Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
99/22.9GBSTC.E1
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: CRIME DE AMEAÇA
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O bem jurídico protegido pelo art. 153º é a liberdade de decisão e de acção.
O tipo em análise configura um crime de perigo e de mera actividade, pois que basta que, na perspectiva do agente e à luz das regras de experiência comum, tomando por referência a capacidade de entendimento e decisão do homem médio, o anúncio de um mal futuro que corresponda a um crime, em que se traduz a ameaça, seja apto a causar medo, inquietação ou perturbação da liberdade de determinação.

Não se exige que tenha sido provocado, em concreto, o medo ou inquietação. Mas apenas que a ameaça seja adequada, em termos de juízo de causalidade adequada, a provocar no visado medo ou inquietação ou afectar a sua paz individual ou liberdade de determinação.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
No Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo Local Criminal de …- Juiz …, mediante acusação do Ministério Público, foi julgado em processo comum, perante o tribunal singular, com documentação das declarações oralmente prestadas em audiência, o Arguido a seguir identificado:

AA, filho de BB e de CC, nascido a …1956, solteiro, BI n.º …, residente no …, ….

A final, foi decidido julgar a acusação parcialmente procedente, e, em consequência:

- Absolver o arguido AA, da prática, de um crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22, n.ºs 1 e 2, al. c), 23, 143, n.º 145, n.º 1, al. a) e n.º 2, e art.º 132, n.º 2, al. l), do C. Penal.

- Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, de - DOIS CRIMES DE AMEAÇA AGRAVADA, p. e p. pelos art.ºs 153, n.º 1, 155, n.º 1, als a) e c), e 132, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e de - DOIS CRIMES DE INJÚRIA AGRAVADA, p.e p. pelos arts. 181, 184 e 132, n.º 2, l), do Código Penal, nas penas parcelares de - 1 (um) ano de prisão a cada um dos crimes de ameaça agravada praticados e de - 2 (dois) meses e 7 (sete) dias de prisão a cada um dos crimes de injúria agravada praticados, e, em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77.º do Código Penal, na pena única de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão efetiva.

Inconformado, o arguido AA, interpões recurso da referida decisão, que motivou formulando as seguintes conclusões:

“1.ª O Facto Provado 6 “Vocês vão se foder, quando vos apanhar sem farda”, revela-se insuficiente para ser valorado pelo Tribunal a quo para fundamentar a solução de direito alcançada;

2.ª No exame crítico da prova, concluiu o Mmo Juiz a quo:

“Quanto à matéria das ameaças, parece-nos resultar confirmada no depoimento dos militares da GNR, pelo menos, a expressão “Vocês vão se foder, quando vos apanhar sem farda” descrita no facto(s) provado(s) 6-. Quanto às restantes expressões descritas nesse segmento da acusação pública parece-nos que não foram confirmadas nos depoimentos (facto(s) não provado(s) a-).”

3.ª Concluindo, sem suporte fáctico: “Aceita-se que o arguido está a anunciar algo para o futuro – “quando vos apanhar sem farda” – sendo que a locução “vão se foder aqui só pode estar associada, pelo menos, a um atentado contra a integridade física dos militares.”

“Não se afastando que se possa entender, também, como uma ameaça de morte, já que expressões como “vou-te foder” ou “fodo-te” também podem ter esse significado e interpretação.”

“Seja como for a ameaça sempre será agravada por força de visar militares da GNR no exercício das suas funções e por causa delas.”

4.ª Resulta do Facto Provado (6) que, por um lado, não encerra o mesmo em si um “mal”, um facto maléfico, injusto e grave, consistente em danos físicos, económicos ou morais, a perpetrar;

Por outro lado, não decorre de tal locução que tal “mal”, ocorrência, dependeria da vontade do agente;

5.ª Desta forma, tal como resulta da Sentença posta em crise, o Tribunal a quo não fez um correto uso do Facto Provado (6) que sopesou na condenação do arguido, ora Recorrente na prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153.°, n° 1 e artigo 155.° n° 1, alínea a), ambos do Código Penal, pelo que deve ser revogada a sentença proferida e absolvido o arguido da pratica do crime;

6.ª Atenta a factualidade provada constante da Decisão, terá de concluir-se pela não verificação dos respectivos elementos típicos do crime de Ameaça, impondo-se conclusão diversa da decidida pela Sentença recorrida, devendo o arguido ser absolvido, por violação do disposto no artigo 153.º do Código Penal.

7.ª Para que o crime de ameaça se concretize, deverá o julgador atentar se a ameaça em concreto é adequada e susceptível de ser levada a sério pelo destinatário em concreto, para o efeito, deve atender-se ao critério do homem comum, conjugado com as características específicas do ameaçado e o circunstancialismo em que a ameaça foi proferida, bem como à personalidade do agente, só assim se podendo alcançar o âmago desta norma.

8.ª “O presente crime é de qualificar como delito de carácter circunstancial, já que a valoração jurídico-penal da acção desenvolvida deve analisar-se a partir das expressões proferidas, das acções cometidas, do contexto que elas tiveram lugar, das condições pessoais de ameaçante e ameaçado e demais circunstâncias que sirvam para contextualizar o facto. Por outro lado, a ameaça deve ser séria e credível, sob o ponto de vista quer do emissário, quer do destinatário.” – AC. T.R. Coimbra de 04-12-2019, proc. 49/19.0GHCVL.C1.

9.ª Da decisão proferida não resultou provado que a detenção do arguido, nos moldes em que foi concretizada, teve como precedência a prática de crime; Tal não foi nem alegado nem provado; Assim como não foi feita a devida ponderação se era adequada e proporcionada à gravidade dos factos, e até, necessária face às específicas finalidades que a admitem e justificam, tornando ilegítima a conduta dos agentes da GNR, não se enquadrando no cumprimento dos seus deveres profissionais, devendo ser considerados não provados os factos 1,3 e 4;

10.ª Desta contextualização, resulta de forma clara que o arguido, de 67 anos, com sérias dificuldades de vida, conforme consta da sentença quanto às suas condições pessoais, com anterior contacto com o sistema judiciário, não terá apetência, competência, compleição física e muito menos capacidade, para representar um perigo, a não ser para si próprio!

11.ª As autoridades policiais estão habituadas, são formadas e treinadas, para terem “ouvido-mudo”, lidarem com os “Salvadores” com quem se cruzam diariamente, dificilmente se acreditando que tal expressão “vocês vão se foder, quando vos apanhar sem farda” seja apta a constituir uma ameaça e muito menos apta a produzir medo e receio nos militares ofendidos.

12.ª Refere apenas a testemunha/ofendido, o militar DD, quando questionado sobre o que sentiu com as ameaças, “é sempre complicado porque a gente nunca sabe o que é que pode acontecer”. Depoimento vago, impessoal, não se referindo ao arguido em concreto, sem qualquer facto de onde se retire alteração de vida, hábitos, comportamentos, que exteriorizem um qualquer temor ou medo face à referida expressão.

13.ª “Socorramo-nos do ensinamento de Cristina Líbano Monteiro referindo-se aos destinatários da acção: possuem, nalgumas das hipóteses deste tipo legal, especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum. Membros da Forças Armadas, militarizadas ou de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios. O grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo não há-de medir-se, por conseguinte, pela capacidade de afetar a liberdade física ou moral de ação de um homem comum.”

14.ª A locução descrita como ameaça, mais não é que uma violência verbal, mas não mais do que isso, incapaz de encerrar em si uma qualquer ameaça séria com representação de perigo para os dois militares da GNR, uma vez que não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar ou manietar comportamento dos dois Militares, tanto mais que estes possuem especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que não assistem ao cidadão comum;

15.ª Errou ainda o Tribunal a quo em duas vertentes: ao desconsiderar/não valorizar as declarações do arguido, sem fundamentar tal opção e, considerar preenchidos os elementos tipo do ilícito criminal de injúria;

16.ª As declarações do arguido são um meio de defesa e não podem, nem em abstracto, nem em concreto, ser menos credíveis do que as dos ofendidos, contudo, o tribunal a quo não valorou a versão dos factos apresentada pelo arguido, mas não fundamenta porque não acreditou na mesma.

17.ª Facto Provado

“3-Nessa sequência foi dada voz de detenção ao arguido, tendo sido usada a força estritamente necessária para a sua neutralização e algemagem, o que o arguido a todo o custo tentou impedir, tendo sido necessária a algemagem junto a uma parede.

Constando do exame critico da prova que:

“No caso que nos ocupa, no que tange aos factos descritos na acusação pública, resulta das declarações do arguido uma negação dos mesmos, que os reputa de mentira ou invenção….

“Não há, com efeito, indício de relevo - para além das declarações do arguido, que não nos parecem credíveis - que os militares tenham sido agressivos com ele; o arguido é que se mostrou agressivo com os militares, e logo nas suas palavras (facto(s) provado(s) 1- e 2-), dificultando, injustificadamente, a sua atuação;

18.ª Em suma, apoiando-se exclusivamente no depoimento dos militares/ofendidos, não cuidou o Tribunal a quo de fundamentar porque considerou que foi o arguido quem dificultou, injustificadamente, a atuação dos agentes e, porque desconsiderou as declarações do mesmo, pelo que devem os factos 1,3 e 4 ser dados como não provados;

19.ª Sendo certo que as palavras do arguido foram proferidas nesse contexto de interpelação, algemagem e detenção, de clara exaltação emocional, sem intenção de ofender os militares da GNR, e que, portanto, não pode ser condenado por injúria agravada.

20.ª As palavras proferidas não foram dirigidas aos militares da GNR em causa, mas à actuação dos mesmos e que, mesmo que o tivessem sido, não ultrapassaram os limites da mera ofensa verbal e não pretenderam, de forma alguma atentar contra a honra dos ofendidos

21.ª Tais expressões não podem constituir ou tipificar o crime de injúria previsto e punido no art.º 181 e 184.º do C.P, porquanto as mesmas não são susceptíveis por si, de causar ofensa da honra e consideração ou de imputar factos ainda que sob a forma de suspeita.

22.ª no que respeita à “injúria”, nem tudo o que causa contrariedade e se apresenta como desagradável, grosseiro e pouco educado, mesmo até quando formalmente pareça integrar o tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos. A lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua suscetibilidade ou melindre. A valoração deve fazer-se de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural.”; (Nesse sentido, vide Acórdão TRC de 06-01-2010, Proc. n° 862/08.3TAPBL.Cl, e Ac. TRP, proc.n.427/13.8GAARC.Pl, I." secção 24/04/2016)

23.ª Exigia-se pois ao julgador a quo que percebesse o contexto e o ambiente de tensão em que foram pronunciadas tais palavras, desvalorando-as penalmente, pois que tais expressões não se dirigiram às pessoas em concreto, mas como reacção à actuação dos militares, pelo que não constituem a violação do bem jurídico que se pretende proteger quando se tipifica os comportamentos descritos no art.º181.º do C.P.

24.º Ao proferir a decisão recorrida o Tribunal a quo violou manifestamente os artigos: 153, n.º 1, 155, n.º 1, als a) e c), e 132, n.º 2, al. l), e, 181.º, 184.º e 132.º/2-l) todos do Código Penal e artigo 127.º e 374.º/2 e 379.º/1-a) do CPP, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e manifesto erro de julgamento por falta de elementos dos tipo de crimes de ameaça agravada e Injuria agravada e na subsunção dos factos ao direito nos termos expostos.

Termos em que, sempre com o Douto suprimento de V. Exas.,

Deve o presente recurso ser apreciado, merecendo provimento, com a consequente revogação da sentença recorrida e substituída por outra que determine a absolvição do arguido AA.

Com o que farão V. Exas. a Acostumada JUSTIÇA!”

O Ministério Público respondeu às motivações de recurso apresentado pelo Arguido/Recorrente, pugnando pela improcedência do mesmo.

Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido do não provimento do recurso.

O Recorrente, notificado nos termos e para os efeitos previstos no art.º 417º, nº 2 do CPP, quedou-se pelo silêncio, nada tendo vindo alegar.

Efectuada a conferência prevista no art.º 419º do CPP, cumpre agora apreciar e decidir.

FACTOS CONSIDERADOS PROVADOS NA SENTENÇA RECORRIDA

São os seguintes os factos que a sentença recorrida indica como estando provados:

“1.O Acusação pública

1- No dia 28-04-2022, cerca das 18H49, na Praça …, em …, o arguido, dirigindo-se aos militares da GNR EE e DD, - os quais se encontravam devidamente uniformizados, envergando o uniforme oficial da Guarda Nacional Republicana -, e após estes lhe terem perguntado se possuía algum tipo de produto estupefaciente, e disse-lhes “Vocês não me revistam, vão para o caralho”.

2- Foi advertido pelo Militar da GNR DD que se continuasse com o mesmo comportamento seria dada voz de detenção, ao que o arguido respondeu “Vão se foder, vão para o caralho”.

3- Nessa sequência foi dada voz de detenção ao arguido, tendo sido usada a força estritamente necessária para a sua neutralização e algemagem, o que o arguido a todo o custo tentou impedir, tendo sido necessária a algemagem junto a uma parede.

4- Seguidamente, os referidos Militares da GNR efetuaram uma revista de segurança ao arguido e foi conduzido para o Posto da GNR de …, onde o arguido continuou com comportamento agressivo e tentou diversas vezes agredir o Militar da GNR DD, através de pontapés.

5- O que não logrou concretizar por circunstâncias alheias à sua vontade, pois não logrou atingi-lo no seu corpo.

6- Durante a elaboração do expediente, o arguido dirigindo-se aos dois referidos Militares da GNR, EE e DD, disse-lhes “Vocês vão se foder, quando vos apanhar sem farda”.

7- Pelas 19H20, o arguido ao sair do mencionado Posto da GNR disse “Vão para o caralho, seus filhos da puta.” dirigindo-se, pelo menos, ao Militar da GNR DD, que ouviu tais palavras.

8- O arguido conhecia a qualidade de Militares da GNR dos referidos ofendidos EE e DD e de que os mesmos se encontravam no exercício das suas funções.

9- Sabia que conduta descrita no facto(s) provado(s) 4- poderia provocar lesões e dores físicas no militar da GNR DD, o que o arguido quis, mas não logrou concretizar por motivos alheios à sua vontade.

10-Sabia que as expressões descritas em 1-, 2-, 7- (esta últimas ouvidas, pelo menos, pelo militar da GNR DD), eram aptas a ofender a honra e bom nome profissional dos Militares da GNR, o que quis e conseguiu.

11-Sabia que a expressão descrita em 6-. era adequada a causar medo e inquietação aos referidos militares, o que quis e conseguiu.

12-O arguido agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que tais comportamentos lhe eram proibidos e punidos pela lei penal como crimes, e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação

Outra factualidade

13-Quanto às condições pessoais do arguido apurou-se que está presentemente reformado; encontrando-se já antes de ter atingido a idade da reforma em situação de inatividade laboral, desde há muito tempo; esteve a receber o rendimento mínimo (RSI), de cerca de 180 euros; atualmente recebe cerca de 300 euros, a título de reforma; vive numa casa que refere estar em situação de abandono, sem água e sem luz; é ajudado pela Santa Casa da Misericórdia; costuma fazer a sua higiene nos balneários públicos de …; admite que consome vinho, mas não reconhece tenha dependência do álcool ou de drogas.

14-O arguido possui o(s) seguinte(s) antecedente(s) criminal(ais) registado(s):

a. por crime de importunação sexual e de ameaça agravada, praticados em março de 2019, foi condenado por decisão transitada em julgado a 18 de dezembro de 2020, na pena de 130 dias de multa à taxa diária de 5 euros - processo 414/19.2…;

b. por crime de coação agravada e de ofensa à integridade física praticados em 26 de julho de 2018, foi condenado por decisão transitada em julgado a 26 de janeiro de 2021, na pena de 190 dias de multa e na pena de 1 ano e 8 meses de prisão suspensa por 2 anos e 6 meses com deveres/regras de conduta [não importunar os ofendidos, por qualquer meio, na sua pessoa ou propriedade ii) responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social iii)receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência, bem como do pagamento dos montantes indemnizatórios nos termos determinados iv) informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso obter autorização prévia do magistrado responsável pela execução para se deslocar ao estrangeiro] - processo 117/18.5…;

c. por crime de condução sob efeito do álcool e de condução sem habilitação legal praticados em 22 de setembro de 2022 foi condenado na pena única de 100 dias de multa à taxa diária de 5 euros e na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 7 meses - processo 267/22.3…”

FACTOS CONSIDERADOS NÃO PROVADOS

“1. O Acusação pública

a- Que no momento descrito no facto(s) provado(s) 6- o arguido disse, ainda, “vou vos tirar a farda”, “vou dizer que me bateram e vão se foder”.

b- Que as expressões descritas no facto(s) provado(s) 7- foram dirigidas, bem assim, à militar da GNR EE, que também as ouviu.”

A MOTIVAÇÃO DA DECISÃO SOBRE MATÉRIA DE FACTO

PROFERIDA PELO TRIBUNAL “A QUO”

O Tribunal a quo fundamentou do seguinte modo a sua convicção quanto aos factos que considerou provados:

“Na solução da matéria de facto procedeu o tribunal à análise da globalidade da prova produzida/examinada em audiência de julgamento, a saber [todas as declarações/depoimentos adiante indicados foram objeto de gravação pelo que a presente indicação constitui um mero apanhado sintético do seu conteúdo não constituindo transcrição nem dispensando a audição integral desse registo]:

- prova testemunhal:

---» EE, militar da GNR, referenciou ao tribunal, em síntese e no essencial, que nos íamos a circular avistámos um individuo a sair de um casa de uma pessoa conotada com o consumo de estupefacientes; quando nota o carro da patrulha apressa o passo; intercetámos o senhor; a abordagem foi logo agressiva de faltar ao respeito como está escrito no auto de notícia; já não me lembro bem do que disse; nos queríamos saber se ele estava na posse de algum produto; recordo-me que o levámos para o Posto da GNR; recordo-me de ele tentar dar um pontapé no camarada; recordo-me dele ter dito “se nos apanhasse sem farda ia ser diferente”; confirma a expressão que quando os apanhasse sem farda que os ia foder;---

---» DD, militar da GNR, referenciou ao tribunal, em síntese e no essencial, que - isto foi no dia 28 de abril e ao passarmos na Rua … avistámos o senhor a sair de uma habitação suspeita; quando nos vê apressa o passo; quando o conseguimos abordar começou logo a ser agressivo; mandou-nos para o caralho; foi advertido que se continuasse com esse comportamento íamos dar voz de detenção; e ele disse vão-se foder vão para o carvalho; durante a revista encontramos duas pedras de uma substância supostamente haxixe; quando o conduzimos ao Posto ele com as pernas estava sempre a tentar pontapear; disse que se nos apanhasse sem farda que nos fodia; e assim que saiu do Posto começa aos gritos “vão para o caralho seus filhos da puta”; o que é que sentiu com as ameaças? é sempre complicado porque a gente nunca sabe o que é que pode acontecer;---

- prova por declarações do arguido:

---» AA, referenciou ao tribunal, em síntese e no essencial, que - agarram-me ao pé da Câmara; tudo para cima do carro; não perguntaram se eu trazia produto estupefaciente; é mentira; cortaram-me com as algemas e o INEM foi ao Posto; é tudo mentira; não fiz nada de mal; eles inventaram estas coisas; ---

Quanto às suas condições pessoais referenciou ao tribunal, em síntese e no essencial, que -estou reformado há já muito tempo; estava a receber o rendimento mínimo, cerca de 180 euros; agora recebe cerca de 300 euros, de reforma; vive numa casa abandonada, sem água e sem luz; conta com o apoio da Santa Casa da Misericórdia; costuma fazer a sua higiene aqui em …; nas casas de banho públicas; consome drogas? Não, só vinho tinto; não reconhece ter dependências; a minha irmã está em …; estou sozinho, por minha conta; (quanto á casa onde habita) o dono daquilo já faleceu; ---

- prova documental:

- auto de notícia fls. 5-ss;

- certificado do registo criminal.

No domínio do exame crítico da prova realça-se, salvo quando a lei dispuser diferentemente, o princípio da «livre apreciação da prova» (cf., artigo 127.º do Código de Processo Penal), princípio que é «direito constitucional concretizado», que há-de traduzir-se numa valoração «racional», «crítica», «lógica» (cf., Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Ed., UCE, pág. 329).

No caso que nos ocupa, no que tange aos factos descritos na acusação pública, resulta das declarações do arguido uma negação dos mesmos, que os reputa de mentira ou invenção, pelo que importa avaliar se os depoimentos dos militares intervenientes e ouvidos em julgamento confirmam esses mesmos factos, pois parece-nos que nada haverá a assinalar contra a credibilidade dos seus depoimentos.

No que tange à abordagem inicial do arguido, e quanto às palavras proferidas pelo arguido nessa abordagem inicial, parece-nos que as mesmas resultam confirmadas no depoimento do militar DD - facto(s) provado(s) 1- e 2-.

O arguido foi detido e no quadro da prova produzida/examinada em audiência de julgamento se aceita como correto, bem assim, o descrito no facto(s) provado(s) 3-;

Não há, com efeito, indício de relevo - para além das declarações do arguido, que não nos parecem credíveis - que os militares tenham sido agressivos com ele; o arguido é que se mostrou agressivo com os militares, e logo nas suas palavras (facto(s) provado(s) 1- e 2-), dificultando, injustificadamente, a sua atuação.

O descrito no facto(s) provado(s) 4- e 5- - e ainda que seja genérico, mas a prova produzida em julgamento também não permite concretização - parece-nos confirmado nos depoimentos dos militares da GNR.

Quanto à matéria das ameaças, parece-nos resultar confirmada no depoimento dos militares da GNR, pelo menos, a expressão “Vocês vão se foder, quando vos apanhar sem farda” descrita no facto(s) provado(s) 6-.

Quanto às restantes expressões descritas nesse segmento da acusação pública parece-nos que não foram confirmadas nos depoimentos (facto(s) não provado(s) a-).

Relativamente às expressões descritas no facto(s) provado(s) 7-, confirmam-se, mas apenas na parte em que são dirigidas ao militar DD, pois parece-nos que não se confirmam no depoimento de EE, possivelmente por não as ter ouvido ou delas não se recordar (facto(s) não provado(s) b-).

Os factos de índole subjetiva resultam provados por mera presunção - facto(s) provado(s) 8-12-, e levando-se em consideração apenas o que é essencial/relevante dessa matéria.

A demais factualidade apurada tem por base as declarações do arguido e o certificado do registo criminal - facto(s) provado(s) 13- e 14-.”

O OBJECTO DO RECURSO DO ARGUIDO

Perante os factos considerados provados pela 1ª instância, importa agora curar do mérito do recurso, tendo-se em atenção que é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer - Cfr. o Ac do STJ de 3.2.99 in BMJ 484, pág 271; o Ac do STJ de 25.6.98 in BMJ 478, pág 242; o Ac do STJ de 13.5.98 in BMJ 477, pág 263; SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES in “Recursos em Processo Penal” cit., págs. 74 e 93, nota 108; GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, pág. 335; JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES in “Recursos”, “Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, 1988, p. 387; e ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363).«São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal “ad quem” tem de apreciar» (GERMANO MARQUES DA SILVA, ibidem).

As questões essenciais suscitadas pelo Recorrente (nas conclusões da sua motivação) são as seguintes:

1) Se a sentença condenatória recorrida padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (por isso que a expressão “Vocês vão se foder, quando vos apanhar sem farda”, revela-se insuficiente para ser valorado pelo Tribunal a quo para fundamentar a solução de direito alcançada).

2) Se os factos considerados provados não integram o crime de ameaça pelo qual o Arguido ora recorrente foi condenado;

3) Se a Sentença condenatória recorrida valorou incorrectamente as provas produzidas, violando o princípio da livre apreciação de prova (art.º 127º do C.P.P.).

4) Se a sentença recorrida qualificou erroneamente os factos, do ponto de vista jurídico - crime de Injúria

O MÉRITO DO RECURSO DO ARGUIDO

1) A PRETENSA INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA PARA A DECISÃO.

Nas conclusões da motivação o recorrente invoca, existência do vício previsto na al. a) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal.

No regime da designada revista alargada prevista neste preceito legal, o tribunal de recurso não reaprecia a prova, antes se limitando à detecção e sancionamento de tais vícios, a saber: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.

Trata-se de vícios intrínsecos da sentença que por isso, e nos termos da lei, têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que exclui, para a sua demonstração, o recurso a elementos a ela [decisão] alheios, ainda que constem do processo.

Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade dada como provada na sentença não permite, por exiguidade, uma decisão de direito, ou seja, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto]. Dito de outra forma, existe o vício quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria de facto contida no objecto do processo relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., pág. 69).

Como já se disse, o vício tem que existir no contexto da própria decisão, não podendo ser demonstrado através do confronto desta com a concreta prova produzida, a não ser que esta ali conste. A não ser assim, resta apenas, verificados os respectivos pressupostos, lançar mão da impugnação ampla da matéria de facto, prevista no art. 412º do C. Processo Penal.

O recorrente afirma a verificação do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada porque, e em síntese, a expressão «“Vocês vão se foder, quando vos apanhar sem farda”, revela-se insuficiente para ser valorado pelo Tribunal a quo para fundamentar a solução de direito alcançada».

É manifesto o erro de perspectiva em que labora o Recorrente, ao confundir o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão com uma pretensa insuficiência da matéria de facto apurada pelo tribunal “a quo” para fundamentar a sua condenação como co-autor de dois crimes de ameaça. Se, porventura, os factos considerados provados pelo tribunal “a quo” não são bastantes para se poder imputar ao Arguido ora recorrente a co-autoria de dois crimes de ameaça, daí não se segue que a matéria de facto apurada fique aquém do necessário para se poder proferir uma decisão de condenação ou de absolvição do arguido (única hipótese em que, então sim, ocorreria o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto na al. a) do nº 2 do art. 410º do CPP). Se os factos considerados provados e não provados pelo tribunal “a quo” são todos os que constavam da acusação, da contestação ou os que resultaram da discussão da causa e, todavia, não chegam para fundamentar a condenação do arguido, então se, não obstante, a sentença recorrida o condenou em lugar de o ter absolvido, o que ocorre é um erro na qualificação jurídica da factualidade apurada, e não o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Não assiste razão, pois, ao Recorrente, improcedendo, consequentemente, o recurso quanto a esta questão.

2) SE A SENTENÇA RECORRIDA QUALIFICOU ERRONEAMENTE A FACTUALIDADE CONSIDERADA PROVADA, PORQUANTO OS FACTOS CONSIDERADOS PROVADOS NÃO INTEGRAM O TIPO LEGAL DE CRIME DE AMEAÇA PELO QUAL O ARGUIDO ORA RECORRENTE FOI CONDENADO.

Na tese do Arguido/Recorrente, a sentença recorrida qualificou erroneamente a matéria factual apurada, porquanto, aos seus olhos, deveria ser proferido um juízo de absolvição no que concerne aos crimes de ameaça que lhe eram imputados.

Quid juris?

Preceitua o artigo 153°, nº 1 do Código Penal que “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.

Por seu turno, a al. a) e c) do nº 1 do art. 155º dispõe que “quando os factos previstos nos artigos 153º e 154º forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; (…) c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas; (…) o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do art. 153º, (…)”.

O bem jurídico “protegido pelo art. 153º é a liberdade de decisão e de acção. As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade” (Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, pág. 342).

O tipo em análise configura um crime de perigo e de mera actividade, pois que basta que, na perspectiva do agente e à luz das regras de experiência comum, tomando por referência a capacidade de entendimento e decisão do homem médio, o anúncio de um mal futuro que corresponda a um crime, em que se traduz a ameaça, seja apto a causar medo, inquietação ou perturbação da liberdade de determinação.

Não se exige que tenha sido provocado, em concreto, o medo ou inquietação. Mas apenas que a ameaça seja adequada, em termos de juízo de causalidade adequada, a provocar no visado medo ou inquietação ou afectar a sua paz individual ou liberdade de determinação.

«O que se exige para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas circunstâncias, não sendo necessário que, em concreto se chegue a provocar o medo ou a inquietação» (Figueiredo Dias, Actas da Comissão Revisora do Código Penal, Acta nº 45, p. 500).

«O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo - individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado» (Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, anotação ao art. 153º).

Quid juris?

Para que se dê por preenchido o tipo objectivo do crime de ameaça, é necessário, desde logo, que o mal ameaçado seja futuro.

Tornar-se-ia, pois, necessário que a ameaça anuncie um mal futuro que, objectiva e subjectivamente, seja idóneo a provocar medo ou inquietação na pessoa do ameaçado e que a sua concretização apareça como apenas dependente da vontade do agente que a profere (cfr. acs. desta Relação de 25-01-2006 e 21-06-2006, em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ procs. nº 0544124 e 0612040).

No caso sub judicio, nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas, o Arguido, dirigindo-se aos ofendidos, terá proferido a seguinte expressão:

“Vocês vão se foder, quando vos apanhar sem farda”

Ora, a expressão que é imputada ao arguido terá sido proferida num contexto onde não está presente qualquer violência física, denotando da parte do seu autor a intenção de ameaçar os ofendidos com as acções que indicou.

Por outro lado, como já referido, o critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação é um critério objectivo individual, isto é, o critério do homem comum, médio (pessoa adulta e normal), tendo em conta as características individuais do ameaçado.

Assim, tendo presente o contexto em que a supra mencionada frase surgiu e foi proferida, dúvidas não subsistem de que a mesma era adequada a gerar medo ao destinatário médio.

O que é suficiente para preencher o tipo legal tal como hoje surge delineado, não sendo necessário que os ofendidos, em função das ameaças proferidas, tenham passado a viver em permanente estado de pânico, medo e angústia.

Como certeiramente notou o Digno Magistrado do Ministério Público, nas suas contra motivações de recurso –, «O crime de ameaça, cuja prática é imputada ao arguido, tutela, de forma específica, a liberdade de decisão e de acção.

Com efeito, como escreve Américo Taipa de Carvalho2, “As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam, naturalmente, a paz individual, que é condição de uma verdadeira liberdade”.

São assim elementos objectivos deste tipo de crime:

- o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal futuro, cuja ocorrência depende exclusivamente da sua vontade;

- que esse mal constitua um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou contra bens patrimoniais de considerável valor;

- o conhecimento da ameaça por parte do sujeito passivo, ou seja, a necessidade de que ela chegue ao seu destinatário;

- que o aludido anúncio constitua meio adequado à criação de medo ou inquietação, ou a prejudicar a liberdade de determinação do sujeito passivo;

- que o agente tenha actuado com dolo, em qualquer das suas modalidades, as quais se mostram previstas no artigo 14.º do Código Penal.

Neste quadro, impõe-se concluir que, quando o arguido anuncia aos militares da GNR que o evento ocorrerá quando os apanhar sem farda está, sem margem para dúvida, a projectar a ameaça para o futuro, porquanto, desde logo, naquele momento, os elementos policiais encontravam-se em serviço, devidamente uniformizados. Por outro lado, a declaração emitida revela apenas um mal que depende exclusivamente da sua vontade, na medida em que não está condicionado a qualquer factor externo fora do controlo do agente.

Também a mensagem chegou aos destinatários, que ali estavam perante o arguido e procederam à sua detenção. Nenhuma dúvida se levanta, do mesmo modo, quanto à verificação de conduta dolosa, dada como provada na sentença recorrida.

No que respeita ao mal anunciado com a expressão “Vocês vão se foder, quando vos apanhar sem farda” está implícito, em primeira linha, que se trata do anúncio de um mal contra a integridade física – embora não se possa excluir, como bem refere a douta sentença, que se pretenda anunciar um mal contra a vida –na medida em que é esse o sentido habitual e corrente de tal expressão quando integrada no contexto em que foi proferida. E, neste sentido, dúvidas inexistem de que tal anúncio constitui meio adequado à criação de medo ou inquietação, ou a prejudicar a liberdade de determinação dos sujeitos passivos.

Na verdade, não obstante a conclusão retirada pelo Mm. Juiz a quo não ter sido aquela pela qual pugna o arguido, a decisão encontra-se fundamentada num exame crítico razoável e lógico, adequado a toda a prova produzida em audiência de julgamento, pelo que, salvo o devido respeito por posição diversa, entendemos que não assiste margem de razão ao arguido.»

Em face do que fica exposto, a argumentação do Recorrente quanto ao enquadramento jurídico-penal do seu comportamento descrito em 6) da matéria de facto provada feito na primeira instância não é passível de qualquer reparo, atenta a natureza do mal anunciado e a sua aptidão, à luz da teoria da causalidade adequada, para incutir receio no espírito dos ofendidos de um crime contra a integridade física.

Eis por que o presente recurso improcede quanto a esta questão.

3) SE A SENTENÇA CONDENATÓRIA RECORRIDA VALOROU INCORRECTAMENTE AS PROVAS PRODUZIDAS, VIOLANDO O PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DE PROVA (Art.º 127º DO C.P.P.).

Os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito (art. 428º, nº1, do CPP), o que significa que, em regra, e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.

Dito em síntese, isto quer dizer que os Tribunais da Relação são hoje os tribunais por excelência e, em princípio, os únicos com poderes de cognição irrestritos em matéria de recursos, apenas com a ressalva de que, no âmbito da matéria de facto, o seu poder cognoscitivo pressupõe que a prova produzida em audiência de 1ª instância tenha sido gravada e tenham sido cumpridos os requisitos de especificação para os respectivos suportes técnicos (cfr. artºs 412º, nºs 3 e 4 do CPP).

Simplesmente, embora as Relações gozem, em princípio, de um amplo poder de cognição, este fica desde logo limitado pelas conclusões da motivação do recorrente, sabido como é que são estas que definem e balizam o objecto do recurso (cfr. o art. 412º, nº 1, do CPP).

No caso dos autos, porém, muito embora a prova oralmente produzida em audiência de julgamento tenha ficado registada por meios técnicos adequados e o ora Recorrente tenha, pretendido impugnar (na sua motivação de recurso) determinados segmentos da matéria de facto considerada provada pelo tribunal de 1ª Instância, esta Relação já não pode, no presente recurso, conhecer amplamente da matéria de facto, sem prejuízo de poder e dever conhecer oficiosamente de qualquer um dos vícios elencados nas diversas alíneas do n.º 2 do Art.º 410º do C.P.P. (cfr. o Acórdão do Plenário das Secções Criminais do S.T.J., de 19-10-1995, publicado in D.R., I Série- A, de 28-12-1995 e também in BMJ 450º, pág. 72).

E dizemos isto porque o ora Recorrente, tendo embora pretendido impugnar a decisão sobre matéria de facto proferida pelo tribunal “a quo”, com fundamento num pretensa avaliação errónea das provas produzidas em audiência de julgamento, não observou a exigência legal constante do cit. art.º 412º-3 e 4 do CPP – por isso não curou sequer de, na sua motivação de recurso, fazer referência aos suportes técnicos onde estão gravadas as declarações que, no seu entendimento, deveriam ter levado o tribunal a proferir decisão diversa em relação aos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impunham decisão diversa da que foi proferida e, ainda, as provas que deviam ser renovadas, dando, assim, integral cumprimento ao disposto no normativo citado.

Aliás, mais se verifica que tal omissão decorre quer das conclusões, quer da inerente motivação.

Nesta conformidade, não pode este Tribunal da Relação conhecer do recurso do ora Recorrente na parte em que impugna a decisão sobre matéria de facto, não havendo sequer lugar a qualquer convite no sentido do suprimento, pelo Recorrente, dessa inobservância da mencionada exigência legal, pois através deste mecanismo não pode ser modificado o âmbito do recurso fixado na motivação (n.ºs 3 e 4 do Art.º 417° do C. P. Penal) (1).

Deste modo, impõe-se considerar precludida a faculdade de, por via do presente recurso, proceder à reapreciação do decidido quanto à matéria de facto.

4) SE A SENTENÇA RECORRIDA QUALIFICOU ERRONEAMENTE OS FACTOS, DO PONTO DE VISTA JURÍDICO – crime de injúrias

O Recorrente ataca também a decisão final por ter sido condenado pelo crime de injúria agravada, porquanto, na sua tese, as palavras proferidas não se revestem de tipicidade criminal.

Dispõe o art.º 181º, nº 1 do Cód. Penal que “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”.

É sabido, pois assim o ensinam de modo pacífico a doutrina e a jurisprudência, que o crime de difamação, tendo como objecto o mesmo bem jurídico do crime de injúria – a honra e consideração –, distingue-se desta em virtude de a imputação de factos ou utilização de expressões ser feita por intermediação de um terceiro, com quem o agente comunica por qualquer forma verbal ou escrita, imputando ao ofendido ausente factos ou formulando juízos ofensivos da sua honra e consideração, ao passo que, na injúria, a imputação ou juízo ofensivos da honra são dirigidos directamente ao titular desse bem jurídico (arts. 180.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, do CP).

De acordo ainda com tal ensinamento não é necessário que as expressões empregues atinjam efectivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a susceptibilidade dessas expressões para ofender pois o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano.

Ora, segundo a melhor doutrina penalista, a honra subjectiva/pessoal – que coincide com o juízo valorativo que cada um faz de si próprio, com o "apreço de cada um por si" (BELEZA DOS SANTOS in RLJ, Ano 92º, p. 168) - é, por si só, insuficiente para determinar a existência ou não de ofensa ao bem jurídico honra. Para nos darmos conta do bem fundado desta asserção basta pensar nas pessoas que são intrinsecamente incapazes de sentir uma tal ofensa ou então nas pessoas que possuem uma exagerada auto - estima.

Em contraponto, a honra objectiva/social, enquanto representação exterior de uma pessoa (o bom nome, a reputação, a consideração) é também, por si só, inadequada a aferir de uma tal lesão, uma vez que se faz depender a protecção penal de considerações unicamente exteriores à pessoa.

Para a doutrina penalista dominante, a honra é vista como um bem jurídico complexo, que abrange tanto o valor que cada um tem por si, como a sua reputação ou consideração exteriores. O que, porém, é incontestável é que «a existência e a medida da ofensa estão vinculadas à imagem real do indivíduo no contexto social, a qual, no entanto, não é necessariamente uniforme, antes varia consoante os diversos espaços em que a concreta pessoa se insere».

Daí que seja imprescindível, para a avaliação da existência de ofensa e do respectivo grau, a contextualização do agente, da sua conduta e do ofendido e a própria consciência ético-social da comunidade. Só ponderados todos esses elementos se poderá ajuizar, caso a caso, se a conduta do agente

Na verdade, existe em todas as comunidades um sentido comum, aceite por todos, ou pelo menos pela maioria, sobre o comportamento que deve nortear cada um na convivência com os outros, em ordem a que a vida em sociedade se processe com um mínimo de normalidade.

Conforme resultou apurado, «[…] , dirigindo-se aos militares da GNR EE e DD, - os quais se encontravam devidamente uniformizados, envergando o uniforme oficial da Guarda Nacional Republicana -, e após estes lhe terem perguntado se possuía algum tipo de produto estupefaciente, , e disse-lhes “Vocês não me revistam, vão para o caralho”».

«[…] ao que o arguido respondeu “Vão se foder, vão para o caralho”».

«Pelas 19H20, o arguido ao sair do mencionado Posto da GNR disse “Vão para o caralho, seus filhos da puta.” dirigindo-se, pelo menos, ao Militar da GNR DD, que ouviu tais palavras».

Pelas 19H20, o arguido ao sair do mencionado Posto da GNR disse “Vão para o caralho, seus filhos da puta.” dirigindo-se, pelo menos, ao Militar da GNR DD, que ouviu tais palavras”.»

Tais epítetos dirigidos pelo arguido aos Militares da GNR no contexto em que foram proferidos são manifestamente ofensivos da honra e consideração do ofendido.

Na verdade, e como bem diz o Ministério Público junto do Tribunal recorrido, “…entendemos que as palavras dirigidas pelo arguido aos elementos da GNR são inequivocamente susceptíveis de ofender a honra e a consideração dos ofendidos, na medida em que ultrapassam a simples falta de cortesia ou de educação e, de modo algum – naturalmente – ficou demonstrado que os visados fizessem uso habitual de tal género de linguagem que os obrigasse a tolerar, na mesma medida, tais ofensas verbais .”

Destarte, atento o exposto e considerando a factualidade assente como provada na sentença sob censura, é manifesto que o enquadramento jurídico-penal feito pelo tribunal recorrido, ao condenar o arguido/Recorrente pela prática de dois crimes de injúria agravada, não merece qualquer reparo.

Donde que o presente recurso improcede in totum.

DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, assim confirmando, na integra, a sentença recorrida.

Fixa-se a taxa de justiça devida pelo Recorrente em 4 (quatro) UCs.

Évora, 26 / 09 / 2023

.........................................................................................................

1 Neste sentido, Ac. do STJ de 05-06-2008 (Proc. nº 1884/08, Relator Simas Santos, acessível em www.stj.pt):

“I- Se nas conclusões da motivação se não especificam os pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, pois que se dirige genericamente a toda a matéria provada…, apresentando antes a sua leitura subjectiva de todo o julgamento e que não contém qualquer referência aos suportes técnicos, deve entender-se que não foi cumprido o formalismo dos n.° 3 e 4 do art. 412° do CPP, por respeitar o recurso a matéria de facto.

II- E se essas especificações não constam do texto da motivação, não deve o recorrente ser convidado a corrigir as conclusões da motivação.

… …

VI- A recente Lei 48/2007, de 29-08, veio, aliás, consagrar esta posição na nova redacção dada ao art. 417.º do CPP. Estabelece no seu n.º 3 que, se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do art. 412°, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada. Mas logo esclarece, no n° 4, que tal aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.