cafetaria, com sede na Zona Industrial, Lote 10, 2080-221 Almeirim, pessoa coletiva n.º 507 918 428.
4.1.2 O autor foi admitido ao serviço da sociedade ré no dia 1 de julho de 2017, mediante a celebração de contrato individual de trabalho a termo certo.
4.1.3 O Autor, desde 1 de julho de 2017, desempenhava as funções de lavador automóveis na sede da ré, sita na Zona Industrial, Lote 10, em Almeirim.
4.1.4 Foi acordado entre o autor e a ré o salário mensal de 700,00€ (setecentos euros), acrescido de subsídio de refeição no valor de € 3,81 (rês euros e oitenta e um cêntimo) por cada dia de trabalho completo, bem como da quantia de 180,57€ (cento e oitenta euros e cinquenta e sete cêntimos) mensais a título de prémio mensal.
4.1.5 O período normal de trabalho do autor ficou acordado com a ré ser de 40 horas semanais, distribuídas por toda a semana.
4.1.6 A ré exigia ao autor que o mesmo trabalhasse de segunda feira a sábado, das 8H00 às 19H00, no total de trabalho semanal de 66 horas, o que o autor cumpria.
4.1.7 A ré não pagou ao autor, o acréscimo de 26 horas semanais que o mesmo trabalhou e que excederam as 40 horas semanais.
4.1.8 O autor esteve de baixa médica de 15 de abril de 2019 a 26 de abril de 2019.
4.1.9 Em 16 de abril de 2019, o autor procedeu à resolução unilateral do seu contrato de trabalho, por carta registada com aviso de receção, com o seguinte teor:
“ (…) de uma forma reiterada e contínua tenho sido confrontado com a imposição de prática de horários de trabalho fora dos limites legais, efetuando inúmeras horas extraordinárias de trabalho e sem remuneração adicional, ao arrepio do que a Lei prevê. Sou obrigado a trabalhar de 2a feira a Sábado, onze horas por dia, o que perfaz um total semanal de 66 horas, em vez das 40 horas que o meu contrato de trabalho e a Lei preveem. Vem-me sendo ser prometido o pagamento de todas estas horas, até ao presente e desde o início do meu contrato, mas isto nunca aconteceu. Apesar do meu protesto e da minha posição, devendo ser remunerado pelo trabalho efetuado, continuo a trabalhar horas extraordinárias não remunerado como tal e nem sequer posso trabalhar apenas as 8 horas diárias de 2a a Sábado, sob ameaça de despedimento, incluindo ofensas e injúrias verbais que me são dirigidas, tais como "Não vales nada, pensas que isto é a Madeira" e "Vai já lá acima para assinares os papéis para dizeres que queres ir embora". Não posso continuar a trabalhar horas e horas sem receber qualquer valor por isso, e ainda prejudicar a minha vida pessoal e familiar por causa desta imposição, não tenho direito a nenhum sábado de descanso, nem consigo recuperar física e psicologicamente, semana após semana, por causa da sobrecarga horária imposta, sem o meu consentimento; nem aguento tanta pressão psicológica, para me despedir e nesse sentido já se está a refletir no meu estado de saúde.
Acresce ainda que o meu vencimento não está a ser pago de acordo com o meu contrato de trabalho, bem como o meu prémio contratado, nem me foi deixado gozar férias desde o início do meu contrato de trabalho, nem tão pouco foram remuneradas enquanto não gozadas.
Assim, a minha situação económica está deplorável, tendo já rendas em atraso, tendo em conta que a minha esposa é desempregada de longa duração e não tem vencimento e o ordenado prometido nunca me foi pago, o que afeta irremediavelmente a minha vida pessoal - e a minha saúde física e mental - e me acarreta também prejuízos, que dificilmente conseguirei pagar.
Venho, assim e de acordo com o atrás exposto, cessar imediatamente o meu contrato de trabalho com esta empresa e solicitar a V.a Ex.a a regularização de todos os meus créditos laborais, num prazo máximo de cinco dias, por transferência bancária e emitindo o respetivo recibo. (…).
4.1.10. Desde o dia 1 de julho até 31 de dezembro de 2017, o Autor trabalhou 27 sábados.
4.1.11. No ano de 2018, o autor trabalhou 52 sábados.
4.1.12. No ano de 2019, o autor trabalhou 15 sábados.
4.1.13. A ré pagou ao autor os seguintes salários base mensais:
- De julho de 2017 a dezembro de 2017: 565,00€.
- De janeiro a dezembro de 2018: 580,00€.
- De janeiro a março de 2019: 600,00€.
4.1.14. O autor recebeu o prémio mensal da ré, da seguinte forma:
- De julho de 2017 a dezembro de 2018: 145,74 €;
- Em janeiro e fevereiro de 2018: 125,74 €;
- Em março de 2019: 121,55 €.
4.1.15. A ré não pagou ao autor a remuneração referente ao período de 1 a 16 de abril de 2019, no montante de 350,00 €.
4.1.16. O autor nunca gozou férias.
4.1.17. A ré nunca deixou o autor gozar as suas férias.
4.1.18. A ré não pagou ao autor as férias não gozadas em 2017 e 2019.
4.1.19. No dia 1 de agosto de 2018 ré pagou ao autor, sob a designação de “Prémio Eventual” a quantia de € 876,80 ilíquida, correspondente a € 712,35 líquidos, referente ao trabalho prestado no período de férias nesse ano.
4.1.20. A ré não pagou ao autor os proporcionais de férias, subsídio de férias, e subsídio de Natal do ano da cessação.
4.1.21. A ré nunca proporcionou ao autor formação profissional.
E foram dados como não provados os seguintes factos:
4.2.1 As partes acordaram entre si que o pagamento mensal líquido a receber pelo autor pelo trabalho prestado seria de 700,00 euros, contabilizado da seguinte forma:
- Ordenado-base: 565,00 euros;
- Subsídio de refeição: 99,44 euros;
- Prémio mensal: 145,74 euros.
4.2.2 O contrato de trabalho contém lapsos de escrita nos artigos 3º e 4º, relativos ao período de trabalho e à retribuição.
4.2.3 O subsídio de refeição que consta dos recibos de vencimentos, bem como o prémio mensal, referem-se a uma compensação acordada entre o autor e a ré, relativa a horas de trabalho prestadas adicionalmente por aquele.
4.2.4 Ficou combinado entre o autor e a ré que ao período de trabalho de quarenta horas semanais acresceriam outras 20 horas, distribuídas da seguinte forma:
- 2 horas adicionais nos dias úteis,
- 10 horas adicionais em cada sábado.
4.2.5 Foi acordado entre as partes que os montantes resultantes das horas adicionais referidas em 4.2.4 seriam computadas através do pagamento adicional da quantia total mensal de 245,18 euros.
4.2.6 O autor, desde o início do seu contrato, sempre almoçou no refeitório da autora, a título gratuito.
4.2.7 Entre as 13h00 e as 14h00, o autor sempre beneficiou de um intervalo de uma hora para almoço no refeitório da ré.
4.2.8 O autor solicitou à ré a alteração do seu período de trabalho entre 1 de setembro de 2017 e 30 de junho de 2018, para 54 horas semanais, o que foi aceite.
4.2.9 Entre os dias 1 de setembro de 2017 e 30 de junho de 2018, o autor terminava a sua prestação de trabalho às 17h00, todas as terças-feiras, quintas-feiras e sábados.
4.2.10 O autor treinou, durante tal período e horário, o escalão de iniciados do clube de hóquei “Os Tigres”, sito em Almeirim.
4.2.11 O autor efetuou as seguintes horas suplementares:
- Em 2017: 414 horas suplementares
- Em 2018 (vencimento base – 580,00 euros): 844 horas suplementares
- Em 2019 (vencimento base – 600,00 euros): 292 horas suplementares
4.2.12 O autor efetuou as horas suplementares a seu pedido.
4.2.13 Em abril de 2019, em virtude da cessação do contrato pelo autor, e da inexistência de um lavador de automóveis que o substituísse durante tal período, o número total de lavagens foi de 144, diminuição de 135 lavagens por motivo exclusivamente.
4.2.14 A ré cobra 10 euros por cada lavagem à sua clientela.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) o direito de resolução do contrato de trabalho por justa causa por parte do Autor se mostra caducado; (ii) a sentença recorrida é nula nos termos do art. 615.º, n.º 1, als. b) e c), do Código de Processo Civil; e (iii) a sentença recorrida fez um incorreto julgamento da matéria de facto e respetivas consequências jurídicas.
1 – Caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho por justa causa por parte do Autor
Considera a Apelante que os fundamentos de justa causa invocados pelo Autor para a resolução do contrato de trabalho teriam ocorrido, pelo menos, desde 31 de julho de 2017 ou, no limite, em 30 de setembro de 2017, pelo que, aquando da sua invocação pelo Autor, em 16 de abril de 2019, há muito tinha decorrido o prazo de caducidade, previsto no art. 395.º, nºs. 1 e 2, do Código do Trabalho.
Considera também a Apelante que, à luz da experiência comum, não é credível que um trabalhador suporte dois anos consecutivos violações contratuais como as invocadas sem colocar um fim à relação laboral.
Estipula o art. 394.º do Código do Trabalho que:
1 - Ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato.
2 - Constituem justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador, nomeadamente, os seguintes comportamentos do empregador:
a) Falta culposa de pagamento pontual da retribuição;
b) Violação culposa de garantias legais ou convencionais do trabalhador, designadamente a prática de assédio praticada pela entidade empregadora ou por outros trabalhadores;
c) Aplicação de sanção abusiva;
d) Falta culposa de condições de segurança e saúde no trabalho;
e) Lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador;
f) Ofensa à integridade física ou moral, liberdade, honra ou dignidade do trabalhador, punível por lei, incluindo a prática de assédio denunciada ao serviço com competência inspetiva na área laboral, praticada pelo empregador ou seu representante.
3 - Constituem ainda justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador:
a) Necessidade de cumprimento de obrigação legal incompatível com a continuação do contrato;
b) Alteração substancial e duradoura das condições de trabalho no exercício lícito de poderes do empregador;
c) Falta não culposa de pagamento pontual da retribuição.
d) Transmissão para o adquirente da posição do empregador no respetivo contrato de trabalho, em consequência da transmissão da empresa, nos termos dos n.os 1 ou 2 do artigo 285.º, com o fundamento previsto no n.º 1 do artigo 286.º-A.
4 - A justa causa é apreciada nos termos do n.º 3 do artigo 351.º, com as necessárias adaptações.
5 - Considera-se culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por período de 60 dias, ou quando o empregador, a pedido do trabalhador, declare por escrito a previsão de não pagamento da retribuição em falta, até ao termo daquele prazo.

Dispõe o art. 395.º do Código do Trabalho que:
1 - O trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador, por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos.
2 - No caso a que se refere o n.º 5 do artigo anterior, o prazo para resolução conta-se a partir do termo do período de 60 dias ou da declaração do empregador.
3 - Se o fundamento da resolução for o referido na alínea a) do n.º 3 do artigo anterior, a comunicação deve ser feita logo que possível.
4 - O empregador pode exigir que a assinatura do trabalhador constante da declaração de resolução tenha reconhecimento notarial presencial, devendo, neste caso, mediar um período não superior a 60 dias entre a data do reconhecimento e a da cessação do contrato.

Apreciemos.
A sentença recorrida aprecia esta questão nos seguintes moldes:
O autor funda a resolução do contrato de trabalho, essencialmente, na falta de pagamento do trabalho suplementar e dos valores de retribuição acordados.
A ré invoca a caducidade do direito do autor à resolução do contrato, porquanto quando este efetuou tal resolução já havia decorrido prazo superior a 30 dias sobre o termo do período de 60 dias em que a alegada falta de pagamento pontual da retribuição se verificou.
O autor impugnou a verificação da aludida exceção, invocando que se tratam de factos de carácter continuado e duradouro, pelo que o prazo só se inicia a partir do momento em que a subsistência do contrato se torna intolerável para o trabalhador.
Resulta do artigo 395.º, n.º 1 do Código do Trabalho que a declaração de resolução do trabalhador com invocação de justa causa deverá feita por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, “nos 30 dias subsequentes ao conhecimento desses factos”.
Tratando-se de falta de pagamento que se prolongue por período de 60 dias ou em que o empregador declare a previsão de não pagamento até ao termo desses 60 dias, o Código do Trabalho esclarece que “o prazo para resolução conta-se a partir do termo do período de 60 dias ou da declaração do empregador” (n.º 2 do art. 395.º).
Este prazo de 30 dias previsto no n.º 1 do artigo 395.º para o exercício do direito de resolver o contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador é de caducidade, como resulta do disposto no n.º 2 do artigo 298.º do Código Civil, nos termos do qual, “[q]uando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição”, pelo que não se interrompe, nem se suspende (artigo 328.º do Código Civil).
Tal caducidade não opera ope legis, carecendo de ser invocada pela parte interessada, uma vez que se trata de matéria que se encontra na disponibilidade das partes (cfr. o n.º 2 do artigo 333.º e o artigo 303.º, do Código Civil).
A contagem do prazo de 30 dias inicia-se com o “conhecimento” pelo trabalhador dos factos que integram a justa causa de resolução invocada, conhecimento este que, atento o envolvimento pessoal das partes no contrato de trabalho e de o facto que integra a justa causa se refletir de imediato na pessoa do trabalhador, em princípio, coincidirá com a data da sua verificação.
Com a fixação de um prazo de caducidade, o legislador parte do princípio de que, se depois de tomar conhecimento dos factos que fundamentam a resolução, o trabalhador não reagiu por mais de 30 dias, é de supor que o ato do empregador não impossibilitou a prossecução da relação, não havendo por isso justa causa para a resolução.
Assim, tratando-se de factos instantâneos, em que a conduta é uma só, realizada ou executada em dado momento, factos estes que se esgotam com o respetivo ato concretizador, aquele prazo inicia-se no momento do conhecimento da materialidade dos factos.
Já no caso de o comportamento ilícito do empregador ser continuado, o prazo de caducidade só se inicia quando for praticado o último ato de violação do contrato (o conhecimento da situação ilícita renova-se permanentemente enquanto ela se mantiver).
O que releva para a lei é a situação continuada de incumprimento, decorridos que sejam 60 dias, e não o facto instantâneo de não pagamento no dia acordado para o cumprimento. Tratando-se de um facto continuado, se se mantiver a omissão de pagamento da retribuição, então o tal prazo de trinta dias sobre o conhecimento dos factos que a fundamentaram só deve iniciar-se quando cessar a situação ilícita que assuma gravidade para a sustentação do recurso à resolução.
Acresce que as condutas do empregador que relevem para a decisão da resolução por iniciativa do trabalhador não têm de ser tomadas isoladamente, mas antes de ser consideradas globalmente se reportadas a determinado período de tempo.
Só assim se poderá ponderar a efetiva gravidade da situação e o grau de lesão dos interesses atingidos.
Em face da factualidade assente constata-se que, desde o início do respetivo vínculo laboral com a ré, até à data da cessação do vínculo laboral por iniciativa do trabalhador, a ré nunca lhes pagou qualquer acréscimo salarial pelas horas de trabalho suplementar prestadas e, bem assim, não pagou parcialmente os valores da retribuição acordados.
Assim, analisando os factos podemos concluir que, quando o autor declarou a resolução do contrato por carta de 16 de abril de 2019, já tinham decorrido mais de 30 dias sobre o não pagamento, há mais de 60 dias, das referidas quantias respeitantes aos meses anteriores a janeiro de 2019, mas não sobre o não pagamento respeitante a esse mês de janeiro de 2019. Todavia, como cada facto não pode ser isolado dos outros, temos que o não pagamento das retribuições anteriores pode não ter desencadeado a imediata resolução do contrato, mas a sua associação ao não pagamento da retribuição do mês de janeiro, fevereiro e março de 2019 pode ter desencadeado a opção pela resolução do contrato, por tal associação decorrer a gravidade da situação para a sustentação do recurso à resolução.
Mas, quando o autor o fez, deve considerar-se que o fez em tempo em qualquer caso. Tratando-se de um facto continuado, não tinham passado mais de trinta dias sobre a cessação do facto ilícito: omissão de pagamento do trabalho suplementar e remanescente da retribuição do mês de janeiro 2019, por mais de sessenta dias.
Improcede, assim, a exceção de caducidade.

Desde já manifestamos a nossa concordância quanto a tal fundamentação.
Efetivamente, para efeitos do início de contagem do prazo de caducidade previsto no art. 395.º do Código do Trabalho torna-se relevante distinguir, quanto aos factos ilícitos motivadores da resolução do contrato com justa causa, se estamos perante factos instantâneos, factos instantâneos com efeitos duradouros ou factos continuados. Na realidade, na primeira situação, tal prazo inicia-se após o conhecimento pelo trabalhador da sua prática; na segunda situação, tal prazo inicia-se apenas quando os efeitos provocados pela prática desses factos atingem tamanha gravidade no âmbito da relação laboral que tornam tal manutenção praticamente impossível; e na terceira situação, tal prazo inicia-se apenas quando o último ato violador do contrato de trabalho tiver sido praticado[2].
Ora, no caso em apreço, em face da factualidade dada como assente, o não pagamento pela Ré ao Autor de parte da retribuição que tinha sido acordada, bem como do trabalho suplementar por este praticado, ocorreu desde o início da celebração do contrato de trabalho em 01-07-2017, com o primeiro vencimento salarial a ocorrer em 31-07-2017, e renovou-se, agravando-se na sua quantidade e intensidade, todos os finais de mês até à resolução contratual ocorrida em 16-04-2019.
Efetivamente, no caso de factos continuados, cuja ilicitude se perpetua no tempo, apenas após a cessação da conduta ilícita se pode considerar que ocorreu o último ato violador do contrato de trabalho, data a partir do qual se inicia, então, o prazo de caducidade.
Conforme bem se refere no acórdão do TRL, proferido em 16-11-2016[3]:
Ao contrário do suposto pela ré, o que releva em termos do cômputo do prazo de caducidade em questão (art.º 298.º n.º 2 do Código Civil), não é o facto instantâneo referente à ausência de pagamento da retribuição no momento do seu vencimento (art.º 278.º do Código do Trabalho), mas sim a situação continuada do incumprimento retributivo, como resulta do art.º 395.º n.º 2 e 1 do Código do Trabalho.
Estando, pois, em causa a falta de pagamento da retribuição em termos continuados, o prazo de caducidade apenas começará a decorrer quando cessar a conduta ilícita que fundamenta resolução contratual. Neste sentido, os Acórdãos do STJ de 8.05.2002, AD, 493, pág. 148, e da TRC de 14.12.2016, proc. 125/06.9TTAVR.L1, www.dgsi.pt e também Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21.3.1995, BMJ 445-641 e Pedro Romano Martinez, “Direito do Trabalho”, 2.ª edição, pág. 968, a propósito do artigo 34.° n.º 2 do DL 64-A/89, também citados neste último aresto.
Deste modo, uma vez que quando o autor procedeu à resolução do contrato, a situação ilícita do incumprimento retributivo por parte da ré ainda não havia cessado, não se verifica a invocada excepção de caducidade, improcedendo, por conseguinte, a presente questão.

Deste modo, é evidente que nos encontramos perante um facto continuado e mensalmente reforçado, nunca tendo tal situação ilícita cessado até à data da resolução contratual.
Dir-se-á ainda que quando a falta de pagamento da retribuição devida por parte da entidade empregadora é apenas parcial, contrariamente ao invocado pela Ré, resulta das regras da experiência comum e da normalidade da vida, que o trabalhador suporta durante vários anos tais incumprimentos, não os reivindicando ou fazendo cessar a relação laboral, não só por ter esperança de, no futuro, vir a receber os montantes em falta, como também por recear que qualquer reivindicação implique a cessação do contrato de trabalho, do qual, na generalidade das vezes, depende a sua sobrevivência.
Pelo exposto, não se verificando a caducidade do fundamento invocado pelo Autor para a resolução do contrato de trabalho, improcede, nesta parte, a pretensão da Apelante.
2 – Nulidade da sentença nos termos do art. 615.º, n.º 1, als. b) e c), do Código de Processo Civil
Entende a Apelante que a sentença é nula quer por falta de fundamentação (visto não ter justificado, ainda que em termos lineares, os motivos que levaram a concluir pela parcialidade e incongruências imputadas ao depoimento da testemunha …), quer por contradição entre os fundamentos e a decisão e a ocorrência de ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (visto que o meio de prova que foi considerado para dar como provado que o Autor trabalhava de segunda-feira a sábado, das 08h00 às 19h00 prova exatamente o contrário).
O tribunal a quo pronunciou-se sobre as invocadas nulidades, considerando inexistirem quaisquer nulidades, antes sim, discordância com a decisão proferida.
Dispõe o art. 615.º, n.º 1, als. b) e c), do Código de Processo Civil, que:
1 - É nula a sentença quando:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

Decidamos.
a) Nulidade por falta de fundamentação:
Para que se mostre verificado o vício de falta de fundamentação do despacho recorrido, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, como resulta pacífico na nossa doutrina e jurisprudência, é necessário que exista uma situação de ausência de fundamentação de facto ou de direito, não bastando, assim, uma mera situação de insuficiência, mediocridade ou erroneidade de tal fundamentação.
Cita-se a este propósito o acórdão do STJ, proferido em 02-06-2016[4]:
II - Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.

De igual modo se cita a explanação do professor Alberto do Reis[5] sobre esta específica nulidade:
Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

Ora, no caso que nos ocupa, a não credibilização do depoimento da testemunha … por parcial e incongruente consubstancia, em si mesmo, uma fundamentação, pelo que não é possível considerar que inexiste qualquer fundamento invocado na sentença recorrida para não atender ao depoimento de tal testemunha.
Coisa diferente é considerar tal fundamentação insuficiente ou errónea, porém, tais situações terão de ser apreciadas em sede de impugnação da matéria de facto.
Assim, apenas nos resta considerar improcedente a invocada nulidade da sentença por falta de fundamentação, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no art. 1.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo do Trabalho.

b) Nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão e a ocorrência de ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível:
Conforme resulta dos ensinamentos de Lebre de Freitas em A Acção Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013[6]:
(…) se na fundamentação da sentença o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica, ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade.

De igual modo, como bem sustentaram Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil[7], esta nulidade reporta-se “à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão. (…) Nestes casos (…), há um vício real de raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”.
Cita-se ainda a este propósito o acórdão do STJ, proferido em 30-05-2013, no âmbito do processo n.º 660/1999.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt:
I- A contradição a que a lei impõe o efeito inquinatório da sentença como nulidade, é a oposição entre os fundamentos e a decisão – art.º 668º, nº 1, al. d) do CPC.
II- Porém, para que tal ocorra, não basta uma qualquer divergência inferida entre os factos provados e a solução jurídica, pois tal divergência pode consubstanciar um mero erro de julgamento (error in judicando) sem a gravidade de uma nulidade da sentença. Como escreve Amâncio Ferreira «a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se como erro de julgamento» (A. Ferreira, Manual de Recursos em Processo Civil, 9ª edição, pg. 56).
III- A contradição entre os fundamentos e a decisão prevista na alínea c) do nº 1 do art.º 668º, ainda nas palavras do citado autor, verifica-se quando «a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo Juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente»

Por sua vez, como igualmente se refere na anotação ao art. 615.º do Código de Processo Civil Anotado[8]:
A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.

De igual modo, referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[9]:
No regime atual, a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória, só releva quando gera ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236-1CC e 238-1 CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.

Em sentido idêntico, cita-se o acórdão do STJ, proferido em 08-10-2020[10]:
II. - A ambiguidade ou obscuridade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil só releva quando torne a parte decisória ininteligível.
III. - A ambiguidade ou obscuridade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil só torna a parte decisória ininteligível “quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar”.

Assim, por um lado, a contradição que releva é a que decorre entre os fundamentos e a decisão; e, por outro, a ambiguidade ou obscuridade que pode levar à nulidade da sentença é a que decorre da parte decisória.
Ora, basta atentar ao motivo invocado pela Apelante (que o tribunal a quo deu como provado um facto assente num meio de prova que não é suscetível de o comprovar) para facilmente se percecionar que o invocado pela Apelante se reporta a um erro de apreciação da matéria de facto, a apreciar em sede de impugnação da matéria de facto, e não a uma qualquer situação de nulidade prevista na citada al. c) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil[11].
Por sua vez, basta proceder à leitura da parte decisória da sentença recorrida[12] para também se verificar inexistir qualquer ambiguidade ou obscuridade nessa parte da sentença, sendo que a Apelante também não alega qualquer ambiguidade ou obscuridade na parte decisória da sentença.
Pelo exposto, improcede também, quanto a esta nulidade, a pretensão da Apelante.
3 – Impugnação da matéria de facto e respetivas consequências jurídicas
Considera a Apelante que os factos provados 4.1.4, 4.1.5, 4.1.6, 4.1.7, 4.1.17 e 4.1.18 deveriam ter sido dados como não provados e que os factos não provados 4.2.1, 4.2.2, 4.2.3, 4.2.4, 4.2.5, 4.2.6, 4.2.7, 4.2.8, 4.2.9, 4.2.10, 4.2.11 e 4.2.12 deveriam ter sido dados como provados.
Dispõe o art. 640.º do Código de Processo Civil que:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

Quanto à interpretação das obrigações que impendem sobre a Apelante, nos termos do n.º 1 do art. 640.º do Código de Processo Civil, cita-se, entre muitos, o acórdão do STJ, proferido em 03-03-2016[13]:
I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
II – Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.
III – O ónus a cargo do Recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado.
IV – Nem o cumprimento desse ónus pode redundar na adopção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação, e que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, máxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coarctando à parte Recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica.

Relativamente à interpretação das obrigações que impendem sobre a Apelante, nos termos da al. a) do n.º 2 do art. 640.º do Código de Processo Civil, cita-se o acórdão do STJ, proferido em 21-03-2019[14] [15]:
III. Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.
IV. Tendo o recorrente, indicado, nas conclusões das alegações de recurso, o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas ou indicado o ficheiro em que os mesmos se encontram gravados no suporte técnico e complementado estas indicações com a transcrição, no corpo das alegações, dos excertos dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso, tanto basta para se concluir que o recorrente cumpriu o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos no artigo 640º, nº 2, al. a) do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Por sua vez, no que diz respeito à apreciação da matéria de facto em sede de recurso, importa acentuar que o disposto no art. 640.º do Código de Processo Civil consagra atualmente um duplo grau de jurisdição, persistindo, porém, em vigor o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz da 1.ª instância, previsto no art. 607.º, n.º 5, do mesmo Diploma Legal.
No entanto, tal princípio da livre apreciação da prova mostra-se condicionado por uma “prudente convicção”, competindo, assim, ao Tribunal da Relação aferir da razoabilidade dessa convicção, em face das regras da experiência comum e da normalidade da vida, da ciência e da lógica.
Veja-se sobre esta matéria o sumário do acórdão do STJ, proferido em 31-05-2016[16]:
I - O tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.
II - Desde que o recorrente cumpra as determinações ínsitas no art. 640.º, o tribunal da Relação não poderá deixar de fazer a reapreciação da matéria de facto impugnada, podendo alterar o circunstancialismo dado como assente na 1.ª instância.

Cita-se ainda o sumário do acórdão do TRG, proferido em 04-02-2016,[17]:
I- Para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.

E, a ser assim, o Tribunal da Relação, aquando da reapreciação da matéria de facto, deve, não só recorrer a todos os meios probatórios que estejam à sua disposição e usar de presunções judiciais para, desse modo, obter congruência entre a verdade judicial e a verdade histórica, como também, sem incorrer em excesso de pronúncia, ao alterar a decisão de determinados pontos da matéria de facto, retirar dessa alteração as consequências lógicas inevitáveis que se repercutem noutros pontos concretos da matéria de facto, independentemente de tais pontos terem ou não sido objeto de impugnação nas alegações de recurso.
Menciona-se, a este propósito, o sumário do acórdão do STJ, proferido em 13-01-2015[18]:
XIII - Não ocorre excesso de pronúncia da decisão, se a Relação, ao alterar a decisão da matéria de facto relativamente a alguns pontos, retira dessa modificação as consequências devidas que se repercutem noutra matéria de facto, sendo irrelevante ter sido esta ou não objecto de impugnação nas alegações de recurso.

Por fim, importa ainda esclarecer que o Tribunal da Relação, na sua reapreciação da prova, terá sempre que atender à análise crítica de toda a prova e não apenas aos fragmentos de depoimentos que, por vezes, são indicados, e que retirados do seu contexto, podem dar uma ideia bem distinta daquilo que a testemunha efetivamente mencionou, bem como daquilo que resultou da globalidade do julgamento.
Consigna-se que se procedeu à audição de todo o julgamento.
Cumpre decidir.
Quanto à impugnação relativa aos factos provados 4.1.17 e 4.1.18, verifica-se que a Apelante não deu cumprimento ao disposto na al. a) do n.º 2 do art. 640.º do Código de Processo Civil, uma vez que, apesar de referir que a pretendida alteração fáctica se fundamentava no depoimento das testemunhas … e …, não indicou quaisquer partes de tais depoimentos, nem procedeu às respetivas transcrições.
Assim, quanto a esses pontos fácticos, nos termos da citada al. a) do n.º 2 do art. 640.º do Código de Processo Civil, rejeita-se o recurso.
Quanto à impugnação relativa aos factos provados 4.1.4, 4.1.5, 4.1.6, 4.1.7 e aos factos não provados 4.2.1, 4.2.2, 4.2.3, 4.2.4, 4.2.5, 4.2.6, 4.2.7, 4.2.8, 4.2.9, 4.2.10, 4.2.11 e 4.2.12, por a Apelante ter dado integral cumprimento ao disposto no art. 640.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil, apenas nos resta admitir o recurso sobre a indicada matéria de facto.
(…)
Em conclusão:
Improcede na íntegra a invocada impugnação fáctica, pelo que, tendo a Apelante assente eventuais consequências jurídicas da procedência dessas alterações fácticas, não se tendo estas verificado, nada mais há a apreciar.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela Apelante (art. 527.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 13 de julho de 2022
Emília Ramos Costa (relatora)
Moisés Silva
Mário Branco Coelho

__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Moisés Silva; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho.
[2] Veja-se, neste sentido, o acórdão do TRP, proferido em 04-04-2022, no âmbito do processo n.º 3191/20.0T8MTS-A.P1, consultável em www.dgsi.pt.
[3] No âmbito do processo n.º 15354/14.3T2SNT.L1-4, consultável em www.dgsi.pt.
[4] No âmbito do processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[5] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 140.
[6] 3.ª ed., p. 333.
[7] 2.ª ed., pp. 689-690.
[8] De António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Vol. I, 2018, Almedina, Coimbra, p. 738.
[9] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, p. 735.
[10] No âmbito do processo n.º 5243/18.8T8LSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[11] Aplicável ao processo laboral nos termos do art. 1.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo do Trabalho.
[12] Citada no presente relatório.
[13] No âmbito do processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[14] No âmbito do processo n.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2, consultável em www.dgsi.pt.
[15] Em idêntico sentido, os acórdãos do STJ, proferidos em 08-11-2016, no âmbito do processo n.º 2002/12.5TBBCL.G1.S1; e em 23-05-2018, no âmbito do processo n.º 27/14.5T8CSC.L1.S1; consultáveis em www.dgsi.pt.
[16] No âmbito do processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[17] No âmbito do processo n.º 283/08.8TBCHV-A.G1, consultável em www.dgsi.pt.
[18] No âmbito do processo n.º 219/11.9TVLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[19] Documento 2 junto com a petição inicial.