Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANA BARATA BRITO | ||
Descritores: | PROVA TESTEMUNHAL ERRO DE FACTO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA | ||
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Data do Acordão: | 07/02/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDOS EM PARTE | ||
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Sumário: | 1. A livre apreciação da prova pressupõe o apelo às regras da experiência, que funcionam instrumentalmente como “argumentos que ajudam a explicar o caso particular como instância daquilo que é normal acontecer”, mas que não dispensam particularização no caso concreto. 2. Como narração de factos percebidos através dos sentidos, é normal que os testemunhos contenham imprecisões decorrentes de deficiências dos próprios sentidos. Os testemunhos prestados de modo não coincidente não serão forçosamente “falsos”, pois mostra a experiência que será antes a concertação de versões enganadoras que mais facilmente dará lugar a descrições de factos perfeitamente análogas e coincidentes entre si. 3. Tendo o tribunal desconsiderado os depoimentos das testemunhas da GNR (corroborantes das declarações da vítima), apenas por apresentarem entre si pequenas discordâncias quanto a aspectos não essenciais, incorreu em erro de julgamento. 4. Um “apertão de pescoço” dado por arguido-marido a vítima-mulher, ainda casados e partilhando a mesma habitação, mas fazendo vidas totalmente separadas e absolutamente independentes (há mais de 8 anos), dividindo um espaço comum por mútuo acordo e apenas por nenhum deles dispor de autonomia financeira para aquisição de casa própria, tratando-se ainda de um acto isolado e único sem revestir a especial intensidade que nesse caso se demandaria, não realiza o crime de violência doméstica. 5. Encontrando-se, arguido e vítima, concretamente em posição idêntica à de qualquer pessoa que co-habite para partilha de casa por razões exclusivamente financeiras, inexistindo uma relação pessoal de interdependência, ou de dependência económica, hierárquica, física, psicológica, afectiva ou de outra ordem, não é de reconhecer laço de conjugalidade ou de para-conjugalidade atendível para os efeitos do art. 152º do Código Penal. 6. Tendo a união conjugal deixado de relevar penalmente, um “apertão de pescoço” dado em tais circunstâncias realiza o crime de ofensa à integridade física do art. 143º, nº 1 do Código Penal.[1] | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1. No Processo comum singular n.º 738/12.0GBABF do 1º juízo Tribunal Judicial de Albufeira foi proferida sentença em que se decidiu absolver o arguido C. da prática do crime de um crime de violência doméstica do art. 152º, nº1, alínea a) e nºs 2, 4 e 5 do Código Penal e do pedido cível deduzido pela demandante MJ. Inconformados com o assim decidido, recorreram o Ministério Público e a assistente, MJ, concluindo: O Ministério Público, “1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos presentes autos, que absolveu o arguido C. da prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a), n.º 2, n.º 4 e n.º 5 do Código Penal. 2. Não pode o Ministério Público conformar-se com o decidido pelo Tribunal a quo, na parte em que foram considerados como não provados os pontos de facto constantes da acusação e que permitiriam imputar ao arguido a prática do sobredito tipo de ilícito. 3. Não concordamos, por isso, com a análise efectuada pelo Mmo. Juiz a quo da prova produzida em audiência de julgamento, porquanto tal análise e percepção dos depoimentos não se coaduna, na nossa perspectiva, com a clareza dos mesmos e com a sua articulação entre si e as regras da experiência comum, em situações como aquela que é objecto dos presentes autos. 4. Assim, e relativamente aos factos constantes dos pontos 1 a 4 dos factos considerados não provados, referiu a assistente nas suas declarações que “ele sem álcool é uma pessoa totalmente diferente de quando bebe” (gravação 2m50ss) e “ele de vez em quando excede-se e faz distúrbios e quando faz distúrbios maltrata-me” (gravação 3m30ss), continuando dizendo “ele chama-me nomes” como “és uma puta”, “pega nas tuas coisas e vai-te embora, vai para casa da tua família, a casa é minha”. 5. Referiu ainda a assistente que “o que aconteceu de pior foi em 2004, em 26.08.2004, eu venho do trabalho (…) com as compras para casa. Entrei em casa, ele estava deitado no sofá a ver televisão e eu pus as coisas em cima do balcão da cozinha para começar a tratar do jantar para os dois. Ele levanta-se vem direito a mim e diz-me “Ó J, porque é que não me falas?” Agarrou-se a mim, primeiro atirou com tudo o que estava em cima do balcão (…) e jogou tudo para o chão, agarra-se a mim, encosta-me uma parede, põe-me as mãos ao pescoço e diz-me “ó J.eu mato-te tu não me conheces” e “deu-me duas bofetadas”, continuando a insistir que a matava (gravação 4m18 a 5m50ss). 6. A partir daí refere a assistente ter passado a ser outra pessoa (gravação 6m57ss). 7. Ainda sobre estes factos, prestou depoimento a testemunha AV que foi colega de trabalho da assistente e a qualificou como uma pessoa reservada (gravação 2m10). 8. Referiu a testemunha que num determinado dia, há cerca de oito anos atrás, viu que a assistente não estava bem e perguntou-lhe o que se passava. Após alguma insistência, esta acabou por desabafar dizendo-lhe “que tinha sido agredida pelo marido” e mostrou-lhe o peito, tendo a testemunha visto que ela estava “marcada de vermelho”. A este respeito, a assistente disse-lhe que o arguido lhe jogou a mão ao pescoço (gravação 3m00ss a 5m50ss). 9. Mais recentemente, e porque (em virtude do sucedido) a testemunha costumava perguntar à assistente se estava tudo bem, ela contou-lhe que houve outra agressão (gravação 6m03ss a 6m28ss), que aconteceu em 2012 e que chamou a GNR, mais lhe tendo dito que o arguido “lhe tinha jogado outra vez a mão ao pescoço” (gravação 7m20ss). 10. Quanto à factualidade vertida nos pontos 6, 7, 8 e 9 (considerados não provados), prestou a assistente o seguinte depoimento: “à 00h30m chega-me poder de bêbado e só porque eu pus o garrafão da água no quarto, em cima de 100 litros de vinho que ele lá tinha empacotado ( …) à 00h30m eu estou deitada, ele entra a fazer montes de barulho, porta abre, porta fecha (…) e porque ela lhe chamou a atenção para que ele não fizesse tanto barulho “ele vem direito a mim, joga-me a mão ao pescoço, eu tento-me levantar da cama, enquanto ele dizia “tu não me conheces, eu mato-te, tu põe-te a andar daqui para fora” (…) eu consigo-me levantar, lá consegui abrir a porta e pedir socorro, ele lá me largou…entretanto consegui com o meu telemóvel chamar a polícia (…). Eu fiquei em pânico, eu jamais pensava que ao fim de oito anos, sabendo ele que precisava da mesma habitação para vivermos, que me ia fazer uma coisa destas” (gravação 10m30ss a 12m42ss). 11. Quanto às consequências do comportamento do arguido, referiu a assistente, relativamente aos factos ocorridos a 17.04.2012, que “naquele momento apenas senti dores nas pernas, aliás, a própria polícia disse-me “você quer ir ao hospital? Nós levamos” (…) eu estava num estado de nervos terrível, o estômago doía-me, tinha dores de cabeça terríveis (gravação 18m55ss a 19m26ss). 12. De todo o exposto, resulta que os factos vertidos na factualidade considerada não provada deveriam ter sido alvo de uma apreciação diferente por parte do tribunal, impondo-se a conclusão inversa, ou seja, de que os mesmos resultaram provados, à excepção do ponto 5, porquanto a assistente apenas referiu que o arguido a chamava de “puta”, não mencionando os demais impropérios mencionados na acusação pública. 13. No que respeita à fundamentação de facto, começa a douta sentença recorrida por colocar em causa os depoimentos prestados pelas testemunhas IS e AV, uma vez que as mesmas não têm conhecimento directo dos factos, limitando-se a descrever “exteriorizações comportamentais da assistente”. 14. Ora, como é sabido, as situações de violência doméstica ocorrem maioritariamente dentro da casa de morada de família, ou seja, no seio familiar (em particular do casal), longe de olhares de terceiros, que apenas tomam conhecimento dos factos porque tal lhes é contado posteriormente, nomeadamente pela vítima ou pelos filhos do casal, caso existam. 15. Tal circunstância, por si só, não é susceptível de invalidar os referidos depoimentos, os quais foram prestados de forma coerente, honesta e credível e que, na vez se serem arredados pelo tribunal, deveriam ter sido considerados como a confirmação das declarações da assistente. 16. Mais afirma a douta sentença, referindo-se ao depoimento da testemunha AV, que o mesmo gerou a suspeita de ter sido previamente ensaiado, apenas porque começou por descrever a assistente como se tratando de uma pessoa muito reservada, para mais adiante referir muito especificamente que, “em 2004, nos primeiros 3 a 4 meses, via a assistente sempre bem e alegre, começando depois a vê-la diferente”. 17. Ora, não se compreende tal conclusão – a que o tribunal chegou sem qualquer tipo de fundamento – e, menos ainda, que tais declarações ponham em causa a credibilidade da referida testemunha, pois o facto de a mesma se ter apercebido que a assistente teria, a determinada altura, alterado o seu humor, deixando de aparecer alegre como era seu hábito, em nada colide com a declaração anterior, de que a mesma era uma pessoa reservada. 18. Aliás, a própria testemunha referiu que a assistente só lhe contou o sucedido em 2004 após alguma insistência da sua parte, porque se apercebeu que aquela não se encontrava bem. 19. Trata-se simplesmente da percepção da testemunha, que convivia com ela diariamente e que naturalmente estaria em condições de se aperceber de alguma alteração no seu comportamento e que não pode deixar de ser valorada. 20. Continua a douta sentença, referindo-se ao depoimento prestado pelos militares da GNR que se deslocaram a casa da assistente no dia 17.04.2012 – AR e A – como de pouca utilidade, revelando a sua “má memória dos factos” e entrando em contradições em aspectos relevantes. 21. Chama a douta sentença a atenção para o facto de o referido depoimento não ser coincidente quanto ao modo como a assistente estava vestida (“de robe por cima duma t-shirt vs de robe sem t-shirt”), ou as marcas corporais que apresentava (“arranhões no pescoço vs arranhões no peito e nada no pescoço”). 22. Salvo o devido respeito, não existem, a nosso ver, quaisquer “contradições” no depoimento dos militares da GNR, posto que ambos referiram o estado psíquico em que a assistente se encontrava – bastante abalada, exaltada e nervosa – e que esta envergava um robe e tinha marcas no corpo, mormente na zona do peito e pescoço. 23. Mais não se poderia exigir às mencionadas testemunhas, considerando o tempo já decorrido desde o sucedido e as inúmeras ocorrências, desta e de outra natureza, em que as mesmas têm intervenção, pelo que as supostas debilidades do seu depoimento, conforme considera a douta sentença recorrida, não o são na realidade, antes se tratando da percepção que cada uma das testemunhas reteve daquele momento, com as naturais distorções cognitivas que usualmente se verificam por parte de quem assiste a um determinado evento. 24. Assim sendo, as pequenas diferenças no seu depoimento não se traduzem em contradições, nem tão pouco são susceptíveis de afastar, sem mais, a credibilidade e relevância das declarações prestadas, porquanto são perfeitamente coincidentes quanto ao estado de nervosismo da assistente, que envergava um robe e apresentava marcas no corpo compatíveis com as agressões de que refere ter sido vítima. 25. Mas a douta sentença vais ainda mais longe. 26. Com efeito, para além de considerar imprestáveis todos os depoimentos prestados em audiência, o Mmo. Juiz tece considerações acerca das marcas apresentadas pela assistente, supostamente decorrentes da agressão de que foi vítima a 17.04.2012, lançando a suspeita de se tratarem de lesões auto-inflingidas (!!) encontrando a motivação para tal facto na circunstância de a assistente partilhar a casa onde reside com o arguido e pretender “livrar-se dele” a todo o custo, uma vez que nenhum deles tem condições financeiras para adquirir uma outra habitação. 27. A nosso ver, nenhuma prova foi produzida que permita retirar tal ilação, tratando-se de uma mera conjectura sem qualquer suporte factual. 28. Do mesmo modo, refere-se o tribunal à “descompensação psíquica evidenciada pela assistente, demasiado teatral na forma como prestou as declarações, falando desgovernadamente em certos pontos das mesmas, levantando-se espontaneamente e retirando de um saco as ditas peças de roupa rasgadas que exibiu perante o Tribunal sem que ninguém lho pedisse e agindo, de maneira geral, de forma que evidenciava uma certa desorientação”. 29. Mais uma vez, o tribunal a quo retira conclusões acerca do estado psíquico da assistente sem qualquer suporte probatório para tal, sendo certo que uma situação de “descompensação” ou é por demais evidente (o que claramente não é o caso) ou apenas se pode comprovar através de um competente exame pericial (que nunca foi realizado). 30. Pelo contrário, a assistente prestou as suas declarações de modo que consideramos credível, honesto e sincero, sem revelar qualquer tipo de perturbação psíquica, para além do evidente transtorno e sofrimento que a conduta do arguido lhe causou – e que transparece no seu relato dos factos – a qual certamente deixa sequelas, conforme bem se compreende. 31. Ainda neste ponto, refere o tribunal que assistente agiu “de maneira geral, de forma que evidenciava uma certa desorientação (fortemente evidenciava quando, espontaneamente, recua ao tempo de recém casada e começa a contar a história de um R., que já morreu, falando da fazenda daquele como se o Tribunal tivesse conhecimento de tais factos)”. 32. Ora, ao contrário do que entendeu o tribunal, o relato da assistente, ao invés de desorientado, surge perfeitamente enquadrado no objecto dos autos, porquanto se refere a um episódio em que o arguido a agrediu, querendo com isto demonstrar que o seu comportamento agressivo remonta há muitos anos atrás, quando ainda eram recém casados, e que aconteceu junto ao quintal da residência onde viviam na altura, pertencente a um Sr. R, (gravação 30m04 a 30m50ss). 33. Por todo o exposto, incorreu o tribunal em erro notório na apreciação da prova (cfr. artigo 410.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal), impondo-se que seja proferida decisão diversa.”. A assistente, 1º “O arguido C. foi absolvido do crime de violência doméstica pelo qual tinha sido acusado e o pedido de indemnização civil deduzido pela recorrente, assistente, foi julgado totalmente improcedente. 2º O Tribunal “a quo” não considerou provado que no dia 26/08/2004, cerca das 22h00m, no interior da residência do casal sita no Edifício..., em Albufeira, o arguido chegou a casa, dirigiu-se à assistente, que estava na cozinha a preparar o jantar, e iniciou com esta uma discussão, perguntando-lhe porque é que a mesma não falava com ele e dizendo-lhe que qualquer dia a matava (ponto 2 dos factos não provados). 3º Estes factos, com a ressalva de que foi a assistente quem chegou a casa e o arguido já lá se encontrava, deveriam ter sido dados como provados, porquanto resultam das declarações da assistente, gravadas das 11h00m14s até às 11h39m17s, designadamente, e a parte que importa para este facto, aos 04m20s até 06m20s, onde a assistente refere que “(…) a 26 de Agosto de 2004 (…) ele levanta-se, vem direito a mim e diz-me Ó J., porque é que não me falas? (…) agarrou-se a mim (…) e diz-me Ó Júlia, eu mato-te, tu não me conheces (…)”. 4º O Tribunal “a quo” não considerou provado que, em acto contínuo, o arguido apertou o pescoço da assistente com ambas as mãos e, de seguida, agarrou-a, empurrou-a contra a parede e desferiu-lhe duas chapadas na cara que lhe fizeram saltar os óculos, rasgando-lhe ainda a blusa que trazia vestida (ponto 3 dos factos não provados). 5º Estes factos deveriam ter sido dados como provados, porquanto resultam das declarações gravadas da assistente aos 05m10s até 06m20s, onde a assistente referiu que o arguido “(…) jogou com tudo para o chão (…) agarra-se a mim, encosta-me a uma parede, põe-me as mãos ao pescoço (…) eu tinha ido para o trabalho com esta blusa e ele joga-me as mãos e faz isto (neste momento a assistente retirou de um saco a blusa rasgada e exibiu-a ao tribunal), eu fiquei em pânico (…) apertou-me, rasgou, chamou nomes, deu-me duas bofetadas, onde os óculos foram para ao outro lado (…)”. 6º Aos 34m05ss, a instâncias da mandatária do arguido, a assistente reitera a conduta do arguido: “(…) ele levanta-se de lá e pergunta-lhe Ó J., porquê que não me falas? agarrou-se a mim, encostou-me à parede (…) deu-me dois estalos (…) óculos foram para o chão (…) agarrou aqui à blusa, e rasgou aquele bocado (…) com a força que ele tinha, claro, o peito ficou marcado (…)”. 7º O Tribunal “a quo” não considerou provado que como consequência directa e necessária de tais agressões, a assistente ficou com hematomas no pescoço e no peito e sofreu mau estar físico e psíquico (ponto 4 dos factos não provados). 8º Estes factos deveriam ter sido dados como provados, porquanto resultam das declarações gravadas da assistente, dos 06m20s aos 07m15s. 9º Aos 06m20s, a assistente referiu que “(…) eu fiquei em pânico (…) eu já fiquei sem vontade de fazer nada, no outro dia andei sabe Deus como, aflita (…) no outro dia andava pelas ruas de Albufeira a pensar Ai meu Deus o quê que eu faço à minha vida, mas porquê este pandemónio (…) a partir daí comecei a ser outra pessoa (…)”, e a partir dos 34m05ss, a instâncias da mandatária do arguido, a assistente é peremptória ao afirmar que “(…) com a força que ele tinha, claro, o peito ficou marcado (…)”. 10º Estes factos (ponto 4 dos não provados), resultam também do depoimento da testemunha AV, prestado em audiência de julgamento e gravado das 14h09m42s às 14h25m34s, designadamente, e a parte que importa para este facto, a partir dos 05m02s aos 06m04s, onde a testemunha referiu que tendo perguntado à assistente se tinha alguma marca da agressão, esta “(…) mostrou-me o peito, levantou a blusa e eu vi, estava assim marcada (…) vi marcado (…) era marcado de vermelho, via-se que tinha marca de agressão, a pessoa vê (…) levantou a blusa e viu-se, tinha marcas aqui assim e aqui no peito (…)”. 11º Resulta ainda que, a partir dos 10m10ss, esta testemunha AV, referindo-se ao período após Agosto de 2004, viu que a assistente “(…) não estava bem, havia qualquer coisa (…), parecia uma pessoa com medo, receosa (…), no trabalho via-se, comportamento mais tenso (…) antes era mais bem disposta, pessoa totalmente diferente (…), no início a J. estava bem (…), mas depois começou a ver a J. diferente (…) no outro dia que trabalhámos, sim, ela mostrou-me o peito (…)”. 12º O Tribunal “a quo”, não considerou provado que desde 26/08/2004 e até ao dia 17/04/2012, em número não determinado de vezes e em data não concretamente apurada, sempre no interior da residência do casal, o arguido dirigiu-se à assistente dizendo que a matava, chamando-lhe “puta”, “vaca”, “vai para o caralho” “vai-te foder” (ponto 5 dos factos não provados). 13º Estes factos deveriam ter sido dados como provados, porquanto resultam das declarações gravadas da assistente, dos 14m10s aos 14m50ss, onde a mesma, a instancias do Meritíssimo Juiz e reportando-se ao período entre 26/08/2004 e 17/04/2012, referiu que o arguido lhe chamava “(…) sua puta, sua vaca, vai para o caralho, vai-te foder, vai-te embora daqui, desaparece, isso ele dizia constantemente (…)”. 14º O Tribunal “a quo” não considerou provado que no dia 17/04/2012, cerca das 00h30m, no interior daquela residência e quando a assistente estava já a descansar, o arguido entrou em casa e começou a fazer barulho a abrir e fechar portas (ponto 6 dos factos não provados). 15º Estes factos deveriam ter sido dados como provados, porquanto resultam das declarações da assistente, gravadas, na parte que ora importa, dos 09m50s aos 10m50ss, onde a mesma, reportando-se ao dia 17/04/2012 e referindo-se à conduta do arguido, afirmou que “(…) não esperava que ele me viesse agredir de novo, à meia noite e meia, chega-me perdido de bêbado e só porque eu andei a fazer uma limpeza à casa e pus-lhe o garrafão da água (…) no quarto (…) estou deitada, ele entra a fazer montes de barulho, porta abre porta fecha, vai para ali vai para acolá (…)”. 16º O Tribunal “a quo” não considerou provado que quando a assistente lhe chamou a atenção para que fizesse menos barulho, o arguido dirigiu-se-lhe e disse: “eu mato-te, eu vou-te matar, tu não me conheces, eu dou-te um murro, vai-te embora daqui, pega nas tuas coisas e desaparece! A casa é minha, vai para a casa da tua família, eu mato-te, vais ver, eu mato-te” (ponto 7 dos factos não provados). 17º Estes factos deveriam ter sido dados como provados, porquanto resultam das declarações da assistente, gravadas e no que ora importa, dos 10m50s às11m50ss, onde a assistente, reportando-se ao dia 17/04/2012, afirmou que disse ao arguido “(…) Ó C. (…) este espalhafato, é preciso fazer este barulho? (…)”, ao que o mesmo respondeu “(…) Ó J. tu já viste bem o quê que fizeste? (…)”, “(…) e vem direito a mim, com o dedo no ar, e diz-me Ó J. (…) e vem direito a mim, joga-me a mão ao pescoço, eu tento-me levantar da cama (…)” e o arguido disse-lhe “(…) tu não me conheces, eu mato-te, eu mato-te, tu põe-te a andar daqui para fora, vai para casa da tua família, pega nas tuas coisas, vai-te embora, a casa é minha (…)”. 18º O Tribunal “a quo” não considerou provado que, seguidamente aos factos descritos no ponto anterior, o arguido agarrou o pescoço da assistente com a mão esquerda, apertando-o (ponto 8 dos factos não provados). 19º Estes factos deveriam ter sido dados como provados, porquanto resultam das declarações da assistente, gravadas e na parte que ora importa, dos 11m30s aos 11m40ss, onde a assistente, reportando-se ao dia 17/04/2012, afirmou que o arguido “(…) vem direito a mim, joga-me a mão ao pescoço, eu tento-me levantar da cama (…)” e, a instâncias da Ilustre Mandatária do arguido, aos 37m00ss, é peremtória ao afirmar que o arguido “(…) pôs a mão esquerda no meu pescoço (…)”. 20º O Tribunal “a quo” não considerou provado que, seguidamente aos factos descritos nos dois pontos anteriores, quando a assistente se tentou soltar, o arguido agarrou-a pela blusa, rasgando-a (ponto 9 dos factos não provados). 21º Estes factos deveriam ter sido dados como provados, porquanto resultam das declarações da assistente, gravadas, na parte que ora importa, aos 11m50ss, onde a mesma referiu que “(…) neste passo de eu me estar a levantar (…) tá aqui, esta é a última com que eu estava a dormir (…)” sendo que neste momento a assistente exibiu ao tribunal a referida blusa rasgada, adiantando que o arguido “(…) rasga, eu consigo-me levantar (…)”. 22º E resultam também do depoimento da testemunha AR, guarda da GNR, que se deslocou à habitação do casal momentos após os factos de 17/04/2012, cujo depoimento prestado em audiência de julgamento foi gravado e do qual resulta, aos 02h00ss, que “(…) a senhora tinha a blusa rasgada (…)”. 23º O Tribunal “a quo” não considerou provado que como consequência das agressões que foi vítima no dia 17/04/2012, a assistente ficou com fortes dores de cabeça e de estômago e sofreu mau estar físico e psíquico (ponto 10 dos factos não provados). 24º Estes factos deveriam ter sido dados como provados, porquanto resultam das declarações da assistente, gravadas, no que ora importa, aos 12m30ss, onde a mesma referiu: “(…) eu fiquei mesmo em pânico, eu jamais pensava que ao fim de oito anos (…) que ele me ia fazer uma coisa destas (…) eu tive que chamar a polícia porque eu fiquei em pânico (…)”. 25º Aos 18m55s, a instâncias da Digníssima Procuradora, a assistente referiu que “(… ) naquele momento apenas senti dor nas pernas (…), fiquei foi com dores terríveis no estômago, em pânico mesmo (…) eu estava num estado de nervos, bom, o estômago doía-me, estava com uma dores de cabeça terríveis (…)”. 26º Considerou o Tribunal “a quo” que não resultou provado que o arguido, ao agir da forma supra descrita, quisesse humilhar, ofender a honra, o bom nome da assistente, sua mulher, faltando-lhe ao respeito devido, bem como quisesse molestá-la fisicamente, provocando-lhe mau estar físico e psíquico, resultado que representou e atingiu (ponto 11 dos factos não provados). 27º Face às declarações da assistente, prestadas em audiência de julgamento, estes factos ficaram efectivamente provados, resultando das suas declarações que, aos 04m20s a assistente referiu que “(…) a 26 de Agosto de 2004 (…) ele levanta-se, vem direito a mim e diz-me Ó J., porque é que não me falas? (…) agarrou-se a mim (…) e diz-me Ó J., eu mato-te, tu não me conheces (…) jogou com tudo para o chão (…) agarra-se a mim, encosta-me a uma parede, põe-me as mãos ao pescoço (…) eu tinha ido para o trabalho com esta blusa e ele joga-me as mãos e faz isto (neste momento a assistente retirou de um saco a blusa rasgada e exibiu-a ao tribunal), eu fiquei em pânico (…) apertou-me, rasgou, chamou nomes, deu-me duas bofetadas, onde os óculos foram para ao outro lado (…)”, e que, aos 06m20s, a assistente referiu que “(…) eu fiquei em pânico (…) eu já fiquei sem vontade de fazer nada, no outro dia andei sabe Deus como, aflita (…) no outro dia andava pelas ruas de Albufeira a pensar Ai meu Deus o quê que eu faço à minha vida, mas porquê este pandemónio (…) a partir daí comecei a ser outra pessoa (…)”. 28º A partir dos 09m50ss, a assistente, reportando-se ao dia 17/04/2012 e referindo-se à conduta do arguido, afirmou que “(…) não esperava que ele me viesse agredir de novo, à meia noite e meia, chega-me perdido de bêbado e só porque eu andei a fazer uma limpeza à casa e pus-lhe o garrafão da água (…) no quarto (…) estou deitada, ele entra a fazer montes de barulho, porta abre porta fecha, vai para ali vai para acolá (…)” e a partir dos 10m50ss a assistente afirmou que disse ao arguido “(…) Ó C. (…) este espalhafato, é preciso fazer este barulho? (…)”, ao que o mesmo respondeu “(…) Ó J., tu já viste bem o quê que fizeste? (…)”, “(…) e vem direito a mim, com o dedo no ar, e diz-me Ó J. (…) e vem direito a mim, joga-me a mão ao pescoço, eu tento-me levantar da cama (…)” e o arguido disse-lhe “(…) tu não me conheces, eu mato-te, eu mato-te, tu põe-te a andar daqui para fora, vai para casa da tua família, pega nas tuas coisas, vai-te embora, a casa é minha (…)”. 29º Aos 12m30ss, a assistente referiu: “(…) eu fiquei mesmo em pânico, eu jamais pensava que ao fim de oito anos (…) que ele me ia fazer uma coisa destas (…) eu tive que chamar a polícia porque eu fiquei em pânico (…)”, e a partir dos 14m10ss a assistente, a instâncias do Meritíssimo Juiz e reportando-se ao período entre 26/08/2004 e 17/04/2012, referiu que o arguido lhe chamava “(…) sua puta, sua vaca, vai para o caralho, vai-te foder, vai-te embora daqui, desaparece, isso ele dizia constantemente (…)”. 30º Do depoimento da testemunha AV resulta também, a partir dos 10m15ss, que a mesma viu que a assistente “(…) não estava bem, havia qualquer coisa (…), parecia uma pessoa com medo, receosa (…), no trabalho via-se, comportamento mais tenso (…) antes era mais bem disposta, pessoa totalmente diferente (…), no início a Júlia estava bem (…), mas depois começou a ver a Júlia diferente (…) no outro dia que trabalhámos, sim, ela mostrou-me o peito (…)”. 31º Considerou o Tribunal “a quo” que não resultou provado que em consequência das condutas do arguido, a assistente tenha passado a sofrer de desorientação, apatia, sentimento de solidão e de impotência, mudanças bruscas de humor, perda de energia e ânimo, dores de cabeça e enxaqueca, depressão, insónias, fadiga e problemas gástricos e intestinais, que acarretaram duas intervenções cirúrgicas (ponto 12 dos factos não provados). 32º Face às declarações da assistente, prestadas em audiência de julgamento, estes factos ficaram cabal e efectivamente provados, sendo que, exemplificativamente, a partir dos 06m20s a assistente referiu que “(…) eu fiquei em pânico (…) eu já fiquei sem vontade de fazer nada, no outro dia andei sabe Deus como, aflita (…) no outro dia andava pelas ruas de Albufeira a pensar Ai meu Deus o quê que eu faço à minha vida, mas porquê este pandemónio (…) a partir daí comecei a ser outra pessoa (…)” e aos 12m30ss, a assistente referiu: “(…) eu fiquei mesmo em pânico, eu jamais pensava que ao fim de oito anos (…) que ele me ia fazer uma coisa destas (…) eu tive que chamar a polícia porque eu fiquei em pânico (…).” 33º Aos 18m55, a instâncias da Digníssima Procuradora, a assistente referiu que “(… ) naquele momento apenas senti dor nas pernas (…), fiquei foi com dores terríveis no estômago, em pânico mesmo (…) eu estava num estado de nervos, bom, o estômago doía-me, estava com uma dores de cabeça terríveis (…)” e aos 25m20ss, referiu, reportando às consequências das condutas de que foi vítima, que “(…) tomo mediação, aliás, criei uma depressão do qual tenho de tomar diariamente medicamentos (…) à noite tenho de tomar comprimidos para dormir (…)”, sendo que perguntada quando surgiu a depressão a assistente referiu “(…) foi durante estes oito anos, em nunca durmo sossegada, aliás, eu nunca sei quando é que ele vem com os copos para fazer porcaria (…)”. 34º Aos 26m30ss, perguntada sobre se as situações em causa alteraram a sua vida e rotina, a assistente referiu que “(…) sim, altera (…), porque eu vivo sempre naquela ansiedade (…) afinal porquê que isto aconteceu, aonde foi que eu errei (…) vivo com essa pressão dentro de mim, uma ansiedade, ao mesmo tempo pergunto: Mas quando é que isto acaba? Não era isto que eu queria na minha vida (…)”. 35º Do depoimento da testemunha AV resulta também, a partir dos 10m15ss, que a mesma viu que a assistente “(…) não estava bem, havia qualquer coisa (…), parecia uma pessoa com medo, receosa (…), no trabalho via-se, comportamento mais tenso (…) antes era mais bem disposta, pessoa totalmente diferente (…), no início a Júlia estava bem (…), mas depois começou a ver a Júlia diferente (…)”. 36º Do depoimento da testemunha IS, prestado em audiência de julgamento, resulta, a partir dos 08m25ss, que a testemunha referiu que a assistente “(…) estava muito aflita (…), sempre fica receosa e talvez com medo (…), ansiedade, triste, porque ela não desejava esta situação na vida dela (…) está muito triste (…) sente-se ofendida e humilhada com estas situações (…) sim, ela sempre tem medo (…) ela não pode prever quando pode acontecer ou não, mas que ela tem medo, tem (…)”. 37º Considerou o Tribunal “a quo” que não resultou provado que o arguido tenha agido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que todas as suas relatadas condutas eram proibidas e punidas por lei (ponto 13 dos factos não provados). 38º Face às declarações da assistente e bem assim aos depoimentos das testemunhas e tendo presente as regras da experiência comum, estes factos ficaram efectivamente provados. 39º Assim, os factos indicados como 2 a 13 dos factos não provados da sentença, foram incorrectamente julgados como não provados, isto para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 412º do CPP. 40º As declarações e depoimentos supra citados e transcritos, para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 412º do CPP, impunham decisão diversa, designadamente, serem dados como provados (os referidos factos de 2 a 13) e, em consequência, ser o arguido condenado pelo crime pelo qual vinha acusado, e, no que concerne aos factos 10 a 13, ser o arguido, demandado, condenado no pedido de indemnização civil deduzido. 41º O Tribunal “a quo” incorreu em erro manifesto na apreciação da prova de facto, pois que das declarações da assistente e das testemunhas acima indicadas e supra temporalmente contextualizadas, resulta provado exactamente o contrário, ou seja, resultam como provados os factos que de 2 a 13 o Tribunal “a quo” considerou como não provados, pelo que deverão estes concretos pontos da matéria de facto ser reapreciados e concluir-se pela verificação da realidade acima descrita. 42º O Tribunal “a quo”, na fundamentação das respostas dadas à matéria de facto, e em particular relativamente aos depoimentos das testemunhas IS e AV, refere que estes se “demonstraram de pouca utilidade”, porquanto estas testemunhas “não têm conhecimento directo dos factos sendo certo que o que descreveram são exteriorizações comportamentais da assistente o que, pelos motivos que adiante se exporão, os invalida”. 43º Em relação ao depoimento da testemunha AV, considerou o mesmo “desprovido de credibilidade” porquanto entende que o comportamento da assistente em levantar a blusa para mostrar marcas de agressão no peito à testemunha, se trata de um comportamento “insólito” para quem (a assistente), sendo muito reservado, está perante alguém (a testemunha AV), que conhece há pouco tempo. 44º Esta fundamentação é, no mínimo, contraditória com a prova efectivamente produzida em audiência, designadamente, quando o Tribunal “a quo” afirma que a testemunha AV não tem conhecimento directo dos factos, quando, na verdade e conforme consta do depoimento gravado desta testemunha, a mesma afirma, peremptoriamente, ter visto marcas no peito da assistente. 45º É contrário às regras da experiência comum fundamentar uma alegada falta de credibilidade de uma testemunha com o facto de se considerar um determinado episódio insólito, in casu, o facto de a assistente ser uma pessoa reservada e mesmo assim ter levantado a blusa para mostrar à testemunha marcas no peito, pois que mesmo tratando-se de uma pessoa reservada, tal não é impedimento, segundo as regras da experiência comum, a que se mostre a zona do peito a uma colega de trabalho, em ambiente reservado e entre mulheres, que continha marcas de agressão. 46º A fundamentação dada pelo Tribunal “a quo” para considerar os depoimentos destas duas testemunhas como inválidos e o depoimento da testemunha A. como “desprovido de credibilidade” assenta em erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 410º do CPP. 47º Na apreciação feita pelo Tribunal “a quo” das declarações da assistente, refere a sentença recorrida que a assistente evidenciou “descompensação psíquica”, sendo “demasiado teatral na forma como prestou declarações, falando desgovernadamente em certos pontos das mesmas, levantando-se espontaneamente e retirando de um saco as ditas peças de roupas rasgadas que exibiu perante o Tribunal sem que ninguém lho pedisse e agindo, de maneira geral, de forma que evidenciava uma certa desorientação (fortemente evidenciada quando, espontaneamente, recua ao tempo de recém casada e começa a contar a história de um R., que já morreu, falando da fazenda daquele como se o Tribunal tivesse conhecimento de tais factos)”. 48º Salvo o devido respeito e melhor opinião, não cabe ao julgador, por si e sem o necessário suporte pericial, avaliar e declarar um estado de “descompensação psíquica”, nem uma alegada teatralidade da assistente, por si só e mesmo em conjunto com as demais referências, e sem o necessário suporte pericial, é susceptível de fundamentar a resposta negativa dada pelo Tribunal “a quo” aos factos supra elencados. 49º O alegado desgoverno na forma de expressão oral da assistente não nos parece existir, pois que ouvida a gravação das declarações prestadas, não retiramos das mesmas uma tal conclusão, sendo as mesmas, isso sim, sinceras, esclarecedoras e normais para uma pessoa que está numa sala de audiências de um tribunal, com o arguido a um metro de distância e a relatar episódios da vida pessoal que envolvem agressões. 50º A alegada desorientação fortemente evidenciada, segundo a sentença ora em crise, quando a assistente “recua ao tempo de recém casada e começa a contar a história de um R., que já morreu, falando da fazenda daquele como se o tribunal tivesse conhecimento de tais factos”, carece de sentido lógico. 51º As declarações da assistente, neste particular, constam dos 30m04ss aos 30m50ss, onde o que a mesma disse foi: “(…) porque ele logo ao fim de ano e meio de casada, ele sabe muito bem que vivia na Orada, na casa do ex R., porque ele já faleceu, e um dia à noite, é sempre à noite que estas coisas acontecem, viemos para casa e ele estava bêbado e houve uma pequena briga cá fora entre mim e ele, de discussão, ele também me deu uma chapada e tirou a aliança e jogou e disse, eu disse Ó C. mas agora és casado, a situação é diferente, o que tu fizeste em solteiro é uma coisa, olhe, jogou com a aliança para o meio do quintal do R., lá da fazenda, eu não sou casado (…)” 52º Não se trata de nenhuma história de um R. e da sua fazenda, mas apenas, e tão-só, a descrição do local onde ocorreu uma briga quando eram recém casados e moravam numa casa, na Orada, em Albufeira, que pertencia a um senhor chamado R., que já faleceu, e que o arguido atirou a aliança para o quintal da casa, que a assistente apelidou de fazenda. 53º Este episódio, a que o Tribunal “a quo” atribuiu relevância suficiente para fundamentar a evidenciação de uma alegada forte desorientação da assistente, não passa, salvo o devido respeito, de uma mera descrição de uma situação, e não mais que isso, insusceptível de produzir o efeito que o Tribunal “a quo” lhe atribui: desorientação fortemente evidenciada. 54º Assim, pelo exposto e face às declarações efectivamente prestadas pela assistente e pelas testemunhas AV e IS, as valorações feitas pelo Tribunal “a quo” de tais declarações e depoimentos foram contra as regras da experiência comum, incorrendo assim a decisão no vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, ou seja, em erro notório na apreciação da prova e em violação do disposto no artigo 127º do CPP, que consagra o princípio da livre apreciação da prova. ”. O arguido respondeu aos recursos, pugnando pela improcedência e concluindo por seu turno: “1- Em douta sentença proferida no processo supra referido, foi o arguido C. absolvido do crime de violência doméstica pelo qual tinha sido acusado e na qual também foi julgado improcedente o pedido de indemnização civil, no valor de quarenta mil euros. 2- Inconformados com a douta sentença proferida, dela agora interpuseram recurso a assistente e a Digníssima Magistrada do Ministério Público concluindo ambas pela revogação da sentença proferida pelo Tribunal a quo e pela condenação do arguido pela prática do crime de que vem acusado e concluindo ainda a assistente pela condenação do arguido no pedido de indemnização cível deduzido. 2- A convicção do Tribunal do Tribunal “a quo” fundou-se, e bem, na análise da globalidade da prova produzida, criticamente analisada, à luz de critérios de normalidade e experiência comum, nas declarações do arguido e nas declarações e personalidade da assistente, nos depoimentos das testemunhas ouvidas, das quais nenhuma delas presenciou os factos constantes na acusação e na prova documental junta aos autos, mormente, na documentação clínica a fls. 105 a 124. 3- Existe desde logo contradição quanto alegado motivo da depressão da assistente. Tanto a assistente como as testemunhas IS e AV, identificaram como motivo da tristeza e depressão da assistente as agressões por parte do arguido á assistente. A esse respeito disse a assistente (gravação 25m:16ss) “ Ai sim, tomo medicação, sim, sim, aliás criei uma depressão, do qual tenho que tomar diariamente medicamentos, tenho que tomar à noite tenho que tomar medicamentos para dormir” e (gravação 25m:36ss) “ Foi durante estes oito anos, eu nunca durmo sossegada, aliás eu nunca sei quando é que ele vem com os copos para fazer porcaria...” 4- Apesar de a testemunha IS acabar por deixar “fugir a boca para a verdade” ao afirmar (gravação 04m:31ss) diz “ A J. é muito reservada, muito calada e passou a acontecer quando a Sra. mãe dela morreu, ela ficou muito mais em baixo, então eu convidei-a para ir muitas vezes na minha casa e depois ela começou a falar da vida dela”. 5- No entanto, da documentação a fls. 105 a 124, que revela o histórico do seu acompanhamento clínico resulta que a assistente sofre de perturbações depressivas desde 2009 (cfr. fls. 109), não resultando de tal documentação em lugar algum que a assistente alguma vez tenha sido assistida na sequência de qualquer agressão. 6- E mais, segundo o seu irmão JS a morte da mãe de ambos esteve na origem da depressão da assistente que ao referir-se ao momento do falecimento da sua mãe e da assistente disse (gravação 11m:25ss) “vai fazer agora, vai fazer 3 anos”. E quanto ao momento da alteração do estado psicológico da irmã afirmou (gravação 12m:11ss) “ Eu senti, agora precisar o momento exacto não vou mentir mas já há alguns anos que eu venho a notar, estes últimos anos estes há beira de 3 / 4 anos eu tenho notado a minha irmã um bocadinho triste e manifestou por várias vezes vontade de estar junto da família...” 7- As credíveis declarações da testemunha JS, nas quais refere que recebeu vários telefonemas da assistente a queixar-se que foi 5, 6 ou 7 vezes agredida pelo arguido, são totalmente contraditórios com as declarações da assistente que afirmou apenas ter sido agredida fisicamente pelo arguido nas duas situações descritas na acusação. Referiu a testemunha J que (gravação 5m:10ss a 6m:32ss) “ Quando ela se abriu comigo em que diz que sim que havia agressões que eu depois vim a confirmar pelo telefone, apenas pelo telefone onde ela relatava que estava a ser agredida e ouvia aqueles barulhos lá em casa e ela a chorar porque estava a ser agredida...agressões físicas e verbais...algumas verbais eu assisti, vou-te matar por exº, mas sei lá são coisas que eu apenas ouvia mas não vi” tendo acrescentado a testemunha que não conseguiu reconhecer a voz do seu cunhado nos telefonemas (gravação 10m:17ss) “ Não, eu só ouvia no fundo eu vou-te matar...apenas ouvia aqueles barulhos e vou-te matar...” e (gravação 15m:.49ss) “Que me ligasse 5 ou 6 vezes mas precisamente não sei porque se não estava a mentir, mas 5/6/7 vezes durante a noite me ligava e acordava a dizer que estava a ser agredida e a chorar”. 8- É pois notória a descompensação psíquica com forte motivação da assistente para simular agressões por parte do arguido á sua pessoa, o que justifica a apresentação pela assistente das camisolas rasgadas em julgamento, que poderão ter sido rasgadas por qualquer pessoa. Aliás, o facto de a assistente ter exibido as camisolas rasgadas apenas contribui para evidenciar a sua descompensação psíquica e realçar os esforços que fez para impressionar o Tribunal. 9- Note-se ainda que as marcas, de baixa gravidade, que a assistente terá mostrado às testemunhas, poderão ter sido facilmente auto-infligidas, uma vez que não provocam dor relevante e não se compadecem com o normal quadro de violência no contexto de agressões conjugais de marido contra mulher em relações prolongadas de alcoolismo que normalmente esta associada a casos. 10- Assinale-se ainda que em sede de audiência e julgamento a assistente se revelou demasiado teatral na forma como prestou as declarações, tendo logo no início das mesmas falado praticamente ininterruptamente durante praticamente 11m:20ss (gravação 2m:28ss a 13m:48ss) levantando-se espontaneamente e retirando de um saco as ditas peças de roupa rasgadas que exibiu teatralmente perante o Tribunal sem que ninguém lho pedisse e agindo, de maneira geral, de forma que evidenciava uma certa desorientação quando, a instâncias da mandatária do arguido completamente fora de contexto conta uma história dos tempos de recém casada: (Gravação 30m:04ss aos 30m:50ss), onde o que a mesma disse foi: “(…) porque ele logo ao fim de ano e meio de casada, ele sabe muito bem que vivia na Orada, na casa do ex R., porque ele já faleceu, e um dia à noite, é sempre à noite que estas coisas acontecem, viemos para casa e ele estava bêbado e houve uma pequena briga cá fora entre mim e ele, de discussão, ele também me deu uma chapada e tirou a aliança e jogou e disse, eu disse Ó C. mas agora és casado, a situação é diferente, o que tu fizeste em solteiro é uma coisa, olhe, jogou com a aliança para o meio do quintal do R., lá da fazenda, eu não sou casado (…)” 11- A assistente tenta demonstrar que tem um medo terrível do arguido e que o mesmo anda constantemente embriagado, no entanto, essa versão não é credível pois os factos que alega não a impediram de durante dois anos, á noite frequentar um curso fazendo-se deslocar em carro conduzido pelo arguido, nem a impediram de se deslocar a viagens longas como foi o caso de viagens que fizeram a Espanha e Santarém, senão vejamos: (gravação 31m:06ss) “..., algumas vezes sim eu estive a tirar o curso no Nera… à noite…….foi entre 2006 e 2008…e ele ia-me buscar…. E fui uma vez a Espanha o ano passado com a amiga Valkiria para ver sobre bijutaria…” e (gravação 32:40 a 32:48) “Olhe porque eu queria tirar o curso… e fiz-me valente… pois é fiz mal…” 12- A assistente alegou ter tido tanto medo no dia 17 de Abril de 2012, não obstante após os soldados da GNR terem ido lá a casa, nessa data, acabou por ficar no imóvel conforme resulta das declarações da testemunha A. a instâncias do Mmº Juiz (gravação 9m:58ss) que quando tudo acabou a assistente “ ficou na casa”. 13- Da articulação dos depoimentos da assistente bem como da testemunha JS, facilmente se depreende que o grande problema que existe entre o arguido e assistente não são nem agressões físicas nem verbais mas tão-somente o facto de terem uma única casa em comum, na qual se vêem obrigados a coabitar em virtude de nenhum deles a conseguir adquirir por inteiro, por falta de meios próprios ou crédito bancário. A própria assistente fala por diversas vezes dessa questão: (gravação 7m:27ss a 7m:59ss) “... até que há um dia que o C. me chega ao pé de mim e diz-me assim, olha J. pensando bem, porque tanto eu como ele andávamos nos bancos à procura de ver quais eram as possibilidades de ficar-mos com a parte um do outro para resolvermos a situação mais rápido possível só que os bancos devido à minha situação de não ter um emprego fixo não é? E á idade que tenho não me emprestava dinheiro e provavelmente a ele também …”, (gravação 13m:22ss) “ ... e aconteceu o seguinte, para ficar-mos um ou outro, um dia ele disse-me assim, então, olha se arranjares trinta mil” e (gravação 14m:38ss) “ ... houve um dia que ele por causa dessa coisa da casa ele chegou á parada dos cinquenta mil e o meu irmão estava pronto para me ajudar..” 14- Resulta ainda das declarações da assistente algum inconformismo pelo seu casamento não ter resultado, falando por várias vezes no fracasso da sua relação: (Gravação de 2:41 a 13:08) “... tenho trabalhado toda a vida ele sabe sempre ao lado sempre a ajudar e ele de vez em quando excede... eu sempre tive ao lado dele a trabalhar, ele veio para ao pé de mim sem nada e eu sem nada para ao pé dele e lutei durante estes anos todos e ainda hoje eu faço a limpeza da casa, que ele sabe que não faz lá nada...então eu acabei por concordar devido a não termos filhos, ele ser um homem doente e eu também, cada um com as suas enxaquecas, mas somos os dois não temos filhos e não temos família por perto e sempre o acompanhei nos momentos mais difíceis da vida dele, que ele sabe disso tem tido muitas doenças e outros problemas que ele arranjou...”, “ Eu fui educada daquela forma, embora hoje já não se use de levar o casamento até ao fim não é? Eu pensava ao mesmo tempo, pois se ele não tinha família, eu também não, não tínhamos filhos, tínhamos lutado os dois para o mesmo bem, portanto e ele já tinha-me falado sobre o assunto de ficar-mos ali os dois a viver, no fundo era como de fôssemos dois amigos porque precisávamos do mesmo tecto, ele sabe que eu não trabalho de inverno e que não tenho quem me sustente, eu tenho, eu necessito daquele espaço, para viver, é claro no fundo quando ele me disse vamos ficar nesta situação eu sim, pensei olha que bom, vamos ficar amigos, no fundo quando um precisar de um copo de água, o outro...” e (gravação 26:36) “... afinal porque é que isto aconteceu? Onde é que foi que eu errei? Porque é que o nosso casamento não deu certo, se nem temos filhos, trabalhamos tanto, andei ao lado dele...” 15- Ao invés da assistente o arguido negou todos os factos constantes da acusação e apresenta um depoimento credível e coerente denotando sempre respeito para com a assistente, não tendo em momento algum feito acusações à assistente ou tentado justificar o facto de ter apresentado queixa contra si, e podia tê-lo feito. 16- Os militares da GNR AR e A, deram o seu depoimento, fortemente influenciados pelo facto do arguido aparecer nervoso e ficar exaltado quando os viu em sua casa no dia 17/04/2012, facto que as testemunhas evidenciam e e pelo qual manifestaram o seu desagrado e irritação. 17- No entanto, a atitude inicial do arguido perante os guardas é perfeitamente compreensível uma vez que conforme resulta das próprias declarações da assistente o mesmo se encontrava já despido sendo pois compreensível que o arguido encontrando-se em trajes menores, já de noite, tivesse ficado nervoso ao ver a GNR dentro de sua casa, como o próprio afirma no seu depoimento (gravação 23m:47ss) “ Eu já estava no quarto e quando eu saio do quarto ouço barulho, dou com a GNR no meio da sala, não gostei disso, eu disse desculpem mas isto não são maneiras de invadir a casa de uma pessoa desta forma”. 18- Tais declarações acabam por ser confirmadas pela testemunha A que refere que depois de ela e o colega AR irem para a rua o arguido acalmou-se, não tendo pois assumido uma postura típica de um embriagado enfurecido, mas ao invés tendo-se mostrado cordial e educado (gravação 5m:17ss) que refere “No momento em que nós chegamos prontos os Sr. C. tipo Senhores Guardas retirem-se lá para fora que esta casa é minha e nós estávamos mesmo á entrada praticamente, o senhor apareceu e mandou-nos sair cá para fora tudo bem nós viemos cá para fora e depois o senhor veio falar connosco, eu perguntei o que é que se tinha passado, aí já baixou mais um bocado aquele tom e violência, estava a falar normalmente connosco…” e a instâncias da mandataria do arguido acrescentou (gravação 8m:04ss) “ Tanto nós fomos colaborantes em obedecer à ordem dada pelo senhor…depois cá fora já falou normalmente falamos normalmente, até baixou o tom de voz”. 18- Não considerou e bem o Tribunal “ a quo “ o depoimento das testemunhas soldados da GNR AR e A uma vez que denotaram alguma dificuldade em recordar-se da situação, sendo o depoimento de ambos divergentes em vários aspectos relevantes. 19- Resulta das declarações da assistente que quando a GNR chegou já não tinha a t-shirt rasgada vestida (gravação 37:41) “Eu estava, é assim, eu tirei a blusa e pus um casaco que eu fiquei praticamente despida e pus umas calças…” 20- Relativamente à forma como a arguida se encontrava vestida aquando da chegada da GNR disse a testemunha AR que a assistente ainda trazia a camisola rasgada pois quando o Mmº juiz perguntou (gravação 5m:34ss) “ Mas ela vestia ainda a camisola rasgada?” a testemunha A respondeu (gravação 5m:41ss) “sim,sim” e quando o Mmº Juiz perguntou que tipo de roupa a assistente tinha vestida a testemunha afirmou (gravação 6:19) “era de dormir”. 21- Quanto à mesma matéria disse a testemunha A. (gravação m:55ss) “Trazia uma espécie de um casaco a tapar o corpo…” e quando o Mmº juiz lhe perguntou (gravação 7m:17ss) “ chegou a ver alguma blusa rasgada?” a testemunha A. respondeu “ (gravação 7m:19ss) “ Que eu me recorde não, até podia estar lá envolta nas coisas, mas não”. 22- O depoimento da testemunha AR segundo o qual a assistente tinha medo de estar em casa não é corroborado com o facto da assistente segundo as declarações da mesma ainda ter ido mudar de roupa antes dos guardas chegarem. 23-Por outro lado é divergente o depoimento dos próprios guardas Amílcar e Ângela pois a testemunha Amílcar disse que a assistente estava na rua a aguardar pela GNR, por causa do medo e a testemunha Ângela referiu que a assistente aguardou a chegada da GNR dentro de casa. 24- Assim, das declarações da assistente resulta (gravação 37:41) “Eu estava, é assim, eu tirei a blusa e pus um casaco que eu fiquei praticamente despida e pus umas calças…” quando do depoimento dos soldados da GNR resulta versão diversa pois resulta das declarações da testemunha Amílcar (Gravação 6:12) “ Exactamente e quando chegamos ao local ela estava fora da residência, ela não queria estar lá dentro tinha medo” (gravação 6:40) “ Foi para a rua ela foi imediatamente para a rua e ficou á espera que nos chegássemos.” e (gravação 9m:9ss) “…nós chegamos ao local ela tinha medo de entrar dentro da residência” e da testemunha Ângela “(gravação 1:15) “Quando lá cheguei estava a Sra. cá fora ao pé da porta…estava à beira da porta, nos batemos à porta e ela veio…” 25- Referiu a testemunha Amílcar que o arguido tinha forte odor a álcool ao invés da testemunha Ângela que referiu que emitia um odorzinho (gravação 10m:20ss) “ Exacto, um forte odor a álcool,...” e já a testemunha Ângela quanto á mesma matéria respondeu (gravação 6m:1ss) “emitia um odorzinho a álcool” e (gravação 8m:39ss). 26- A testemunha Amílcar refere (gravação 7m:17ss) que os arranhões “eram no pescoço” e gravação (7m:35ss) “havia dos dois lados, foi com as duas mãos. Já a testemunha Ângela a instâncias do Mmº Juiz referiu (gravação 1m:55ss) “ Mostrou-nos uns arranhões abaixo da covinha do pescoço” 27- Considerou também o Tribunal a quo que os depoimentos das testemunhas IS e AV se demonstraram de pouca utilidade não só porque ambas não tinham conhecimento direto dos factos mas também porque o que descreveram se tratam de exteriorizações comportamentais da assistente o que os invalida. 28- E mais, contrariamente ao que as testemunhas AV a IS tentam fazer crer a atitude, assumida pela assistente em audiência não se compadece com a postura de uma pessoa reservada, quer pela sua vontade incessante de falar quer pela própria postura a mostrar as peças de roupa supostamente rasgadas pelo arguido aquando das agressões. 29- No seu depoimento a testemunha AV apesar de ter mostrado ao Tribunal alguma dificuldade em situar no tempo o início da sua relação pessoal com a assistente, que se apurou ter sido aproximadamente contemporânea dos factos descritos no ponto 2 dos factos não provados (referentes à primeira agressão física), adiante, descreve que, no caso da primeira agressão, a assistente “levantou a blusa” para lhe mostrar marcas de agressão que tinha no peito, conforme resulta das declarações da referida testemunha ( gravação 2m:06ss) “ A D. J. é uma pessoa reservada, .... mostrou-me o peito, levantou a blusa e eu vi...”, sendo que, tal comportamento não se compadece com o de uma pessoa reservada, uma vez que a testemunha era sua chefe e se conheciam havia pouco tempo. 30- Acrescenta ainda o Tribunal “a quo” e bem que curiosamente, apesar das dificuldades iniciais da testemunha América em esclarecer as circunstâncias temporais em que conheceu a assistente, adiante quanto à matéria civil ( inerente ao mesmo período temporal) já foi muito específica, falando em datas concretas, o que gerou obviamente a suspeita quando á veracidade do seu depoimento. 31- Também o depoimento da testemunha IS, não nos parece credível pois descreve a assistente como uma pessoa muito reservada (gravação 4m:31ss) “ A J é muito reservada, muito calada” e (gravação 18m:13ss)“ Ela não chega a tantos detalhes...”, e no entanto afirmou” ( gravação 17m:27ss) “ A primeira agressão ela mostrou uma roupa toda rebentada” e que na segunda situação a assistente ( gravação 8m:03ss ) “Falou imediatamente, sim eu não estava no Brasil e ela passou por mail”. Ora sendo a assistente tão reservada não podemos aceitar após alguns anos sobre os factos tivesse mostrado a roupa toda rebentada (quanto á primeira situação) e tão pouco que após a suposta segunda agressão tenha logo enviado e-mail a reportar a situação á testemunha no dia seguinte aos factos.”. 32- Aliás tais atitudes da assistente não se enquadram minimamente no padrão da mulher que é realmente vítima do marido, a qual geralmente refuta falar sobre a situação e quando fala não o faz com todos os pormenores e como se estivesse a contar uma novela. 33- Em face do exposto salvo devido respeito pela posição contrária, cremos não assistir razão aos recorrentes, uma vez que não se fez prova que o arguido tivesse praticado qualquer dos factos constantes da acusação, muito pelo contrário, pois que, se o arguido apresenta um depoimento coerente e credível a assistente assumiu uma postura pouco equilibrada e as testemunhas, que não presenciaram os factos, apresentaram ora depoimentos contraditórios, quer pouco credíveis, não se tendo pois feito prova que o arguido tivesse praticado qualquer dos factos que lhe são imputados na acusação. 34- Assim, a Douta sentença não padece de qualquer vício, não tendo havido qualquer erro na apreciação da prova de facto devendo manter-se integralmente a douta sentença recorrida.” Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer também no sentido da improcedência. Procedeu-se ao cumprimento do art. 424º, nº 3 do Código de Processo Penal, comunicando-se ao arguido a possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos para crime do art. 143º, nº 1 do Código Penal. Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência. 2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados: “1. O arguido C e a assistente MJ casaram no dia 30 de Outubro de 1981; 2. Desde há cerca de oito anos a esta parte a relação entre a assistente e arguido deteriorou-se e apesar de residirem na mesma casa, arguido e assistente passaram a dormir em camas separadas e fazendo cada um a sua vida.” E foram considerados como não provados os factos seguintes: “1. Desde há cerca de oito anos, tornou-se frequente o arguido ingerir bebidas alcoólicas em excesso, altura em que se torna violento e agressivo para com a assistente; 2. No dia 26/08/2004, cerca das 22h00, no interior da residência do casal sita no Edifício..., em Albufeira, o arguido chegou a casa, dirigiu-se à assistente, que estava na cozinha a preparar o jantar, e iniciou com esta uma discussão, perguntando-lhe porque é que a mesma não falava com ele e dizendo-lhe que qualquer dia a matava; 3. Em ato contínuo, apertou o pescoço da assistente com ambas as mãos e, de seguida, agarrou-a, empurrou-a contra a parede e desferiu-lhe duas chapadas na cara que lhe fizeram saltar os óculos, rasgando-lhe ainda a blusa que trazia vestida; 4. Como consequência direta e necessária de tais agressões, a assistente ficou com hematomas no pescoço e no peito e sofreu mau estar físico e psíquico; 5. Desde 26/08/2004 e até ao dia 17/04/2012, em número não determinado de vezes e em data não concretamente apurada, sempre no interior da residência do casal, o arguido dirigiu-se à assistente dizendo que a matava, chamando-lhe “puta” “vaca” “vai para o caralho” “vai-te foder”; 6. No dia 17/04/2012, cerca das 00h30 horas, no interior daquela residência e quando a assistente estava já a descansar, o arguido entrou em casa e começou a fazer barulho a abrir e fechar portas; 7. Quando a assistente lhe chamou a atenção para que fizesse menos barulho, o arguido dirigiu-se-lhe e disse: “eu mato-te, eu vou-te matar, tu não me conheces, eu dou-te um murro, vai-te embora daqui, pega nas tuas coisas e desaparece! A casa é minha, vai para a casa da tua família, eu mato-te vais ver eu mato-te”; 8. De seguida, agarrou o pescoço da assistente com a mão esquerda, apertando-o; 9. Quando a assistente se tentou soltar, o arguido agarrou-a pela blusa, rasgando-a; 10. Como consequência das agressões de que foi vítima neste dia, a assistente ficou com fortes dores de cabeça e de estômago e sofreu mau estar físico e psíquico; 11. Ao agir da forma acima descrita quis o arguido humilhar, ofender a honra, o bom nome da assistente, sua mulher, faltando-lhe ao respeito que lhe é devido, bem como quis molestá-la fisicamente, provocando-lhe mau estar físico e psíquico, resultado que representou e atingiu; 12. Em consequência das condutas do arguido a assistente tenha passado a sofrer de desorientação, apatia, sentimento de solidão e de impotência, mudanças bruscas de humor, perda de energia e ânimo, dores de cabeça e enxaqueca, depressão, insónias, fadiga e problemas gástricos e intestinais, que acarretaram duas intervenções cirúrgicas; 13. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que todas as suas relatadas condutas eram proibidas e punidas por lei.” 3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões dos recorrentes, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar respeitam à impugnação da matéria de facto. O objecto dos recursos do Ministério Público e da assistente coincide, no sentido de pretenderem ambos a alteração da decisão de facto. Visam que seja dada como provada toda a factualidade que na sentença foi considerada não provada. Demandam, em consequência, a condenação do arguido pelos factos e crime da acusação e, a assistente, ainda a procedência do pedido cível. (a) Da impugnação da matéria de facto Como se sabe, o art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal impõe que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas. Essa especificação faz-se por referência ao consignado na acta indicando o recorrente concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012). O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º nº 3, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabilizará o conhecimento do recurso da matéria de facto. No caso, os recorrentes procederam à transcrição das concretas passagens em que fundam a impugnação, como se imporia de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (AFJ nº 3/2012). Também procederam à correcta individualização dos pontos de facto. Pelo que são de considerar como cumpridas as exigência formais de impugnação da matéria de facto. No entanto, no presente caso, a margem de intervenção da Relação no conhecimento de facto condicionará decisivamente a apreciação dos recursos. Ou seja, o modelo de recurso efectivo da matéria de facto na disciplina do Código de Processo Penal limita os poderes de cognição da Relação em matéria de facto, expressivamente no caso sub judice. Na verdade, adiantamos reconhecer que a prova gravada (a cuja audição integral procedemos) consente, abstractamente, a leitura das provas defendida nos recursos. Ou seja, os recorrentes procederam às legais especificações da prova testemunhal e por declarações, como lhes competia, delas tendo retirado conclusões de facto em sentido oposto à decisão de que recorrem, pretendendo demonstrar os factos articulados na acusação, e fazem-no duma forma racional e lógica. A prova principal consistiria, assim, nas declarações da assistente-vítima (o que não pode deixar de ser considerado, no caso, como normal), pontualmente corroboradas por outras provas, que também sinalizaram. E a tudo isto procederam, argumentando de acordo com uma livre apreciação das provas, devidamente objectivada e motivada. Daí que os dois recursos, da forma como se apresentam, se prendam insoluvelmente com a questão dos limites dos poderes de cognição das Relações em matéria de facto. Como insistentemente, e sem discordância, tem vindo a ser afirmado (na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, das Relações e em artigos doutrinários), o recurso efectivo da matéria de facto visa a detecção do erro de facto e não é, nem pode ser, um segundo julgamento. Este erro de facto tem de ser correctamente situado – no(s) concreto(s) facto(s) ou no ponto de facto – e acompanhado das concretas provas que alegadamente imponham decisão oposta à tomada na sentença. Esta exigência de demarcação/confinamento do objecto do recurso não significa que a Relação esteja impedida de vir a apreciar todas as provas, ou mesmo que todas as provas possam ser, no caso, as concretas provas, sempre de acordo com o objecto do recurso definido pelo recorrente. Só que, mesmo nestas situações em que o recorrente indica como concretas provas todas as provas – e sempre com a exigência (ónus) de especificação – a segunda instância não as pode reapreciar na exacta medida em que o fez o juiz de julgamento, ou seja, não pode proceder a um segundo julgamento. Desde logo porque o objecto do recurso não coincide com o objecto da decisão do tribunal de julgamento – este decide sobre uma acusação, aquele decide sobre a (correcção da) sentença (de facto). Mas sobretudo porque a segunda instância não se encontra na mesma posição do juiz de julgamento perante as provas. Não dispõe de imediação total (embora tenha uma imediação parcial, relativamente a provas reais e à componente voz da prova pessoal) e está impedida de interagir com a prova (ou seja, de questionar a prova pessoal). Assim, e sempre de acordo com o modelo de recurso efectivo de facto do Código de Processo Penal, à Relação só pode pedir-se que efectue um controlo do julgamento, e não que repita ou reproduza o julgamento. Os seus poderes de decisão de facto estão direccionados para a (sindicância da) sentença de facto (e sempre de acordo com o objecto do recurso definido pelo recorrente). É-lhe para tanto permitido proceder ao confronto e análise das concretas provas, na parte especificada por referência ao consignado na acta ou transcritas no recurso (sem prejuízo de oficiosamente se poder vir a socorrer de outras provas). Nada impedindo, na nossa visão, que as concretas provas possam ser todas as provas. Esta exigência de especificação completa a essência das “concretas provas”. Concretas, não apenas ou essencialmente no sentido de uma individualizada no conjunto das restantes – já que nada proíbe que o possam ser todas elas – mas concretas porque especificadas, e não apenas nomeadas ou indicadas. Esta exigência é indispensável ao conhecimento amplo da matéria de facto em segunda instância, pois visa propiciar a detecção do erro de facto. Mas indicia também que o recurso da matéria de facto não possa ser um segundo julgamento. Dentro deste mandato, assim restrito à detecção do erro de facto, considera-se que a sentença ora em crise é censurável, evidenciando erro de julgamento, mas não com a amplitude pretendida. O erro de facto situa-se apenas no “ponto de facto” seguinte: 6. No dia 17/04/2012, cerca das 00h30 horas, no interior da residência, o arguido agarrou o pescoço da assistente com a mão esquerda, apertando-o; Quando a assistente se tentou soltar, o arguido agarrou-a pela blusa, rasgando-a; 10. Como consequência deste acto, a assistente sofreu mau estar físico e psíquico; 11. Ao agir da forma acima descrita o arguido quis molestar fisicamente a assistente, provocando-lhe mau estar físico e psíquico, o que fez livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a conduta era proibida e punida.” Estes factos foram indevidamente considerados como não provados. Contudo, das razões dos recursos resulta que ocorreu erro de julgamento nesta parte, como se passa a explicar. Vejamos, primeiramente, como se fundamentou toda a matéria de facto na sentença: “A convicção do Tribunal fundou-se na análise da globalidade da prova produzida, globalmente considerada e criticamente analisada, à luz de critérios de normalidade e experiência comum, a saber, nas declarações do arguido e da assistente, nos depoimentos das testemunhas ouvidas e na prova documental junta aos autos, mormente, na documentação clínica a fls. 105 a 124. Do conjunto da mesma suscitaram-se dúvidas relativamente à forma como ocorreram os factos a que a acusação alude que impuseram, na ausência de quaisquer outras diligências úteis à descoberta da verdade e em face do princípio in dubio pro reo, a resposta que se lhes deu. Começando pelo fim, os depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido, LG, SN, CG e BG, pese embora não se tenham afigurado viciados de qualquer modo, revelaram-se inúteis, atenta resposta que se deu à demais matéria, posto que depuseram exclusivamente em relação à personalidade do arguido o que, em casos como o presente, considerando que se trata de pessoas que não interagem com ele em contexto conjugal, pouco ou nada releva. Também os depoimentos das testemunhas IS e AV se demonstraram de pouca utilidade. Por um lado, no que a ambas diz respeito, não têm conhecimento direto dos factos sendo certo que o que descreveram são exteriorizações comportamentais da assistente o que, pelos motivos que adiante se exporão, os invalida. Acresce que o depoimento de AV se afigurou desprovido de credibilidade porquanto, pese embora a mesma tenha começado por descrever a assistente como pessoa muito reservada e tenha revelado grandes dificuldades em situar no tempo o início da sua relação pessoal, que se apurou ter sido aproximadamente contemporânea dos factos descritos no ponto 2 dos factos não provados, adiante, descreve que, no caso da primeira agressão, a assistente “levantou a blusa” para lhe mostrar marcas de agressão que tinha no peito, comportamento algo insólito para quem, sendo muito reservado, está perante alguém que conhece há pouco tempo e tem lesões, também, supostamente, no pescoço. Curiosamente, pese embora as iniciais dificuldades em esclarecer as circunstâncias temporais em que conheceu a assistente, adiante, respondendo a matéria civil, é já muito específica e sabe dizer que, em 2004, nos primeiros 3 a 4 meses, via a assistente sempre bem e alegre, começando depois a vê-la diferente, o que gerou a suspeita que a resposta em causa tivesse sido previamente ensaiada. Seguindo para os depoimentos dos militares que em 17/04/2012 se deslocaram a casa de arguido e assistente, AR e Â, os mesmos também se afiguraram de pouca utilidade posto que, para além de ambos terem revelado má memória dos factos, entrando em contradições em vários aspetos relevantes, como sejam a forma como a assistente estaria vestida (de robe por cima duma t-shirt vs de robe sem t-shirt), ou as marcas corporais que apresentava (arranhões no pescoço vs arranhões no peito e nada no pescoço), mostraram-se, especialmente AR, fortemente impressionados pelo que a assistente fez e disse e agastados por o arguido os ter mandado sair de sua casa, onde tinham entrado a pedido da assistente. Chegados a este ponto, há questões que têm que ser expostas e criticamente analisadas, para que se perceba as conclusões que servem de base à análise global que se fez da prova produzida. A primeira delas é a de que, pese embora todo o esforço probatório da assistente, os autos não apresentam nenhum elemento de prova que não esteja (ou possa ter estado) absolutamente dependente de exteriorizações da sua vontade. Com efeito, para além das suas declarações, temos testemunhas que descreveram o que ela disse, as marcas corporais ou peças de roupa rasgada que exibiu, ou um colchão virado. Sucede que as marcas que terá mostrado são facilmente auto-infligidas, posto que não provocam dor relevante e saram totalmente com facilidade, para além de a sua baixa gravidade ser pouco compatível com a violência que geralmente anda associada a casos de agressões conjugais de marido contra mulher, em contexto de relações prolongadas e alcoolismo. Um colchão virado irreleva totalmente sem as declarações da assistente e a exibição das peças de roupa, para além de estas poderem ter sido rasgadas por qualquer pessoa, acaba por colocar um certo ênfase na descompensação psíquica evidenciada pela assistente, demasiado teatral na forma como prestou as declarações, falando desgovernadamente em certos pontos das mesmas, levantando-se espontaneamente e retirando de um saco as ditas peças de roupa rasgadas que exibiu perante o Tribunal sem que ninguém lho pedisse e agindo, de maneira geral, de forma que evidenciava uma certa desorientação (fortemente evidenciava quando, espontaneamente, recua ao tempo de recém casada e começa a contar a história de um R., que já morreu, falando da fazenda daquele como se o Tribunal tivesse conhecimento de tais factos). Tal impressão veio a ser confirmada pela documentação a fls. 105 a 124, que revela o histórico do acompanhamento clínico da mesma, sendo extensiva e demonstrando o recurso frequente a cuidados médicos, até por questões de menor gravidade, donde consta que a mesma sofre, desde 2009 (cfr. fls. 109), de perturbações depressivas e onde não consta, em lugar algum, que tenha alguma vez sido assistida na sequência de qualquer agressão. É neste ponto que entra o decisivo depoimento de JS, irmão da assistente, que se afigurou absolutamente sincero e credível, até pela grande estima e preocupação que o mesmo revelou relativamente a ela, e veio por a descoberto que a mesma, desde a morte da mãe de ambos, em 2009, tem revelado grande tristeza e vontade de se juntar à família em Santarém o que, para além do mais, é contraditório com as declarações da assistente e das testemunhas IS e AV, que identificaram todas como motivo da tristeza e depressão os comportamentos do arguido, não já a morte da sua mãe. Segue depois a testemunha, no decurso do seu esclarecedor depoimento, colocando uma grande tónica no enorme problema que arguido e assistente têm, que é o de terem uma única casa em comum, que nenhum consegue adquirir por inteiro, por falta de meios próprios ou crédito bancário, pese embora tenham já tentado, sem sucesso, o que motivou que permanecessem a morar juntos na mesma. Neste ponto, em que à descompensação psíquica se junta uma forte motivação para simular uma situação de agressão conjugal que a livrasse da indesejada companhia, encaixa a descrição que a testemunha faz de uma série de telefonemas que recebeu da assistente, sempre a altas horas da noite, em que ela se queixava de ser agredida fisicamente pelo arguido. Ora, tais relatos são totalmente contraditórios com as declarações da assistente que foi cabal em afirmar que apenas foi agredida fisicamente pelo arguido nas duas situações descritas na acusação, sendo as demais agressões verbais. A este quadro, juntam-se as declarações do arguido que, confirmando o quadro de rutura do casamento e discussões subsequentes à mesma, negou o proferimento de ameaças ou injúrias, negando igualmente qualquer agressão. É certo que o arguido estava, efetivamente, embriagado na noite de 17/04/2012 e que expulsou os guardas de sua casa mas, pese embora o exercício desse seu direito de não violação do seu domicílio sem o seu consentimento e o modo como foi feito tenham desagradado fortemente aos militares em questão, como foi percetível, o arguido ter-lhes-á dirigido, apesar de estar embriagado e claramente irritado, e de o ter feito em tom grave, as seguintes palavras: “Srs. Guardas, façam o favor de sair”, conforme explicitou Â. Ou seja, estamos longe do estereotipo do embriagado descontrolado e enfurecido, posto que o arguido soube exercer um seu direito, mesmo que de forma pouco cordial, dentro das normas legais e sem qualquer infração civil ou criminal, o que não pode deixar de ser considerado. Acresce a sua atitude para com a assistente posto que, mesmo quando instado pelo Tribunal, o mesmo escusou-se sempre a adiantar por que motivo (posto que negava os factos) teria a assistente apresentado a denúncia que deu origem aos autos. Se num primeiro momento, antes de produzida a demais prova, tal atitude causou no espírito do Tribunal a impressão de que a sua negação seria infundada, adiante, depois de tudo considerado, pareceu mais que o arguido, por consideração à assistente e em face da sua condição de saúde, não quis atacá-la. Naturalmente que, tanto a primeira como a segunda hipótese são meras suposições que, aqui chegados, não se conseguiu confirmar ou infirmar. Em face do exposto e do princípio in dubio pro reo, outra consideração não poderiam merecer as imputações típicas constantes dos factos não provados que não a que lhes foi dada, levando-se aos factos provados somente os que resultaram pacificamente das declarações de arguido e assistente. Não foram levados aos factos provados nem aos não provados as alegações vagas, conclusivas ou de direito constantes do pedido de indemnização civil, nem os desprovidos de interesse para a decisão da causa, sendo os demais considerados não provados, em bloco, além da ausência da necessária prova pericial que permitisse estabelecer o nexo de causalidade entre condutas e resultados, por se não ter provado a prática pelo arguido dos factos que, imputadamente, os teriam provocado.” Da fundamentação da sentença e da motivação dos recursos (e também da resposta a estes), resulta logo que, em julgamento, foram apresentadas duas posições contraditórias sobre os factos da acusação. Este ponto não é controvertido. Todos os sujeitos processuais, e também o juiz, acordam na existência de duas versões opostas, de sinal contrário: a da assistente e a do arguido. Acordam também nas provas que as suportam, no seu teor e conteúdos. Pode, assim, afirmar-se a conformidade entre o que foi dito em julgamento e aquilo que o tribunal ouviu e diz ter ouvido, que nenhuma das provas é proibida ou foi produzida fora das normas que regem os meios de prova em análise. Resta apreciar se o tribunal justificou adequadamente a opção que fez relativamente à escolha e graduação dos contributos probatórios, e se, perante provas de sinal contrário, lhes atribuiu conteúdo positivo ou negativo de uma forma racionalmente justificada, com acertado apelo às regras da lógica e da experiência comum, e sem violação de princípios de prova (do in dubio pro reo e da livre apreciação). A experiência demonstra que os crimes de violência doméstica ocorrem normalmente na reserva do lar, na privacidade. Raramente são presenciados ou testemunhados. São por isso crimes em que assume particular utilidade o depoimento ou declaração da testemunha-vítima, crimes relativamente aos quais, a prova se pode resumir à pessoa da vítima (prova por declarações, mas também por exame ou perícia). A motivação da matéria de facto na sentença parece esquecer esta realidade, expressando um enquadramento algo impróprio desta problemática, sugerindo até que a prova não possa consistir exclusivamente no depoimento da(s) vítima(s). Assim ocorre quando se diz, por exemplo, “pese embora todo o esforço probatório da assistente, os autos não revelam nenhum elemento de prova que não esteja (ou possa ter estado) absolutamente dependente de exteriorizações da sua vontade”. Apesar desta perplexidade, importante, que a motivação da matéria de facto revela, relativamente à maior parte dos factos não provados a sentença ainda se explica. É ainda perceptível, de forma aceitável de acordo com os princípios da apreciação da prova, por que razão a versão da vítima não convenceu. E assim, face aos motivos da fundamentação da sentença (veja-se, por exemplo, a valoração do depoimento do irmão da assistente e as ilações que dele se retiram) a convicção ainda se apresenta como suficientemente justificada, de acordo com os princípios e regras de prova, particularmente o in dubio pro reo. Ou seja, nesta parte, ainda se percebe a dúvida em que o tribunal se manteve quanto aos restantes factos da acusação. Nesta parte, o tribunal valorou as declarações e os depoimentos que ora se elegem como “concretas provas” de um modo ainda permitido/exigido pela segurança da (na) prova. Pelo que, quanto à quase totalidade dos factos impugnados, a convicção do tribunal se apresenta como ainda possível, no confronto da leitura das provas que os recorrentes aqui defendem. Nesta parte, pode ainda considerar-se que se trataria sempre de uma mera substituição de convicções: a do tribunal, pela dos recorrentes. Mas assim não sucede quanto ao ponto de facto que sinalizámos inicialmente. Aqui, a dúvida do tribunal não se apresenta como razoável, essa dúvida não está lógica e racionalmente justificada na sentença, e o erro de facto sobressai. Referimo-nos ao episódio ocorrido no dia 17/04/2012, cerca das 00h30 horas, e que veio a dar início aos presentes autos. Ele encontra-se descrito no auto de notícia elaborado pela GNR (então chamada ao local a pedido da vítima), foi relatado pela assistente de forma coincidente com a narrativa da acusação, e não pode deixar de se considerar como corroborado pelas testemunhas da GNR. E é aqui que se centra o erro no julgamento de facto. Diz-se na sentença “seguindo para os depoimentos dos militares que em 17/04/2012 se deslocaram a casa de arguido e assistente, AR e A., os mesmos também se afiguraram de pouca utilidade posto que, para além de ambos terem revelado má memória dos factos, entrando em contradições em vários aspetos relevantes, como sejam a forma como a assistente estaria vestida (de robe por cima duma t-shirt vs de robe sem t-shirt), ou as marcas corporais que apresentava (arranhões no pescoço vs arranhões no peito e nada no pescoço), mostraram-se, especialmente AR, fortemente impressionados pelo que a assistente fez e disse e agastados por o arguido os ter mandado sair de sua casa, onde tinham entrado a pedido da assistente.” Já nas Lições escritas em 1975, Figueiredo Dias ensina que “livre apreciação” significa ausência de critérios legais pré-fixados mas, simultaneamente, “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo” (Lições de Processo Penal p. 202). Não poderá tratar-se de uma convicção puramente subjectiva ou emocional. Curando-se sempre de uma convicção pessoal, ela é necessariamente objectivável e motivável. Estas afirmações iriam ser, e continuam a ser, repetidas à exaustação. A objectivação da dúvida em que o tribunal permaneceu encontra-se, nesta parte seguramente, por compreender. Se a livre apreciação da prova pressupõe o apelo às regras da experiência, que “têm aqui uma função instrumental no quadro de uma investigação orientada para os factos individuais”, funcionando como “argumentos que ajudam a explicar o caso particular como instância daquilo que é normal acontecer” (Paulo Sousa Mendes, A prova penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III,1002.), essas regras da experiência levam antes às ilações opostas às retiradas na motivação. O tribunal desvalorizou os depoimentos dos GNR porque apresentaram, entre si, algumas contradições. Sabe-se que inúmeros factores contribuem para a falibilidade do testemunho humano, mas este continua a ser um dos fundamentais meios de prova em processo penal. Sabe-se também que, como narração de factos percebidos através dos sentidos, os testemunhos podem conter imprecisões. E que a inexactidão da declaração pode resultar, não apenas de uma vontade de faltar à verdade, mas de uma incapacidade ou impossibilidade de dizer a verdade, decorrente de deficiências dos próprios sentidos. Daí que se mantenha actual a expressão de Cavaleiro Ferreira de que “a testemunha perfeita é quase apenas um ideal” (Curso de Processo Penal II. p. 341-344). Mas a experiência da vida demonstra que as pontuais dissemelhanças - que se encontram, é certo, nos dois depoimentos que a sentença avalia -, não só não têm a virtualidade ditada na sentença (de fragilização da versão da acusação relatada pela ofendida, criação de dúvida, absolvição), como até dão força à versão da acusação. Na verdade, as pontuais disparidades apontadas são aquelas que acontecem naturalmente na multiplicidade de depoimentos. Tais discrepâncias, aliás, situam-se em aspectos meramente circunstanciais. As testemunhas acordam em que a vítima vestia um robe, sendo indiferente se debaixo deste era ou não perceptível uma t-shirt; ambas relatam que viram arranhões, sendo concretamente irrelevante se os situaram mais no pescoço ou mais no peito. Os testemunhos prestados desta forma – não totalmente ou absolutamente coincidentes -, serão até tendencialmente mais verdadeiros. Mostra a experiência que a concertação e treino de versões “falsas” dará mais facilmente lugar a descrições de factos perfeitamente análogas e homogéneas, assim não sucedendo nos depoimentos mais espontâneos e verdadeiros. É fundada a observação do Ministério Público na sua resposta “… o Mmo. Juiz tece considerações acerca das marcas apresentadas pela assistente, lançando a suspeita de se tratarem de lesões auto-inflingidas (!!) encontrando a motivação para tal facto na circunstância de a assistente partilhar a casa onde reside com o arguido e pretender “livrar-se dele” a todo o custo, uma vez que nenhum deles tem condições financeiras para adquirir uma outra habitação”. Como o recorrente bem nota, “trata-se de uma mera conjectura sem qualquer suporte factual”. Assim, da análise de cada declaração (incluindo as prestadas pelo arguido e pela ofendida), e dos depoimentos das duas testemunhas de acusação em causa (visto que as de defesa nada presenciaram), é possível retirar um núcleo de factos manifestamente consistente e, como tal, podendo ser considerado como verdadeiro. Mesmo sabendo-se que as regras da experiência, como critérios gerais, “não serão mais do que índices corrigíveis” e que “o caso particular pode sempre ficar fora do caso típico” (Sousa Mendes, loc. cit.), a prova impõe aqui uma leitura oposta à da sentença, pois a dúvida de facto em que o tribunal permaneceu não se justifica. De acordo com o exposto, altera-se a matéria de facto da sentença, passando os factos provados a ser, integralmente, os seguintes: “1. O arguido C. e a assistente MJ, casaram no dia 30 de Outubro de 1981; 2. Desde há cerca de oito anos a esta parte a relação entre a assistente e arguido deteriorou-se e apesar de residirem na mesma casa, arguido e assistente passaram a dormir em camas separadas, fazendo cada um a sua vida.” 3. No dia 17/04/2012, cerca das 00h30 horas, no interior da residência, o arguido agarrou o pescoço da assistente com a mão esquerda, apertando-o, e quando a assistente se tentou soltar, agarrou-a pela blusa, rasgando-a; 4. Como consequência deste acto, a assistente sofreu mau estar físico e psíquico; 5. Ao agir da forma acima descrita o arguido quis molestar fisicamente a assistente, provocando-lhe mau estar físico e psíquico, o que fez livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a conduta era proibida e punida.” Mais além não pode ir a segunda instância, no caso presente e de acordo com o modelo de recurso da matéria de facto do Código de Processo Penal. O segundo (e novo) julgamento no tribunal ad quem foi opção que o legislador de 1998 claramente não quis. Permanecem como não provados os factos restantes, dos quais foram retirados os agora descritos em 3., 4. e 5. (b) Da integração jurídica dos factos provados O art. 152º, nºs 1, al- a) e 2 do Código Penal pune quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima. Foi a reforma ao Código Penal de 2007 que autonomizou a violência doméstica “dos (outros) maus tratos” (Teresa Beleza, Revista do CEJ, 8, p.288) e da violação de regras de segurança. Aditou ainda os actos designados como castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, bem como dispensou expressamente a reiteração, na sequência aliás do entendimento de jurisprudência anterior. Na exposição de Plácido Conde Fernandes (Revista do CEJ, 8), o presidente da Unidade de Missão que presidiu à reforma de 2007 (Rui Pereira) esclareceu em diversas conferências sobre a revisão que “não se pretendia transformar qualquer ofensa e ameaça – crime de natureza semipública – em crime de maus tratos com moldura penal reforçada e natureza pública, apenas pelo facto de ocorrerem no âmbito de uma relação afectiva. Mantinha-se a situação em vigor apenas com a clarificação de que a reiteração não é exigida, desde que a conduta maltratante seja especialmente intensa”. O tipo abrange as situações de violência familiar reveladoras de um abuso de poder nas relações afectivas, degradante da integridade pessoal da vítima. Tutela-se a integridade da pessoa em determinada relação afectiva, no caso, a dignidade da pessoa no casal conjugal. Esta necessidade de protecção perdura e intensifica-se até nas situações de ruptura. A ratio do tipo não reside porém na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas na da pessoa individual que a integra, na tutela da sua dignidade humana. Protege o bem jurídico “saúde”, e não apenas a integridade física, abrangendo a saúde física, psíquica e mental (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2012, p. 512). De acordo com os factos provados, o arguido e a queixosa encontram-se formalmente em situação relacional prevista no tipo, que inclui as relações conjugal e para-conjugal, actual e passada (e ainda o namoro, com as alterações introduzidas pela Lei 19/2013). Os actos praticados na pessoa da assistente são ofensivos da sua integridade física, sendo certo que a realização do tipo não exige reiteração. No entanto, os factos provados, separados dos restantes articulados na acusação e entretanto considerados não provados na sentença, já não realizam o tipo de crime de violência doméstica. Embora ainda casados, o arguido e a assistente já não são um casal. Está provado que fazem vidas separadas há 8 anos, e não ficou demonstrado que algum deles dependa, afectiva ou economicamente, do outro. É certo que o tipo protege também o ex-cônjuge. Mas, como se disse, não basta a existência de uma relação afectiva (que no caso é até meramente formal) para que uma ofensa à integridade física caia na esfera de protecção do tipo “violência doméstica”. A moldura penal reforçada e a natureza pública não se justifica, como se disse, pela mera circunstância dos factos ocorrerem entre cônjuges ou ex-cônjuges. Também em casos de não reiteração, a então isolada conduta maltratante deve assumir particular intensidade. No caso, a assistente, embora casada, está já fora da relação afectiva, não se encontra em qualquer situação de dependência do arguido, e a ofensa sofrida, isolada e única, não revestiu a especial intensidade que neste caso se demandaria. Os factos provados são, pois, insuficientes para a realização do tipo de crime de violência doméstica do art. 152º, nº 1-a) e 2 do Código Penal. Muitos outros factos circunstanciais se encontram ainda na sentença, e levam à mesma solução de direito. Reforçam-na, até. Tais factos circunstanciais retiram-se do exame crítico da prova e resultam das declarações e depoimentos, sem controvérsia. Veja-se a passagem seguinte: “segue depois a testemunha (o irmão da assistente), no decurso do seu esclarecedor depoimento, colocando uma grande tónica no enorme problema que arguido e assistente têm, que é o de terem uma única casa em comum, que nenhum consegue adquirir por inteiro, por falta de meios próprios ou crédito bancário, pese embora tenham já tentado, sem sucesso, o que motivou que permanecessem a morar juntos na mesma”. Não os considerámos, por não integrarem os factos provados, não devendo por essa razão, por si só, determinar a solução de direito. Mas não tendo sido determinantes, e uma vez já afastado o tipo de crime da condenação, não deixamos de os mencionar agora. Pois consolidam a presente decisão. Do que se trata, no caso, é de duas pessoas que dividem um espaço comum, partilham a mesma habitação, em virtude de nenhum deles possuir autonomia financeira para fazer vida independente. Encontrar-se-ão em situação idêntica à de dois conhecidos que co-habitam, para partilha de casa e por razões exclusivamente financeiras. E embora o casamento não se mostre ainda legalmente dissolvido, a concreta situação de facto em análise (o apertão do pescoço) não está abrangida no âmbito de protecção desta norma. Inexiste uma relação de dependência económica, hierárquica, física, psicológica, afectiva ou de qualquer outra ordem. Já não há casamento de facto nem laço de para-conjugalidade. E aquela união que existiu no passado deixou, em concreto, de relevar penalmente para este efeito, mesmo no campo da extensão de protecção (para lá do casamento) que o tipo prevê. A factualidade em causa sai fora do âmbito de protecção da norma, do art. 152º do Código Penal, mas preenche o crime de ofensa à integridade física do art. 143º, nº 1 do Código Penal. O arguido, com conhecimento e intenção, ofendeu o corpo da assistente ao apertar-lhe o pescoço nas circunstâncias comprovadas. Consigna-se o afastamento da previsão do art. 145º, nºs 1-a) e 2 do Código Penal (ex vi art. 132º, nº 2-b) – “praticar o facto contra cônjuge ou ex-cônjuge…”), desde logo porque os factos provados não permitem descortinar circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade no acontecido (e isto, sem prejuízo de se poder continuar a questionar, também aqui, a concreta pertinência do elemento “conjugalidade”). A uma construção de presunção de qualificação (resultante das circunstâncias que o legislador elegeu com efeito-indiciante da qualificação) se bem que elidível, preferimos o reconhecimento da especial censurabilidade ou perversidade do agente, pela positiva, e a par (ou, mais precisamente, aquando) da identificação de qualquer uma das alíneas do nº 2 do art. 132º (aplicável ao caso por via do art. 145º nº 1 do Código Penal). E mesmo independentemente de se reconhecer que o “efeito padrão” possa “fornecer o indício da existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente” (assim, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, 2000, p. 87). Fornece o indício que, precisamente por o ser, carece de complementação. A jurisprudência converge no sentido de considerar que a qualificação deriva sempre da comprovação de um tipo de culpa agravado (assim, STJ 09-06-2011, Pais Martins; STJ 14-10-2010, Manuel Braz; STJ 27-05-2010, Souto Moura; STJ 16-09-2008, Henriques Gaspar), o qual, no caso, não se identifica. Os factos provados realizam tão só o tipo-base do art. 143º, nº 1-a) do Código Penal, e não o tipo qualificado de ofensa à integridade física do art. 145º, nºs 1-a) e 2 do Código Penal. Todos os factos agora considerados constavam já da acusação. Procedeu-se oportunamente à legal comunicação da alteração da sua qualificação jurídica (art. 424º, nº3 do Código de Processo Penal). (c) Da legitimidade do Ministério Público O Ministério Público mantém legitimidade para prosseguir na acção penal. Diferentemente da violência doméstica, o novo crime tem natureza semi-publica (art. 143º, nº 2 do Código Penal). No entanto, a assistente declarou desejar procedimento criminal (a fls 39), tendo-o feito dentro do prazo previsto no art. 115º, nº 1 do Código Penal. Comunicada já aqui nesta Relação a alteração da qualificação jurídica dos factos, não veio desistir da queixa, sendo certo que todo seu comportamento processual era já concludente, no sentido da manifestação/persistência do desejo de procedimento criminal. Mas a relevância processual deste comportamento concludente no contexto da alteração da natureza do crime, é matéria que não cumpre então desenvolver, atenta a manifestação inequívoca e atempada de desejo de procedimento criminal contra o arguido, bem como a posterior ausência de desistência de queixa. (d) Da reabertura da audiência para apuramento dos factos para determinação da sanção e decisão cível Mostrando-se preenchido um tipo de ilícito (do artigo 143º nº 1 do Código Penal), importa proceder à determinação da sanção. Importará também conhecer da responsabilidade civil por facto (penalmente) ilícito, decidindo o pedido cível formulado de acordo com a alteração da matéria de facto e os factos agora considerados como provados. Mas tendo sido o arguido inicialmente absolvido na 1ª instância, e tendo este tribunal da Relação procedido à alteração da matéria de facto de modo a concluir pela sua condenação, impõe-se assegurar os direitos de defesa e o direito ao recurso, com a consequente e oportuna possibilidade de reapreciação da medida da pena por uma instância superior. Revestindo a questão da determinação da sanção uma relativa autonomia (arts 469º n.º 2 e 470º do Código de Processo Penal), mas sobretudo porque assim o impõe a garantia do duplo grau de jurisdição, de tutela constitucional no que respeita ao arguido (art. 32 nº 1 da Constituição da República Portuguesa), deverão os autos baixar à 1ª instância, para aí ser proferida decisão sobre a pena (e sobre o pedido cível). Também na leitura do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (e embora o direito ao recurso não resulte do disposto no art. 6º da Convenção), devem os recursos obedecer às regras mínimas exigíveis a um processo equitativo, encontrando-se o duplo grau de jurisdição em matéria penal consagrado no art. 2º do protocolo nº 8 de 1984. A Relação não pode funcionar, simultaneamente, como tribunal da primeira e da última condenação, ou seja, como tribunal da única condenação, o que desrespeitaria o duplo grau de jurisdição em matéria penal. Acresce que a sentença é omissa quanto aos factos pessoais do arguido. O art. 71º do Código Penal manda atender, na determinação concreta da pena, “as condições pessoais do agente e a sua situação económica” (al. d)), a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime” (al. e)), e “a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto” (al. f)). “A personalidade releva para o juízo de culpa” e “a generalidade dos factores relativos à personalidade do agente relevam para a medida da pena preventiva, geral e especial. Não só as condições pessoais e económicas do agente, como as qualidades da personalidade, ganham relevo neste contexto” (Anabela Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, 1995, pp. 665-667). A reabertura da audiência deverá, pois, incluir as diligências que se tenham por necessárias para a determinação da sanção, nestas se compreendendo as imprescindíveis ao conhecimento da personalidade do arguido, da sua situação social e económica, dos seus antecedentes criminais, tudo de modo a dotar a sentença dos factos ainda em falta. 4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em: - Julgar parcialmente procedentes os recursos, alterando a matéria de facto nos termos explicados; - Julgar o arguido autor de um crime de ofensa à integridade física do art. 143º, nº 1 do Código Penal; - Determinar que os autos regressem à 1ª instância, para reabertura da audiência, o apuramento dos factos relativos à pessoa do arguido, a prolação da decisão sobre a pena e sobre o pedido cível. Sem custas. Évora, 02.07.2013 (Ana Maria Barata de Brito) (António João Latas) __________________________________________________ [1] - Sumariado pela relatora. |