Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | SÉNIO ALVES | ||
Descritores: | OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA GRAVE MOTIVO FÚTIL MEDIDA DA PENA | ||
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Data do Acordão: | 10/11/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE | ||
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Sumário: | 1. «Para os efeitos previstos no artº 132º, nº 2, al. e) do Cod. Penal, actuar sem motivo não é sinónimo de actuar movido por motivo fútil». | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES QUE COMPÕEM A 2ª SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA: I - No processo comum colectivo nº 2/09.1PFSTB que corre termos na Vara de Competência Mista do Tribunal de Setúbal, os arguidos A. e R. foram julgados e condenados, o primeiro pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples p.p. pelo artº 143º, nº 1 do Cod. Penal, o segundo pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada p.p. pelos artºs 144º, al. d) e 145º, nº 1, al. b), com referência ao artº 132º, nº 2, al. e) do Cod. Penal, nas penas de 120 dias de multa à razão diária de 8 euros e de 6 anos de prisão, respectivamente. Inconformado, recorreu o arguido R., extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas): «1- O ora recorrente foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensas à integridade física grave qualificada, p. e p. pelo artigo 144°, al. d) e 145.°, n.º 1, al. b) do Código Penal, por referência à al. e) do art. 132.°, n.º 2 do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos; 2. Inexistiu prova, segura, bastante e suficiente, para se concluir que foi o recorrente, quem, exclusivamente, provocou no assistente a agressão. 3. Não se logrou apurar, concretamente, o objecto, de natureza corto-perfurante, utilizado para a agressão, ou, pelo menos, se ao recorrente pertencia. 4. A agressão provocada no assistente poderia ter sido consequência do confronto físico entre assistente e os co-arguidos, sem ter existido por parte do recorrente o propósito de atingir o assistente. 5. Pelo que, salvo o devido respeito, pelo menos, tendo em conta o princípio "in dubio pro reo", consagrado no artigo 32° da CRP, o recorrente, (deveria) ter sido absolvido. 6. Se assim não se entender, e inexistindo qualquer circunstância qualificativa do tipo de ilícito penal, nomeadamente, motivo torpe ou fútil; especial perversidade - art. 132.°, n.º 2, al. e), do C.P., deveria, o recorrente ser julgado e condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade grave, p. e p. pelo art.º 144°, al. d), do C.P.. 7. Por todas estas razões, e outras que V. Exas., suprirão, deveria o recorrente ser condenado, pela prática em autoria material de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo art. 143.°, n.º 1. e 144.°, als. c) e d) do Código Penal., numa pena inferior a cinco anos, de prisão. 8. Pena essa que deveria ficar suspensa na sua execução por igual período, sujeita a um regime de prova - art. 50.°, n.º 1 e 51.°, do Código Penal. 9. Ficaram violados os arts. 16.°, n.º 3 do C.P.P., arts .50.°, 70,°, 71,° do C.P e art.º 32 da CRP». Respondeu o Digno Magistrado do MºPº pugnando pela improcedência do recurso e extraindo da sua resposta as seguintes conclusões (igualmente transcritas): «1. Relativamente à agressão de que o ofendido V. foi vítima, verifica-se que só o arguido R. estava posicionado no local onde o golpe foi desferido. 2. Além disso, face às lesões daí resultantes, são evidentes as características do instrumento utilizado. 3. Pelo que não subsistem quaisquer dúvidas que o golpe foi desferido pelo arguido Ricardo Pereira com um instrumento corto-perfurante. 4. Assim, não foi no caso dos autos, contrariamente ao alegado pelo recorrente, violado o princípio do "in dubio pro reo". 5. A sanção foi aplicada na medida certa pelo Tribunal que enunciou, com profundidade bastante, as razões que o levaram a tal decisão. Teve em linha de conta os factores a considerar para a determinação da medida concreta da pena, que decorrem dos art.°s 40°, 70° e 71º, todos do C. Penal, doseando a pena no "quantum" adequado. 6. Pelo que, deverá considerar-se o recurso interposto pelo arguido improcedente, mantendo-se o Acórdão Recorrido nos seus precisos termos». Também o assistente pugna pela improcedência do recurso, em resposta de onde extrai as seguintes conclusões (mais uma vez integralmente transcritas): «1 - Das declarações do assistente V. e testemunhas, JE e JL retira-se a sua consonância quanto a quatro aspectos fundamentais na motivação da Decisão de Facto e devido enquadramento da dinâmica do efectivamente ocorrido: 2 - O que se passou em momento imediatamente anterior aos factos, tendo o assistente e as testemunhas sido abordados pelos arguidos enquanto se encontravam no estacionamento da Avenida Luísa Todi, junto do carro de um deles, as provocações destes últimos, a falta de reacção dos primeiros e a sua imediata decisão de abandonar o local; 3 - Posição do recorrente e do co-arguido no momento em que o assistente sofreu a agressão com instrumento corto-perfurante, estando o segundo debruçado dentro da viatura com os dois braços lá enfiados, numa posição fronteira ao assistente e o primeiro por detrás deste, na zona do pilar central do automóvel, em zona compatível com a entrada da ferida provocada pelo objecto supra indicado; 4 - A ausência de quaisquer outros indivíduos nas proximidades da viatura aquando da entrada do assistente na mesma, além dos arguidos e das duas testemunhas; 5 - O perfeito reconhecimento e distinção entre o recorrente, R., mais alto e de casaco preto, e o co-arguido, A., mais baixo e de casaco branco. 5 - O dever, mais do que a possibilidade, de o julgador aquando da apreciação da matéria de facto, ter presentes cenários alternativos que potencialmente expliquem o resultado com que se depara, existe naturalmente quando na produção de prova existem elementos opostos ou incongruências tais que lhe criam uma dúvida razoável, o que, no caso presente não acontece. 6 - Mantendo-se nos seus precisos termos a Decisão de Facto, conforme pugna o assistente, não vislumbramos como poderá a conduta do recorrente deixar de ser agravada nos termos da alínea e) do número 2 do artigo 1320 do Código Penal. 7 - A elevada ilicitude do facto praticado pelo recorrente à qual não são estranhos o meio utilizado e o efeito do mesmo, colocando em sério risco a vida do assistente e o dolo directo, logo intenso, da sua conduta, aliados à ausência de manifestação de qualquer arrependimento (nem confissão existiu), por si só, justificariam a aplicação da pena de prisão de seis anos. 8 - A despeito da inserção social e familiar do recorrente, para a qual contribuirá não tanto a actuação do mesmo, com um histórico de consumo regular de álcool e haxixe e condenações por crimes rodoviários, mas mais a asa protectora dos seus progenitores, a falta de perspectivas profissionais e a reduzida capacidade de pensamento alternativo e consequencial indicam uma elevada exigência de prevenção especial. 9 - Já o alarme social gerado por condutas como a do recorrente, principalmente num centro urbano como o de Setúbal, tão fustigado pela generalização da posse de armas proibidas e formação de grupos mais ou menos organizados de jovens sem perspectivas que se dedicam à perturbação da ordem pública, revela uma elevada exigência de prevenção geral». Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta é, igualmente, de parecer que o recurso não merece provimento, louvando-se nos argumentos sustentados pelo Ministério Público em 1ª instância. Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não houve resposta. II. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir. Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP [1] - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos estão as seguintes questões: a) mostra-se incorrectamente julgada a matéria de facto, havendo fundamento para a sua modificação? b) inexiste fundamento para a qualificação do crime de ofensa à integridade física grave? c) é excessiva a pena de prisão concretamente aplicada? O tribunal recorrido considerou assente a seguinte factualidade: 1. No dia 3 de Janeiro de 2009, pelas 4 horas, o ofendido V., JL e os arguidos R. e A. encontravam-se num parque de estacionamento sito na Av. Luisa Todi, próximo da pastelaria “Marisol”. 2. Nessas circunstâncias os arguidos, apesar de não conhecerem o ofendido, nem os dois amigos deste, que se encontravam a tentar resolver um problema mecânico numa viatura, abordaram-nos de forma provocatória, proferindo expressões como “vocês são muito feios”. 3. Os arguidos pediam insistentemente cigarros ao ofendido e aos seus amigos, mau grado as sucessivas respostas destes dizendo que não tinham porque não fumavam. 4. Temendo que tais insistências dessem lugar a agressões, porque os arguidos persistiam nesta conduta, V. e os que o acompanhavam decidiram entrar nos respectivos veículos, a fim de dali sair. 5. Porém, logo após V. se sentar no lugar destinado ao passageiro no veículo “Renault Clio”, de matrícula…., pertencente ao seu amigo JL, o arguido A. aproximou-se da respectiva janela e, aproveitando a circunstância do vidro se encontrar aberto, colocou os braços no interior da viatura e começou a agredir V., desferindo-lhe chapadas que o atingiram nas mãos, utilizando a força dos seus braços para vencer a resistência que aquele opunha. 6. Enquanto isso, o arguido R. foi-se também colocar imediatamente ao lado da janela do lugar onde estava V. sentado e, aproveitando a circunstância deste se encontrar com os braços ocupados a procurar evitar ser agredido por A., com um objecto de características não concretamente apuradas mas de natureza corto-perfurante, desferiu um golpe na região torácica de V. 7. O golpe desferido por R. atingiu V. na parte inferior do hemitórax direito, junto à linha médio-axilar, penetrando através de uma ferida incisa com 2 cm. 8. V. foi de imediato conduzido ao Hospital de S. Bernardo onde lhe foi diagnosticado traumatismo do pulmão com ferimento penetrante do tórax direito com ferida hepática de grau 3. 9. Foi sujeito a intervenção cirúrgica para colocação de um cateter torácico subaquático, para drenagem do sangue. 10. V. permaneceu internado no Hospital de S. Bernardo até ao dia 12 de Janeiro de 2009, tendo estado três dias sob drenagem toráxica. 11. Após ter tido alta foi seguido em consulta externa para controlo imagiológico. 12. Tais lesões demandaram para se consolidar um período de 30 dias de doença com igual período de incapacidade para o trabalho. 13. Não fosse a pronta deslocação para o Hospital e a assistência que foi prestada a V., o mesmo teria falecido em virtude das lesões que lhe foram causadas. 14. R. agiu de forma livremente determinada e consciente, querendo e conseguindo ofender gravemente a integridade física de V. e conformando-se com a possibilidade da vida deste ficar em perigo. 15. Encontrava-se, também, ciente da perigosidade que um golpe perfurante no abdómen pode encerrar, agindo precisamente nesse pressuposto. 16. Por outro lado, na prática dos factos que lhe são imputados, quis e conseguiu o arguido A. molestar fisicamente V. 17. Agiram ambos os arguidos de forma livremente determinada e consciente de que a respectiva conduta era susceptível de responsabilização criminal. (Factos dos pedidos de indemnização civil) 18. O assistente é Engenheiro e encontrava-se à data dos factos e ainda actualmente a trabalhar em Cabo Verde, ao serviço e por conta da Firma A. — Empreiteiros de Obras Públicas SA. 19. Nessa altura, o Assistente, a sua Companheira, V., e Enteada, S. já viviam naquele País. 20. Quando os factos ocorreram, o demandante encontrava-se a passar um curto período de férias em Portugal (férias de Natal) na companhia da sua Família. 21. O dia 3 de Janeiro era a véspera do dia de regresso do demandante a Cabo Verde, com a sua Companheira e Enteada. 22. Dia esse que foi escolhido por V. e pelos seus amigos para saírem à noite em Setúbal, indo a um bar na Avenida Luísa Tody, para festejar a notícia de que o ofendido ia ser pai. 23. Momento de convívio que terminou com a ida do assistente ao Hospital de São Bernardo a fim de ser submetido a uma intervenção cirúrgica, com carácter de urgência. 24. O assistente viveu momentos de pânico quando se apercebeu da gravidade das lesões que sofrera e o perigo que as mesmas acarretavam. 25. Depois daquele dia, quando vem a Portugal, o assistente evita sair à noite com receio de algo possa acontecer. 26. À data dos factos o assistente auferia uma remuneração mensal líquida no valor de € 3.375,00. 27. Devido aos factos, em Janeiro de 2009, o assistente só recebeu a quantia de €109,68, em virtude de ter estado de baixa 28 dias. 28. Entre o dia 3 de Janeiro e a presente data, o assistente despendeu a quantia de €49,60 em despesas médicas e medicamentosas. 29. A companheira do assistente teve, igualmente, que ficar em Portugal (com a sua filha), para acompanhar e assistir o seu companheiro, durante o período de convalescença deste. 30. Em consequência o visto de permanência da sua companheira e enteada caducou. 31. Facto que obrigou o assistente, único sustento desta família, a ter de despender a quantia de €637,30 a título de pagamento de honorários e despesas com advogado para tratar do processo administrativo de prorrogação do visto das suas familiares. 32. No Hospital de São Bernardo em Setúbal, o ofendido foi assistido no serviço de urgência, tendo permanecido internado por nove dias, sujeito a intervenção cirúrgica, analises e exames médicos, o que implicou um custo no valor global de € 3.404,78. Mais se apurou que: 33. O arguido R. vive com os pais. 34. Está desempregado desde há cerca de dois anos, realizando alguns trabalhos como empilhador ou embalador por conta de uma empresa de serviço temporário, auferindo em média cerca de € 280/€ 300 por mês. 35. R. é o segundo de quatro filhos do casal de progenitores e cresceu integrado num agregado familiar que parece ter-se esforçado por lhe proporcionar condições adequadas ao desenvolvimento das suas capacidades e competências pessoais. 36. Iniciou a frequência escolar em idade regular, contudo viria a abandonar a escola com 17 anos após ter completado o 8º ano e depois de ter repetido quatro vezes consecutivas esse ano escolar. 37. Com 17 anos iniciou a vida profissional como servente de pedreiro actividade que manteve por seis meses. Posteriormente trabalhou por período idêntico por conta de uma firma de montagem de pladur e já com 18 anos começou a trabalhar como segurança de uma empresa privada “SOV” exercendo funções de segurança no supermercado Jumbo, por apenas 2 meses uma vez que ainda não tinha completado o 9º ano de escolaridade. Trabalhou depois no mesmo ramo na empresa “P.” desempenhando funções na portaria da fábrica “Isidoro”, onde permaneceu por 2 meses. Após trabalhou, cerca de 10 meses, como segurança na empresa “Vinsa”, vindo a ser despedido por desentendimentos com o seu superior hierárquico. Trabalhou ainda por 1 ano como ajudante de armazém na empresa “Ono packaging”, não tendo sido renovado o contrato. 38. Aprecia o convívio com um grupo de amigos que mantém desde a infância e juntos costumam frequentar bares de Setúbal, na companhia destes assume ser frequente a ingestão de bebidas alcoólicas e o consumo esporádico de haxixe. 39. Revela acentuada imaturidade para a sua idade e que se manifesta na reduzida capacidade de pensamento alternativo e consequencial e que já demonstrou através de comportamentos inconsequentes que adoptou e pelos quais foi condenado. 40. O arguido aparenta ter mantido um percurso de vida ajustado até aos 16 anos, momento que começou a conviver com jovens conotados com alguns comportamentos de risco, com os quais manteve durante alguns anos o consumo regular de álcool e haxixe. 41. O arguido R. foi condenado: - por decisão de 24.04.2007, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, pela pratica em 23.04.2007, de um crime de condução de veiculo sem habilitação legal, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de €4,00. - por decisão de 25.02.2008, do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, pela pratica em 10.02.2008, de um crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de €5,00. 42. O arguido A. vive com os seus pais. 43. Trabalha como ajudante de armazém auferindo a retribuição mensal de €700,00. 44. O arguido paga uma prestação mensal para amortização do empréstimo que contraiu para aquisição de casa própria no valor de €280,00. 45. O arguido tem o 6º ano de habilitações literárias. 46. O arguido A. não tem antecedentes criminais. O tribunal recorrido considerou não terem ficado por provar quaisquer factos com interesse para a decisão da causa. E fundamentou a sua convicção na decisão da matéria de facto da seguinte forma: «O tribunal formou a sua convicção (atendendo aos critérios enunciados no art. 127º do Código de Processo Penal), com base nas declarações do assistente V. e no depoimento das testemunhas JE e JL, as quais presenciaram os factos, descrevendo com espontaneidade e de modo coerente, isento e objectivo como os factos ocorreram, merecendo, por isso, credibilidade. O assistente e as testemunhas foram unânimes na descrição da actuação dos arguidos esclarecendo (visto que não os conheciam) as características que os distinguiam e as roupas que vestiam, tendo afirmado sem quaisquer duvidas que só estes dois arguidos é que se aproximaram da janela do veículo onde estava sentado o ofendido no lugar do pendura, encontrando-se o arguido A. com os braços dentro da janela e posicionado do lado do espelho e do capot do carro e o arguido R. imediatamente ao seu lado junto ao pilar da porta do mesmo. Assim e pese embora não tenha sido apreendida qualquer arma, não subsistiram quaisquer dúvidas ao Tribunal que o golpe foi desferido pelo arguido R. com um instrumento corto-perfurante porque só este estava posicionado no local de onde foi desferido o golpe, ao lado do arguido A. e imediatamente atrás do ofendido, sendo as características do instrumento utilizado evidentes face à lesão daí resultante, como foi também descrito pelo ofendido que disse não ter visto o objecto mas sentiu um “pancada” por debaixo do braço junto à axila. As testemunhas JE e JL, referiram ainda que, antes da agressão quando lhes pediam insistentemente por cigarros, o arguido R. ameaçou se era preciso mostrar uma coisa que tinha aqui para aparecer logo o tabaco. Nem o assistente, nem as testemunhas conseguiram explicar a actuação dos arguidos que não conheciam de lado nenhum. A testemunha T., amigo dos arguidos e que se encontrava dentro do veículo em que estes se deslocavam, confirmou que só os arguidos se aproximaram do ofendido tendo este e duas amigas com quem estavam, permanecido dentro do veículo. A testemunha N., agente da PSP, afirmou que nessa noite procedeu à detenção dos arguidos na sequência do que lhe foi dito por uma das testemunhas que presenciou os factos não tendo, apesar das diligências efectuadas conseguido encontrar a arma utilizada. A prova das lesões sofridas por V. e os cuidados que necessitou resultou dos elementos clínicos de fls. 19 a 69 do auto de exame de fls. 101 e 102 e dos esclarecimentos prestados pelo perito médico o qual esclareceu que o assistente sofreu lesões graves do ponto de vista médico, designadamente ferida hepática um toque no pulmão e hemotórax o que significa que tinha sangue no pulmão, o que vai provocar uma anemia e uma dificuldade respiratória, sendo necessário drenar o sangue. Se não houvesse essa pronta intervenção médica levaria provavelmente à morte do ofendido, uma vez que estas complicações são um processo dinâmico tem que se travar a hemorragia e fazer a drenagem para travar as complicações que já estavam a surgir, o ofendido já estava pálido, a suar, com dificuldade respiratória. Como foi logo assistido conseguiu-se travar este processo dinâmico que poderia conduzir à morte. Interessou ainda as fotografias do veículo de fls. 6 e 7 onde são bem visíveis as manchas de sangue do ofendido no banco do pendura. Os arguidos não quiseram prestar declarações quanto aos factos. Os factos do pedido de indemnização civil resultaram dos documentos de fls. 137 a 154 (declaração da entidade patronal, recibos de remuneração, despesas de hospital e de radiografia, nota de honorários da advogada e certificados de incapacidade temporária para o trabalho) conjugado com depoimento das testemunhas JE, JL, DC e AS que, de modo isento, descreveram o estado psicológico e os transtornos causados ao assistente em consequência desta agressão, assim como o medo que sentiu e receios com que ficou. A prova do pedido do Centro Hospitalar de Setúbal, EPE, resultou da documentação clínica de fls. 19 a 69 e das facturas de fls. 159 e 160. As testemunhas R. e E., amigos do pai do arguido R., depuseram quanto à personalidade do arguido afirmando que este é calmo e amigo dos pais. As condições pessoais e económicas dos arguidos resultaram das declarações prestadas e dos relatórios sociais de fls.278. Os antecedentes criminais resultaram do CRC de fls.376 e 383». III. Decidindo: Como “questão prévia”, afirma o recorrente que o facto de o Ministério Público não ter feito uso, no caso, da faculdade prevista no artº 16º, nº 3 do CPP (“quando tantos casos se verificam neste mesmo tribunal, com crimes da mesma natureza e moldura penal”) determinou que o tribunal colectivo tivesse ficado “limitado a aplicar uma pena igual ou superior a 5 anos”. Se bem que nada requeira, suscita o recorrente esta questão, que deixa à observação deste Tribunal. Maugrado o esforço desenvolvido, não conseguimos descortinar o alcance desta alegação. De um lado, é inquestionável que face à moldura penal do crime por cuja autoria o arguido R. vinha acusado, o julgamento era da competência do tribunal colectivo – artº 14º, nº 2, al. b) do CPP. Não tendo o MºPº feito uso da faculdade prevista no artº 16º, nº 3 do CPP (naturalmente por não ter entendido que, em concreto, se justificava pena de prisão igual ou inferior a 5 anos de prisão), o julgamento foi efectuado pelo tribunal competente para o efeito, em razão da estrutura. E a afirmação de que o tribunal colectivo ficou limitado a aplicar uma pena igual ou superior a 5 anos só pode derivar de um qualquer lapso de escrita: como é evidente e dispensa grandes considerações, o tribunal colectivo tem competência para aplicar qualquer pena, não estando limitado por qualquer mínimo (a não ser, como é evidente, o fixado para o tipo penal em apreço). Posto isto: a) mostra-se incorrectamente julgada a matéria de facto, havendo fundamento para a sua modificação? Este Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (artº 428º do CPP). Nos termos do disposto no artº 431º do mesmo diploma, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada se a prova tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do artigo 412º (al. b)). E conforme disposto neste último dispositivo legal, “quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas”. Acrescenta o nº 4 do citado artº 412º do CPP que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”. Pressuposto da modificação da matéria de facto é, pois, que as provas produzidas imponham decisão diversa da recorrida. Que imponham, não que (apenas) permitam. Ora, na situação em apreço o que o recorrente pretende, salvo melhor opinião, é apenas questionar o processo decisório dos Mºs juízes em matéria de facto, afirmando que as provas produzidas, segundo as regras da experiência comum, deveriam ditar outro factualismo apurado, que mais não fosse em obediência ao princípio in dubio pro reo. Mas [2], como bem se decidiu no Ac. RP de 6/10/2010 (rel. Eduarda Lobo), in www.dgsi.pt., “o recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência”. Em matéria de apreciação da prova, manda o artº 127º do CPP que, salvas as excepções previstas na lei, aquela seja apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador. Este sistema de livre apreciação da prova aí consagrado (por contraposição ao sistema de prova legal) manifesta-se sob dois prismas: - de um lado, o juiz há-de decidir de acordo com a sua íntima convicção, formada do dinâmico confronto das provas arroladas pela acusação e pela defesa e daquelas que, ele próprio e oficiosamente, entender por bem produzir e conhecer; - de outro, tal convicção há-de ser formada com base em regras técnicas e de experiência (e bom senso) comum sem, contudo, qualquer sujeição a critérios de valoração de cada um dos meios probatórios, legalmente pré-determinados. Como esclarecidamente se afirma no Ac. Trib. Const. nº 464/94, de 1/7/97, www.tribunalconstitucional.pt., “este princípio da prova livre ou da livre convicção do julgador não é contrário às garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Em oposição a um sistema segundo o qual o valor da prova é dado por critérios legais-abstractos que o predeterminam, dotados de um carácter de generalidade [que é o sistema da prova legal], o princípio da prova livre evidencia a dimensão concreta da justiça e reconhece que a procura da verdade material não pode prescindir da consideração das circunstâncias concretas do caso em que essa verdade se recorta”. E porque assim é, não custa aceitar que os mesmos elementos de prova, exibidos em audiência, mereçam apreciações diversas por banda dos julgadores, por um lado, e do arguido (ou do Ministério Público ou do assistente) por outro. Isso, porém, não acarreta qualquer vício para a sentença assim proferida nem, necessariamente, se traduz em erro de julgamento (na apreciação da prova). A livre convicção do julgador, posto que justificada, ponderada e, por isso, não arbitrária, aliada às regras da experiência, é o modo como, no nosso sistema processual penal, deve ser apreciada a prova. É na conjugação destes dois factores (livre apreciação do julgador e regras da experiência) que a prova há-de ser apreciada (a não ser, naturalmente, que se trate de prova tarifada ou vinculada). Naturalmente, liberdade (de apreciação) não se confunde com arbitrariedade. O juiz não pode ignorar os depoimentos produzidos em audiência ou a prova documental existente e decidir como lhe aprouver, de forma imotivada. Porém, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, ed. 1974, 204, a decisão do juiz há-de ser sempre e necessariamente uma “convicção pessoal - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais”. Perante uma determinada situação em concreto, produzidos em audiência depoimentos de sentido contrário, é natural que sejam lícitas e possíveis várias soluções, na decisão da matéria de facto. Se aquela que é assumida pelo juiz é uma das soluções admissíveis, à luz das regras da experiência comum (e se, para além disso, tal solução se mostrar suficientemente motivada e esclarecida), então estamos perante decisão inatacável no plano fáctico, pois que produzida em estrita obediência ao estatuído no artº 127º do Cod. Proc. Penal [3]. Sobre esta matéria, assim se decidiu no Ac. STJ de 9/7/2003, www.dgsi.pt: “Outra questão (...) reside em saber se as Relações, por sua própria iniciativa, e apoiando-se na extensibilidade do princípio da livre apreciação da prova aos tribunais de recurso, podem com base no mesmo princípio, alterar a matéria de facto dada como provada pelos tribunais de 1ª instância. (...) Tem-se por certo que sem outros instrumentos que não sejam as transcrições das gravações da prova produzida em audiência, não se configura como seja possível formar uma convicção diferente e mais alicerçada do que aquela que é fornecida pela imediação de um julgamento oral, onde, para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam. Sobrepor um juízo distanciado desta proximidade a um juízo colhido directamente e ao vivo seria um risco sério que poderia comprometer a pureza do princípio e abalar as regras de um julgamento sereno e fundamentado”. No mesmo sentido vai, aliás, a lição de Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1º vol., 1974, p. 233/234: “Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao princípio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”. Em caso de impugnação da matéria de facto, o tribunal de recurso não procede a um novo, a um segundo julgamento, agora pela audição das gravações dos depoimentos oralmente prestados em audiência. Como lapidarmente referiu o Prof. Germano Marques da Silva (com a autoridade que lhe advém do facto de ser um dos principais obreiros da revisão do CPP, operada pela L. 59/98, de 25/8), “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” - Forum Justitiae, Maio/99. Muito menos se destina a limitar (ou mesmo arredar) o princípio da livre apreciação da prova consignado no artº 127º do CPP. Lembremo-nos: nos termos do artº 412º, nº 3, als. a) e b) do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida. Que impõem, não que permitem. Em suma: se perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável. O recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova. Só assim não será quando as provas produzidas imponham decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido. E isto sucederá quando o tribunal decide ao arrepio e contra a prova produzida (v.g., se dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e, ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição se constata que a dita testemunha se não pronunciou sobre tal facto ou, pronunciando-se, disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida) ou quando o tribunal valora a prova produzida contra as regras da experiência, as tais que, no dizer de Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, II, 30, se traduzem em “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade”. Fora destes casos, “quando a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova se baseia numa opção do julgador, assente na imediação e na oralidade, intrínsecas ao julgamento, o tribunal de recurso só estará devidamente habilitado a exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende patentemente as regras da experiência comum” – Ac RE de 25/3/2010 (Berguete Coelho), www.dgsi.pt [4]. Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, o “caminho de convicção” seguido pelo tribunal recorrido não só se não mostra, in casu, ofensivo das regras da experiência comum como, em bom rigor, é o único que se nos apresenta como viável, coerente e consequente. Com efeito, no momento que antecedeu a agressão, apenas se encontravam no local o ofendido, dois amigos seus e os dois arguidos (no carro de onde haviam saído os arguidos permaneciam no banco traseiro a testemunha T. e duas outras pessoas, que daí não saíram, como essa testemunha reconheceu em julgamento). No momento em que ocorre a agressão com o objecto corto-perfurante, o ofendido e assistente está sentado no Renault Clio de matrícula ---, no banco do “pendura”, o seu amigo (e proprietário do veículo) JE está sentado ao volante do mesmo veículo, o outro seu amigo e testemunha nestes autos, JL encontrava-se no seu próprio veículo, o arguido A. encontrava-se no exterior do carro onde o ofendido se encontrava, junto à janela e com os braços no interior do carro, agredindo o ofendido com chapadas. Tudo isto foi descrito, sem hesitação, pelo ofendido e pela testemunha JE. A testemunha JL confirma a presença, no exterior dos carros, dos arguidos (e de mais ninguém, porquanto as restantes pessoas que estavam no carro onde os arguidos se haviam feito transportar, nele permaneciam); de igual modo, a testemunha T., amigo dos arguidos, confirmou que permaneceu, com duas amigas, no banco traseiro do veículo de onde os arguidos haviam saído. O arguido R. estava no exterior do veículo onde o ofendido se encontrava, junto à sua janela, um pouco mais para trás do local onde o arguido A. se encontrava (assim o afirmaram o assistente e a testemunha JE). Quer dizer: se apenas os dois arguidos se encontravam junto à janela direita do carro onde o assistente se encontrava sentado (no local do pendura), se o arguido A. tinha os dois braços dentro do carro, agredindo o assistente, procurando atingi-lo no rosto com chapadas, cobrindo este a cara com as mãos, para se proteger, se foi nesse momento atingido por um objecto corto-perfurante na “linha axilar posterior ao nível do 7º espaço intercostal direito” (cfr. auto de exame médico de fls. 101), a única justificação plausível, segundo as regras da experiência comum, é que tal golpe foi desferido pelo arguido R. Com efeito, o arguido A. não tinha qualquer objecto nas mãos, porquanto as utilizava, abertas, para agredir o assistente. Na realidade, o conceito popular de chapada é sinónimo do de estalada, isto é, de pancada desferida com a mão aberta. E o conceito técnico é idêntico: conforme se pode ler, por exemplo, no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, chapada tem o sentido popular de “bofetada” ou “bofetão” e aquela significa “pancada na cara com a mão aberta”. De outro lado, mal se compreenderia que o arguido André agredisse o assistente com as mãos, que numa delas empunhasse um objecto corto-perfurante capaz de provocar as lesões produzidas (nomeadamente ferida incisa com 2 cm, com traumatismo do pulmão e ferimento penetrante do tórax direito com ferida hepática de grau 3) e que nem o assistente nem a testemunha JE (sentado a seu lado, no Renault Clio) tenham visto tal objecto nas mãos desse arguido e, bem assim, que o mesmo objecto não tivesse produzido qualquer lesão no rosto do assistente (que o arguido A. pretendia atingir com as chapadas) nem nas suas mãos (efectivamente atingidas pelas chapadas do arguido A.). Pretende o recorrente que o golpe sofrido pelo assistente poderá ter sido produzido por ele próprio, eventualmente com alguma ferramenta que tivesse nas mãos. Fá-lo, sejamos justos, sem grande convicção, limitando-se a suscitar essa e outras hipóteses: “seria o objecto «corto-perfurante» algo como uma chave de fenda(s) (…)?”. “Empunhava o assistente tal objecto quando se encontrava sentado no banco do pendura?”. “Na alteração, seguida de agressões (recíprocas) se feriu com tal objecto, atentos movimentos (drásticos e repentinos) dos dois co-arguidos? (sic)”. “Não terão havido em momento anterior e perto das mesmas, outras agressões ou confrontos físicos com todos os intervenientes?”. São, enfim, um conjunto de interrogações, de suposições, de conjecturas assentes em coisa nenhuma. Ninguém – de entre as pessoas ouvidas em audiência - se referiu a qualquer chave de fendas e, muito menos, que ela tivesse sido empunhada pelo assistente. E em rigor, atenta a posição em que o mesmo se encontrava no momento da agressão (sentado num banco de automóvel, com as mãos cobrindo a cara, tentando protegê-la das “chapadas” desferidas pelo arguido A.) não se mostra curial (e fere, por isso e de forma grosseira, as regras da experiência comum) que tivesse conseguido espetar em si próprio um qualquer objecto corto-perfurante, ainda mais na região onde acabou por ficar ferido, isto é, na parte inferior do hemitórax direito, junto à linha médio-axilar. Em suma e em conclusão: o raciocínio tecido pelo tribunal recorrido ou, dito de outro modo, o exame crítico das provas a que procedeu, mostra-se conforme às regras da experiência comum e está justificado de forma coerente e consequente. Não existe, pois, qualquer fundamento para este tribunal de recurso o censurar. Acresce (e agora a propósito da pretensa violação do princípio in dubio pro reo, suscitada pelo recorrente) que da fundamentação da matéria de facto não resulta minimamente que os julgadores se tenham deparado com uma qualquer dúvida (insanável, ou não) sobre a verificação dos factos constantes da acusação. E não havendo dúvida, nada há para resolver, pro ou contra quem quer que seja. É que, como bem se salienta no Ac. STJ de 14/4/2011 (rel. Cons. Souto de Moura), www.dgsi.pt., “a situação de dúvida tem que se revelar de algum modo, e designadamente através da sentença. A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido”. E assim sendo, improcede a primeira pretensão do recorrente, mantendo-se em consequência a factualidade assente fixada na 1ª instância. b) inexiste fundamento para a qualificação do crime de ofensa à integridade física grave? No pressuposto de que se mostra assente a factualidade delineada na 1ª instância, o recorrente aceita que a mesma integra a prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p.p. pelos artºs 143º e 144º, nº 1, al. d) [5], mas não qualificado pelo artº 145º, nºs 1, al. b) e 2, por referência ao artº 132º, nº 2, al. e), todos do Cod. Penal. Nesta matéria, assim decidiu o tribunal colectivo: «O crime de ofensa à integridade física grave é qualificado quando as ofensas forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, sendo susceptível de o revelarem quando se verifique algumas das situações previstas no nº 2 do art. 132º do Código Penal – cfr. art. 146º [6], nºs 1 e 2, do aludido código. Para além da circunstância qualificativa, «...necessário se torna que a conduta do agente revele uma censurabilidade acrescida...e que se mostra susceptível de decorrer de uma das circunstâncias previstas pelo nº 2, do art. 132º, entre outras.»[7] Significa isto, que não basta a verificação objectiva de qualquer uma das circunstâncias previstas no nº 2 do art. 132º para qualificar o crime de ofensa à integridade física. Com efeito, a enumeração incita [8] nesse normativo legal é meramente enunciativa e exemplificativa das circunstâncias susceptíveis de revelar uma censurabilidade acrescida. Daqui se retira que as circunstâncias enunciadas no nº 2 do art. 132º do Código Penal não são elementos do tipo e antes elementos da culpa, pelo que não são de funcionamento automático[9]. Como ensina Figueiredo Dias[10] a especial censurabilidade verifica-se quando circunstâncias "são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida, pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude. Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto, pois um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder". In casu foi imputada ao arguido Ri. a circunstância prevista na alínea h) a qual se refere à prática do crime juntamente com mais duas pessoas ou utilizando o meio particularmente perigoso. No entanto, como se comunicou, entende-se que não se verifica esta circunstância porque não foi possível apurar as concretas características do instrumento utilizado, sendo que não basta a sua natureza corto-perfurante, por si só, para se provar a utilização de um meio particularmente perigoso, sendo o objecto utilizado adequado e típico a causar este tipo de lesões não existindo uma perigosidade acrescida que justifique concluir pela especial censurabilidade. Considera-se, sim, que, no caso, se verifica a circunstância qualificativa da alínea e) designadamente, «ser determinado por avidez, …ou por qualquer motivo torpe ou fútil; (…)» O motivo torpe ou fútil refere-se a circunstâncias a nível da motivação do agente marcadamente mais censuráveis. É o motivo incompreensível ou inexplicável à luz do modo de agir do homem médio ou mesmo revelador de um baixo carácter. Nas palavras de Figueiredo Dias “pesadamente repugnante, baixo ou gratuito”. Justifica-se por revelar uma especial perversidade, ou seja, como acima se disse, uma atitude profundamente rejeitável, inaceitável e injustificável, e que pode reconduzir-se a uma atitude má numa concepção emocional da culpa. Para aferir da futilidade do motivo deve ter-se em conta a desproporção entre a conduta da vítima e a reacção do agente e a responsabilidade deste pela situação criada. Dos factos provados resulta que o arguido R. não conhecia o ofendido, nunca o tinha visto antes, não houve qualquer discussão ou razão que o levasse a agir daquela forma, sendo incompreensível e inaceitável o modo como actuou. O ofendido não respondeu à atitude provocatória adoptada pelo arguido e procurou evitar que algo sucedesse entrando no veículo para se ir embora. Mesmo assim, quando V. já estava no interior do veículo com vista a sair do local e a ser agredido com as mãos por A., o arguido R. por trás desfere um golpe na região do hemitórax direito. Nada explica esta actuação do arguido que é profundamente repugnante e inaceitável à luz do modo de agir do homem médio. As circunstâncias em que ocorreu a agressão e a atitude (d)o arguido R. revelam que este agiu com especial perversidade, atendendo a que este actuou sem motivo e não houve nada que explique a sua actuação, não conhecendo o ofendido e sabendo que este procurava se ausentar do local para evitar quaisquer confrontos. Assim a conduta do arguido R. é subsumível na alínea e) do artigo 132º do Código Penal, devendo o arguido ser punido pelo crime de ofensa à integridade física grave qualificado, previsto e punido pelos artigos 144º, alínea d), 145º, nº1 alínea b), do Código Penal». Apreciando: Como bem se refere no douto acórdão recorrido, o Prof. Figueiredo Dias (“Comentário Conimbricense…”, I, 32) define o motivo torpe ou fútil como aquele que, “avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito”. Mas de imediato alerta (op. e loc. cit): “equívoca a repetida afirmação da nossa jurisprudência de que motivo fútil «é o que não é ou nem chega a ser motivo»: cf. por outros, o Ac. do STJ de 6/6/90, BMJ 398º, 269 (…)”. É, efectivamente equívoco, não obstante intensamente repetido [11], o entendimento assim expresso (e a que, aparentemente, o tribunal recorrido deu acolhimento). É que, se com tal entendimento se pretende (e, no caso, foi isso que sucedeu) identificar a expressão “que não chega a ser motivo” à ausência de motivo propriamente dita, então comprometido está o acerto da qualificação. Lidos e relidos os factos assentes, continuamos sem saber a razão que está por detrás da actuação do arguido R. É que, verdadeiramente, tal razão não consta do rol dos factos apurados. De uma forma absurdamente linear, as coisas decorreram desta forma (tal como vem descrita na factualidade assente): os arguidos abordaram o ofendido e dois amigos que com ele se encontravam, chamando-lhes “feios”; pediram-lhes cigarros e estes responderam não serem fumadores; o ofendido e os seus amigos entraram nos carros e o arguido A. agrediu “à chapada” o assistente, ao mesmo tempo que o arguido R. lhe espetou na região inferior do hemitórax direito um objecto corto-perfurante. A razão para esta última agressão (como, aliás, para a perpetrada pelo arguido A.) permanece por apurar. Terão os arguidos actuado, irritados pelo facto de lhes terem sido negados os cigarros? Tê-lo-ão feito na sequência de alguma troca de palavras mais “azeda”? Actuaram (e, em particular, actuou o arguido R.) simplesmente movidos pelo prazer de causar sofrimento a terceiro? A matéria de facto apurada não fornece resposta a esta questão. Ora, o tribunal recorrido acaba por concluir que “as circunstâncias em que ocorreu a agressão e a atitude do arguido R. revelam que este agiu com especial perversidade, atendendo a que este actuou sem motivo (…)”. Porém, actuar sem motivo não é o mesmo que actuar movido por motivo torpe ou fútil. Sempre assim entendeu a jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal [12]; e assim o continua a entender [13]. A não ser assim, aliás, por que razão não qualificar também a ofensa à integridade física praticada pelo arguido A.? Não terá este arguido actuado, também, “sem motivo”? Em suma e em conclusão: a qualificação do crime de ofensa à integridade física grave, por cuja autoria o arguido R. foi condenado, mostra-se incorrectamente efectuada. Na realidade, a factualidade apurada apenas permite concluir que o arguido praticou um crime de ofensa à integridade física grave, p.p. pelos artºs 143º e 144º, al. d) do Cod. Penal. Procede, pois, esta pretensão do recorrente. c) é excessiva a pena de prisão concretamente aplicada? O crime praticado pelo arguido é punido com prisão de 2 a 12 anos. O arguido foi condenado na pena de 6 anos de prisão (numa moldura legal de 2 a 12 anos de prisão). E assim justificou o tribunal colectivo a pena concretamente aplicada: « Arguido R.: Agrava a ilicitude dos factos as consequências dos mesmos, sendo fortemente censurável a conduta do arguido pela violência com que actuou. O arguido agiu com dolo directo e por isso intenso. É de salientar que nem o facto do ofendido procurar se ausentar do local e de já estar no interior de um veículo inibiu o arguido de praticar os factos o que revela a elevada intensidade do dolo com que actuou. São elevadas as exigências de prevenção geral, integrando-se este crime na chamada criminalidade violenta, sendo forte o alarme social causado por estas condutas geradoras de grande insegurança na comunidade em geral e em especial entre os jovens que costumam sair à noite para conviver e frequentar locais de divertimento nocturno. O arguido já tem antecedentes criminais, embora pela prática de crimes de diversa natureza, não manifestou qualquer arrependimento, revela acentuada imaturidade para a sua idade e que se manifesta na reduzida capacidade de pensamento alternativo e consequencial e que já demonstrou através de comportamentos inconsequentes que adoptou e pelos quais foi condenado. Aparenta ter mantido um percurso de vida ajustado até aos 16 anos, momento que começou a conviver com jovens conotados com alguns comportamentos de risco, com os quais manteve durante alguns anos o consumo regular de álcool e haxixe. São, por isso, elevadas as exigências de prevenção especial. A favor do arguido apenas releva a inserção social e familiar que beneficia, circunstâncias que, no entanto, não foram suficientes para o afastar desta conduta. Tomando por base no exposto supra, à luz destes critérios, entende-se ser de aplicar ao arguido uma pena próxima do limite médio da pena abstracta aplicável, ainda que abaixo deste limite e que se fixa em 6 anos de prisão, pena que se mostra adequada a incutir no arguido a necessidade de respeitar os bens jurídicos envolvidos e se afigura consentânea com a medida da sua culpa». Apreciando: Manda o artº 71º do Cod. Penal que a determinação da medida da pena se faça em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (nº 1), levando-se em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente (nº 2). É, com efeito, elevado o grau de ilicitude dos factos, atento o nível de violação do interesse ofendido (integridade física) e a eficácia do meio de agressão utilizado (objecto corto-perfurante); o arguido agiu com dolo directo, por isso intenso; tem passado criminal, embora pela prática de ilícitos de distinta natureza e menor gravidade. Foram graves as consequências da infracção [14] e são elevadas as exigências de prevenção geral. O arguido não tem estabilidade profissional, encontrando-se desempregado há cerca de dois anos, no momento em que foi submetido a julgamento, realizando trabalhos esporádicos. Beneficia, contudo, de apoio familiar. Ponderado todo esse circunstancialismo, entendemos por adequada uma pena concreta situada algo abaixo do ponto médio da pena abstractamente aplicável, mas já próxima deste, isto é, a pena de 5 anos de prisão. Tal pena não deverá ser suspensa na sua execução. Com efeito, presente o modo de execução do crime por cuja autoria o arguido vai condenado, a ausência de manifestação de sinais de arrependimento, as suas condições de vida, as características da sua personalidade (acentuada imaturidade para a sua idade, que se manifesta na reduzida capacidade de pensamento alternativo e consequencial) e as condenações anteriores de que foi alvo, não é possível formular um juízo de prognose positivo, em ordem a concluir que a simples censura dos factos e a ameaça de execução da pena serão suficientes para afastar o arguido da delinquência, evitando a prática de novos crimes. E porque assim é, deverá o arguido cumprir a pena de prisão em que vai condenado. Procederá assim, mas apenas parcialmente, mais esta pretensão do recorrente. IV. São termos em que acordam os juízes deste Tribunal da Relação em conceder parcial provimento ao recurso, declarando que a conduta do arguido R. integra a prática, por ele, de um crime de ofensa à integridade física grave, p.p. pelos artºs 143º e 144º, al. d) do Cod. Penal e reduzindo a pena em que foi condenado para 5 (cinco) anos de prisão, efectiva na sua execução, no mais confirmando o douto acórdão recorrido. Custas pelo arguido/recorrente (artº 514º, nº 1 do CPP, na redacção anterior à introduzida pelo DL 34/2008, de 26/2, posto que este processo se iniciou em data anterior a 20/4/2009). Taxa de justiça: 4 (quatro) UC´s. Évora, 11 de Outubro de 2011 (processado e revisto pelo relator) __________________________ Sénio Manuel dos Reis Alves ________________________ Fernando Ribeiro Cardoso __________________________________________________ [1] Obviamente, sem prejuízo das questões que oficiosamente importa conhecer, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, DR 1ª Série, de 28/12/1995). [2] E aqui seguiremos de muito perto o Ac. desta Relação de Évora proferido em 10/5/2011, no Pr. 649/10.3GCPTM.E1, com os mesmos relator e adjunto. [3] Cfr., com interesse nesta matéria, o Ac. RC de 15/9/2010 (rel. Brízida Martins), www.dgsi.pt., assim sumariado: “Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção”. [4] No mesmo sentido, cfr. Acs. RE de 18/3/2010 e de 8/4/2010 (rel. Maria da Graça Santos Silva e Martinho Cardoso, respectivamente), www.dgsi.pt. [5] Curiosamente, o recorrente entende que a factualidade apurada em 1ª instância integra, para além da previsão da al. d) do artº 144º do Cod. Penal – tal como o arguido vem acusado e acabou por ser condenado – a da al. c) do mesmo dispositivo (embora aqui não vislumbremos que doença particularmente dolorosa ou permanente ou anomalia psíquica grave ou incurável tenha sido provocada pela conduta do arguido – ou, ao menos, a matéria de facto dada como provada nada indica nesse sentido). [6] Trata-se de mero lapso, porquanto se queria referir, certamente, o artº 145º. [7] Paula Ribeiro Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, t. I, Coimbra, 1999, pág. 250. [8] Mero lapso: queria certamente escrever-se “ínsita”. [9] Cfr. no mesmo sentido, entre outros, o Acs. do STJ, de 11/05/83, BMJ, 327, 458 e da RE, de 19/04/83, BMJ, 328, 651. [10] In CJ XII-4, 51. [11] Assim opina Maia Gonçalves, “Código Penal Português”, 8ª ed., 545: “Motivo fútil é aquele que não tem qualquer relevo, que não chega a ser motivo (…)”. [12] Ac. STJ de 1/10/98, (rel. Cons. Sá Nogueira), www.dgsi.pt: “A ausência de motivo não corresponde ao conceito de «motivo fútil», da al. d) do nº 2 do artº 132º do Cod. Penal de 1995. [13] Ac. STJ de 10/12/2008 (rel. Cons. Pires da Graça), www.dgsi.pt: “A inexistência de motivo não equivale a motivo fútil, uma vez que só há motivo (ainda que fútil) se existir. De outra forma, todo o homicídio envolveria sempre motivo fútil, desde que inexistisse motivo. Numa situação em que a matéria fáctica não alude a qualquer motivo de actuação (…) é de concluir que não se pode reconhecer a existência de motivo fútil na simples falta de razão para o crime”. [14] O ofendido sofreu traumatismo do pulmão com ferimento penetrante do tórax direito com ferida hepática de grau 3. Foi sujeito a intervenção cirúrgica para colocação de um cateter torácico sub-aquatico, para drenagem do sangue. Permaneceu internado no Hospital de S. Bernardo até ao dia 12 de Janeiro de 2009, tendo estado três dias sob drenagem toráxica. Após ter tido alta foi seguido em consulta externa para controlo imagiológico. As lesões demandaram para se consolidar um período de 30 dias de doença com igual período de incapacidade para o trabalho. Não fosse a pronta deslocação para o Hospital e a assistência que foi prestada a V., o mesmo teria falecido em virtude das lesões que lhe foram causadas. |