Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
763/17.4PBTMR.E2
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: SENTENÇA CUMULATÓRIA
FALTA DE FACTOS
NULIDADE
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A sentença cumulatória não poderá deixar de conter uma referência aos factos atinentes à personalidade do agente e aos factos pelo mesmo cometidos, referência que se não satisfaz com a mera de citação dos ilícitos penais em concurso, demandando antes uma descrição circunstanciada, ainda que sucinta, dos próprios factos, de modo a permitir que os seus destinatários apreendam a situação na sua globalidade e compreendam o sentido da decisão.
II - Não incluindo a sentença cumulatória os factos relevantes para realização das operações de cúmulo impostas por lei, é manifestamente insuficiente a fundamentação da mesma constante, encontrando-se totalmente inviabilizado o escrutínio do decidido, pelo que tal sentença enferma da nulidade prevista no artigo 379.º, nº 1.º, al. a) por referência ao 374.º, nº 2 ambos do CPP.

III - Não obstante no n.º 2 do artigo 379.º do CPP se consignar que o tribunal ad quem deverá suprir as nulidades da sentença, de tal estatuição não decorre a imposição ao tribunal de recurso da obrigação de suprir todas as nulidades detetadas na sentença recorrida. Tal dever reportar-se-á, outrossim, apenas às nulidades cujo suprimento, pela natureza e características daquelas, esteja ao alcance do tribunal de recurso, o que manifestamente não sucede com a nulidade por absoluta falta de fundamentação ao nível factológico.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum singular que correm termos no Juízo Local Criminal de …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 763/17.4PBTMR.E2, foi o arguido AA, identificado nos autos, condenado, por acórdão de cúmulo jurídico referente a concurso superveniente de crimes, na pena única de 3 (três) anos de prisão pela prática dos crimes a que foi condenado nos presentes autos e no Proc. nº 290/18.2….

*

Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“O Tribunal a quo procedeu a cúmulo jurídico da pena aplicada no presente processo ao arguido AA, atualmente em cumprimento de pena de prisão, em regime de permanência na habitação, com a aplicada no Proc. n.º 290/18.2….

2. Como o julgamento do concurso de crimes constitui um novo julgamento, em que se aprecia a globalidade da conduta do agente, a sentença a proferir exige uma fundamentação própria, quer em termos de direito, quer em termos de factualidade.

3. Essa sentença deve conter uma referência aos factos, não só em termos de citação dos tipos penais, como também de descrição, ainda que sintética, dos próprios factos efetivamente praticados, que permita informar sobre a ilicitude concreta dos crimes cometidos, a homogeneidade da atuação do agente, a eventual interligação entre as diversas condutas, enfim, a forma como a personalidade do arguido se manifesta nas condutas praticadas.

4. É nula a sentença que, ao proceder ao cúmulo jurídico das penas, é completamente omissa quanto aos factos que integram os crimes em concurso e nem sequer se limita a remeter para as certidões juntas aos autos, sem efetuar, como se impõe, uma síntese factual que dê a noção global da conduta do agente detetada nas diversas decisões.

5. Mais acresce, que omite as penas parcelares aplicadas, no âmbito daquele outro processo.

6. Constitui orientação sedimentada e segura do Supremo Tribunal a que aponta para a necessidade de, na determinação da pena unitária do concurso, se deverem observar especiais cuidados de fundamentação, na decorrência do que dispõem os artigos 71.º, n.º 3 do CP, 97.º, n.º 5 e 375.º, n.º 1 do CPP, e 205.º, n.º 1 da CRP.

7. Isto porque a decisão em causa está também submetida ao formalismo do art.º 374.º, n.º 2, do CPP, devendo, portanto, indicar os fundamentos de facto e de direito que a suportam.

8. Com efeito, e como é sabido, a punição do concurso superveniente não constitui uma operação aritmética ou automática, antes exige um julgamento (art.º 472.º, n.º 1, do CPP), destinado a avaliar, em conjunto, os factos, na sua globalidade, e a personalidade do agente, conforme dispõe o art.º 77.º, n.º 1, do CP.

9. Resumindo e concluindo, dir-se-á pois que defendemos, como um sector relevante da jurisprudência do STJ, que a decisão de cúmulo, podendo dispensar uma fundamentação especificada conforme o determinado no alto 374.º, n.º 2, do CPP, terá que explicitar os motivos de facto e de direito que determinaram o sentido da decisão.

10. Não cumpre, pois, de todo, o aresto impugnado, como devia, o requisito da enumeração dos factos provados relevantes para a decisão, prejudicando a própria fundamentação da medida da pena, omissão que configura a nulidade a que se refere o n.º 1, c) do artº 379.º do CPP, nulidade essa de conhecimento oficioso, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito.

11. Termos em que, e na procedência da questão prévia suscitada, deverá ser proferida decisão que decida declarar nula a decisão impugnada, nos termos do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPP [ou, eventualmente, de declarar verificado o vício da 'insuficiência para a decisão da matéria de facto provada"]; ordenando o "reenvio" do Processo à 1ª Instância para que ali, suprindo essa nulidade [elou o identificado vício], proceda à realização de novo cúmulo jurídico, fundamentando a nova decisão a proferir com a descrição/caracterização, ainda que sumária, dos respectivos factos, por forma, a que seja possível aferir da gravidade do ilícito global e a sua conexão com a personalidade unitária do agente, e apurar se o mesmo tem a ver com uma tendência para a perpetração de determinados crimes [e nomeadamente se são reconduzíveis a uma carreira criminosa, redundando assim numa personalidade refractária a algum ou alguns bens jurídicos penalmente tutelados; ou se a atividade criminosa do arguido, ora recorrente, se deve antes a fatores apenas conjunturais e, nessa medida, meramente pluriocasionais.

12. É preciso também frisar que a punição do concurso superveniente não constitui uma operação aritmética ou automática, antes exige um julgamento (art.º 472º, nº 1 do CPP), eventualmente com a presença do arguido (nº 2 do mesmo artigo), destinado a avaliar, em conjunto, os factos, na sua globalidade, e a personalidade do agente, conforme dispõe o alto 77º, nº 1 , do CP.

13. A sentença deve conter também uma referência aos factos atinentes à personalidade do agente, normalmente contidos no relatório social, mas que podem resultar também da audiência, caso o arguido esteja presente, de forma a habilitar o tribunal a efetuar a apreciação conjunta dos factos e da personalidade a que se refere o citado nº 1 do art.º 770º do CPP.

14. O que é essencial é que se faça constar da decisão que procede ao cúmulo das penas uma síntese factual que dê uma noção global da conduta do agente detetada nas diversas decisões, de forma a estabelecer (ou a afastar) conexões e continuidades na ação do agente, e relacioná-las com os traços de personalidade apurados, de forma a produzir o juízo global a que se refere o 77º, nº 1, do CP.

15. Em síntese, o acórdão recorrido não fundamentou suficientemente a decisão em termos de facto, pelo que a decisão é nula, nos termos dos arts. 374º, nº 2, e 379º, no 1, a), do CPP. — Nulidade que desde já se arguiu e requer para os devidos efeitos legais.

16. DA MEDIDA DA PENA ÚNICA APLICADA AO ORA RECORRENTE

17. Nos termos do art.º 77.º, n.º 2 do CP, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo, contudo, ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e como limite mínimo, a mais elevada daquelas penas.

18. A moldura do concurso de crimes, ou seja, a pena aplicável em abstrato, é, assim, formada a partir das penas singulares concretamente aplicadas aos vários crimes. — O que não sucedeu de todo na sentença recorrida que não teve em conta as penas parcelares aplicadas. sendo que nem sequer enumerou as mesmas.

19. Por conseguinte, o sistema não prescinde da determinação concreta das penas aplicáveis aos vários crimes, as quais serão norteadas pelos critérios da culpa e da prevenção (geral e especial), segundo os vários fatores que vêm enumerados, de forma exemplificativa, no n.º 2 do art.º 71.º do CP.

20. O caso em apreço, o Tribunal a quo teve em conta como pena mínima uma pena única, e como limite máximo, a soma de duas penas únicas.

21. Vejamos: O Tribunal a quo teve como limite mínimo a pena única de 2 anos e 10 meses, e como limite máximo a soma desta com a pena única de 12 meses aplicada nos presentes autos.

22. Quando na verdade, teria de ter em conta as seguintes penas: Processo nº 290/18.2 …- 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, pela prática do crime de dano agravado; - 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, pela prática do crime de detenção de arma proibida; - 8 (oito) meses de prisão, pela prática do crime de ameaça.

23. Presentes autos - Pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de ameaça agravada; - Pena de IO (dez) meses de prisão, pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada;

24. Assim o limite mínimo seria de I ano e 6 meses, e o limite máximo seria de 5 anos. No caso dos autos, as penas figuram como da mesma natureza.

25. Na determinação da pena única a aplicar, há que fazer uma reflexão sobre os factos em conjunto com a personalidade do arguido, pois só dessa forma se abandonará um caminho puramente aritmético da medida da pena para se procurar antes adequá-la à personalidade unitária que nos factos se revelou.

26. Tendo em conta os critérios enunciados no artigo 77.º, n.º l, do Código Penal, importa, pois, considerar, em conjunto, a gravidade de todos os factos praticados pelo arguido, bem como a personalidade desta emergente desse acervo factual e as respectivas condições pessoais apuradas.

27. Impõe-se, assim, proceder à unificação das penas parcelares impostas aos arguidos pelo respectivo cometimento, de harmonia com o estatuído nos artigos 77.º e 78.º, ambos do Código Penal, sendo o limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas (que não exceda os 25 anos de prisão) e o limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas.

28. Como assim, no caso sub judice, a moldura concursal das penas aplicadas ao arguido nestes autos situa-se entre os 1 e 6 meses e os 5 anos.

29. Por conseguinte, da apreciação conjunta dos critérios supra materializados no caso sub judice, o Tribunal deverá ter como adequada e proporcional, de acordo com o disposto no aligo 78.º, do Código penal e 472.º, do Código de Processo Penal, a aplicação ao arguido da pena única de 2 (dois) anos de prisão.

30. Nos termos do artigo 50.º do Código Penal estatui que "o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".

31. Não se pode olvidar que os factos foram cometidos quando o arguido estava numa fase de consumos de drogas duras, e que foi esta questão de saúde pública a toxicodependência — que esteve na génese do cometimento dos crimes.

32. Nesta sede não estão em causa considerações sobre a culpa, mas exigências de prevenção, importando de determinar se existe a possibilidade fundada de que a socialização pode ser alcançada em liberdade.

33. Ora, no caso em apreço, encontra-se preenchido 0 pressuposto formal, consistente na não aplicação ao arguido de uma pena de prisão superior a cinco anos.

34. No que respeita ao pressuposto material, reconduzível a um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do delinquente, importa referir que, atenta a idade do arguido e os respectivos antecedentes criminais que se relacionam essencialmente com a prática de crimes da mesma natureza, o hiato temporal decorrido e a sua manifesta integração social e laboral, afigura-se que a suspensão da execução da pena de prisão satisfaz as finalidades da punição.

35. No fundo, o propósito desta suspensão consiste em assegurar as condições ideais para o arguido desenvolver de forma plena a sua personalidade num sentido normativo.

36. Considerando o preceituado no n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal e os fatores enunciados supra, afigura-se que o período de suspensão da execução da pena de prisão se deverá fixar igualmente em 3 (três) anos.

37. Considera-se, que a suspensão deverá acarretar quaisquer imposições que V. Exas. venham a considerar como adequadas, nomeadamente a continuidade do tratamento à toxicodependência para o qual o recorrente, deu já o seu consentimento.

38. Estamos em crer que servirá de necessário e suficiente contra-estímulo à reiteração futura do comportamento ora sancionado.

39. Esta opção pela suspensão da execução da pena representará uma derradeira oportunidade concedida ao arguido no sentido de, ainda em liberdade, assumir no seu projecto de vida um comportamento compatível com o dever-ser jurídico-penal.

40. Caso assim, não se entenda deve aplicar-se o regime de permanência na habitação, tal como pugnado no relatório social, bem como pelo MP em sede de alegações.

41. Face o exposto e atentos os fundamentos já apontados deverão V. Exas. Conceder provimento ao presente recurso nos exatos termos supra expostos.”

Termina pedindo a declaração de nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação e, subsidiariamente, a aplicação de uma pena única suspensa na sua execução ou cumprida em regime de permanência na habitação.

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O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público apresentou a sua resposta, com a dedução das seguintes conclusões:

“1. Na determinação da pena unitária do concurso, devem ser observados especiais cuidados de fundamentação, nos termos do disposto nos artigos 71.º, n.º 3 do Código Penal, 97.º, n.º 5 e 375.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, e 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

2.A sentença referente a um concurso de crimes (…), sob pena de nulidade, terá de conter uma referência aos factos cometidos pelo agente, não só em termos de citação dos tipos penais cometidos, como também de descrição dos próprios factos efectivamente praticados. [cfr., entre inúmeros outros, Ac. do STJ de 04-03-2015, Proc. n.º 1179/09.1TAVFX.S1, Relator Oliveira Mendes, in www.dgsi.pt]

3. A douta sentença proferida pelo Tribunal a quo não faz qualquer referência aos factos efetivamente praticados pelo arguido, ora recorrente, no âmbito dos processos crime objeto do concurso.

4. A douta sentença enferma de nulidade por falta de fundamentação, nos termos dos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) do Código do Processo Penal.

5. O Tribunal ad quem deverá suprir essa nulidade nos termos do n.º 2 do artigo 379.º do Código de Processo Penal.

6. Para efeitos de cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77.º, n.º 2, aplicável ex vi do art.º 78.º, ambos do Código Penal, são consideradas as penas parcelares aplicadas aos vários crimes e não as penas únicas aplicadas no processo n.º 290/18.2…, de 12 (doze) meses, e no presente processo, de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses.

7. O Tribunal a quo fixou, erradamente, a moldura do cúmulo, com base nas penas únicas, entre o limite mínimo de 2 anos e 10 meses de prisão e o limite máximo de 3 anos e 10 meses de prisão (resultante da soma das duas penas únicas).

8. e deveria ter considerado como limite mínimo a pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão e como limite máximo a pena de 5 (cinco) anos de prisão.

9. Não obstante, a pena única de 3 (três) anos de prisão efetiva imposta ao arguido pelo Tribunal a quo, considerando os factos praticados, a personalidade do arguido e os seus antecedentes criminais, mostra-se equilibrada e justa, tendo sido determinada no respeito pelos critérios fixados nos artigos 40. °, 71.º, 77. ° e 78. °, todos do Código Penal,

10. pelo que deverá ser mantida, o que se propugna.”

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A Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer, com o seguinte conteúdo:

“Recurso do arguido do cúmulo jurídico efetuado, com legitimidade e em tempo e para o tribunal competente.

O recorrente vem arguir a nulidade da decisão por não descriminar as penas concretamente aplicadas a cada um dos crimes de modo individualizado.

O Ministério Público junto do tribunal a quo concorda com a arguição da nulidade, no que também concordamos e com o que, a conhecer-se e declarar-se, ficam prejudicadas as demais questões do recurso.”

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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

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II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber:

A) Determinar se a sentença recorrida enferma de nulidade por falta de fundamentação, nos termos dos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a) ambos do CPP;

B) Não se concluindo pela nulidade referida no ponto anterior, determinar se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento em matéria de direito em virtude de não cumprir os critérios legalmente estabelecidos para a realização do cúmulo jurídico.

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II.II - A decisão recorrida.

Após a realização da audiência para cúmulo, foi proferida a sentença recorrida com o seguinte conteúdo:

“(…) Cumpre proceder a cúmulo jurídico da pena aplicada no presente processo ao arguido AA, actualmente em cumprimento de pena de prisão, em regime de permanência na habitação, com a aplicada no Proc. nº 290/18.2….

Realizou-se audiência de cúmulo com observância do legal formalismo.

Não há nulidades, questões prévias ou incidentais que cumpra apreciar.

Factos Provados:

Nos presentes autos foi o arguido AA condenado pela prática de 1 (um) crime de ameaça agravada previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), esta última, com referência à alínea l) do artigo 132.º, n.º2, todos do Código de Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão; pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelas disposições conjugadas do artigo 145.º, n.º 1, alínea a) e 2, com referência à alínea l) do artigo 132.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão; e efectuado o cúmulo jurídico destas penas parcelares, condenado o arguido na pena única de 12 (doze) meses de prisão; a cumprir em regime de permanência na habitação, com fiscalização de meios técnicos de controlo à distância (artigo 43.º, n.º 1, al. a) do Código Penal), sem prejuízo de saídas devidamente autorizadas, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, designadamente para trabalhar e para consultas médicas que necessite; e julgado totalmente procedente o pedido civil deduzido pelo Centro Hospitalar do … e, em consequência, condenado o arguido no pagamento da quantia de 67, 30€ (sessenta e sete euros e trinta cêntimos) a título de danos patrimoniais;

Por factos praticados em 03/06/2018, o arguido foi condenado no processo n.º 290/18.2…, a correr termos no Juízo Central Criminal de …, por acórdão transitado em julgado em 13/02/2020, na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa por igual período.

O arguido foi condenado uma vez pela prática de um crime de roubo, três vezes pela prática de crimes de condução sem habilitação legal, três vezes pela prática de crimes de resistência e coação sobre funcionário, uma vez pela prática de um crime de usurpação, um crime de ameaça, um crime de dano e um crime de detenção de arma proibida.

Fundamentação:

Para a formação da convicção do Tribunal foi determinante o teor do CRC, as declarações do arguido, no que concerne à sua situação sócio-económica, que se afiguraram credíveis, bem como o relatório da DGRSP.

O DIREITO:

Dispõe o art. 78º do CP que:

“1-Se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior”.

2-O disposto no número anterior é ainda aplicável no caso de todos os crimes terem sido objecto separadamente de condenações transitadas em julgado”.

O caso em apreço integra a previsão do nº2 dado que, após o trânsito em julgado da sentença proferida nos presentes autos, foi junta certidão de condenação anterior, também já transitada em julgado, por factos anteriores.

Nos termos do postulado no art. 77º nº2 do CP “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de penas de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”

Por factos praticados em 09/02/2017, foi o arguido AA condenado, nos presentes autos, por sentença transitada em julgado em 11/01/2022, na pena única de 12 (doze) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação, com fiscalização de meios técnicos de controlo à distância.

Analisado o certificado de registo criminal do arguido verifica-se que por factos praticados em 03/06/2018, o arguido também foi condenado no processo n.º 290/18.2…, a correr termos no Juízo Central Criminal de …, por acórdão transitado em julgado em 13/02/2020, na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa por igual período.

Entre os crimes pelos quais foi condenado nestes autos e aquele pelo qual foi condenado no mencionado processo existe relação de concurso agora conhecido, pelo que há lugar a cúmulo jurídico de penas nos termos previstos no artigo 78.º do Código Penal.

Uma vez que a última condenação teve lugar neste processo e que, atendendo às penas aplicadas nos dois processos e às regras da punição do concurso (artigo 77.º do Código Penal) a moldura do cúmulo oscila assim, entre os 2 anos e 10 meses de prisão e os 3 anos e 10 meses de prisão.

Na medida da pena há que considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente pelo que, atendendo à natureza dos crimes, à data da prática dos factos, o actual contexto pessoal do arguido e da necessidade de integração profissional, sem esquecer as prementes exigências de prevenção geral e especial, reputa-se justo e adequado aplicar a pena única de 3 (três) anos de prisão que, por força disso não pode ser cumprida em regime de permanência na habitação, nem suspensa na sua execução por a isso se oporem razões de prevenção geral e especial, não se mostrando verificados os pressupostos legais, por se entender que a ameaça de pena não é bastante, como não foi, para afastar o arguido da prática de ilícitos.

DECISÃO:

Pelo exposto, condena-se o arguido AA em cúmulo jurídico na pena única de 3 (três) anos de prisão pela prática dos crimes a que foi condenado nos presentes autos e no Proc. nº 290/18.2…. (…)”

*** II.III - Apreciação do mérito do recurso.

O recorrente questiona em primeiro lugar a validade da sentença, considerando-a nula por absoluta falta de fundamentação, e, subsidiariamente, a legalidade dos critérios utilizados para a realização do cúmulo jurídico que conduziu à fixação da pena única que lhe foi imposta.

Analisemos então se lhe assiste razão, começando, naturalmente, pela análise da questão de natureza formal.

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A) Da nulidade da sentença recorrida

Atento o disposto no artigo 77º, n.º 1 do CP, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única, sendo que, nos termos do artigo 78º do mesmo Código, que regula o conhecimento do concurso superveniente, se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior.

O pressuposto essencial para a efetuação do cúmulo jurídico de penas parcelares é a prática de diversas infrações pelo mesmo arguido antes de transitar em julgado a condenação por qualquer delas. (1) Ou seja, para se proceder ao cúmulo jurídico é necessário que se verifiquem requisitos de ordem processual e material, concretamente:

- Que se trate de penas relativas a crimes praticados antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles;

- Que se trate de crimes cometidos pelo mesmo arguido;

- Que se trate de penas parcelares da mesma espécie.

*

A primeira questão colocada no recurso reporta-se, não à verificação dos requisitos do concurso superveniente, que o mesmo não põe em causa, mas sim à validade da sentença que, conhecendo de tal concurso, realizou o cúmulo jurídico das penas. Afirma o recorrente que a mesma, omitindo totalmente os factos relevantes para a realização do cúmulo e, consequentemente, para a determinação da pena única, é nula por falta de fundamentação.

E não temos dúvidas que lhe assiste razão!

Vejamos.

A finalidade subjacente às regras estabelecidas para a punição do concurso superveniente de crimes é a de permitir que se possa conhecer um conjunto de factos que poderiam ter sido avaliados conjuntamente se tivesse havido contemporaneidade processual.

Citando o Conselheiro Henriques Gaspar, “Há, assim, para a determinação da pena única, como que uma ficção de contemporaneidade. A decisão proferida na sequência do conhecimento superveniente do concurso, deve sê-lo nos mesmos termos e com os mesmos pressupostos que existiriam se o conhecimento do concurso tivesse sido contemporâneo da decisão que teria necessariamente tomado em conta, para a formação da pena única, os crimes anteriormente praticados; a decisão posterior projeta-se no passado, como se fosse tomada a esse tempo, relativamente a um crime que poderia ser trazido à colação no primeiro processo para a determinação da pena única, se o tribunal tivesse tido, nesse momento, conhecimento da prática desse crime” (2).

O cúmulo jurídico por conhecimento superveniente de concurso de crimes terá, assim, lugar quando, posteriormente à condenação no processo no qual se realizará o cúmulo, ou seja, no processo da última condenação, se vem a verificar que o agente, anteriormente a tal condenação, praticou outro ou outros crimes.

Por outro lado, conforme bem se refere num outro aresto do STJ (3), não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material – que consistiria na soma das penas com mera limitação do limite máximo – “é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.”. Nas palavras do Professor Figueiredo Dias, tudo deverá passar-se “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências especiais de socialização).” (4)

Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre tais factos, sem esquecer o número, a natureza e a gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderado em conjunto com a personalidade do agente, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto factológico que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso.

Temos, assim, que o cúmulo jurídico, nos termos que em o nosso Código Penal o prevê, que conduz à fixação de uma pena única – a determinar de acordo com as normas que regem a realização dos cúmulos jurídicos, concretamente os artigos 77º e 78º do CP – visa determinar a medida concreta da pena a impor ao agente dos crimes praticados dentro de determinado período temporal, sendo que, tal como na determinação da pena aplicada pela prática de um só crime, se procura, na determinação da pena única resultante da realização do cúmulo jurídico, fixar a sanção adequada quer à culpa do agente quer às exigências de prevenção, nos precisos termos estipulados pelo artigo 71º do CP, o que demanda a realização de todas as operações impostas pelos critérios legalmente estabelecidos para o efeito.

Ora, a sentença recorrida não observou minimamente nenhum dos referidos critérios! E não o fez, desde logo porquanto não incluiu os factos relevantes que teriam permitido ao julgador realizar as operações pressupostas pelas normas legais que prevêem a realização dos cúmulos jurídicos.

No que à economia dos autos releva, estabelecem os artigos 77º e 78º do CP que:

“Artigo 77.º

Regras da punição do concurso

1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. (…)

Artigo 78.º

Conhecimento superveniente do concurso

1 - Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes. (…).”

*

Na linha do entendimento que vimos de explanar sobre a natureza dos cúmulos jurídicos, e conforme tem vindo a entender de forma unânime a jurisprudência dos nossos tribunais superiores (5), o julgamento do concurso de crimes, constituindo um novo julgamento destinado a habilitar o tribunal a realizar um juízo autónomo sobre a globalidade da conduta do agente, exige uma fundamentação própria, quer em termos de direito, quer em termos factuais. Por isso, a sentença cumulatória não poderá deixar de conter uma referência aos factos atinentes à personalidade do agente e aos factos pelo mesmo cometidos, referência que se não satisfaz com a mera de citação dos ilícitos penais em concurso, demandando antes uma descrição circunstanciada, ainda que sucinta, dos próprios factos, de modo a permitir que os seus destinatários apreendam a situação na sua globalidade e compreendam o sentido da decisão.

Atentemos no texto da sentença recorrida quanto à sua fundamentação, no que diz respeito à factualidade suportou a realização do cúmulo jurídico e a determinação da pena única:

“(…) Factos Provados:

Nos presentes autos foi o arguido AA condenado pela prática de 1 (um) crime de ameaça agravada previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), esta última, com referência à alínea l) do artigo 132.º, n.º2, todos do Código de Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão; pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelas disposições conjugadas do artigo 145.º, n.º 1, alínea a) e 2, com referência à alínea l) do artigo 132.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão; e efectuado o cúmulo jurídico destas penas parcelares, condenado o arguido na pena única de 12 (doze) meses de prisão; a cumprir em regime de permanência na habitação, com fiscalização de meios técnicos de controlo à distância (artigo 43.º, n.º 1, al. a) do Código Penal), sem prejuízo de saídas devidamente autorizadas, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, designadamente para trabalhar e para consultas médicas que necessite; e julgado totalmente procedente o pedido civil deduzido pelo Centro Hospitalar do … e, em consequência, condenado o arguido no pagamento da quantia de 67, 30€ (sessenta e sete euros e trinta cêntimos) a título de danos patrimoniais;

Por factos praticados em 03/06/2018, o arguido foi condenado no processo n.º 290/18.2…, a correr termos no Juízo Central Criminal de …, por acórdão transitado em julgado em 13/02/2020, na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa por igual período.

O arguido foi condenado uma vez pela prática de um crime de roubo, três vezes pela prática de crimes de condução sem habilitação legal, três vezes pela prática de crimes de resistência e coação sobre funcionário, uma vez pela prática de um crime de usurpação, um crime de ameaça, um crime de dano e um crime de detenção de arma proibida. (…)”

Quanto à subsunção dos referidos factos ao direito, refere apenas a decisão que:

“(…)Dispõe o art. 78º do CP que:

“ 1-Se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior”.

2-O disposto no número anterior é ainda aplicável no caso de todos os crimes terem sido objecto separadamente de condenações transitadas em julgado”.

O caso em apreço integra a previsão do nº2 dado que, após o trânsito em julgado da sentença proferida nos presentes autos, foi junta certidão de condenação anterior, também já transitada em julgado, por factos anteriores.

Nos termos do postulado no art. 77º nº2 do CP “ A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de penas de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”

Por factos praticados em 09/02/2017, foi o arguido AA condenado, nos presentes autos, por sentença transitada em julgado em 11/01/2022, na pena única de 12 (doze) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação, com fiscalização de meios técnicos de controlo à distância.

Analisado o certificado de registo criminal do arguido verifica-se que por factos praticados em 03/06/2018, o arguido também foi condenado no processo n.º 290/18.2…, a correr termos no Juízo Central Criminal de …, por acórdão transitado em julgado em 13/02/2020, na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa por igual período.

Entre os crimes pelos quais foi condenado nestes autos e aquele pelo qual foi condenado no mencionado processo existe relação de concurso agora conhecido, pelo que há lugar a cúmulo jurídico de penas nos termos previstos no artigo 78.º do Código Penal.

Uma vez que a última condenação teve lugar neste processo e que, atendendo às penas aplicadas nos dois processos e às regras da punição do concurso (artigo 77.º do Código Penal) a moldura do cúmulo oscila assim, entre os 2 anos e 10 meses de prisão e os 3 anos e 10 meses de prisão.

Na medida da pena há que considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente pelo que, atendendo à natureza dos crimes, à data da prática dos factos, o actual contexto pessoal do arguido e da necessidade de integração profissional, sem esquecer as prementes exigências de prevenção geral e especial, reputa-se justo e adequado aplicar a pena única de 3 (três) anos de prisão que, por força disso não pode ser cumprida em regime de permanência na habitação, nem suspensa na sua execução por a isso se oporem razões de prevenção geral e especial, não se mostrando verificados os pressupostos legais, por se entender que a ameaça de pena não é bastante, como não foi, para afastar o arguido da prática de ilícitos. (…)

*

Ora, a leitura da sentença, nas partes que acabámos de transcrever, permite-nos, desde logo, constatar que, conforme se refere no recurso, o tribunal não deu relevo ao critério específico de determinação da pena conjunta, não tendo cuidado de consignar os factos praticados pelo arguido que integraram os crimes que se encontram em concurso – não o tendo feito nem expressamente, nem por reporte às respetivas sentenças condenatórias – nem qualquer facto relativo à personalidade do agente ou às suas atuais condições de vida. Limitou-se a identificar os processos integrados no concurso e as condenações dos mesmos constantes e a tecer considerações de carácter genérico sobre a operação legal de formação da pena conjunta, desacompanhadas de qualquer tipo de referência aos factos em concreto. Com efeito, nenhuma palavra foi escrita sobre os factos criminosos, sobre as datas, sobre as circunstâncias concretas do seu cometimento, ou sobre as informações recolhidas e consignadas no relatório social atinentes ao percurso de vida do arguido e à sua situação sócio económica, cultural e familiar.

É, assim, manifestamente insuficiente a fundamentação constante da sentença para nos permitir avaliar se o tribunal recorrido valorou corretamente a conduta do arguido na sua globalidade, não se revelando possível determinar que conexões ou ligações é possível estabelecer entre os diversos crimes, se entre as diversas condutas podemos desvendar uma continuidade reveladora de uma personalidade tendencialmente criminosa ou se a prática sucessiva dos crimes integrados no concurso constitui mera pluriocasionalidade.

De acordo com a lei processual penal, concretamente nos termos do artigo 379.º CPP, sentença nula é aquela que se encontra inquinada por vícios decorrentes ou do seu conteúdo ou da sua elaboração. A nulidade da sentença prevista no artigo 379º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, ocorre nos casos em que a decisão não contenha fundamentação que inclua o elenco dos factos provados e não provados, a motivação da convicção probatória realizada com o exame crítico das provas e, bem assim, os motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, o que, manifestamente, sucede na sentença sob recurso, nos termos acima explanados. Com efeito, nos termos do disposto no artigo 374º, nº 2 do CPP, depois do relatório e antes do dispositivo, a sentença penal deverá conter a fundamentação, na qual deverão enumerar-se os factos provados e não provados e na qual deverão consignar-se os motivos de facto e de direito que sustentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal examinadas criticamente. Ou seja, para além da enumeração dos factos provados e não provados e da respetiva motivação, o julgador deverá exarar na fundamentação da sentença os juízos e raciocínios que efetuou e que o levaram decidir num determinado sentido, devendo concretizar as razões estruturantes da sua decisão, de forma permitir aos destinatários da peça a reconstrução do percurso mental sustentador do juízo decisório, permitindo-lhes, ademais, verificar que a decisão tomada não foi arbitrária.

Ora, conforme acima referimos, confrontando a fundamentação da sentença recorrida, constatamos que nada se consignou quanto aos factos relevantes para a realização das operações de cúmulo impostas por lei, tendo-se inviabilizado totalmente o escrutínio do decidido. Não o tendo feito, o tribunal deixou dúvidas sobre o percurso lógico e racional que conduziu à fixação da pena única, o que se revela inadmissível, pois que a ausência da racionalidade corresponde à ausência total de fundamentação. Deste modo se evidencia que a sentença sindicada não respeitou o dever de fundamentação imposto pelo artigo 374.º, nº 2 do CPP, pelo que enferma da nulidade prevista no artigo 379.º, nº 1.º, al. a) do CPP.

A declaração de nulidade da sentença por absoluta falta de fundamentação determinará a remessa dos autos ao tribunal recorrido para o respetivo suprimento. Não acompanhamos, de todo o entendimento propugnado pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso, quando defende que “(…) nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 379.º do Código de Processo Penal deverá ser suprida pelo Tribunal ad quem (…)”. Com efeito, não obstante na referida norma se consignar que “2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”, de tal estatuição não decorre, a nosso ver, a imposição ao tribunal de recurso da obrigação de suprir todas as nulidades detetadas na sentença recorrida. Tal dever reportar-se-á, outrossim, apenas às nulidades cujo suprimento, pela natureza e características daquelas (6), esteja ao alcance do tribunal de recurso, o que manifestamente não sucede com a nulidade por absoluta falta de fundamentação ao nível factológico que inquina a sentença recorrida. A este propósito Pinto de Albuquerque, em anotação ao nº 2 do artigo 379º do CPP expressa um entendimento ainda mais limitador das possibilidades de suprimento das nulidades pelo tribunal de recurso – pese embora reportado à redação do referido preceito anterior à atualmente vigente, na qual o suprimento das nulidades era referenciado como um “poder” e não como um “dever” atribuído ao tribunal de recurso, o que em nada afeta a razão de ser da posição assumida – escrevendo que “(…) O tribunal de recurso tem o poder de “suprir” as nulidades da sentença. Mas este poder é muito reduzido na prática, porque ele só poderá ser exercido negativamente. Isto é, o tribunal de recurso só pode exercer o poder de suprir a nulidade nos casos em que o tribunal recorrido se tenha pronunciado sobre questões de que não podia conhecer (nulidade da 2ª parte da alínea c) do nº 1). Neste caso, o tribunal superior exerce o seu poder de suprimento da nulidade simplesmente declarando suprimida na sentença recorrida a parte atinente à questão que não deveria ter sido conhecida. Em todos os outros casos, o tribunal de recurso não pode exercer o seu poder de suprimento, pois esse exercício corresponderia à supressão de um grau de jurisdição (acórdão do TRL, de 14.04.2003, in CJXXVII, 2,143, e acórdão do TRE, de 8.7.2003, in CJ, XXVIII,4, 252). A sentença deve ser anulada e os autos devem baixar ao tribunal a quo para que nele se proceda à elaboração de nova sentença, completando-se a sentença com as “menções” em falta (nulidade da alínea a) do nº1) (…).” (7)

*

Acresce que, em nova e ostensiva violação das regras legalmente estabelecidas para a realização do cúmulo jurídico, a sentença recorrida teve em conta para a fixação dos limites mínimo e máximo da respetiva moldura sancionatória, as penas únicas impostas nos processos integrados no concurso, ao invés de ter considerado as penas parcelares aí fixadas (desfazendo os anteriores cúmulos), desrespeitando, assim, flagrantemente o disposto no artigo 77.º, n.º 2, aplicável ex vi do art.º 78.º do CPP, acima transcritos. Assim, e considerando que a declaração de nulidade determinará a remessa dos autos ao tribunal recorrido para o respetivo suprimento, afigura-se-nos revestir-se de utilidade a sinalização de tal erro de julgamento em matéria de direito de que igualmente padece a sentença recorrida.

*

A decisão que antecede relativa à verificação de nulidade da sentença prejudica obviamente o conhecimento da segunda questão acima enunciada.

***

Nesta conformidade, impõe-se determinar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para reforma da sentença com suprimento da nulidade assinalada, mostrando-se prejudicado o conhecimento das demais questões subsidiariamente suscitadas pelo recorrente.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, decidindo consequentemente:

- Declarar nula a sentença recorrida por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alínea a), primeira parte, por referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do CPP.

- Determinar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para reforma da sentença pelo mesmo tribunal, devendo a sentença reformada proceder ao suprimento da nulidade assinalada e corrigir o erro de julgamento quanto às penas a ter em conta para a determinação da moldura sancionatória do cúmulo jurídico a efetuar.

Sem custas.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 12 de julho de 2023.

Maria Clara Figueiredo

J. F. Moreira das Neves

Maria Filomena Soares

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1 Acórdão do STJ, de fixação de Jurisprudência nº 9/2016 de 9 de junho “O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso.”

2 Acórdão do STJ, de 17.03.2004, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar, disponível em www.dgsi.pt.

3 Acórdão do STJ de 18.11.2009, relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes, disponível em www.dgsi.pt.

4 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pp. 291.

5 Cfr. neste sentido, por todos, os excelentes acórdãos do STJ, relatados pelo Conselheiro Raúl Borges, de 11.05.2011, de 18.01.2012 e de 12.07.2012, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

6 Como admitimos que poderia suceder caso o tribunal recorrido tivesse procedido a uma insuficiente exposição da valoração que da factualidade relevante decidira fazer, mas tivesse aportado para a sentença tal factualidade, como sucedeu na situação apreciada no acórdão desta Relação, de 17.03.2015, relatado pela Desembargadora Ana Barata Brito, disponível em www.dgsi.pt.

7 Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, Lisboa, 2018, página 985, na anotação 12. ao artigo 379º.