Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
832/24.4T8LLE.E1
Relator: FILIPE AVEIRO MARQUES
Descritores: ARRENDAMENTO
TRESPASSE
COMUNICAÇÃO
RENDA
Data do Acordão: 12/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário:
1. Se o locatário alegou a existência de um trespasse para terceiro, como forma de se opor ao pedido de despejo do locador e apenas juntou um escrito do qual decorre que o acordo celebrado estava sujeito a uma condição suspensiva, cabia-lhe o ónus de alegar e provar que tal condição se verificou para se poder prevalecer da plena eficácia do negócio que invocou.

2. De todo o modo, se o locatário apenas comunicou ao locador a existência de uma promessa de trespasse, terá de se considerar que falhou no cumprimento dos seus deveres legais de comunicação.

3. No caso, será devido ao locador o pagamento das rendas por parte do ora réu, que para todos os efeitos continua como locatário perante aquele.

Decisão Texto Integral: Apelação n.º 832/24.4T8LLE.E1
(1.ª Secção)

Relator: Filipe Aveiro Marques


1.ª Adjunto: José António Moita


2.ª Adjunta: Sónia Kietzmann Lopes


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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO:

I.A.


AA é réu na acção declarativa que contra ele foi intentada por BB e, agora, CC faz seguir, por ter sido habilitada para ocupar o lugar na lide deste último.


Após julgamento, foi proferida sentença em 1/09/2025 pelo Juízo Local Cível de Loulé – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, que terminou com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, ao abrigo dos citados preceitos legais, julgo a presente acção procedente e, em consequência, decide-se:

A. Declarar resolvido o contrato de arrendamento em vigor entre as partes e que tem como objecto o prédio urbano identificado em 1) dos factos provados;

B. Condenar o Réu a restituir à Autora o arrendado no prazo de um mês a contar da resolução, ora declarada;

C. Condenar o Réu a pagar à Autora a quantia de 5.400,00€ (cinco mil e quatrocentos euros), correspondente ao valor das rendas vencidas e não pagas até à presente data;

D. Condenar o Réu a pagar à Autora a quantia de 600,00€ (seiscentos euros) por mês, a título de indemnização, desde a data da resolução do contrato, declarada nesta sentença, até à efectiva entrega do arrendado referido em 1) dos factos provados.

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Custas a cargo do Réu (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

I.B.

Inconformado o réu veio recorrer e apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

I – A sentença recorrida incorre em erro de julgamento de facto e de direito, ao ter considerado como não provado que o Réu comunicou ao Senhorio o trespasse do estabelecimento.

II – Da prova produzida em audiência resulta de forma clara e inequívoca que o Réu informou o Senhorio da existência de interessado na aquisição do negócio, com antecedência e transparência.

III – O próprio Réu, em declarações, relatou ter comunicado verbalmente ao Senhorio o trespasse em Dezembro de 2022 e Janeiro de 2023, obtendo uma reação de satisfação e incentivo.

IV – A testemunha DD confirmou que o Senhorio teve conhecimento direto do trespasse, tendo‑se apresentado como proprietário, falado em francês com o novo arrendatário e até recuperado bens pessoais do interior do locado.

V – O Senhorio não apenas reconheceu a presença do novo ocupante, como o apresentou à filha, identificando-o como “o novo arrendatário” ou “o novo dono”.

VI – A prova testemunhal revelou ainda que, em diversas ocasiões, membros da família do Senhorio — EE e CC — se deslocaram ao estabelecimento para cobrar rendas em atraso diretamente ao novo arrendatário.

VII – O pagamento de rendas por parte do Sr. DD, através de transferências bancárias para a conta do Senhorio, desde Junho de 2023, comprova inequivocamente a aceitação tácita da substituição.

VIII – O recibo das rendas continuou a ser emitido pelo Senhorio, não tendo este recusado, devolvido ou posto em causa tais pagamentos.

IX – O comportamento reiterado do Senhorio configura aceitação tácita, nos termos do artigo 217.º do Código Civil, inviabilizando a alegação de desconhecimento.

X – O tribunal recorrido omitiu a valoração desta prova direta e indireta, incorrendo em violação do artigo 607.º, n.º 4 do CPC, por não ter considerado os factos essenciais resultantes da instrução.

XI – A carta registada enviada em Maio de 2023 pelo Réu constitui reforço da comunicação já realizada, confirmando a existência de contrato de trespasse e a aceitação prévia do Senhorio.

XII – A interpretação feita pelo tribunal, de que o contrato apenas foi prometido, não resiste à prova testemunhal e documental junta aos autos.

XIII – É incontroverso que o Réu deixou de ter a posse do locado em Março de 2023, data em que entregou as chaves ao novo arrendatário, na presença do Senhorio.

XIV – Assim, não podia o tribunal condenar o Réu na entrega do locado, porquanto este já não tinha disponibilidade material ou jurídica sobre o mesmo.

XV – Também não lhe podem ser imputadas rendas posteriores, pois estas foram pagas diretamente pelo novo arrendatário e aceites pelo Senhorio.

XVI – Mesmo que subsistam diferenças ou atrasos, os mesmos não se reportam ao Réu, mas ao novo ocupante reconhecido pelo Senhorio.

XVII – O tribunal errou ao não aplicar corretamente os princípios da boa-fé e da confiança, previstos nos artigos 227.º e 334.º do Código Civil.

XVIII – A conduta do Senhorio, ao receber rendas de terceiro sem oposição, legitima a transferência da posição contratual e impede o exercício posterior de direitos em contradição com essa aceitação.

XIX – A sentença violou ainda o artigo 1038.º, alínea f), do Código Civil, ao ignorar que o trespasse se encontra protegido e pode ser validamente transmitido, com ou sem comunicação formal.

XX – A prova testemunhal, designadamente dos Srs. DD e EE, evidencia que o trespasse não apenas foi comunicado, mas também aceite e ratificado tacitamente.

XXI – O tribunal recorrido ignorou contradições graves no depoimento da testemunha EE, que reconheceu ter visto pagamentos de DD mas procurou negar conhecimento do trespasse.

XXII – O depoimento de EE revela incongruências e contradições internas, demonstrando que tinha conhecimento do novo arrendatário e que apenas procura afastar responsabilidades.

XXIII – O tribunal não valorou devidamente o princípio da imediação e livre apreciação da prova, desconsiderando depoimentos claros e coerentes em detrimento de versões contraditórias.

XXIV – A sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia quanto a factos relevantes demonstrados em audiência, violando o artigo 615.º do CPC.

XXV – A improcedência do pedido do Autor resulta não apenas da falta de fundamento jurídico, mas sobretudo da inexistência de obrigação do Réu à data dos factos.

XXVI – O Réu não tinha posse do locado desde Março de 2023, não tinha obrigação de pagar rendas posteriores, nem podia ser responsabilizado por restituição do imóvel.

XXVII – As rendas posteriores foram pagas pelo novo ocupante, sendo que qualquer dívida remanescente se encontra apenas ligada a este.

XXVIII – O Autor pretende imputar ao Réu uma responsabilidade que já não lhe pertencia, criando uma duplicidade de devedores que não encontra respaldo na lei.

XXIX – A condenação do Réu em custas processuais é igualmente injustificada, dado que a sua absolvição dos pedidos principais implica a sua não condenação em custas.

XXX – A sentença recorrida, ao manter a imputação de rendas e entrega do locado ao Réu, configura violação do princípio da legalidade e da boa-fé contratual.

XXXI – O recurso deve ser provido para que o tribunal de segunda instância substitua a decisão recorrida por outra que reconheça a improcedência da ação.

XXXII – Em alternativa, deve ser anulada a decisão quanto à matéria de facto, ordenando-se a renovação da produção de prova e correta apreciação da mesma.

XXXIII – A relação jurídica de arrendamento cessou, na prática, entre o Réu e o Senhorio, passando a vinculação a existir apenas entre o Senhorio e o novo arrendatário.

XXXIV – O Autor não pode pretender receber do Réu rendas que já foram pagas por terceiro, aceites pelo Senhorio e nunca devolvidas.

XXXV – A manutenção da decisão recorrida criaria um enriquecimento sem causa a favor do Autor, proibido pelo artigo 473.º do Código Civil.

XXXVI – A prova documental e testemunhal foi clara, consistente e convergente no sentido de que houve comunicação, aceitação e execução do trespasse, pelo que deveria ter sido dado como provado.

XXXVII – Por todas estas razões, deve a sentença recorrida ser revogada e o Réu absolvido de todos os pedidos, com custas a cargo do Autor.

Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por decisão que:

a) Julgue como provado que o Réu comunicou ao Senhorio a realização do trespasse, tendo este aceite e reconhecido a transmissão;

b) Declare que a relação contratual de arrendamento entre o Autor e o Réu cessou em Março de 2023, passando a vinculação a existir entre o Senhorio e o novo arrendatário, Sr. DD;

c) Absolva o Réu de todos os pedidos formulados pelo Autor, designadamente a entrega do locado, o pagamento de rendas e qualquer indemnização conexa;

d) Em consequência, absolva o Réu do pagamento de custas e encargos, condenando o Autor nas mesmas, nos termos legais.

I.C.

Respondeu a autora defendendo a improcedência do recurso do réu (incluindo a rejeição da impugnação da decisão de facto, por inobservância dos ónus primários do artigo 640.º, do Código de Processo Civil) e a manutenção da sentença.


I.D.


O recurso foi devidamente recebido pelo tribunal a quo.


Após os vistos, cumpre decidir.


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II. QUESTÕES A DECIDIR:

As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).


Assim, no caso, impõe-se apreciar:

a. Nulidade da sentença recorrida;

b. Impugnação da matéria de facto;

c. Eventual erro de julgamento quanto às eventuais consequências da falta de pagamento da renda ou existência e conhecimento de um trespasse para terceiro.


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III. FUNDAMENTAÇÃO:

III.A. Nulidade da decisão recorrida:

Veio o réu invocar (sua conclusão XXIV) a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia.


Estabelece o artigo 615.º, na sua alínea d), do Código de Processo Civil que: “É nula a sentença quando: (…)

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;”.

A omissão de pronúncia a que se refere essa alínea está relacionada com o disposto no artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, onde se exige ao juiz que resolva todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cujas decisões estejam prejudicadas pela solução dada a outras.


Mas são coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que devia conhecer‑se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Na verdade, “importa não confundir questões colocadas pelas partes, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido. As questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio” (nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/04/2024, processo n.º 1610/19.8T8VNG.P1.S1[1]).


Percorrendo a sentença, não se verifica que tenha deixado de se pronunciar sobre todas as questões que estavam colocadas à sua apreciação, não se confundindo com esta nulidade o eventual erro na apreciação dos factos ou do direito aplicável.


Improcede, por isso, a invocada nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia.


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III.B Fundamentação de facto:

III.B.1 Impugnação da matéria de facto:

Conforme foi identificado pela autora na sua resposta, o réu não cumpriu minimamente os requisitos do artigo 640.º do Código de Processo Civil.


Percorrendo as conclusões apresentadas pelo recorrente não se vislumbra que tenha apontado quais os concretos pontos dos factos que considera incorrectamente julgados (basta atentar no elenco conclusivo que acima se transcreveu). Também não indicou, no corpo das alegações, a decisão que, no seu entender e inequivocamente, deveria ser proferida quanto aos concretos pontos da matéria de facto.


Ora, quando impugna a matéria de facto, o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.


De tal preceito decorre que, na impugnação da matéria de facto, a lei exige o cumprimento pelo Recorrente dos seguintes requisitos cumulativos:

1. a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

2. a indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados;

3. a indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto aos indicados pontos da matéria de facto;

4. a indicação, com exatidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, isto quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sem prejuízo da faculdade que a lei concede ao Recorrente de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.


Estes requisitos impostos para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto têm em vista garantir uma adequada delimitação do objecto do recurso, não apenas para circunscrever o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso, mas também para que a outra parte tenha a possibilidade de exercer o contraditório com o âmbito previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 640.º, designadamente indicando os meios de prova que, a seu ver, infirmem as conclusões do recorrente.


O que se visa é circunscrever a reapreciação do julgamento efetuado a pontos concretos da matéria controvertida, uma vez que os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto não visam a realização de um segundo julgamento de toda a matéria de facto, devendo consequentemente recusar-se a admissibilidade de recursos genéricos contra uma invocada errada decisão da matéria de facto.


Quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deve ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos (no seguimento do entendimento de Abrantes Geraldes[2]).


Como se sumariou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/2022 (processo n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1[3]):

I. Os ónus primários previstos nas alíneas a), b) e c) do art.º 640.º do CPC são indispensáveis à reapreciação pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto.

II. O incumprimento de qualquer um desses ónus implica a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.

Neste mesmo sentido, sumariou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/02/2024 (processo n.º 2351/21.1T8PDL.L1.S1[4]) que: “Para o cumprimento do ónus de especificação do art. 640.º, n.º 1, do CPC, os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios e à exigência da decisão alternativa, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação”.


Também para esta solução aponta a jurisprudência constante deste Tribunal, de que é exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10/10/2024 (processo n.º 1109/21.2T8ENT.E1[5]).


Não está prevista a possibilidade de convidar o recorrente a aperfeiçoar as alegações de recurso quanto ao incumprimento dos ónus impostos a quem impugne a decisão relativa à matéria de facto.


Não será, consequentemente, de reapreciar no presente caso a impugnação do réu sobre a matéria de facto, impondo-se a imediata rejeição do recurso subordinado nessa parte.


Pelo exposto, rejeita-se o recurso do réu na parte relativa à impugnação da matéria de facto.


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Existe, porém, um lapso de escrita no elenco dos factos provados da sentença recorrida e que se retira da sua restante fundamentação (desde logo dos 5.º e 6.º parágrafos da sua página 6, de onde se retira que o conhecimento a que se refere o ponto 9 dos factos provados não é sobre uma falta de comunicação, mas sobre a circunstância de um terceiro explorar o estabelecimento). Assim, onde se lê, nesse ponto 9, que “O Autor BB teve conhecimento do referido em 7)” deve passar a constar: “O Autor BB teve conhecimento do referido em 8)”.


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III.B.2. Factos provados:

Considera-se, por isso, a seguinte matéria de facto provada:

1. Por escrito particular denominado “Contrato de arrendamento comercial”, datado de 01.12.2018, assinado por BB, na qualidade de senhorio, e pelo Réu, na qualidade de inquilino, estes celebraram um acordo por via do qual o primeiro cedeu ao segundo mediante o pagamento de uma renda mensal no valor de 600,00€, o gozo do prédio urbano sito em Vila A, inscrito na matriz sob o artigo 1665 daquela freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de CIdade B com o número 12554, para instalação de um snack-bar.

2. O acordo referido em 1) foi celebrado pelo prazo de 5 anos, com início em 01.12.2018 e termo em 31.12.2023, renovável, automaticamente, por períodos de 1 ano.

3. As partes acordaram que a renda seria paga até ao dia 15 de cada mês.

4. Por escrito particular datado de 20.03.2023 intitulado “Contrato de trespasse”, assinado pelo Réu, na qualidade de primeiro Contraente, e por DD, na qualidade de Segundo Contraente, foi celebrado o seguinte acordo:

(…)

Primeira Cláusula

O Primeiro Contraente é titular do direito de trespasse do estabelecimento de Snack-Bar instalado no rés-do-chão do prédio inscrito na matriz sob o n.º1665, na freguesia de Vila A, concelho de CIdade B e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 12554/20121214, sito na Rua 1, n.º24, Vila A.

Segunda Cláusula

O Primeiro Contraente adquiriu a posição de arrendatário do estabelecimento supra identificado por Contrato de Arrendamento celebrado em 01 de Dezembro de 2018.

Terceira Cláusula

O proprietário do estabelecimento indicado é BB, NIF ..., residente em Sítio 2, ... Vila A.

Quarta Cláusula

1. Pelo presente contrato, o Primeiro Contraente trespassa ao Segundo Contraente o supra identificado estabelecimento, pelo preço de €44.000,00 (quarenta e quatro mil euros), o qual será pago da seguinte forma:

a) €5.000,00 (cinco mil euros) a título de sinal e princípio de pagamento, será pago através de transferências bancária com a assinatura do presente contrato, que só produz os seus efeitos após boa cobrança do pagamento do sinal;

b) €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) pagamento a efectuar através de transferência bancária até ao dia 15 (quinze) de Abril de 2023;

c) O remanescente será pago em 7 (sete) prestações mensais, a pagar aos dias 01 de cada mês, iniciando-se a primeira prestação dia 01 de Maio de 2023.

2. A mora nos pagamentos constituiu o tomador do trespasse na obrigação de liquidar o valor em dívida acrescido de 50% (cinquenta porcento).

3. O trespasse conclui-se com o pagamento integral de todas as importâncias.

Quinta cláusula

O presente trespasse é feito com todo o activo do referido estabelecimento, incluindo todo o equipamento, móveis e mercadorias, cuja listagem se anexa ao presente contrato.

Sexta Cláusula

Por todo e qualquer litígio emergente do presente contrato é exclusivamente competente o Tribunal Judicial de Faro, Central Cível de CIdade B, com expressa renúncia a qualquer outro, sendo a substância do presente contrato regida pela lei material portuguesa.

Oitava Cláusula

O presente contrato traduz e constitui o integral acordo celebrado entre as partes, pelo que vão assinar em duplicado, ficando cada uma das partes com o seu exemplar.

Vila A, 20 de Março de 2003. (…)”.

5. Em 10.05.2023, o Réu remeteu ao Autor BB carta registada com aviso de recepção com o seguinte teor:

Vila A, 09 de Maio de 2023

Assunto: Contrato de trespasse

Exmo Senhor,

Venho por este meio informar V. Exa. para os devidos efeitos legais que pretendo efectuar o trespasse do estabelecimento sito na Rua 3n.º24, ... Vila A, já comunicado e acordado verbalmente com V. Exa., do qual sou arrendatário conforme contrato de 01 de Dezembro de 2018, cujo valor do trespasse é de € 44.000,00 (quarenta e quatro mil euros) ao Sr. DD, NIF ..., de nacionalidade francesa, residente em França e celebração do respetivo contrato definitivo até final de Dezembro de 2023 e cujo contrato promessa já se encontra celebrado.

Com os melhores cumprimentos.

(…)”.

6. A carta referida em 5) foi recebida pelo Autor BB em 22.05.2023.

7. O Réu não entregou ao senhorio cópia do acordo referido em 4).

8. O estabelecimento comercial instalado no arrendado passou a ser explorado por DD em data não concretamente apurada entre o mês de Março de 2023 e o mês de Junho de 2023.

9. O Autor BB teve conhecimento do referido em 8).

10. A partir do mês de Junho de 2023, inclusive, por indicação do Réu, DD começou a efectuar o pagamento da renda referida em 1) directamente ao Autor através de transferência bancária.

11. O referido DD efectuou pagamentos no valor mensal de 600,00€ nos meses de Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Dezembro de 2023, Fevereiro, Julho, Agosto e Setembro de 2024 e em 05.02.2025 efectuou o pagamento da quantia de 4.800,00€.

12. A acção foi instaurada em 26.03.2024.

13. O Autor BB faleceu em ........2024, tendo-lhe sucedido, como única e universal herdeira, a sua filha CC.


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III.B.3. Factos não provados:


Do elenco dos factos não provados continuará a constar, tal como na sentença recorrida, que não se provou que:

A. Encontra-se em dívida as rendas referentes aos meses de Novembro e Dezembro de 2023.

B. Em Junho de 2023 o primitivo Autor reuniu com o Réu e com DD no estabelecimento comercial instalado no arrendado.

C. Aquando do referido em b) o Autor aceitou o trespasse e comprometeu-se a celebrar novo contrato de arrendamento com DD.

D. O Réu notificou o primitivo Autor da realização do trepasse.


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III.C. Fundamentação jurídica:


a) Cabia ao réu, que o alegou enquanto facto extintivo do direito do autor, o ónus de provar que ocorreu um trespasse (nele se incluindo a transmissão da sua posição de arrendatário), como decorre do disposto no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.


Além do inultrapassável requisito de forma (cf. artigo 1112.º, n.º 3, do Código Civil) e que não permite que se prove a existência do trespasse pelas suas declarações ou por prova testemunhal (cf. artigo 364.º, n.º 1, do Código Civil, daí decorrendo a sua falta de razão nas conclusões XII e XIII), a verdade é que, como se decidiu na sentença recorrida, do escrito junto (e constante do ponto 4 dos factos provados), resulta que a eficácia do único acordo que se provou existir estava dependente de um pagamento futuro de todas as quantias nele previstas (cf. artigo 270.º do Código Civil e n.º 3 da cláusula terceira do referido escrito), mas não se sabe se tal condição ocorreu e quando.


E era ao réu que cabia a prova da verificação da condição para se prevalecer da plena eficácia do negócio que invocou para se opor à pretensão do autor, pelo que não se provando a mesma não se pode dizer que o terceiro tenha adquirido o direito ao arrendamento (durante a pendência da condição suspensiva, o adquirente detém uma simples expectativa de vir a adquirir o direito quando se verificar a condição).


Por outro lado, decisivamente, decorre de forma clara do artigo 1038.º, alínea g), do Código Civil, que é obrigação do locatário comunicar ao locador que ocorreu um trespasse e que tal comunicação deve ser feita no prazo de 15 dias. Essa obrigação de comunicação é, expressamente, realçada no artigo 1112.º, n.º 3, do Código Civil, não se confundindo com a comunicação para o exercício do direito de preferência previsto no artigo 1112.º, n.º 4, do Código Civil (cf. artigo 416.º do Código Civil)


Ora, como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/05/2005 (processo n.º 05B1090[6]) “A comunicação para preferência não é confundível com a comunicação posterior à efectiva realização do trespasse que a lei exige com a finalidade de permitir o controlo da regularidade desse negócio, a qual, por isso mesmo, a prévia comunicação da intenção de realizá-lo não pode suprir”.


E, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/11/2008 (processo n.º 08A3399[7]), citando Orlando Carvalho, “a exigência do acto notificativo “não deriva nem do carácter sublocatício do trespasse, nem da necessidade de permitir ao senhorio quer o exercício do direito de opção, quer o benefício da elevação da renda: deriva do interesse do senhorio de fiscalizar o trespasse, para saber se a cessão do arrendamento é imperativa. A lei impõe-lhe a cessão do uso do imóvel, mas na condição de se transmitir o estabelecimento como um todo. Para controle disto, é que ele tem de saber o que se fez”.


O escrito que consta do ponto 5 dos factos provados não cumpre, como parece evidente, nem os requisitos nem o prazo que se impunham ao réu, já que resulta da sua literalidade que este apenas comunicou ao senhorio que se iria celebrar um trespasse no futuro (falou, mesmo, na simples existência de uma promessa de trespasse). Além de que não enviou (como ficou claro pelo que resultou provado no ponto 7 dos factos provados) cópia do contrato celebrado, pelo que tal omissão não permitiu ao senhorio conhecer os exactos termos do que foi contratado (desde logo a verdadeira natureza do acordo, forma de pagamento do preço, eventuais garantias e destino a dar ao estabelecimento).


Ora, ainda que do escrito referido no ponto 4 se pudesse retirar a existência de um trespasse, sempre se pode dizer, com segurança, que falhou o réu no cumprimento dos seus deveres legais de comunicação.


De todo o modo, pode haver a responsabilização do trespassante relapso pelo cumprimento da obrigação de pagamento das rendas vencidas após o trespasse não comunicado.


Embora não exista unanimidade na forma de o alcançar (para uns[8], a falta de comunicação torna ineficaz a transmissão relativamente ao senhorio e será fundamento de resolução do contrato e despejo do anterior locatário, com obrigação de pagamento das rendas por aquele – que foi a tese seguida na sentença recorrida; para outros[9], haverá incumprimento do dever acessório ou de protecção por parte do anterior locatário e obriga aquele anterior locatário ao ressarcimento dos danos, designadamente os relativos à ocupação do locado, no valor das rendas, ainda que o imóvel venha a ser ocupado por terceiro) existe convergência na solução.


Assim, no caso, quer pela inexistência de trespasse (como afirmado na sentença recorrida), quer por falha na sua comunicação, sempre seria devido ao locador o pagamento das rendas por parte do ora réu, que para todos os efeitos continua como locatário perante a ora autora.


Nessa medida, improcede esta parte do recurso.


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b) Por outro lado, invoca o recorrente que age o locador em abuso de direito.


No entanto, importa considerar que o fundamento da resolução não foi a existência do trespasse ou a cedência não autorizada do locado, mas a falta de pagamento de rendas.


De todo o modo, do silêncio do locador (subsequente à recepção do escrito em que se comunicou a promessa de um trespasse, tal como resulta dos pontos 6 e 9 dos factos provados) não se retira nem um reconhecimento do trespasse nem, sobretudo, qualquer facto passível de ter gerado o convencimento de que iria abdicar de todas as rendas devidas pelo uso do locado.


Não se vislumbra, por isso, qualquer abuso da sua posição jurídica sobretudo quando se vislumbra que, ficando na dúvida perante a comunicação efectuada sobre se efectivamente iria ocorrer – e quando – um trespasse e considerando, ainda, a ausência de qualquer outra comunicação (de onde decorresse que o trespasse já se tinha tornado definitivo) a sua relação contratual formal se mantinha apenas com o réu (e, daí, a procedência dos pedidos).


Improcede, por isso, também esta parte do recurso.


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c) Finalmente, a sentença recorrida considerou expressamente as rendas entretanto recebidas do terceiro pelo locador (confirmando-se que se mantêm, ainda assim, rendas em atraso – como o réu não deixa de reconhecer), pelo que improcede também esta questão invocada pelo recorrente (não existindo, por isso, qualquer enriquecimento sem causa).


*


Concluindo, quer porque não provou a existência de trespasse, quer porque, mesmo que este existisse, não o comunicou devidamente, deve ser o réu condenado nos exactos termos decididos.


Naturalmente que, por ter ficado vencido, dever arcar com o pagamento das custas da acção.


Nessa medida, deve confirmar-se integralmente a sentença recorrida.


*


As custas do recurso ficarão a cargo do recorrente, por ter ficado vencido, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.


***


IV. DECISÃO:


Em face do exposto, julga-se totalmente improcedente o recurso e, em conformidade, confirma-se a sentença recorrida.


Condena-se o réu nas custas do recurso.


Notifique.



Évora, 16 de Dezembro de 2025


Filipe Aveiro Marques


José António Moita


Sónia Kietzmann Lopes

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1. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/cb9583125d0cc62b80258afc004cdfc9.↩︎

2. Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, pág. 200 e ss..↩︎

3. Acessível em https://www.dgsi.pt/JSTJ.NSF/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/526a06e36e808e84802587e3003cb7ce.↩︎

4. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1007b672c0f9ed2980258ad6005cfad7.↩︎

5. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/009a5f03f424577380258bc5005038be.↩︎

6. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/294638840af07e318025703f0056410a.↩︎

7. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/155c57dcc2c837dd8025750c004b969b.↩︎

8. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/09/2020, processo n.º 6013/18.9T8LSB.L1-7, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/66769210744791df802585fc004beced, citando Graveto de Morais.↩︎

9. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/10/2018, processo n.º 20580/15.5T8PRT.P1, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e9133602a0dc6f978025835c00544063.↩︎