Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1851/21.8T8STR.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
FIXAÇÃO DA INCAPACIDADE
PROVA PERICIAL
RESPOSTA AOS QUESITOS
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
ANULAÇÃO DE SENTENÇA
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. No âmbito do procedimento para fixação da incapacidade emergente de acidente de trabalho, padece de falta de fundamentação a resposta dos peritos médicos que nada diz sobre o exame objectivo realizado ao sinistrado, não aprecia os exames clínicos juntos aos autos e não justifica a relevante divergência de enquadramento das sequelas em relação aos próprios serviços clínicos da Seguradora e ao perito médico que interveio na fase conciliatória.
2. A omissão dessas diligências, quando os autos revelem que eram necessárias para a determinação das sequelas que afectam o sinistrado, configura deficiência na produção da prova e determina a anulação da decisão recorrida, nos termos do art. 662.º n.º 2 al. c) do Código de Processo Civil.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Tomar, foi participado acidente de trabalho sofrido em 16.02.2021 por AA, nascido em …/…/1952, quando exercia as funções de estucador, ao serviço de Placodec, Lda., a qual havia transferido sua responsabilidade infortunística para Caravela – Companhia de Seguros, S.A..
De acordo com a participação inicial da Seguradora, o sinistrado havia recebido alta em 28.06.2021, com o diagnóstico de fractura da sínfise púbica e da 11.ª costela, tendo sido enquadrado pelos seus serviços clínicos no Cap. I – 9.2.3.b) da TNI, com uma IPP de 12% acrescida do factor de bonificação de 1,5, ficando com uma IPP final atribuída de 18%.
No exame médico singular, realizado na fase conciliatória, o perito médico enquadrou as sequelas do sinistrado na mesma rúbrica da TNI, mas atribuiu uma IPP de 15%, acrescida do aludido factor de bonificação, ficando com uma IPP final arbitrada de 22,5%.
Na tentativa de conciliação apenas houve desacordo quanto à incapacidade, porquanto a Seguradora sustentou que o sinistrado era apenas portador de uma IPP de 18%.
Em consequência, a Seguradora requereu a realização de junta médica, formulando os seguintes quesitos:
“1) Quais as lesões sofridas pelo Sinistrado no acidente objecto dos autos?
2) Essas lesões mostram-se estabilizadas clinicamente e passíveis de fixação de alta definitiva?
3) Em caso afirmativo, existem sequelas pontuáveis em IPP por contemplação na respectiva TNI?
4) Na afirmativa, em que grau e natureza de IPP?”

No auto de junta médica, consta o seguinte (após a identificação dos intervenientes processuais):
“Resposta aos quesitos de fs. 107 v.º:
1.º Fractura-diástase da sínfise púbica e da 11.ª costela esquerda: ligeira diástase da sacro-ilíaca;
2.º Sim;
3.º Sim;
4.ª A indicada na tabela seguinte.”
Após, os peritos enquadraram as sequelas do sinistrado no Cap. I – 9.2.4.b) da TNI, fixando a incapacidade em 5%, e após a aplicação do factor de bonificação, atribuíram uma IPP de 7,5%.
Não houve reclamações, não foi determinada a realização de exames e pareceres complementares ou requisitados pareceres técnicos, e foi proferida sentença fixando a IPP em 7,5% e atribuindo uma pensão em função dessa incapacidade.

Inconformado, o sinistrado, patrocinado pelo Ministério Público, recorre e conclui:
1. Se na tentativa de Conciliação a discordância entre as partes respeitar, apenas, ao grau de IPP de que é portador o sinistrado a fase contenciosa do processo de acidente de trabalho inicia-se mediante apresentação de requerimento para junta médica pela parte discordante nos termos do art.º 117.º, n.º 1 al. b), conjugado com o art.º 138.º , n.º 2 do CPT.
2. Se houvesse outras questões a decidir, nomeadamente se as sequelas de que era portador o sinistrado , eram ou não resultantes do acidente, a fase contenciosa teria de se iniciar necessariamente mediante a apresentação de petição inicial.
3. Não sendo esse o caso presente, tendo as sequelas resultantes do acidente sido aceites pelas partes na tentativa de conciliação têm as mesmas de considerar-se definitivamente assentes, nos termos do art.º 131.º, n.º 1 alínea c) do CPT.
4. O objecto da junta médica e o único ponto submetido à decisão do Sr. Juiz era, no caso vertente, o da determinação do grau de incapacidade de que o sinistrado é portador, no intervalo compreendido entre 18% aceites pelas Seguradora e 22,5% atribuídos pelo G.M.L. e aceites pelo sinistrado.
5. Ao conhecer de questão que não lhe era colocada, a douta sentença padece da nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1 alínea d) do C.P.C..
6. Não havendo qualquer “hierarquia “ entre a prova pericial obtida por junta médica e os exames singulares existentes no processo, devia o Sr. Juiz ter seguido estes últimos.
7. Se dúvidas houvesse, podia determinar nova junta médica para seu esclarecimento, o que não podia era, salvo o devido respeito, considerar que o sinistrado era portador de incapacidade permanente inferior à aceite/confessada pela Seguradora.
8. Ao decidir como decidiu violou o Sr. Juiz o disposto nos artigos 117.º, n.º 2 alínea b) conjugado com o art.º 138.º , n.º 2 do CPT. , artigo 131.º n.º 1 alínea c) do CPT e art.º 615.º, n.º 1 alínea d) do C.P.C. .
9. Nestes termos e nos de direito aplicável, deve o presente recurso ser julgado procedente e a douta sentença recorrida e a junta médica que cujo parecer acolheu serem anulados e determinar-se a realização de nova junta que fixe incapacidade ao sinistrado entre a incapacidade permanente aceite pela Seguradora ( 18%) e a atribuída pelo G.M.L. (22,5%).

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Cumpre-nos decidir.

A matéria de facto fixada na decisão recorrida foi a seguinte:
a) No dia 16/12/2021, cerca das 14,30 horas, em Fátima, o sinistrado AA, ao subir umas escadas para barrar massa, escorregou e caiu de uma altura de cerca de 3 metros, tendo sofrido traumatismo crânio-encefálico e várias fracturas;
b) Nesse dia e hora desempenhava as funções de estucador, sob ordens, direcção e fiscalização da firma Placodec – Sociedade Revestimentos Isolamentos, Lda., mediante o pagamento da retribuição anual global de € 15.409,46;
c) Apresenta sequelas de fractura-diástase da sínfise púbica e da 11.ª costela esquerda e ligeira diástase da sacroilíaca;
d) Em consequência, o sinistrado também sofreu incapacidades temporárias:
- Absoluta desde o dia 17/2/2021 até ao dia 25/6/2021; e,
- Parcial de 40% desde o dia 26/6/2021 até ao dia 28/6/2021;
e) AA nasceu no dia …/…/1952;
f) A Caravela – Companhia de Seguros, S.A., assumiu a responsabilidade decorrente de sinistros laborais que afectassem AA mediante apólice de seguro e com base na referida retribuição anual global;
g) AA despendeu € 36 com deslocações obrigatórias a Tribunal e para a realização de exames;
h) AA está afectado de uma incapacidade permanente parcial, em consequência do sinistro em discussão nos autos, de 0,075 (7,5%);
i) A seguradora pagou a AA, a título de indemnização por incapacidades temporárias, a quantia de € 3.697,90.

APLICANDO O DIREITO
Da fixação da incapacidade
De acordo com o art. 138.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, a parte que não se conformar com o resultado da perícia realizada na fase conciliatória do processo, pode requerer perícia por junta médica, a qual se realiza nas condições previstas no art. 139.º do mesmo diploma.
A prova assim apreciada pelo juiz é essencialmente pericial, tanto mais que estão em apreciação factos para os quais são necessários conhecimentos especiais, nomeadamente de carácter médico, que os julgadores não possuem. Porém, “apesar de a resposta do perito assentar, por via de regra, em conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, é ao tribunal, de harmonia com o prudente critério dos juízes, que se reconhece o poder de decidir sobre a realidade do facto a que a perícia se refere. Parte-se do princípio de que aos juízes não é inacessível controlo do raciocínio que conduz o perito à formulação do seu lado e de que lhes é de igual modo possível optar por um dos laudos ou afastar-se mesmo de todos eles, no caso frequente de divergência entre os peritos.”[1]
No âmbito do procedimento para fixação da incapacidade emergente de acidente de trabalho, o juiz não apenas preside à perícia por junta médica, como pode solicitar aos peritos os esclarecimentos que entender por convenientes, formular quesitos e determinar a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos, se o considerar necessário – art. 139.º n.ºs 1, 6 e 7 do Código de Processo do Trabalho. E pode fazê-lo por sua própria iniciativa, independentemente do impulso processual das partes, pois está em causa um poder discricionário do juiz.[2]
De acordo com a Instrução Geral n.º 8 da TNI, os peritos médicos devem fundamentar todas as suas conclusões, acrescentando o n.º 13 que, para «permitir o maior rigor na avaliação das incapacidades resultantes de acidente de trabalho e doença profissional, a garantia dos direitos das vítimas e a apreciação jurisdicional, o processo constituído para esse efeito deve conter obrigatoriamente os seguintes elementos: a) Inquérito profissional, nomeadamente para efeito de história profissional; b) Análise do posto de trabalho, com caracterização dos riscos profissionais e sua quantificação, sempre que tecnicamente possível (para concretizar e quantificar o agente causal de AT ou DP); c) História clínica, com referência obrigatória aos antecedentes médico-cirúrgicos relevantes; d) Exames complementares de diagnóstico apropriados.»
Os serviços clínicos da Seguradora e o perito médico que realizou o exame singular foram unânimes em enquadrar as sequelas do sinistrado no Cap. I – 9.2.3.b) da TNI, que trata de lesões nos ossos ilíacos da bacia, nomeadamente: “b) Fractura ou fractura -luxação como rotura do anel pélvico (fractura vertical dupla, fractura com luxação simultânea da sínfise púbica ou da articulação sacro-ilíaca ou luxação pélvica tipo Malgaigne, etc.), segundo objectivação da sintomatologia dolorosa, o prejuízo na marcha e ou dificuldade no transporte de pesos”, a que corresponde uma IPP entre 0,11 e 0,25.
Porém, os peritos médicos que intervieram na junta médica limitaram-se a dizer que ocorria “fractura-diástase da sínfise púbica e da 11.ª costela esquerda: ligeira diástase da sacro-ilíaca”, e enquadraram no Cap. I – 9.2.4.b) na TNI, que se refere a “Diástase da sínfise púbica: b) Com sintomatologia dolorosa”, correspondendo uma IPP entre 0,05 e 0,10.
Diga-se desde já que as conclusões dos peritos na junta médica não estão devidamente fundamentadas, pois nada dizem sobre o exame objectivo realizado ao sinistrado, não apreciam os exames clínicos juntos aos autos e não justificam, minimamente, a relevante divergência de enquadramento das sequelas em relação aos próprios serviços clínicos da Seguradora e ao perito médico que interveio na fase conciliatória – que foram unânimes no enquadramento no Cap. I – 9.2.3.b) da TNI.
Note-se, também, que os serviços clínicos da Seguradora diagnosticaram fractura da sínfise púbica e da 11.ª costela, enquanto na junta médica apenas se detectou “Fractura-diástase da sínfise púbica e da 11.ª costela esquerda: ligeira diástase da sacro-ilíaca”, não estando justificada a relevante discrepância no diagnóstico das sequelas que afectam o sinistrado.
Nestas condições, a resposta dos peritos médicos em junta médica mostra-se infundamentada.
Tal falta de fundamentação, bem como a não realização de exames e pareceres complementares necessários à decisão consciente e informada do processo, configura deficiência na produção da prova, determinante da anulação da decisão recorrida, nos termos do art. 662.º n.º 2 al. c) do Código de Processo Civil, com vista ao respectivo suprimento.[3]

DECISÃO
Destarte, concede-se provimento ao recurso, anula-se a decisão recorrida e determina-se:
· a reabertura da junta médica, para descrição do exame objectivo realizado ao sinistrado, apreciação dos exames clínicos juntos aos autos, descrição pormenorizada das sequelas que afectavam o sinistrado à data da alta, e, em caso de eventual divergência de enquadramento das sequelas em relação aos serviços clínicos da Seguradora e ao perito médico que interveio na fase conciliatória, fundamentação dessa divergência.
Custas do recurso pela Seguradora.

Évora, 14 de Setembro de 2023

Mário Branco Coelho (relator)
Emília Ramos Costa
Paula do Paço

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[1] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 1985, pág. 583.
[2] Neste sentido, vide o Acórdão de Relação de Lisboa de 13.07.2016 (Proc. 1491/14.8T2SNT.L1-4), e da Relação de Guimarães de 02.11.2017 (Proc. 12/14.7TTBCL-C.G1), ambos em www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, o Acórdão da Relação de Guimarães de 04.02.2016 (Proc. 233/13.0TTGMR.1.G1), publicado na mesma base de dados.