Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | CRISTINA DÁ MESQUITA | ||
Descritores: | COMPRA E VENDA VENDA DE COISA DEFEITUOSA RESOLUÇÃO DO CONTRATO BOA-FÉ | ||
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Data do Acordão: | 09/12/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1 – A utilização da viatura pelo legal representante da ré, enquanto fator de desvalorização da viatura que é, está abrangido pelo objeto do litígio, densificando o conceito de «desvalorização pelo uso» que foi invocado pela recorrente, não devendo, por isso, o seu aproveitamento pelo tribunal constituir surpresa para aquela. E, pese embora não haja sido alegado pelas partes, estas tiveram a possibilidade de exercer o direito ao contraditório pelo que podia ter sido, como efetivamente foi, aproveitado pelo tribunal de primeira instância. 2 - O direito à manutenção do contrato e o direito de desvinculação através da resolução do mesmo opõem-se entre si, sendo o primeiro uma manifestação da segurança e estabilidade e o segundo da autonomia contratual. 3 - A opção do consumidor pela resolução do contrato está subordinada aos ditames da boa-fé. 4 – Revelando-se a substituição da viatura inviável e tendo havido um deficiente cumprimento da obrigação de reparação por banda da vendedora, não é exigível ao comprador-consumidor a manutenção do contrato à luz do princípio da boa-fé. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora: I. RELATÓRIO I.1. BB Unipessoal, Lda., ré na ação que lhe foi movida por CC, interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Local Cível de Loulé, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual: 1) Declarou resolvido o contrato de compra e venda do veículo automóvel marca BMW, modelo 535 Touring, com a matrícula …-EC-…, celebrado entre o autor CC e a ré BB Unipessoal, Lda.; 2) Condenou a ré a restituir ao autor o montante de 15.000,00 € e condenou o autor a entregar à ré o veículo automóvel supra descrito; 3) Absolveu a ré do demais peticionado. A presente ação foi movida por CC o qual peticionou que fosse decretada a anulação do contrato de compra e venda celebrado no dia 12 de setembro de 2016 entre si e a ré BB Unipessoal, Lda., por incumprimento contratual desta, e, consequentemente, que a ré fosse condenada a restituir-lhe a quantia de 19.000,00 € entregue a título de preço e, ainda, a pagar-lhe a quantia de 3.000,00 € a título de danos não patrimoniais. Para tanto alegou que comprou um veículo à ré no dia 12.09.2016 e que, decorrido um mês após a aquisição, o mesmo começou a pingar óleo da caixa de velocidades, a fazer um ruído na parte frontal bem como erros na caixa e disco de embraiagem. E que, não obstante a ré sempre ter recebido o veículo para reparação após as reclamações, os problemas de que o veículo padecia persistiam. Pelo que face aos problemas que o veículo sucessivamente apresentou e continua a apresentar e que afetam o seu funcionamento e ainda por não ser possível a sua substituição, pretende que seja declarada a resolução do contrato e, ainda, ser indemnizado pelos incómodos sofridos com a situação dado que se viu impedido de usufruir plenamente a viatura. Citada, a ré contestou, por impugnação, sustentando que o autor sabia que a viatura era usada e com desgaste e que antes de ser vendida a viatura tinha sido objeto de uma revisão completa. Mais alegou que sempre procedeu às reparações dos problemas que iam surgindo e que após a última reparação, os defeitos entretanto denunciados, a existirem, resultaram do desgaste normal e não impedem a circulação da viatura. A ré defendeu, ainda, que se o autor utiliza o veículo e a ré se predispôs a repará-lo, apenas de má-fé e em abuso de direito poderá pedir a anulação do negócio e a devolução do valor despendido com a aquisição. Finalmente, a ré sustentou que, caso o autor tenha direito à resolução do contrato, no valor a restituir deve ser considerada a desvalorização sofrida pelo veículo até à entrega do mesmo, a calcular em liquidação de sentença. Foi realizada audiência prévia, proferido despacho a fixar o valor da causa, despacho-saneador e despacho a fixar o objeto do litígio e os temas de prova. Realizou-se a audiência final, finda a qual foi proferida a sentença objeto do presente recurso. I.2. O recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões: «a) O facto dado como provado sob o n.º 32: "Após a reparação referida em 22., e com vista a experimentar o veículo, o legal representante da Ré circulou cerca de 500 quilómetros com o mesmo " foi levado em consideração e considerado essencial no fundamento da decisão proferida. b) Este é um facto essencial, que não foi alegado pelas partes, mas que a decisão proferida considerou essencial, designadamente, para calcular o valor a pagar pela R. ao A. c) Um facto essencial que não foi alegado por qualquer das partes não pode ser levado em consideração na decisão final nos termos do artigo 5.º, do CPC. d) Resulta de forma inequívoca dos elementos probatórios que o A. continuou a circular com o veículo, deixando-o de o fazer apenas após a entrada da ação em tribunal. e) Dos documentos juntos e por mero raciocínio aritmético podemos concluir que o veículo de 3 de outubro de 2017 até 18 de Outubro de 2018 andou cerca de 4.300 quilómetros. f) Do depoimento do A. resulta expressamente que estes quilómetros foram feitos de Outubro a Dezembro de 2017 (minutos 42.44 a 44.48). g) O A. não deixou de circular por defeito do veículo, porquanto, o A. referiu expressamente que já não via óleo no chão, mas porque a luz do óleo acendeu. h) Não resultando que tenha deixado de andar com o veículo por alguma circunstância que haja ocorrido em dezembro de 2017 ou em Janeiro de 2018. i) Considerando que em 3 meses andou uma média de 1.433 quilómetros por mês, e que tem um carro de serviço dado pela empresa, deve ser dado como provado parcialmente o ponto G) dos factos não provados, na parte em que refere: "Os defeitos referidos em 25 não impedem, nem dificultam a circulação do mesmo." j) Resulta da carta enviada pelo A. à R. em 30 de Outubro de 2017 e do depoimento do A. (minuto 46 a 48.20), que o A e R. acordaram na reparação do veículo e, após a reparação, que o A. faria um check-up na BMW. k) Mais resulta do seu depoimento que, e em face do relatório da BMW, o arranjo seria de €2.000,00, que o R. aceitou entregar ao A. I) Resulta assim do depoimento do A. dois factos complementares relevantes, que são: o preço de arranjo do veículo são de €2.000, e a R. ofereceu esse dinheiro para o A. arranjar o veículo na marca. m) Assim deve ser dado como provado: "O preço de arranjo dos defeitos identificados em 25 são no montante de €2.000,00 no concessionário da marca BMW, tendo a R. oferecido esse dinheiro ao A. para mandar arranjar o veículo." n) Resulta da factualidade provada que o Autor teria conhecimento, na data da sua aquisição, que se tratava de um veículo usado, com mais de 10 anos e com mais de 250.000Km. o) O veículo foi alvo de reparações, sendo que todas as reparações foram efetuadas a expensas da Ré e por acordo entre o A. e R. p) Todas as intervenções a que o automóvel foi sujeito no ano de 2016 e 2017 integram situações em que o A., identificando defeitos do automóvel, pretendeu que os mesmos fossem reparados. q) Cada colocação do automóvel, ao longo dos anos 2016 e 2017, no estabelecimento da ré constitui um facto concludente que permite deduzir a vontade do A. de exigir a reparação dos defeitos "sem encargos", faculdade que lhe é atribuída pelo art. 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 67/2003, em alternativa à possibilidade de exigir a substituição do bem, ou a redução do preço, ou a resolução do contrato. r) O A. fez uso do regime especial de proteção do diploma legal sobre venda de bens de consumo, optando pelo direito à reparação do bem. s) O direito à anulação do contrato extinguiu-se por cumprimento das sucessivas exigências de reparação do bem, sem encargos, que foram sendo feitas pelo A. t) Após realizar a avaliação do veículo, em 4 de Outubro de 2017, no concessionário da marca BMW, o A. continuou a circular com o veículo. u) Quanto aos problemas referidos no relatório da BMW, à exceção da fuga de óleo e óleo na caixa de velocidades, e o mau funcionamento do rádio, todas as outras situações são absolutamente normais, designadamente, fuga no conversor de gases de escape, dois tubos de vácuo com desgaste e discos ovalizados. v) Quanto ao problema do óleo, esse era um alegado defeito que já vinha desde o inicio e sobre o qual o A. havia acordado a reparação. w) Sendo que, como decorre do seu depoimento, minuto 51.02 a 51.30, questionado se o veículo apresentava óleo no chão, referiu que não. x) A exigência de substituição do automóvel, além do mais constitui um abuso de direito do A. y) Ainda que se considerasse a possibilidade de existir a substituição do automóvel, a solicitação da mesma após as sucessivas reparações da R., ou perante defeitos que não afetam o uso normal do veículo são abusivas. z) Ao aceitar a reparação na oficina do R. e depois confirmar na marca se tudo estava em condições, o A. fez crer à R. que essa seria a solução e, por isso, a R. gastou verbas com as sucessivas reparações. aa) A exigência da substituição, quando o valor da reparação na própria marca é de cerca de 10% do valor do veículo (o veículo custou 19.000€) e o A. fez crer que esta era a solução, é um abuso de direito nos termos do artigo n.º 334, n.º1 do Código Civil, cujo exercício ilegítimo vem expressamente previsto no n.º 5 do artigo 4.º do decreto-lei n.º 67/2003, de 08 de Abril. bb) Abuso de direito na sua vertente de "venire contra factum proprium", uma vez que a Ré confiou que a reparação era a solução e por isso despendeu as verbas com a mesma, violando o A. com a sua conduta os princípios da boa-fé e da confiança em que a R. assentou a sua expectativa. cc) Acresce que, não estamos perante defeitos essenciais, impedindo a realização do fim a que a coisa se destina no caso dos autos, um veículo destina-se a circular, e a verdade é que o A. continuou a circular com o veículo fazendo 4 mil quilómetros após a última reparação, em três meses, não encostando o veículo por um qualquer defeito.» I.3. A resposta às alegações de recurso culminou com as seguintes conclusões: «I.Vem a Ré apresentar recurso da sentença proferida pelo Tribunal a quo. II.Recurso esse que versa sobre a matéria de facto e a aplicação do direito. III.Alega a R., ora Recorrente, que o Tribunal “a quo” deu como provado um facto que não foi alegado pelas partes – o representante legal da R. circulou cerca de 500 kms com o veículo -, IV. Segundo a Recorrente, tal facto foi considerado essencial no fundamento da decisão recorrida, quanto ao valor a pagar ao A./ora Recorrente. V. Sendo que esse foi um dos fatores que terão contribuído para a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, quanto à fixação do montante a pagar ao A.. VI. Quanto a esse ponto, a sentença leva também em consideração um outro fator: “... o período que o veículo esteve entregue à Ré para reparação (não considerando o período que o Autor não o foi levantar por opção), durante o qual também sofreu desvalorização pelo mero decurso do tempo...” VII. Assim, para além do facto provado de o representante legal da R. ter circulado cerca de 500 kms com o veículo, a Mma. Juiz “ a quo” levou em consideração um outro facto provado, o facto supra referido. VIII. Alega também a Recorrente que o Tribunal “ quo” não poderia ter considerado, para a sua decisão, o facto provado segundo o qual o representante legal da R. ter circulado cerca de 500 kms com o veículo, por não ter sido alegado pelas partes. IX. Discordamos de todo dessa posição, considerando o disposto na al. b) do n.º 2 do art.º 5.º do CPC, pois trata-se de um facto que não mais é do que um complemento dos alegados, tendo resultado da instrução da causa. X. E teve a R., ora Recorrente oportunidade de sobre ele se pronunciar. XI. Atento o princípio da gestão processual, existe atualmente um claro reforço dos poderes do Juiz, no que toca a poderes de direção ativa, agilização, adequação e gestão processual, com vista à obtenção (e prevalência) de uma decisão de mérito. XII. Ainda, resultou provado das declarações de todas as testemunhas e, das declarações de parte do A., e do depoimento de parte da R., que o A. ora Recorrido, sempre que conduziu o carro, fê-lo sempre em condições precárias. XIII. Ou seja, em condições que não permitiam a utilização plena do mesmo. XIX.O A., ora Recorrido apenas poderia detetar os sucessivos problemas que o carro ia apresentando caso circulasse com ele, tendo sido, aliás, para esse fim que o adquiriu. XX. Após as pseudo reparações, era dito ao A. que o fumo e os ruídos do carro haveriam de desaparecer após algum tempo de utilização. XXI. Mas só não desapareceram, como ainda se agravaram. XXIII. Tais factos foram alegados, constavam nos temas da prova e resultaram provados. XXIV. Todas as testemunhas ( de A. e R.) e até o seu próprio representante legal da R., reconheceram os problemas mecânicos que o veículo apresentava. XXV. Bem como reconheceram a necessidade de o reparar. XXV. Mais se provou que o carro foi para reparação por diversas vezes, todas elas sem sucesso. XXVI. Nunca se tendo provado que tais reparações efetivamente tenham ocorrido. XXVII. Pelo que se ficou sem saber se essas reparações terão sido mesmo efetuadas. XXVIII. Pelo que nada nos autos indicia a existência de um erro notório no julgamento de facto. XXIX. Pelo que nenhuma razão assiste à Recorrente para impugnar a matéria de facto dada como provada e não provada, por a sentença se afigurar clara, coerente e suficiente, não padecendo de qualquer contradição, não devendo merecer qualquer censura por parte de V Exas..» I.4. O tribunal a quo recebeu o recurso. Corridos os vistos em conformidade com o disposto no art. 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO II.1. As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art. 608.º, n.º 2 e art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (arts. 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC). II.2. As questões que importa decidir são as seguintes: 1 – Saber se o facto provado n.º 32 podia ser considerado pelo tribunal a quo na decisão final. 2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto. 3 – Ampliação da matéria de facto. 4 – Saber se existe abuso de direito por parte do autor. II.3. FACTOS II.3.1. Factos provados O tribunal de primeira instância julgou provada a seguinte factualidade: 1. A Ré é uma sociedade comercial que tem como objeto o comércio de veículos automóveis ligeiros; comércio por grosso e a retalho de peças e acessórios para automóveis; comércio por grosso e a retalho de motociclos, suas peças e acessórios; manutenção e reparação de veículos automóveis; comércio de outros veículos automóveis. 2. No dia 12 de Setembro de 2016, o Autor adquiriu à Ré, no estado de usado, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca BMW, modelo 535 Touring, matriculado em 2005, com a matrícula …-EC-…, pelo preço de 19.000,00€. 3. Na data da sua aquisição pelo Autor, o veículo automóvel referido em 2. registava 254.325 quilómetros. 4. O Autor adquiriu o veículo referido em 2. como meio de transporte para si e para a sua família. 5. Na data da sua aquisição o veículo aparentava estar em bom estado de conservação e utilização, tendo a Ré afiançado o bom estado do mesmo. 6. Decorrido período inferior a um mês após a data referida em 2, o Autor detetou que o veículo começou a pingar óleo da caixa de velocidades e a fazer ruído na parte frontal. 7. Perante o referido em 6. o Autor exigiu à Ré que procedesse à reparação do veículo, ao que esta acedeu. 8. A Ré informou o Autor que iria proceder à reparação da caixa de velocidades ou, caso não fosse possível, à sua substituição. 9. No início de Dezembro de 2016 a Ré procedeu à entrega do veículo ao Autor. 10. Após o referido em 9, não obstante a intervenção feita pela Ré, o veículo começou a pingar óleo e a deitar fumo branco. 11. O Autor deu conhecimento desta anomalia à Ré e, ato contínuo, voltou ao estabelecimento desta entregar o veículo para ser reparado. 12. A Ré identificou a anomalia como sendo um problema no turbo, pelo que o mesmo iria ser substituído. 13. O veículo ficou no estabelecimento da Ré para reparação e no dia final do mês de Dezembro de 2016 a Ré entregou o veículo ao Autor. 14. Após a data referida em 13., o veículo começou novamente a pingar óleo e a deitar fumo. 15. Em Maio de 2017, o Autor voltou a entregar o veículo nas instalações da Ré. 16. Devido aos problemas apresentados pelo veículo, o Autor acordou com a Ré proceder à sua substituição por um veículo automóvel de marca Audi A5, pagando a respetiva diferença de preço, porquanto este último era mais caro. 17. Para o efeito, o Autor entregou à Ré a documentação necessária para pedir a concessão de crédito. 18. Não obstante o crédito ter sido aprovado, a Ré deu conhecimento ao Autor que não poderia concretizar a substituição do veículo porquanto o veículo Audi A5 não era propriedade daquela, sendo que o mesmo se encontrava no seu estabelecimento à consignação e o proprietário não concordara. 19. O Autor apresentou reclamação à DECO com o seguinte teor: “ Exmºs Senhores Venho solicitar a intervenção da DECO junto da BB – Unipessoal, Lda., com vista à resolução da situação que passo a expor: A 12 de Setembro de 2016 adquiri um veículo automóvel àquela entidade. Logo a 26 de Setembro, o veículo apresentou problemas, nomeadamente começou a pingar óleo (caixa de velocidades), fazia um ruído na parte frontal, erro na caixa e discos. Segundo o stand, a 07 de Outubro, verificaram que a caixa, embora tendo sido alvo de intervenção, patinava. Assim, 3 dias depois levaram o veículo para a marca para reprogramação. Ainda assim, a vendedora não conseguiu detetar o real problema da caixa de velocidades, tendo-me sido transmitido, a 04 de novembro, que irão mandar reparar ou substituir a caixa do veículo. Entretanto, a 24 de novembro contactei novamente o stand a fim de saber o estado do processo, tendo sido informado de que a caixa de velocidades nova ainda não estava disponível. Posto isto, apenas a 09 dezembro me foi entregue o bem. Porém, a 12 de dezembro a carrinha começou a deitar óleo (de motor) e a deitar fumo branco, pelo que novamente denunciei os defeitos e entreguei o carro à vendedora para resolução. Analisada a situação, foi concluído que se tratava de um problema no turbo, pelo que foi encomendado um novo, e a 30 de dezembro a carrinha foi entregue reparada. No passado dia 15, o veículo voltou a apresentar os últimos constrangimentos – fuga de óleo e fumo branco. Perante tal, entre mim e o stand foi feito o seguinte acordo: a carrinha seria substituída por um outro veículo – Audi A5, mais novo -, como retoma, e ainda pagaria a diferença. Para tanto, entreguei documentação para pedido de crédito. A 23 de maio recebi um telefonema de um funcionário do stand, que me deu a indicação de que embora o crédito tivesse sido aprovado, afinal o carro que tinham indicado para a substituição não era propriedade do stand, pelo que o negócio não poderia ser concretizado. Mais me foi dito que, com efeito, iriam proceder à reparação do veículo. De imediato contestei a posição do stand, dizendo que pretendia a situação resolvida até ao final do dia. Nessa altura, foi-me dito que entrariam em contacto comigo dentro de 5 minutos, o que não ocorreu. Ora, conforme será do conhecimento da vendedora, o regime geral das garantias dispõe que, verificando-se defeito do bem, o consumidor tem direito à sua reposição da conformidade. O veículo em apreço já apresentou diversos problemas, e desde o início do contrato, alguns até repetidamente e, portanto, já foi alvo de várias reparações. Além disso, das reparações (muitas sem o efeito esperado) feitas, nem sempre foi cumprido o prazo legalmente estabelecido para o efeito de 30 dias, assim como nunca me foi entregue qualquer relatório técnico das mesmas. Mais é de lamentar o comportamento tido pela vendedora relativamente à solução de substituição que iria ser levada a cabo. Face a todas essas circunstâncias, claro é que a reparação já não se apresenta como uma solução adequada, pelo que, e ao abrigo da legislação em vigor, exijo, legitimamente, a substituição do em ou a resolução do contrato (resolução esta, que, aliás, foi várias vezes por mim proposta desde o início dos problemas).” 20. Na sequência da reclamação apresentada pelo Autor junto da DECO, e que foi levada ao conhecimento da Ré por intervenção daquela entidade, a Ré apresentou resposta com o seguinte teor: “Exmºs Srs., Em consequência da reclamação apresentada por Vossas Exsª, através de e mail enviado no dia 29-05-2017, em representação do Exmo. Senhor CC que nos expõe o seu desagrado relativamente à forma como os nossos serviços foram prestados, gostaríamos, muito respeitosamente, de providenciar os seguintes esclarecimentos: 1. Como se pode ver pela carta do cliente sempre que rececionamos a viatura a mesma foi enviada por nós para a oficina de modo a estes detetarem o problema e se resolver o mesmo. 2. Aceitamos sempre o que nos foi referido pela oficina e obtivemos gastos para se solucionar os problemas apresentados. 3. Em relação à possível troca de viaturas com um Audi A5 foi explicado ao cliente que apesar de termos a viatura a mesma não nos pertence pois encontra-se no stand à consignação e o proprietário da mesma não quis aceitar o negócio além do mais referimos ao cliente que estamos sempre presentes para achar a melhor solução; 4. Iremos terminar a reparação da viatura e entregar a mesma ao cliente, pois é nosso dever repará-la. 5. Caso apareça uma viatura no nosso stand que seja de agrado do cliente estamos dispostos a trocar a mesma. Assim, atendendo aos factos expostos, somos da opinião de que tudo foi feito de modo a resolvemos o assunto com a maior brevidade e qualidade possível. No entanto, permanecemos inteiramente à disposição do cliente e após termos rececionado o vosso email entramos em contacto com o mesmo para tentarmos resolver o assunto da melhor maneira”. 21. No dia 7 de Julho de 2017, a Ré emitiu declaração com o seguinte teor: “ BB Unipessoal, Lda., NIF … aqui representada pelo seu gerente Marcos C…, título de residência n.º …, declara que com vista à resolução do conflito que a opõe ao cliente CC, no âmbito do contrato de compra e venda n.º 01684, se compromete a: - no prazo máximo de 20 dias, proceder à entrega do veículo objeto do contrato devidamente reparado; - proceder a essa reparação mediante instalação de peças novas e originais (no valor aproximado de 7.000,00€) - assumir os custos de avaliação de veículo na marca BMW, caso o cliente assim o pretenda; - atribuir mais um ano de garantia ao veículo, com início a partir da entrega do mesmo.”. 22. A Ré procedeu à reparação do veículo e o mesmo foi colocado à disposição do Autor no final do mês de Julho de 2017. 23. Apesar do referido em 22., o Autor apenas levantou o veículo em Setembro de 2017, tendo até essa data recusado a fazê-lo. 24. Após a entrega do veículo, e na sequência do teor do documento referido em 20., o Autor levou o mesmo ao concessionário da marca BMW, em Faro, para avaliação do seu estado após aquela reparação. 25. Após realizar a avaliação do veículo, em 4 de Outubro de 2017, no concessionário da marca BMW, foi diagnosticado que o veículo apresentava fuga no conversor de gases de escape, dois tubos de vácuo com desgaste, fuga de óleo e óleo na caixa de velocidades, discos ovalizados e que o radio não funcionava. 26. O Autor não apresentou à Ré o relatório elaborado pelo concessionário da marca. 27. Na sequência dos problemas detetadas na avaliação referida em 24., em 31 de Outubro de 2017, o Autor remeteu à Ré carta registada com o seguinte teor: “Exmºs Senhores, Na sequência da carta que vos foi dirigida por mim e pelo meu advogado em 17 de junho de 2017; e depois da V. reparação ao veículo em causa durante Setembro de 2017 (o veículo BMW 535 Touring de matrícula …-EC-…, adquirido por mim à V. empresa conforme contrato 01684); e de me ter sido afirmado, na entrega que teve lugar a 20.9.2017, que o veículo estava já em condições e sem qualquer defeito, ficando apenas por esclarecer a questão da extensão da garantia que a V. empresa queria unilateralmente passar para a responsabilidade da Mapfre por mais 12 meses; venho enviar-vos a presente carta de denúncia de defeitos da viatura, verificada por inspeção na Marca, e cujo resultado me foi comunicado a 4 de Outubro de 2017. Não obstante a V. afirmação de que o veículo estava agora em totais condições; e das várias reparações que dizem ter feito; o veículo continua a perder óleo e a acumular óleo em baixo da caixa de velocidades; o rádio continua sem poder ser utilizado por estar completamente inoperacional; mantem-se a fuga no conversor de gazes de escape; os tubos de vácuo estão desgastados e não foram tratados nem substituídos; os discos da frente e de trás estão ovalizados; a viatura não ganha velocidade e está muito lenta a nível de rotações, e hesita ao engrenar mudanças. A verificação e avaliação destes defeitos foi feita em 03.10.2017 nos serviços autorizados da BMW, de acordo com a V. declaração de 7.7.2017, pelos que os custos da mesma são a V. cargo; pelo que vos enviarei oportunamente a fatura desse custo. Tudo isto representa um prejuízo patrimonial e um dano moral para mim e compromete a segurança e o bom uso do veículo que vos adquiri. Deixo os defeitos denunciados pela entrega desta carta no V. stand e através de e-mail que hoje vos dirijo, considerando esta denúncia feita para todos os efeitos da lei. Solicito uma vossa resposta urgente quanto ao que pretendeis fazer no caso, e reitero o que já vos comunicara em 17.7.2017, nos vários pontos dessa comunicação. Lembramos mais uma vez que, durante as reparações que motivaram que estivesse eu privado de meio de transporte por bastante tempo, várias vezes, nunca me foi entregue, a vosso cargo, o necessário veículo de substituição de classe compatível, como insistentemente solicitado. Fico a aguardar a V. resposta”. 28. Em resposta ao vertido em 27., em 8 de Novembro de 2017, a Ré remeteu ao Autor, através de correio eletrónico, correspondência com o seguinte teor: “Caro Sr. CC, Relativamente ao negócio da viatura …-EC-…, da BMW, modelo 535d, e em resposta ao mail que nos enviou no passado dia 30 de outubro de 2017, passamos a relatar-lhe a nossa versão dos acontecimentos desde o momento em que a mesma lhe foi entregue. Como bem sabe, esta viatura foi-lhe vendida há mais de um ano, mais precisamente, em Setembro de 207. E, como acontece com todos os negócios realizados pela nossa empresa como os nossos clientes, este negócio foi realizado com total boa fé e responsabilidade pela nossa parte. Somos uma empresa que trabalha há vários anos neste ramo de negócios e com um elevado volume de vendas. E, a qualidade e a satisfação dos nossos clientes são, e sempre foram, algo prioritário para nós! Esta nossa convicção é facilmente comprovada pela ausência de situações de contencioso e pela recorrência dos nossos clientes em realizarem negócios connosco ano após ano. O caso particular do negócio que realizamos consigo não foge a este tipo de comportamento. No momento em que esta viatura lhe foi vendida e, apesar de se tratar de uma viatura com 12 anos e com cerca de 250.000 Km, era nossa convicção que a mesma se encontrava em excelentes condições. Quando qualquer viatura apresenta problemas, sempre assumimos a nossas responsabilidades, reparando e corrigindo qualquer defeito que seja responsabilidade da nossa empresa, e sempre respeitando o que a lei. Foi o que aconteceu sempre que nos apresentou qualquer queixa. (…) No caso particular da viatura …-EC-…, independentemente de qualquer garantia oferecida no cumprimento daquilo que está legalmente disposto, não podemos ignorar que se trata de uma viatura com 12 anos e com cerca de 250.000Km no momento que decidiu adquiri-la. Factos que sempre foram do seu conhecimento, bem como os riscos inerentes a qualquer viatura nestas condições. Desde que a viatura lhe foi entregue, e de acordo com aquilo que nos relata na sua carta de 1 de fevereiro de 2017, sempre que nos apresentou qualquer queixa, resolvemos os seus problemas e sempre suportamos os custos decorrentes das reparações. Entretanto, após a última reparação que fizemos à sua viatura, não nos parece correta a sua queixa, quando refere que lhe devolvemos a viatura em Setembro de 2017, porque nesta ocasião em particular, como bem sabe, a viatura estava pronta desde finais de Julho de 2017 e apesar de todos os esforços para lhe entregar a viatura, nunca a quis recolher porque durante cerca de 45 dias sempre insistiu que teríamos de falar com o seu advogado. Somente após muitas insistências resolveu recolher a viatura, em Setembro, tendo começado, imediatamente, a queixar-se dos travões, apesar de lhe ter sido devidamente informado que seria normal ouvir alguns ruídos devidos ao período de tempo que a viatura esteve parada no nosso stand, exposta ao sol e à humidade da noite. Recentemente o Sr. dirigiu-se ao nosso stand e foi recebido no nosso escritório, tendo demonstrado a intenção de nos entregar uma carta cujo conteúdo seria mais uma reclamação baseada num relatório da BMW que sugeriria que a viatura necessitaria de reparações no valor de cerca de €2.000 (dois mil euros). Em boa verdade, creio que compreenderá que um orçamento deste valor, elaborado pela BMW, no seguimento de um pedido para verificação geral da viatura não demonstra problemas graves, ou algo irreparável. No entanto, quando lhe foi pedido para mostrar o dito relatório recusou-se a fazê-lo. Apenas informou que as principais falhas identificadas estariam relacionadas com fugas de óleo que no nosso entendimento seria algo de simples reparação, pelo que lhe solicitamos que nos trouxesse a viatura para a podermos reparar e decidimos oferecer-lhe uma extensão do período de garantia para lhe transmitirmos o conforto e a confiança de que continuaria a contar com a nossa empresa caso a viatura volte a apresentar problemas que possam ser da nossa responsabilidade. Não aceitou fazê-lo e, nesse momento, decidiu pedir todo o seu dinheiro de volta. Situação que é absolutamente irrazoável e inaceitável, demonstrando, na nossa opinião má-fé e uma tentativa de aproveitamento deste negócio para retirar vantagens sobre a nossa empresa. Ainda assim, foi-lhe feita uma oferta para readquirirmos a viatura por um valor de mercado atual, atendendo ao tempo de utilização entre a data em que a viatura lhe foi vendida e a presente data, a qual declinou de imediato. Apesar de compreendermos a sua insatisfação, gostaríamos de voltar a manifestar a nossa disponibilidade para voltar a reunir com o firme propósito de discutirmos este assunto até que seja alcançada uma solução satisfatória.”. 29. O veículo na data de 18 de Outubro de 2018 registava 264.358 quilómetros. 30. O veículo tem o valor atual de 14.250,00€. 31. Na data referida em 29. o Autor já não circulava com o veículo. 32. Após a reparação referida em 22., e com vista a experimentar o veículo, o legal representante da Ré circulou cerca de 500 quilómetros com o mesmo. II.3.2. Factos não provados O tribunal de primeira instância julgou não provada a seguinte factualidade: a) Para além do provado em 6. que o veículo apresentasse erros na caixa e discos de embraiagem. b) Aquando da aquisição do veículo, o Autor teve consciência que muitas das peças de origem tinham um desgaste acentuado, o que foi tido em consideração no preço do negócio. c) Antes de ter sido vendido ao Autor, o veículo foi alvo de uma revisão completa, tendo, nomeadamente, sido substituído: cinoblocos; suspensão bilstein completa; terminais de direção, apoios de motor; óleo de caixa; óleo de motor castrol gtx; maxilas travão de mão; pastilhas a frente não tem avisador; filtro de óleo; filtro de gasóleo; filtro de habitáculo; tubos de vácuo e tampo do vaso do radiador. d) O veículo foi adquirido pela Ré a uma empresa denominada DD, Lda., que referiu que o veículo tinha muitos quilómetros, mas não apresentava defeitos que não fossem do desgaste normal em função da idade e quilómetros do veículo. e) Para além do provado em 6, 9, 13, 14, 15, 22 e 23, quais as datas concretas em que tais factos ocorreram. f) O Autor continua a utilizar o veículo. g) Os defeitos referidos em 25. resultam do desgaste normal do veículo e não impedem, nem dificultam a circulação do mesmo. II.4. Apreciação do objeto do recurso II.4.1. Facto provado n.º 32 Este facto tem o seguinte teor: «Após a reparação referida em 22., e com vista a experimentar o veículo, o legal representante da Ré circulou cerca de 500 quilómetros com o mesmo.» O facto em causa não foi alegado pelas partes nos respetivos articulados, tendo resultado da instrução da causa, extraindo-se da fundamentação da sentença recorrida que o mesmo se fundou no depoimento do legal representante da Ré. Tal facto foi considerado pelo tribunal a quo para fixar o valor a restituir pela ré/recorrente ao autor/recorrido em virtude da resolução do contrato. Com efeito, consta da decisão recorrida o seguinte: «[…] tendo em consideração, no caso concreto, o período que o veículo esteve entregue à Ré para reparação (não considerando o período que o autor não o foi levantar por opção), durante o qual também sofreu desvalorização pelo mero decurso do tempo, e que o legal representante da ré circulou 500 km, atendendo a tais fatores, não imputáveis ao autor e que também contribuem para a desvalorização do veículo, entende-se fixar em 15.000,00 (quinze mil euros) o valor a restituir pela ré ao autor pela resolução do contrato». A recorrente defende que, tratando-se de um facto essencial para calcular o valor a pagar pela ré ao autor – porque assim foi considerado pelo tribunal recorrido – não pode ser tomado em consideração na sentença final, sob pena de violação do art. 5.º, do Código de Processo Civil. O recorrido, por sua banda, sustenta que se trata de um facto complementar dos que foram alegados, tendo resultado da instrução da causa e tendo tido a recorrente oportunidade de sobre ele se pronunciar, podia o tribunal a quo considerar o mesmo na sua decisão. Quid juris? A questão suscitada pela recorrente impõe que se traga à colação o art. 5.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC o qual, sob a epígrafe Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal, dispõe que: «1 – Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. 2 – Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.» No normativo transcrito está regulada a aquisição processual de factos relevantes para a decisão da causa que o tribunal pode ter em consideração na decisão da causa apesar de os mesmos não terem sido alegados pelas partes nos respetivos articulados. A norma em apreço distingue os factos “essenciais” dos factos “instrumentais” e dentro da categoria dos primeiros (“essenciais”) os factos “concretizadores” dos factos “complementadores”. Os factos “essenciais” são os previstos nas fatiespécies das normas das quais pode emergir o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou pelo reconvinte ou nos quais se pode fundar a exceção deduzida pelo réu[1]. Os factos “instrumentais” são aqueles que se destinam a realizar a prova indiciária dos factos essenciais na medida em que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes, assumindo, assim, em exclusivo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa[2]. Dentro da categoria dos factos “essenciais” há aqueles que são “complementares”, isto é, factos que «emprestam um certo sentido (essencial) aos factos já alegados, conferindo unidade e concludência jurídica ao contexto factual» e os que são “concretizadores”, isto é, circunstâncias de facto subordinadas, sem sentido autónomo, que permitem densificar o facto essencial alegado, até um nível de concretização exigido pela norma substantiva para que o direito invocado, com o âmbito pedido, possa ser reconhecido.»[3] Resulta da alínea b) do n.º 2 do art. 5.º do CPC que o tribunal pode atender, na sentença, a factos essenciais que resultem da instrução da causa, desde que aqueles se integrem no objeto do litígio tal como definido pelas partes através dos factos essenciais alegados, completando ou concretizando os factos essenciais alegados e julgados provados. E desde que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre eles (última parte da alínea b), do n.º 2 do art. 5.º do CPC). Ou seja, desde que o direito da parte interessada de influenciar o desenvolvimento processual seja garantido através do respeito pelo contraditório, o que implica, designadamente, não apenas a possibilidade de pronúncia mas também a de propor e produzir prova sobre a nova factualidade. No caso sub judicie, o autor, invocando a existência de defeitos na viatura que lhe foi vendida pela ré, a impossibilidade de reparação da mesma e da sua substituição, pediu ao tribunal que decretasse a resolução do referido contrato de compra e venda e, consequentemente, condenasse a segunda a restituir-lhe o montante equivalente ao preço que pagou pela viatura, concretamente, o valor de 19.000,00€. A ré, por sua vez, e no que concerne à devolução do preço pago pelo autor, alegou que o preço dos veículos é fixado também em função dos quilómetros do mesmo e que o autor beneficiou do uso do veículo pelo que a devolução do preço contratual pedida pelo autor e a correspondente devolução do veículo com o uso e desgaste entretanto sofrido envolveria um enriquecimento sem causa por parte do autor, devendo, por isso, ser abatido o valor da desvalorização ocorrida até à data da entrega do mesmo, a apurar em sede de liquidação de sentença. Extrai-se da sentença sob recurso que o tribunal a quo considerou que a devolução integral do preço pago pelo autor, atendendo ao uso e desgaste entretanto sofrido pela viatura, envolveria um enriquecimento sem causa do autor mas que para tal desgaste contribuiu também o facto de o legal representante da ré ter circulado 500 quilómetros com o veículo automóvel, e que não sendo tal imputável ao autor, aquela contribuição do legal representante da ré para o uso e desgaste da viatura deve ser tida em linha de conta na fixação do valor a devolver ao autor. Aquele facto concreto (utilização do veículo pelo legal representante da ré numa circulação de 500 km) complementa o facto (essencial) alegado pela ré consistente na desvalorização da viatura automóvel pelo uso da mesma. Trata-se de um facto que foi mencionado pelo legal representante da ré quando prestou depoimento na audiência final. E resulta da ata da audiência final que após o legal representante da ré ter sido questionado pelo juiz a quo foi concedida a palavra a ambas as partes que nada requereram (cfr. fls. 107-108). Como referem Paulo Ramos Faria e Luísa Loureiro, ob. cit., pp. 43 e ss.:«O atual modelo do processo comum de declaração é caracterizado pela simplificação da apresnetação inicial da matéria litigiosa – limitando-se a articulação à factualidade essencial (arts. 530.º, n.º 7, al. a), 552.º, n.º 1, al. d) e 572.º, al. c)) -, pela simplificação da delimitação desta matéria – a base instrutória é substituída pelos temas da prova (art. 596.º) – e valorização da audiência prévia (…) na fase intermédia (…) Um modelo com estas características exige, de modo a assegurar o seu equilíbrio, que a matéria litigiosa possa ser densificada na fase do julgamento, através da aquisição de factos relevantes meramente apendiculares – instrumentais e essenciais complementares ou concretizadores dos alegados pelas partes – com naturalidade. A matéria litigiosa é definida pelas partes – com a alegação dos factos essenciais caracterizadores da causa de pedir e das exceções -, concretizando o princípio dispositivo, sendo da natureza do processo equitativo, heurístico e dirigido à justa composição do litígio que a factualidade relevante – logo, compreendida na causa de pedir ou na matéria de exceção invocadas – adquirida durante a instrução seja considerada pelo tribunal, sem mais formalidades – respeitando o princípio da audiência contraditória.» E noutra passagem, ob. cit., p. 44, escrevem os mesmos autores: «(…) com a atual identificação do objeto do litígio, numa fase intermédia do processo (art. 596.º, n.º 1), e não apenas na sentença (art. 607.º, n.º 2), afasta-se qualquer perigo de a parte a quem aproveitam pretender, por absurdo – e contra factum proprium – excluir tais factos do objeto do litígio e do âmbito da cognição do tribunal. Agora, perante a identificação do objeto do processo antes do início da instrução (constituenda), sujeita à sua reclamação e ulterior impugnação por recurso (art. 596.º, n.ºs 2 e 3), a parte sabe, sem surpresa, que o pedido de consideração de todos os factos essenciais abrangidos por aquele objeto, alegado ou não, ser-lhe-á imputado.» No caso concreto, a própria recorrente invocou a desvalorização da viatura em virtude da sua utilização (ainda que apenas pelo recorrido). A utilização da viatura pelo legal representante da ré, enquanto fator de desvalorização da viatura que é, está abrangido pelo objeto do litígio, densificando o conceito de «desvalorização» que foi invocado pela recorrente, não devendo, por isso, o seu aproveitamento pelo tribunal constituir surpresa para o mesmo. E, pese embora não haja sido alegado pelas partes, estas tiveram a possibilidade de exercer o direito ao contraditório pelo que podia ter sido, como efetivamente foi, aproveitado pelo tribunal de primeira instância. Em face do exposto, improcede este segmento do recurso. II.4.2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto II.4.2.1. Alínea g) dos factos não provados A alínea em apreço tem a seguinte redação: «Os defeitos referidos em 25. resultam do desgaste normal do veículo e não impedem nem dificultam a circulação do mesmo». O apelante defende que deve ser julgado parcialmente provada aquela factualidade, concretamente que «Os defeitos referidos em 25 não impedem nem dificultam a circulação do mesmo». Em abono da sua posição invoca o depoimento do autor do qual resulta que ele circulou com a sua família no veículo até janeiro de 2018, altura em que acendeu a luz do óleo, e que aquele não viu óleo no chão, bem como o relatório pericial que refere que a viatura está em boas condições de circulação, e, ainda, a avaliação que consta do documento n.º 5 anexo à petição inicial da qual consta expressamente que o veículo «entrou em 3 de outubro de 2017 nas instalações da Caetano Baviera-Faro, com 260.044 quilómetros» e o facto provado n.º 29 que refere que «o veículo na data de 18 de outubro de 2018 registava 264.358 quilómetros», donde conclui que o veículo circulou cerca de 4.300 quilómetros entre 3 de outubro de 2017 e até 18 de outubro de 2018. Ora, aquilo que a apelante pretende ver integrado na factualidade provada (que a circulação do veículo não está impedida nem dificultada pelos danos descritos no ponto 25 dos factos provados) não constitui matéria de facto, encerrando, ao invés, um juízo conclusivo baseado em factos que não estão contidos na respetiva redação do facto julgado não provado. Por conseguinte, não há que determinar o seu aditamento ao elenco de factos provados, tornando-se desnecessária a apreciação dos meios probatórios indicados pelo apelante. Improcede, por conseguinte, este segmento do recurso. II.4.2.2. Ampliação da factualidade provada Pretende a apelante que seja aditada à factualidade provada o seguinte facto: «O preço de arranjo dos defeitos identificados em 25. é no montante de 2.000,00 € no concessionário da marca BMW, tendo o réu oferecido esse dinheiro ao autor para mandar arranjar o veículo.» Para tal desiderato a apelante alega que resultou do depoimento do autor dois factos complementares relevantes, a saber, que o preço do arranjo do veículo são 2.000,00 € e que a ré ofereceu esse dinheiro para o autor arranjar o veículo na marca. Na sua contestação, a ré alegara que «Apenas em 31 de outubro de 2017, o Autor enviou um e-mail ao réu, mas sem juntar qualquer relatório, tendo o réu respondido, por email de 8 de novembro, dizendo que estava disposto a reparar o veículo e que as reparações de 2.000,00 €, preço da BMW, demonstravam que não seria nada de grave». Do documento anexo à contestação que consiste no email de 08.11.2017 enviado pela ré ao autor (fls. 39-41) consta a seguinte passagem: «Recentemente, o sr. dirigiu-se ao nosso stand, e foi recebido no nosso escritório, tendo demonstrado a intenção de nos entregar uma carta cujo conteúdo seria mais uma reclamação baseada num relatório da BMW que sugeriria que a viatura necessitaria de reparações no valor de cerca de €2.000 (dois mil euros) […] No entanto, quando lhe foi pedido para mostrar o dito relatório recusou-se a fazê-lo. Apenas informou que as principais falhas identificadas estariam relacionadas com fugas de óleo que no nosso entendimento seria algo de simples reparação, pelo que lhe solicitamos que nos trouxesse a viatura para a podermos reparar […]». Nas declarações de parte prestadas em audiência final, o autor afirmou que a BMW orçou a reparação da viatura em 2.000,00€ (desde que não houvessem outros danos que eventualmente viessem a ser constatados após a abertura da caixa de velocidades, abertura que nunca foi concretizada) e que falou com o sr. M… o qual lhe disse que «se era aquele o valor da reparação não era nada de grave e que lhe dava o dinheiro da reparação para arranjar a viatura». Da conjugação dos referidos meios probatórios resulta, pois, provado que «O arranjo dos defeitos identificados em 25. foi orçado, pelo concessionário da marca BMW, em 2.000,00 €, tendo a ré oferecido esse dinheiro ao autor para mandar arranjar o veículo.» Por conseguinte aquela factualidade deverá ser aditada à matéria de facto provada. Em face do exposto, ordena-se o aditamento aos factos provados da seguinte factualidade: «O arranjo dos defeitos identificados em 25. foi orçado, pelo concessionário da marca BMW, em 2.000,00 €, tendo a ré oferecido esse dinheiro ao autor para mandar arranjar o veículo.» II.4.3. O Direito O tribunal a quo considerou que o veículo vendido ao autor pela ré não apresenta as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o autor poderia razoavelmente esperar, não sendo razoável impor-lhe que continue com aquele veículo, já várias vezes intervencionado e que continua a necessitar de intervenção para eliminar, entre outras, anomalias inicialmente detetadas e persistentes, concluindo, por conseguinte, que lhe assiste direito à resolução do contrato. A recorrente defende, ao invés, que deve ser revogada a decisão de resolução do contrato outorgado com o recorrido sustentando, em síntese, que o direito à anulação do contrato se extinguiu por cumprimento das sucessivas exigências de reparação do bem, sem encargos, que foram por ela realizadas, e que a resolução do contrato constitui abuso de direito não só porque tal pretensão é contraditória com o facto de o autor ter solicitado a reparação da viatura, solicitação que foi sempre satisfeita pela recorrente, mas também porque «não estamos perante defeitos essenciais, que impeçam a realização do fim a que a coisa se destina». Importa, por conseguinte, aferir do acerto da decisão recorrida quanto à matéria de direito e, concretamente, se a resolução do contrato constitui um abuso do direito. Não é controvertido que a recorrente e o recorrido celebraram um contrato de compra e venda que teve por objeto uma viatura automóvel no estado de usada. Contrato que é definido como aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou de outro direito, mediante um preço (art. 874.º, do Código Civil). Também não é controvertido que o autor adquiriu a viatura em causa nos autos como meio de transporte para si e para a sua família e que a ré é uma sociedade comercial que tem por objeto, designadamente, o comércio, a reparação e manutenção de veículos automóveis (cfr. supra II. 3.1). Pelo que estamos perante um contrato de compra e venda para consumo, ao qual se aplicam, para além das regras gerais previstas no Código Civil, a Lei n.º 24/96, de 31.07 (Lei de Defesa do Consumidor) e o regime previsto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08.04, na redação que lhe foi dada pelo D/L n.º 84/2008, de 21.05, o qual transpôs para o ordenamento jurídico interno a Diretiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio relativa a certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas porquanto nos termos do art. 1.º-B, do D/L n.º 67/2003, de 08.04 e do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho «consumidor» é aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios. De acordo com o disposto no art. 3.º, al. a), da Lei n.º 24/96, de 31.07, o consumidor tem direito à qualidade dos bens e serviços, prescrevendo o art. 4.º do mesmo diploma legal que «Os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor» (itálicos nossos). Por sua vez o art. 2.º, n.º 1 do D/L n.º 67/2003, de 08.04 dispõe que «O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda». Normativo que consagra o princípio da pontualidade previsto, designadamente, no art. 406.º do Código Civil. Nas alíneas do n.º 2 do art. 2.º do D/L n.º 67/2008 estabelecem-se presunções de desconformidade do bem com o contrato, ilidíveis mediante prova em contrário[4]. Assim, estabelece aquele normativo que: «Presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos: a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor haja apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) Não apresentarem as qualidades e desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.» (itálicos nossos). Dispõe, ainda, o n.º 3 que «Não se considera existir falta de conformidade, na aceção do presente artigo, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor.» Prescreve o art. 3.º do D/L n.º 67/2003, de 08.04, sob a epígrafe Entrega do bem, que: «1 – O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue. 2 – As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respetivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade» (itálicos nossos). Se o bem de consumo entregue não for conforme ao contrato, ao consumidor são reconhecidos os direitos previstos no art. 4.º do D/L n.º 67/2003, de 08.04, independentemente de culpa do vendedor no cumprimento inexato da obrigação de entregar o bem devido, conforme o contrato[5]. São eles: o direito de reparação, sem encargos para o comprador, ou o direito de substituição, o direito à redução adequada do preço e o direito à resolução do contrato. Para além dos direitos mencionados, assiste, ainda, ao comprador-consumidor o direito a indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens defeituosos, em conformidade com o art. 12.º, n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31.07. O comprador-consumidor pode exercer qualquer dos direitos mencionados no art. 4.º do D/L n.º 67/2003, de 08.04, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais (art. 4.º, n.º 5). Pese embora não exista uma hierarquização dos direitos contemplados no normativo citado, podendo o consumidor adquirente optar, por qualquer um daqueles direitos, desde que se verifiquem os respetivos pressupostos, a sua escolha está sempre sujeita aos ditames da boa-fé por forma a que não incorra no exercício ilegítimo do direito de opção que lhe é conferido pelo normativo em apreço[6]. A “conformidade/desconformidade” do bem é, nos termos do art. 2.º, n.º 1, do D/L n.º 67/2003, aferida através da comparação entre a prestação estipulada contratualmente e a prestação efetivamente realizada, abrangendo a noção de “desconformidade” quer os vícios na própria coisa objeto do contrato quer os vícios de direito. Para que o comprador-consumidor possa exercer os direitos que lhe assistem tem o ónus processual de alegar e provar o defeito da coisa, isto é, a sua desconformidade com o contrato, beneficiando da presunção de que o defeito já existia à data da entrega, nos termos do art. 3.º, n.º 2, do D/L n.º 67/2003, cabendo então ao vendedor ilidir essa presunção. Isto é, bastará ao comprador-consumidor alegar e provar os factos base da presunção e que eles se manifestaram dentro do prazo da garantia legal imposta pelo D/L n.º 67/2003, incumbindo ao vendedor alegar e provar que o defeito é posterior à entrega da coisa designadamente por falta de diligência do comprador, por facto de terceiro ou devida a caso fortuito. Tendo presente o cotejo de normas acima mencionadas, regressemos ao caso concreto. O tribunal a quo considerou que o veículo automóvel entregue pela ré/recorrente ao autor/recorrido está «desconforme» com o que foi contratado pois não apresenta as características necessárias para circular na via pública em condições de segurança, como lhe era exigido, atendendo ao fim a que se destina, porquanto apresenta fuga no conversor de gases de escape, dois tubos de vácuo com desgaste, discos ovalizados, o rádio não funciona e que, não obstante as sucessivas reparações por parte da Ré, continua a padecer de fuga de óleo, designadamente na caixa de velocidades. E que apesar de o autor saber na data da respetiva aquisição que o veículo era usado e com mais de 250.000 km não se provou que aquele tivesse conhecimento ou não devesse ignorar as deficiências que o veículo veio a manifestar, aceitando-o nesse estado, prova que incumbia ao vendedor, nos termos do art. 342.º, n.º 2, do Código Civil. Discorda a recorrente do decidido, alegando que os problemas referidos no relatório da BMW, com exceção da fuga de óleo na caixa de velocidades e do mau funcionamento do rádio, «são absolutamente normais» e que «não estamos perante defeitos essenciais, impedindo a realização do fim a que a coisa se destina no caso dos autos, um veículo destina-se a circular, e a verdade é que o A. continuou a circular com o veículo fazendo 4 mil quilómetros após a última reparação, em três meses, não encostando o veículo por um qualquer defeito.» Mais alega que «quanto ao problema do óleo, esse era um alegado defeito que já vinha desde o inicio e sobre o qual o A. havia acordado a reparação» e que uma vez que a ré confiou que a reparação era a solução tendo, por isso, despendido verbas com a mesma, o autor viola princípios da boa-fé e da confiança em que a ré assentou a sua expectativa ao exigir a sua substituição. Relativamente à alegada falta de essencialidade dos defeitos da viatura vendida, o tribunal a quo considerou que «a viatura «vendida ao autor pela ré/recorrente não apresenta as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e com os quais o autor razoavelmente contava.» Os vícios ou defeitos de uma coisa devem ser aferidos em função de um critério de normalidade, isto é, há que verificar se o bem corresponde, ou não, à qualidade normal de coisas daquele tipo e, em seguida, determinar se é adequado ao fim, implícita ou explicitamente estabelecido no contrato[7]. Na concretização das «expectativas razoáveis do consumidor» a que alude o art. 4.º, n.º 2, al. d), do D/L n.º 67/2003, há que ponderar a natureza do bem, isto é, a sua idade, a coisa ser nova ou usada e pouco ou muito usada, e as declarações concretamente proferidas pelo vendedor sobre o bem, ou seja, as qualidades por ele asseguradas. No caso em apreço, estamos perante uma compra e venda de uma viatura automóvel no estado de usada e que, na data da sua aquisição pelo autor, registava 254.325 quilómetros, factos que eram do conhecimento do adquirente. Porém, ainda que se trate de uma viatura com bastante uso, como o demonstram os quilómetros já percorridos, a mesma custou ao autor o preço de 19.000,00 € e o seu «bom estado» foi afiançado pelo vendedor. Daí que o facto de a viatura apresentar fugas de óleo desde o início da respetiva aquisição que levaram a que, por três vezes e numa janela temporal de cerca de um ano, tivesse sido objeto de entrega na oficina da ré/recorrente para ser sujeita a reparação, fugas essas que, aliás, persistem, permita concluir que a viatura automóvel objeto dos autos não tem permitido ao autor e respetiva família uma utilização satisfatória num padrão de normalidade. Ou, dito de outra forma, à luz do uso corrente ou função normal das coisas da mesma natureza, o veículo em causa não tem as qualidades necessárias para a realização do fim esperado. Por conseguinte, não merece censura a conclusão alcançada pelo juiz a quo ao considerar ser «inequívoca a falta de conformidade da viatura vendida pela ré, que não apresenta as qualidades e desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e com os quais o autor razoavelmente contava». Quanto ao segundo argumento alegado pela recorrente, a saber, o abuso de direito por parte do autor, a recorrente sustenta, em síntese, que a substituição da viatura após as sucessivas reparações da viatura efetuadas por ela, sem quaisquer encargos para o autor, é abusiva. Como ponto prévio se dirá que o autor/recorrido não pediu ao tribunal a substituição da viatura vendida mas sim a resolução do contrato com a consequente devolução do preço que pagou pela mesma. Aliás, a substituição, in casu, mostrou-se impossível porque estamos perante uma viatura no estado de usada e provou-se que o veículo Audi 5 que a ré/recorrente se propôs entregar ao autor/recorrido em substituição da viatura defeituosa não era propriedade da primeira e o respetivo dono não concordou com a venda da mesma (cfr. supra II.3.1). A questão do “abuso de direito” foi abordada pelo tribunal a quo da forma que passamos a transcrever: «Não há dúvida que o par reparação/substituição, indo ao encontro do princípio da manutenção do contrato, será a opção que mais facilmente satisfará os interesses de vendedor e comprador, e sendo esta possível e surgindo como desproporcionadas a redução do preço e a resolução, poderá equacionar-se se pela via do abuso de direito, não será de impor ao consumidor a conservação do negócio jurídico. De todo o modo, afigura-se pacífico que se o consumidor vai optando pela reparação e o vendedor se mostra incapaz de restituir ao bem a conformidade contratada, como sucedeu nos autos, então a opção pela resolução terá se ser tida como inteiramente legítima. […]». Nada temos a censurar a este segmento da decisão recorrida. O direito à manutenção do contrato — defendido pela recorrente — e o direito de desvinculação através da resolução do mesmo — solução pretendida pelo autor/recorrido — opõem-se entre si, sendo o primeiro uma manifestação da segurança e estabilidade e o segundo da autonomia contratual. Como referido supra, a opção do consumidor pela resolução do contrato está subordinada aos ditames da boa-fé. Ou dito de outra forma, a boa-fé constitui um limite ao exercício do direito de resolução do contrato. De acordo com o disposto no art. 334.º do Código Civil «É ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito». A “boa-fé” exprime os valores fundamentais do sistema. Dizer que no exercício dos direitos se deve respeitar a boa-fé equivale a exprimir a ideia de que, nesse exercício, se devem observar os vetores fundamentais do próprio sistema que atribui os direitos em causa. Os «limites impostos pela boa-fé» remetem-nos para os princípios da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente. A tutela da confiança permite um critério de decisão: um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas. Uma das manifestações do “abuso de direito” e, concretamente, da tutela da confiança consiste no venire contra factum proprium, isto é, exercer uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente[8]. Por outras palavras, o venire postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si, mas diferidas no tempo. Só que a primeira – o factum proprium – é contraditada pela segunda – o venire. Como ensina Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 202, na concretização da confiança, existem quatro proposições, a saber: a) Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjetiva e ética, própria de pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias; b) Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocarem uma crença plausível; c) Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades jurídicas sobre crença consubstanciada; d) A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante: tal pessoa, por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu. No caso em apreço, a recorrente alega que o autor optou pelo direito de reparação do bem e fez sucessivas exigências de reparação do bem, sem encargos, reparações que foram sendo feitas pelo autor. E que «ao aceitar a reparação na oficina do réu e depois de confirmar na marca se tudo estava em condições, o autor fez crer à ré que essa seria a solução e, por isso, a ré gastou verbas com as sucessivas reparações». Desde logo a recorrente parece esquecer que a “marca” não confirmou que a viatura estava em condições. Com efeito, o concessionário da marca BMW procedeu a uma avaliação à viatura vendida pela ré/recorrente da qual resultou que o veículo apresentava fuga no conversor de gases de escape, dois tubos de vácuo com desgaste, fuga de óleo na caixa de velocidades, discos ovalizados e que o rádio não funcionava (cfr. facto provado n.º 25). Avaliação que, aliás, não foi impugnada pela recorrente. Não se olvida que, por três vezes, o autor/recorrido entregou a viatura na oficina da ré/recorrente e que esta sempre se disponibilizou a proceder às necessárias reparações do problema relacionado com a fuga de óleo na caixa de velocidades o qual foi detetado e denunciado pelo autor/recorrido menos de um mês após a aquisição da viatura (cfr. factos provados n.ºs 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 22). Sucede que, após a última reparação ocorrida em julho de 2017, o veículo continuou a apresentar fuga de óleo na caixa de velocidades (cfr. factos provados n.ºs 22, 24 e 25). O que significa que as reparações levadas a cabo pela ré/recorrente não foram suficientes ou não foram aptas para tornar a viatura em causa adequada à finalidade a que se destinava. Pelo que, em face de um deficiente cumprimento da obrigação de reparação por banda da vendedora, não é exigível a manutenção do contrato à luz do princípio da boa-fé. Daí que se nos afigure legítima a recusa, por banda do autor, de uma nova reparação e a sua opção pela resolução do contrato já que a substituição da viatura já fora considerada inviável (cfr. supra II.3.1), não se justificando falar de uma tutela de confiança da vendedora já que esta, até ao momento, não demonstrou ter conseguido reparar os problemas da viatura que se manifestaram logo após a sua aquisição pelo recorrido. Improcede, assim, a apelação.
[1] Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, volume I, 2.ª edição, Almedina, p. 40. |