Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
854/19.7T8OLH.E1
Relator: ANA PESSOA
Descritores: POSSE PRECÁRIA
USUCAPIÃO
INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
A posse precária não permite a aquisição por usucapião, salvo se se achar invertido o título da posse, na conformidade do disposto no artigo 1290º Código Civil; e só a partir da inversão do título começa a correr o tempo necessário para a usucapião.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo 854/19.7T8OLH.E1

Tribunal Recorrido: Tribunal da Comarca ... Juízo de Competência..., Juiz ...
Recorrentes: AA, BB e CC
Recorrida: sucessores incertos de DD (representados por defensora oficiosa) e herdeiros desconhecidos de EE (representados pelo Ministério Público)
*
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora,
I. RELATÓRIO.
AA, BB e CC (habilitados em substituição da Autora inicial, FF...), o primeiro viúvo e os segundos solteiros, figuram como Autores na presente ação de processo comum, na qual figuram como Réus, os sucessores incertos de DD (representados por defensora oficiosa) e os herdeiros desconhecidos de EE (representados pelo Ministério Público), peticionando os primeiros que se declare o imóvel melhor identificado nos autos adquirido por usucapião.
Para tanto, a Autora inicial alegou, em síntese, que reside na Rua ..., nº..., ... ..., desde ../../1974, uma vez que a mesma e a sua “mãe de criação” ocuparam aquele imóvel, sem qualquer título que o legitimasse, tendo posteriormente legitimado tal ocupação junto da Câmara Municipal de ... que emitiu um edital. Mais indica que a sua “mãe de criação” lhe doou verbalmente o imóvel, tendo a Autora inicial feito obras no imóvel e atuando como se o mesmo fosse sua propriedade.
*
O Ministério Público apresentou contestação em representação dos herdeiros desconhecidos de EE, requerendo a observação do disposto no artigo 574º, nº4 do Código de Processo Civil.
Pelos sucessores incertos de DD não foi apresentada contestação.
Procedeu-se à realização da Audiência Final, no termo da qual veio a ser proferida sentença em cujo dispositivo pode ler-se:
“Face ao exposto, e de harmonia como o disposto nos preceitos legais que foram supra citados, julga-se a ação parcialmente improcedente e em consequência, decide-se:

- Não decretar a aquisição por usucapião, por parte dos Autores habilitados, do imóvel com o artigo matricial urbano nº ...67 da Freguesia e Concelho ..., sito na Rua ..., ... ...;
- Condenar os Autores no pagamento das Custas do Processo.”

*
Inconformados com tal decisão, dela apelaram os Autores, formulando, após alegações, e após despacho de aperfeiçoamento, as seguintes conclusões:

1. O tribunal, na sua sentença considera provados factos, como a convicção de terceiros, e a própria convicção da esposa e mãe dos Recorrentes sobre a Propriedade do imóvel (domínio sobre o mesmo, o pagamento de impostos e a convicção de que era sua propriedade), não pondo em causa a idoneidade, objetividade ou a boa-fé dos depoimentos,
2. E considera não provados factos que foram ditos pelas mesmas pessoas, nos mesmos depoimentos, não se conseguindo perceber, porque não está explicado, o critério de considerar provados e uns não provados outros. – considera não provados factos que consolidariam a aquisição do imóvel por usucapião, sem se perceber porquê – limitando-se a dizer que “não foi produzida prova” – há uma ausência total de fundamentação.
3. Considera factos provados factos como a DD ser vista como a proprietária, tinha o acesso ao mesmo, limpava e pagava os impostos e depois, dá como não provado um facto importantíssimo que é o facto de a DD ter dito a FF que tinha tratado de tudo com os herdeiros de EE, e que o imóvel já era seu, e que tinha havido uma doação de DD a FF
FF – os mesmos conjuntos de factos foram ditos pelas mesmas testemunhas – os que o tribunal considera provados e os que considera não provados.
4. De maneira que os factos dados como não provados deveriam, na opinião dos Recorrentes ter sido considerados provados.
5. Para além disso, entendem os Recorrentes existir uma sucessão de posses (art.º 58 e seguintes do Recurso).

6. A posse contínua nos sucessores do falecido, independentemente da Apreensão material da coisa –
A posse adquire-se pela aceitação e segundo o art.º 1316.º do C.C., o direito de propriedade adquire-se por sucessão por morte.
7. À morte de alguém, sucedem outros que, por novação subjetiva substituem o titular falecido nas situações com relevância jurídica que aquele alguém encabeçava, ainda que, em período transitório, possa haver herança jacente – para se manter a posse, basta que haja possibilidade de a continuar.
8. Os autores Dias Ferreira e Manuel Rodrigues, entre outros, entendem que a expressão ”sucessores” referidos no art. 1255.º do Cód. Cível abrange quer os herdeiros quer os legatários, bem como é a opinião de Pires de Lima e Antunes Varela. E diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a este pertenciam.
9. O domínio e a posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, e é nesse momento que se dá a sucessão na posse, retroagindo os efeitos da aceitação ao momento da abertura da herança.
10. Relativamente ao legatário, Oliveira Ascensão (o. cit,, págs. 420 e sgts.) defende que o mesmo será possuidor desde a aceitação se, então, já detém o senhorio de facto sobre o legado, quer porque o reivindicou quer porque já era possuidor, quer porque já detinha a coisa (embora a posse fosse do de cujus). Ou também o legatário será possuidor desde a abertura da herança se ela é toda dividida em legados (cit. autor., p. 423).
Havendo sucessão na posse do herdeiro ou legatário, a posse do de cujus "continua", ipso jure e automaticamente, no sucessor. E sem, pois, necessidade de apreensão material, e até com desconhecimento da posse anterior. E a posse, em principio, não é "nova": a posse continua a ser a antiga, com todos os seus carateres, de boa ou má-fé, titulada ou não titulada, pacífica ou violenta. A boa ou má-fé que o possuidor tenha, em divergência com a situação do de cujus, equivale á boa-fé superveniente do mesmo possuidor (Pires de Lima e A. Varela, anot. 3, artigo 1255°; vide Menezes Cordeiro, A Posse, 2' ed., p. 109).

11. Todavia, se a posse "continua" no sucessor, nesta passa a haver uma modificação subjetiva, uma novação na titularidade. E, como relação de facto, passa, de facto, também a modificar-se segundo o cunho próprio do sucessor.
Assim, nada impedirá que o sucessor invoque tão-só essa "sua" posse, e com as melhorias que lhe introduziu e desde que não sejam requisitos, necessariamente, reportados à origem da posse (como a boa ou má-fé). Assim, a posse oculta pode passar a pública; a violenta, a pacífica. E, pela "aceitação", passa a beneficiar de justo título, ainda que a do de cujus a não tivesse. Bem como, para efeitos de usucapião, pode o sucessor contar, se o quiser, tão-só com essa posse e sua duração.
12. Todavia, quanto à posse "continuada" do sucessor, já a aceitação da herança ou do legado constituirão um justo título, como mais-valia adquirida na posse que ele, como sua, em senhorio de facto, continua: quer quanto ao legatário quer quanto ao herdeiro. Assim, se o sucessor quer se serve da posse do de cujus, a posse será ou não titulada conforme existia no senhorio do de cujus. Se apenas quer invocar o seu tempo de senhorio, desde que a favor dele se deu a devolução da posse, então, poderá invocar como justo título a aceitação.
Segundo o artigo 1256.°, aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor.
13. Sendo a posse um senhorio de facto, compreende-se que, mesmo tendo por base uma cedência, o senhorio factual antecessor, enquanto tal, se perca [artigo 1267.°, n° 1, c)] e nasça para o sucessor um novo senhorio [artigo 126.°, alíneas b) e c)]. Daí que o artigo 1256.° fale na posse do sucessor e na posse do antecessor: juntando aquele "á sua" "a posse do antecessor". No entanto, se existe urna ligação consequencial legítima entre ambas as posses, também se compreende que elas possam juntar-se para efeitos da contagem do tempo (da anterioridade da posse), relevante quer para efeitos de usucapião (artigo 1287.°) quer a de melhor posse [artigos 1267.°, n° 1, d), e 1278.°, n.°s 2 e 3]. A hipótese do artigo 1256.° é a de ocorrer sucessão na posse por título diverso da sucessão por morte. Pois, nesse caso, valerá o disposto no artigo 1255.° (sucessão na posse), em cujo âmbito se incluíram o herdeiro e o legatário.
14. Contrariamente a tal sucessão por morte, o sucessor na posse por título diverso tem a faculdade de se quiser, juntar à sua a posse do anterior. Ou seja, tal junção não resulta ipso jure e automática. As duas posses não têm de ser absolutamente homogéneas. Pode o que possui na qualidade de usufrutuário juntar "à sua" (posse de usufrutuário) a posse anterior dum proprietário. E um possuidor de má-fé pode juntar uma posse anterior de boa-fé, ou vice-versa, embora em todos os casos considerando-se a posse de má-fé (menor âmbito).
15. Para se configurar a hipótese da acessão do artigo 1256.°, exigem-se dois requisitos. Primeiro, que as posses respetivas sejam consecutivas. Ou seja, que não intermedeie, entre uma e outra, uma posse de terceiro de mais de um ano que faça "perder-se" a posse anterior [artigo 1267.°, n° 1, d)], ou que ao esbulho não se siga uma terceira posse de boa-fé (artigo 1281.°, n° 2). Depois, a posse atual deve, na sua génese e ab initio, ser uma "consequência legítima", à face dos valores da ordem jurídica, da perda da posse anterior.
Bastará, pois, um "vínculo" jurídico entre as duas posses (Manuel Rodrigues o. cit., p. 291): que, no Direito, na globalidade da ordem jurídica, legitime que a posse atual, ah initio e na sua génese, suceda á anterior (que se perdeu).
16. "O fundamento da sucessão das posses é a transmissão da situação jurídica das posses. À acessão das posses é indispensável a existência de um vínculo jurídico por via do qual a situação possessória haja sido regularmente transmitida ao que atualmente a invoca" (Dias Marques, Prescrição, II, p. 96). Assim será na posse consequente à expropriação ou à compra judicial (Pires de Lima e Antunes Varela, anot. 3; Manuel Rodrigues, o. cit., p. 291). Igualmente, haverá a hipótese de acessão sempre que a posse se adquire por tradição material ou simbólica efetuada pelo anterior possuidor ou por constituto possessório: ou seja, quando na base da aquisição da nova posse esteja uma "cedência da posse" pelo anterior possuidor [artigos 1263.°, b) e c), e 1267.°, n° 1, c)] (idem, Menezes Cordeiro, A Posse, 2a ed., p. 133).

17. Os requisitos substantivos e formais da cedência/tradição ou do constituto possessório para, com base neles, se poder aceder na posse do antecessor são os modos de aquisição “da posse”; nomeadamente quanto à cedência, bastará que exista um acordo de vontades concordantes, e por quem tenha o uso da razão (art. 1266.º). Tanto é necessário como suficiente.
18. Já não será necessário apreender, ainda, a sua razão de ser substantiva: basta saber que se cedeu, ainda que não a que título (Assento, 14-5-1996, 23.M./.,457°, 55), nem a data exata. Esse acordo também não é (ou carece de ser) um negócio jurídico, nem se trata de declarações negociais, em sentido técnico. É, tão-, como supra referido, um acordo de vontades, um ato real. Ainda que, normalmente, surja integrado num negócio jurídico. Por sua vez, esse acordo visa e tem por função e efeito a tradição do senhorio de facto da coisa (não o direito sobre ela). Pelo que, e para efeitos meramente possessórios (sem se considerar, para já, o tema em matéria de usucapião), não carece da validade formal que eventualmente careceria a transmissão do direito.
19. Como ato de vontade, é, todavia, um ato jurídico (artigo 295.°). E, sendo ato voluntário, carecem as partes de capacidade de gozo e de exercício (uso da razão, artigo 1266.°). Bem como que não haja coação
absoluta, física ou moral, ou que se não trate de declarações jocosas ou não sérias; ou de dissenso total ou patente; ou absoluta falta de vontade de ação (simulação) ou de consciência; ou sob nome de outrem (fazendo-se a pessoa passar por outrem). Assim, para haver cedência/tradição da posse, e, consequentemente, nesse vínculo jurídico haver uma "sucessão" (fato senso) na posse (artigo 1256.°), basta reportado a esse momento genético, tão-, o referido acordo de vontades concordantes: e, como tal, á luz do artigo 1256.°, o novo possuidor passa a poder juntar "á sua posse" a "posse do antecessor". Na verdade, o acordo de cedência/tradição, ainda que se baste (como condição necessária e suficiente) com um mero acordo de vontades concordantes para geneticamente dar lugar a uma nova posse (e à perda da primeira) e para, geneticamente, a nova posse ser uma consequência legítima, juridicamente vinculada à anterior, todavia, mesmo como tal, o acordo de cedência/tradição é um ato jurídico (art. 295.°).

20. Esse acordo pode ser o caso da doação/venda verbal de um imóvel.
21. Pelos Acórdãos do S. 7./. de 3-6-1992 e 3-2-1999 (respetivamente, Rev. L. Jur., 126, n° 3837, p. 380, e AM". 484, p. 385), B, o primeiro comprador, pode invocar quer a sua posse (consequente á compra) de meia dúzia de anos, quer «a ela" juntar a posse (de 20 anos) do seu antecessor (o vendedor A), e com base nessa acessão de posses, na posse com tal duração (de 26 anos), pode B invocar a aquisição do direito por usucapião. E, invocando o usucapião, o direito de B é um direito originário e que não carece de registo para ser invocável contra C (segundo adquirente), dado o disposto no citado artigo 5.° do Código de Registo Predial. Assim, quem vence é B, com fundamento em usucapião, apesar da aquisição tabular de C.
22. O artigo 1287.° expressa que "a posse... mantida por certo lapso de tempo faculta ao possuidor... a aquisição do direito...". Ora, "a posse mantém-se" enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar (artigo 1257°). E nem a continuidade da posse é, sequer, um seu carácter (artigos 1258° e sgts.). Assim, preenche-se o primeiro pressuposto do usucapião (de posse "mantida" por certo lapso de tempo") se se adquiriu a posse e remanesce a possibilidade de a continuar (porque tal é "posse mantida", artigo 1257°). Isto é, posse mantida" sobre uma coisa é aquela em que a coisa permanece,
querendo-se, debaixo de mão (lat, manu, mão; e tenere, segurar).
23. Em tema de usucapião, só a posse com os carateres de violência ou de clandestinidade é que é referida como não boa para usucapião (artigo 1297°). O usucapião é um modo de "adquirir o direito", em substituição da prova duma sua aquisição derivada, dita diabólica, porque, de retrocesso em retrocesso, teria de se chegar a longínquas origens, e que, em vez desse modo, assenta numa relação de senhorio de facto mantida por largo tempo, com o seu valor de conhecimento, publicidade e confiança, a que, cumulativamente, corresponde uma inércia ou inação de quem seja o verdadeiro titular do direito.
24. O primeiro pressuposto do usucapião é uma "posse mantida" isto é, uma posse que se adquiriu e a que não sobreveio uma causa de extinção (cit. Menezes Cordeiro, p. 475). Segundo o n.° 1 do artigo 1259.°, diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente quer da validade substancial do negócio. E segundo o n.° 2 desse artigo, o título não se presume, devendo a sua existência ser provada por aquele que o invoca. No direito português da pré-codificação, o justo título, para efeitos de usucapião, era exigente, e deveria ser: real (não putativo); válido e legal e hábil para transferir a propriedade: no fundo, o único vicio de que podia padecer era o da ilegitimidade do transmitente (a non domino) (Menezes Cordeiro, A Posse, p. 88). E essa orientação foi a que subscreveu o artigo 518.° do Código de Seabra (diz-se justo título qualquer modo de adquirir, independentemente do direito do transmitente).
O artigo 1259.° refere o "negócio jurídico" como modo legítimo de adquirir. Mas deve entender-se como justo título qualquer outro modo legítimo de (abstratamente) se adquirir, seja negócio jurídico ou não.
25. E em segundo lugar, tendo em conta o exposto, não se pode entender coisa diferente, na nossa opinião, de que a inversão do título se deu no ano de 1995, quer tenha sido, ou concretamente aí, através da doação verbal, quer tenha sido através de outorga do testamento nesse mesmo ano.
26. Ou seja, se formos pela experiência comum DD, apenas tinha um imóvel; não tinha nenhum outro imóvel nem dinheiro e efetuou um testemunho deixando tudo o que tinha à sua filha, A., entretanto falecida. Só se pode entender, e ninguém nunca disse o contrário em audiência, que se estava a referir ao imóvel objeto presente da ação. E isso só quer dizer que o título já se encontrava invertido. Só se pode deixar por testamento que estamos convictos do que é nosso. Mas se não se quiser ir pelas regras da experiência comum, a prova produzida provou ter havido inversão do título pela doação que afirmaram ter existido.
27. O facto do acórdão invocado pela sentença referir que “um dos casos típicos de inversão do título da posse é ter havido partilha de facto, não quer dizer que seja o único modo de inverter a posse – de resto, nem sequer é o mais comum. A inversão do título deu-se, no mínimo, ou seja, na pior das interpretações, no ano de 1985 quando fez o testamento e na melhor, na nossa opinião, no ano de 1995, concretamente através de doação verbal. E só fez o testamento em causa porque à altura não conseguiu identificar os anteriores proprietários por já não os ver há muito tempo. E não identificou o imóvel no testamento porque a situação finalmente ainda não estava resolvida.
28. Após a sua morte, a posse do imóvel transferiu-se. Esta é a conclusão que se pode tirar, se tivermos em consideração a prova que foi produzida.
29. Portanto a posse que a FF exercia ao contrário do que é dito no 5.° parágrafo da página 12 da sentença, é uma posse transmitida de mãe para filha de forma factual, material e direta e, verbal no ano de 1995. Porque a prova aponta no sentido da doação no ano de 1985 e não na transmissão testamentária, se bem que se defende serem as duas idóneas para a transmissão da posse. De mencionar, por último, que a Sra. DD não tinha descendentes ou cônjuge - legitimários – pelo que o testamento é idóneo a produzir tudo o que estivesse na espera jurídica da senhora.
30. De maneira que entendem os ora Recorrentes que a sua pretensão deve proceder e entendem ser de decretar a aquisição por usucapião por parte dos Recorrentes habilitados do imóvel com o antigo manual urbano nº ...67 da Freguesia e Concelho ..., sítio na Rua ..., ..., ....
Assim,
Nestes termos e nos melhores de direito que V.Exa doutamente suprirá, requer que seja decretada a revogação da douta sentença de que se recorre, e, consequentemente, que seja decretada a aquisição do imóvel supra referenciado com o artigo matricial urbano n. º...67 da Freguesia e Concelho ..., na Rua ..., ..., ... pelos Recorrentes devidamente habilitados, por usucapião, que se invoca expressamente, nos termos dos artigos 1287.º, 1292.º, 1298.º, alínea b), todo do Código Civil, por todo o conjunto de motivos supra explanados,
Fazendo-se a habitual JUSTIÇA!
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*

II. QUESTÕES A DECIDIR.
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, 4, e 639º, 1, do CPC, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, importa, no caso, apreciar e decidir se procede a impugnação de facto e se deve o pedido formulado pelos Autores/Apelantes ser julgado procedente.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO.
III.1. Na decisão recorrida foram considerados com interesse para a decisão da questão em apreço, provados os seguintes factos:
1) No dia 25/04/1974, FF e DD, que criou a primeira como de sua filha se tratasse, mudaram-se para o imóvel sito na Rua ..., ... ... ..., que se encontrava desocupado, ocupando-o, sem que qualquer título o legitimasse.
2) A ocupação de casas desocupadas, naquele período, por parte das famílias portuguesas, foi uma realidade comum no nosso país.
3) Os serviços da Câmara Municipal ... emitiram um edital onde citaram os herdeiros de EE ..., instando-os para fazer um contrato de arrendamento sobre o imóvel identificado em 1) “conforme dispõe o nº3 do artigo 1º do Decreto-Lei 198 A/75, sob pena de terminado esse prazo lhe ser aplicado as disposições previstas no nº1 do artigo 7º do já citado Decreto-Lei”.
4) DD era vista, por quem a conhecia como a pessoa a quem pertencia o imóvel descrito em 1).
5) DD faleceu a ../../2015.

6) Nunca apareceu ninguém a opor-se à ocupação referida em 1).
7) FF realizou obras no imóvel em apreço.
8) FF deixou de residir naquela casa, pelo menos, desde 1995.
9) Após a morte de DD, FF continuou a ter acesso ao imóvel em apreço, sendo que quem a conhecia, pensava que o imóvel em apreço lhe pertencia.
10) DD efectuou um testamento, no ano de 1995, no qual declarou que “não tem descendentes nem ascendentes vivos, e que faz o seu testamento e disposição de última vontade” e determinou que FF teria direito a “todos os bens, móveis ou imóveis”.
11) FF, no ano de 2017, procedeu ao pagamento do Imposto Municipal sobre Imóveis respectivo ao imóvel identificado em 1), mais procedendo, até à sua morte, no ano de 2022, ao pagamento das despesas correntes da casa.
12) FF faleceu no dia ../../2022.
*
III.2. O Tribunal Recorrido considerou não provados os seguintes factos com relevância para a decisão:
A) A autora inicial, FF, residia, à data da propositura da acção, 02/09/2019, na Rua ..., ... ..., desde ../../1974.
B) Que DD tenha referido a FF, em Agosto de 1995, que tinha tratado de tudo com os herdeiros de EE e que o imóvel já era seu, que só faltava formalizar a documentação e que depois colocaria o imóvel em nome da segunda, uma vez que não tinha outros herdeiros.
C) Que FF e DD se tenham deslocado aos serviços da Câmara Municipal ... a fim de legalizar aquela ocupação.
D) Que em ../../1995, DD tenha efectuado uma doação verbal do imóvel a FF, doação que esta aceitou.

E) Antes da data do falecimento de DD, FF actuava como proprietária da casa em questão, aos olhos da família, da própria DD e de todos os amigos e vizinhança.
*
III.3. Da impugnação de facto.
Os Apelantes impugnam a matéria de facto considerada na sentença sob censura, por considerarem que o Tribunal a quo julgou incorretamente os factos considerados não Provados na sentença recorrida sob as alíneas A a E, pois entendem que face à prova globalmente produzida e existente nos autos deveriam ter sido considerados provados.
Invocam, para tanto, as declarações prestadas por CC e BB.
Vejamos então.
É sabido que o objeto do conhecimento do Tribunal da Relação em matéria de facto é conformado pelas alegações e conclusões do recorrente este tem, não a faculdade, mas também o ónus de no requerimento de interposição de recurso e respetivas conclusões, delimitar o objeto inicial da apelação cf. Artigos 635º, 639º e 640º do Código de Processo Civil.
Assim, sendo a decisão do tribunal «a quo» o resultado da valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação, desde que a parte interessada cumpra o ónus de impugnação prescrito pelo artigo 640º indicando os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, e os meios de prova constantes do processo que determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos a Relação, como tribunal de instância, está em posição de proceder à sua reavaliação, a fim de reparar qualquer erro na respetiva apreciação.
Recorde-se que o artigo 640.º do CPC, com a epígrafe “Ónus a cargo do
recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe o seguinte:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente
especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (…)”.(o destacado é nosso).
Entre as diversas decisões que têm versado sobre o aludido ónus, destacamos, pela respetiva clareza o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2023 (Proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1), no qual pode ler-se:
“29. O Supremo Tribunal de Justiça tem distinguido um ónus primário e um ónus secundário — o ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, e o
ónus secundário de facilitação do acesso “aos meios de prova gravados releantes para a apreciação da impugnação deduzida”, consagrado no n.º 2.
30. O ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, analisa-se ou decompõe-se em três:
Em primeiro lugar, “[o] recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões” [2]. Em segundo lugar, “deve […] especificar, na motivação, os meios de prova que constam do processo ou que nele tenham sido registados que […] determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos” [3]. Em terceiro lugar, deve indicar, na motivação, “a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”[4].
31. O critério relevante para apreciar a observância ou inobservância dos ónus enunciados no art. 640.º do Código de Processo Civil — logo, da observância ou inobservância do ónus primário de delimitação do objecto — há-de ser um critério adequado à função[5], conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade[6] [7].

32. O requisito de que o critério seja adequado à função coloca em evidência que os ónus enunciados no art. 640.º pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objecto do recurso [8] e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido [9]. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade pronunciam-se sobre a relação entre a gravidade do comportamento processual do recorrente — inobservância dos ónus do art. 640.º, n.ºs 1 e 2 — e a gravidade das consequências do seu comportamento processual: a gravidade do consequência prevista no art. 640.º, n.ºs 1 e 2 — rejeição do recurso ou rejeição imediata do recurso — há-de ser uma consequência adequada, proporcionada e razoável para a gravidade da falha do recorrente[10].
33. Entre os corolários dos requisitos de que o critério seja adequado à função e conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade está o de que “a decisão de rejeição do recurso […] não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal […] face ao grau de dificuldade que [a inobservância dos ónus do art. 640.º] acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso”[11]”.
Seguindo de perto o que resulta deste Acórdão, volte-se ao caso vertente.
Embora de uma forma algo genérica, os Apelantes aludiram aos meios de prova que fundamentam a sua pretensão recursiva, designadamente as declarações que consideram sustentarem a sua posição, pelo que se impõe o conhecimento da apelação nesse segmento.
Cabe começar por referir que se procedeu à audição de toda a prova produzida em audiência e à conjugação da mesma com a prova documental junta aos autos e que da concatenação de todos tais meios de prova não pode discordar-se do juízo probatório realizado pelo Tribunal recorrido.
Na verdade, nenhuma das pessoas ouvidas em audiência revelou ter conhecimento direto, quer de que a referida DD tivesse tratado com os herdeiros de EE da aquisição do imóvel, quer da alegada doação do imóvel, pela DD à mencionada FF.

E a prova documental afasta mesmo tal versão dos factos, pois, se havia tratado da aquisição do imóvel com os anteriores proprietários nenhum sentido faria a alegação de que teria ido à Câmara Municipal, e que ali, em face de diligências realizadas, teria sido publicado o edital que constitui o documento 1 da contestação, datado de 12 de fevereiro de 1976 (data posterior à da alegada ocupação do imóvel), com o seguinte teor:


Recorde-se que o objeto do procedimento previsto no Dec. Lei n.º 198-A/75, de 14.04 não visava a aquisição, mas antes o arrendamento dos prédios que desse procedimento seriam objeto como se refere no artigo , n.º 1 do citado diploma, “as ocupações de fogos devolutos levadas a efeito para fins habitacionais, antes da entrada em vigor deste diploma, em prédios pertencentes a entidades públicas ou privadas, serão imediatamente legalizadas através da celebração de contrato de arrendamento.”
E quanto à alegada doação, afigura-se que o testamento lavrado em 1995, cuja cópia foi junta como documento n.º 2 à petição inicial, em conjugação com a prova testemunhal produzida, da qual resulta unanime que a referida DD residiu no local até falecer, ali tendo vivido como se da sua casa se tratasse, diversamente da primitiva Autora, que do mesmo saiu pouco depois de casar, infirmam que a referida DD tivesse pretendido que o imóvel deixasse de pertencer-lhe ainda em vida, antes confirmando que apenas por morte pretendia deixá-lo àquela que considerou como sua filha.
Nenhum dos declarantes ouvidos, ou qualquer das testemunhas referiu que a referida FF residisse no imóvel na data referida na al. A) impugnada, antes tendo confirmado que do mesmo tinha saído pouco tempo depois de casar, o que, de resto, é coerente com o teor do testamento a que se fez referência, de 1995, e no qual a morada indicada da mesma é diversa.
E também não foi produzido qualquer meio de prova que indicasse que a mencionada FF tivesse atuado como proprietária do imóvel antes do falecimento da que considerou a sua “mãe de criação”.

Conclui-se desta forma pela improcedência da pretensão recursiva no que respeita à impugnação da matéria de facto.
Permanecendo inalterada a matéria de facto, provada e não provada, aqui
nos dispensamos de a voltar a reproduzir.
*
III.4. Fundamentação jurídica.
A primitiva Autora e agora os respetivos sucessores, sustentam a sua pretensão na constituição do direito de propriedade na esfera jurídica de FF ..., sobre o prédio dos autos por via do instituto da usucapião.
É este o pedido formulado, e não designadamente a declaração de aquisição do mesmo por usucapião por DD, e depois pela ora Autora por via sucessória.
Mantendo-se inalterada a factualidade provada, afigura-se não poder deixar de considerar-se improcedente a pretensão.
Vejamos.
Estatui o artigo 1287º do Código Civil que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação. É o que se designa por usucapião, prescrição positiva ou aquisitiva.
Posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – artigo 1251º Código Civil.

A posse, de acordo com a conceção subjetivista acolhida pela nossa lei, é integrada por dois elementos: o corpus, que consiste na relação material com a coisa e o «animus», elemento psicológico, que se traduz na intenção de atuar com a convicção de ser titular do direito real correspondente.
Possuidor é, pois, aquele que exerce efetivos poderes materiais sobre a coisa e coma intenção de exercer um direito real próprio.
Os atos materiais incidentes diretamente sobre a coisa hão-de ser aqueles que se ajustem à utilização normal da coisa em concreto, que sejam adequados às particularidades de fruição proporcionados por essa mesma coisa.
O «animus» que resulta da natureza do ato jurídico por que se transferiu o direito suscetível de posse, na apelidada teoria da causa; o elemento intencional deve aferir-se não pela vontade concreta do adquirente da posse mas pela natureza jurídica do ato que originou a posse - se a tradição se realizou em consequência de um ato de alienação da propriedade, a intenção que tem o adquirente é a de exercer o direito de propriedade. Se a tradição se realizou em consequência de um ato de locação, pelo qual se transferiu um determinado prédio, a intenção do locatário é a de exercer o direito pessoal de arrendatário[1].
A posse precária não permite, pois, a aquisição por usucapião, salvo se se achar invertido o título da posse, na conformidade do disposto no artigo 1290º Código Civil; e a partir da inversão do título começa a correr o tempo necessário para a usucapião.

À inversão do título da posse não basta a mera constatação de que houve a intenção por parte dos detentores precários de inverter o título de posse. A oposição -de objetivar-se em atos materiais ou jurídicos que revelem inequivocamente que o opositor quer atuar, a partir da oposição, como titular do direito sobre a coisa e que essa atuação se dirija contra a pessoa em nome de quem detinha e dela se torne conhecida, sendo que a não entrega da coisa no final do contrato não assume o significado de uma inversão do título de posse se não for acompanhada de uma clara oposição.
O que se refere em face do teor do documento 1 da petição inicial supra reproduzido e da posse exercida pela DD.
*
No caso em apreço, os Autores fazem referência à aquisição da posse pela falecida primitiva Autora em ../../1995 através de uma doação verbal pela DD, que a própria, a partir desse momento foi fazendo obras com o tempo na casa, sempre acreditando que estava a fazer numa casa que acredita ser sua, que sempre atuou como proprietária da aludida casa em questão, aos olhos da família, da Dona DD, e aos olhos de todos os amigos e vizinha que a têm como proprietária da aludida casa, tendo estado na posse da mesma desde 1995, e depois do negócio realizado com a DD, exercendo uma posse de boa-fé, pública, pacifica, sem oposição de ninguém, e contínua, sem quaisquer tipos de interrupção, exercia essa posse desde então, e até aos dias de hoje.

Sucede que não logrou demonstrar tais factos, pois que da prova produzida resulta que foi a referida DD que na casa residiu, como se da sua residência (arrendatária ou proprietária) se tratasse, até falecer em 2015.
Sempre se dirá que ainda que ainda que a primitiva Autora FF estivesse convencida da titularidade da referida DD, a posse exercida após o falecimento da mesma não o é em nome próprio, mas enquanto herdeira na herança da mesma, e relativamente à qual foram habilitados nestes autos, os herdeiros incertos.
Como se referiu na sentença recorrida, no seguinte excerto:
“Ou seja, a posse exercida por ela não era uma posse em nome próprio, mas em nome da herança aberta por óbito de DD e, portanto, também em nome de possíveis demais sucessores da mesma (que a Ilustre Defensora representa na presente acção e que seriam prejudicados com a aquisição, pelos Autores, do presente prédio por usucapião).
Assim, conforme se menciona no já referido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, “a posse assim exercida não permite aos Autores a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o aludido prédio; tal posse – porque exercida, como vimos e como o legislador presume, em nome da herança – apenas poderá facultar a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade à aludida herança, atendendo ao tempo decorrido e dado que não existem quaisquer indícios de estar em causa uma posse oculta ou violenta”
Conclui-se deste modo que a aquisição por usucapião do prédio em apreço nos autos apenas poderá ser requerida pela herança aberta de DD, procedendo-se depois à sua partilha – uma vez que não foi alegado nem demonstrado que já tenha existido essa partilha de facto -, não tendo a Autora da presente acção, e neste momento, os seus habilitados, direito à aquisição do imóvel por usucapião conforme peticionado.”

Em suma, não tendo a Autora demonstrado a aquisição para si, por sucapião do prédio em causa nos autos, importa concluir que a sentença recorrida não merece qualquer censura, devendo ser confirmada.
***
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes artigo 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.
*
Évora, 2024-05-09
Ana Pessoa
Maria Adelaide Domingos
Manuel Bargado
__________________________________________________
[1] Cf. Ac. a Relação de Coimbra de 17.11.2009, proferido no âmbito do processo n.º 106/06.2TBFCR.C1 19.