Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANABELA LUNA DE CARVALHO | ||
Descritores: | ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO RESOLUÇÃO DO CONTRATO | ||
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Data do Acordão: | 10/13/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I - O disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do D-L 133/2009, de 2 de Junho, corresponde a uma única condição que é a de a perda do beneficio de prazo ou a resolução do contrato que se verifica, independentemente da outra condição referida na alínea b) do citado n.º 1, quando exista o não pagamento de duas prestações sucessivas, e que o montante dessas duas prestações sucessivas seja superior a 10% do montante total do crédito a que o contrato em causa respeite. II – Por isso, a existência no contrato de ALD da cláusula 14.ª, n.º 1, de teor idêntico ao artigo 20.º do D-L 133/2009, não impede a resolução do contrato nos termos gerais de direito e, nomeadamente, ao abrigo do n.º 2 da mesma cláusula, verificando-se o não pagamento de três ou mais prestações sucessivas, independentemente do montante total que elas representem em relação ao crédito concedido, e efetuada a comunicação aí prevista. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 1995/22.9T8STB.E1 2ª Secção
Acordam no Tribunal da Relação de Évora I Em 23-03-2022 Mercedes Benz Financial Services Portugal – Instituição Financeira de Crédito SA, requereu o presente “procedimento cautelar não especificado” contra (…), ambos melhor identificados nos autos. Pretendendo que seja ordenada a apreensão dos veículos automóveis da marca Mercedes Benz, modelo (…), com a matrícula 33-…-36, e modelo (…), com a matrícula 00-…-25. Em fundamento da sua pretensão alega que celebrou com o requerido os Contratos de Aluguer de Longa Duração n.º (…), referente ao primeiro, e n.º (…), referente ao segundo, veículos que foram entregues ao requerido. Em relação ao Contrato n.º (…), eram devidos 48 (quarenta e oito) alugueres mensais, sendo os últimos 47 no valor de € 353,01, acrescidos de comissões, portes e seguros. Em relação ao Contrato n.º (…) eram também devidos 48 (quarenta e oito) alugueres mensais, sendo os últimos 47 no valor de € 633,47, acrescidos de comissões, portes e seguros. Por reporte ao Contrato de Aluguer de Longa Duração n.º (…), o Requerido não pagou os montantes respeitantes aos alugueres vencido entre 20-09-2021 e 20-01-2022. E por reporte ao Contrato de Aluguer de Longa Duração n.º (…), o Requerido não pagou os montantes respeitantes ao aluguer vencido entre 20-07-2021e 20-12-2021. Em 31-01-2022, por carta registada com aviso de receção, a Requerente interpelou a Requerida para proceder ao pagamento dos valores vencidos e não pagos, referentes ao 1º contrato e em 14-01-2022, pelo mesmo meio, interpelou a Requerida para proceder ao pagamento dos valores vencidos e não pagos, referentes ao 2º contrato. O Requerido foi advertido que, caso não procedesse ao pagamento dos montantes em dívida no prazo fixado, proceder-se-ia à resolução de ambos os contratos de aluguer, o que veio a acontecer. Apesar de obrigado perante a Requerente a restituir de imediato os veículos locados, não o fez até à data, sendo que, quando não estão em trânsito se encontram na Rua (…), n.º 13, em Setúbal. A Requerente tem receio de que o Requerido continue a utilizar os veículos em seu benefício, o que agrava o prejuízo já verificado pelo incumprimento contratual, designadamente, pela violação do seu direito de propriedade, pelos riscos inerentes à condução dos veículos, pela sua eventual perda por acidente, desgaste complementar das viaturas, depreciação dos seus valores comerciais e impossibilidade que para a Requerente resulta de vir a dispor das viaturas. Concluiu nos termos sobreditos, pela não audição prévia do Requerido e por que fosse decretada a inversão do contencioso com a consequente dispensa da Requerente do ónus da propositura da ação principal, na medida em que estão reunidos todos os meios de prova de que dispõe
A 1ª instância proferiu despacho de aperfeiçoamento, convidando a Requerida «a pormenorizar os riscos sérios que perspetivava em face da citação do Requerido e bem assim a clarificar o “periculum in mora”». A Requerente apresentou aperfeiçoamento onde alegou que as viaturas em causa não se encontravam seguradas em nenhuma companhia de seguros à data da resolução dos contratos. Quanto ao pedido de dispensa de audição prévia do requerido, justificou-o com o facto de o incumprimento pelo Requerido das suas obrigações, não só faz pressupor que o mesmo se encontra em má situação financeira, como faz também recear pelo destino dos bens dados em aluguer, já que em situações como esta, é normal que os detentores tentem vender a terceiros os bens que se encontram na sua posse. Mais, os bens em questão estão igualmente sujeitos a qualquer apreensão e apropriação por credores da Requerida ou terceiros, sem que a Requerente tenha qualquer controle sobre a situação.
A Mmª Juíza determinou a citação prévia do requerido, que apresentou oposição. Invoca que não omitiu os pagamentos nos termos invocados pela Requerente, que apesar da situação vivida após março de 2020, que levou a que os seus rendimentos diminuíssem, motivo por que não foi capaz de cumprir integralmente as suas obrigações, realizou pagamentos, sendo também que não chegaram ao seu conhecimento as cartas de resolução ou o pedido de entrega dos veículos, já que as cartas foram endereçadas a moradas que não correspondem à sua. Mais referiu que pretende a manutenção dos contratos existentes mediante o pagamento de todas as quantias que se verifiquem estar em dívida à presente data. Concluiu pela improcedência do procedimento cautelar. Em 01-07-2022 realizou-se a audiência de julgamento tendo estado presentes apenas a Requerente, mandatários de ambas as partes e testemunha por aquela arrolada, que prestou depoimento. Após a produção de prova e alegações foi proferida sentença que julgou improcedente por não provado o procedimento cautelar, em face do que ficou prejudicado o pedido de inversão do contencioso.
Inconformada com tal decisão veio a Requerente recorrer assim concluindo as suas alegações de recurso: 1. O tribunal a quo indeferiu liminarmente a providência por considerar, em suma, que os contrato celebrados entre a Requerente e o Requerido não se encontravam validamente resolvidos. 2. O tribunal a quo entendeu que à data da resolução os montantes em dívida não perfaziam 10% do crédito, pelo que não estavam reunidas as condições para a respetiva resolução. 3. Ora, a Recorrente não tem o entendimento supra referido. 4. Dispõe o n.º 1 da Clausula 14.ª das Condições Gerais de ambos os contratos que “O locador poderá rescindir o presente Contrato sempre que o locatário incorra na falta de pagamento de duas prestações sucessivas cujo montante perfaça 10% do montante total do crédito.” 5. O Tribunal a quo apenas atentou ao valor em dívida à data da resolução do contrato (…) que se cifrava em € 2.042,96 e ao valor em divida à data da resolução do contrato (…) que se cifrava em € 3.807,00 e aos valores do montante total do crédito, respetivamente € 34.900,00 e € 51.000,00, para concluir que não estavam reunidos os pressupostos para que os contratos fossem resolvidos. 6. Acontece que o Tribunal a quo, ao considerar que não estavam reunidas as condições para as resoluções dos contratos, só teve em conta os 10% do montante total do crédito, ignorando que este requisito só é aplicável na falta de pagamento “de duas prestações sucessivas”, ou seja estamos perante um único requisito, os 10% e duas prestações sucessivas. 7. Acontece que o Tribunal a quo só teve em conta os 10% do montante do crédito, ignorando que este requisito só é aplicável na falta de pagamento “de duas prestações sucessivas”, ou seja, estamos perante um único requisito. 8. O n.º 1 da Cláusula 14.ª das Condições Gerais de ambos os contratos tem teor idêntico ao artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2/06. 9. O Acórdão da Relação de Lisboa datado de 21/05/2015 entendeu que “(…), o legislador teve em vista, no artigo 20.º do DL 133/2009, primordialmente, garantir que o credor só pode invocar a perda do benefício de prazo ou a resolução do contrato se ocorrerem as circunstâncias cumulativas das alíneas a) e b) do seu n.º 1. A alínea a) não contém duas condições cumulativas mas apenas uma “falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito”. 10. O citado artigo é uma proteção do consumidor que se justifica caso o mesmo deixe de liquidar apenas duas prestações mensais e sucessivas e que as mesmas não perfaçam 10% do montante total do crédito, contudo esta proteção não se justifica quanto o comportamento do consumidor é reiterado e o mesmo deixe de pagar mais de duas prestações, como acontece no caso em apreço. 11. “Este consumidor relapso, reincidente, não merece aquela proteção quanto à perda do benefício do prazo e à resolução do contrato” (Ac. TRL de 21/05/2015, proc. n.º 1160/14.9TJLSB.L1-8, disponível em www.dgsi.pt). 12. Em qualquer um dos contratos, como ficou provado nos factos 9 e 10 da sentença, o Requerido deixou de pagar mais do que duas prestações mensais e sucessivas. 13. Neste sentido também se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 28/06/2018, em caso em tudo semelhante ao em apreço, que refere: “Se o montante das prestações em dívida só exceder 10% do montante total do crédito quando se vencer, por exemplo, a 8ª prestação, deverá o credor aguardar o final dessas prestações para poder invocar a resolução do contrato? É evidente que não, pois tal significaria uma forte penalização do credor para ver reconhecido judicialmente o seu crédito e constituiria um injusto benefício para o devedor relapso e pouco escrupuloso. A seguir-se o entendimento da decisão recorrida, o requerido (locatário consumidor) podia durante toda a vigência do contrato de ALD incumprir 9,99% do crédito total financiado, sem que a requerente pudesse resolver o contrato.” 14. Assim, outra conclusão não se pode extrair senão a de que a resolução dos contratos operou 15 dias após o envio das cartas para a morada do Requerido, conforme consta dos factos provados como n.º 13 e 14. 15. Validamente resolvidos os contratos, o Requerido ficou a partir desse momento obrigado a restituir os veículos à locadora, ora Apelante, o que não fez. 16. Pelo exposto, apenas se poderá concluir que os factos dados como provados demonstram de forma por demais suficiente que a Requerente, ora Apelante, tem o direito à restituição dos veículos em causa, na medida em que foram validamente resolvidos os contratos. 17. A decisão recorrida prejudica o direito da Recorrente, porquanto, salvo devido respeito, situa-se à margem da legislação legalmente aplicável e da recente jurisprudência. A final requer seja revogada a decisão recorrida, e em sua substituição, ser julgada procedente a providência cautelar requerida.
Não foram apresentadas contra-alegações. II O tribunal a quo deu como provados os seguintes factos: 1. Em 21.12.2018 a Requerente e o Requerido celebraram o “contrato de aluguer de longa duração a consumidor n.º (…)”, referente ao veículo Mercedes (…), com a matrícula 33-…-36 contante de fls. 9 e seguintes, que aqui se dá por inteiramente reproduzido, em cujas condições gerais, além do mais consta: “Cláusula 1ª – Objeto – O locador dê de aluguer ao locatário, o qual toma do aluguer ao primeiro, o veículo nos termos e condições constantes do presente Contrato”. 2. E da cláusula 14ª consta: “1. O locador poderá rescindir o presente Contrato sempre que o locatário incorra na falta de pagamento de duas prestações sucessivas cujo montante perfaça 10% do montante total do crédito e, cumulativamente, o locatário não proceda ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas de juros da mora e de eventuais encargos, despesas e comissões devidas, no prazo da 15 (quinze) dias de calendário após o envio pelo locador ao locatário de comunicação interpelando-o para o efeito. 2. Constituirá igualmente fundamento de rescisão do presente Contrato pelo locador o incumprimento pelo locatário de quaisquer obrigações decorrentes do presente Contrato ou …”. 3. O valor de aquisição do veículo foi de € 28.373,98 - IVA: € 6.526,02 - Valor Total: € 34,900,00. O valor do crédito foi de igual montante. 4. O valor dos alugueres, com exceção do 1º, era de € 353,01, acrescido de comissões, portes e seguro. 5. Em 12.06.2019 a Requerente e o Requerido celebraram o “contrato de aluguer de longa duração a consumidor n.º (…)”, referente ao veículo Mercedes e modelo (…), com a matrícula 00-(…)-25, constante de fls. 13 e seguintes, que aqui se dá por inteiramente reproduzido, em cujas condições gerais, além do mais consta: “Cláusula 1ª – Objeto - O locador dê de aluguer ao locatário, o qual toma do aluguer ao primeiro, o veículo nos termos e condições constantes do presente Contrato.”. 6. E da cláusula 14ª consta: “1. O locador poderá rescindir o presente Contrato sempre que o locatário incorra na falta de pagamento de duas prestações sucessivas cujo montante perfaça 10% do montante total do crédito e, cumulativamente, o locatário não proceda ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas de juros da mora e de eventuais encargos, despesas e comissões devidas, no prazo da 15 (quinze) dias de calendário após o envio pelo locador ao locatário de comunicação interpelando-o para o efeito. 2. Constituirá igualmente fundamento de rescisão do presente Contrato pelo locador o incumprimento pelo locatário de quaisquer obrigações decorrentes do presente Contrato ou …”. 7. O valor de aquisição do veículo foi de € 41.463,41 - IVA: € 9.536,59 - Valor Total: € 51.000,00. O valor do crédito foi de igual montante. 8. O valor dos alugueres, com exceção do 1º, era de € 633,47, acrescido de comissões, portes e seguro. 9. Com referência ao Contrato de Aluguer de Longa Duração n.º (…), o Requerido não pagou as seguintes quantias:- aluguer vencido em 20.09.2021: € 191,29; - aluguer vencido em 20.10.2021: € 400,40; - aluguer vencido em 20.11.2021 : € 400,44; - aluguer vencido em 20.12.2021: € 400,40; - aluguer vencido em 20.01.2022: € 400,31. 10. E com referência ao Contrato de Aluguer de Longa Duração nº (…), não pagou as seguintes importâncias: - aluguer vencido em 20.07.2021: € 121,61;- aluguer vencido em 20.08.2021: € 689,97; - aluguer vencido em 20.09.2021: € 689,94; - aluguer vencido em 20.10.2021: € 689,83;- aluguer vencido em 20.11.2021: € 689,89; - aluguer vencido em 20.12.2021: € 689,83. 11. A morada do requerido que consta do contrato n.º (…) é: Rua da (…), n.º 14, 3.º-Esq., 2910-298 – Setúbal. 12. A morada do requerido que consta do contrato n.º (…) é: Rua (…), n.º 13, 3.º-Dto., 2910-449 – Setúbal. 13. Em 31.01.2022 a Requerente enviou ao Requerido as cartas registadas com aviso de receção cujas cópias se encontram junta a fls. 23 e 24, para ambas as moradas acima referidos, onde sob a epígrafe: Assunto: Incumprimento do Contrato de Aluguer de Longa Duração n.º (…) - Matrícula: 33-…-36, é referido, além do mais: “Não tendo sido dado cumprimento ao solicitado no n/email da 17/01/2022, verificamos que o veículo locado encontra-se a circular sem qualquer seguro de responsabilidade civil, sem qualquer seguro referente a danos próprios, conforme legalmente exigido e contratualmente previsto (…) Assim, solicitamos que proceda à regularização da situação no prazo de 15 (quinze) dias, devendo ser remetida a respetiva documentação comprovativa da constituição do seguro automóvel. Informamos que se encontram por liquidar os seguintes valores relativos ao contrato indicado. Os quais, acrescidos dos juros de mora e despesas, ascendem nesta data ao montante total de € 2.042,96. Assim, solicitamos que proceda ao pagamento do montante total em dívida no prazo máximo de 15 (quinze) dias a conter da data da presente carta, através de transferência bancária para o IBAN PT50 (…), ou envio de cheque. Decorrido o prazo de 15 (quinze) dias sem que tenha procedido ao pagamento solicitado, a mora será convertida em incumprimento definitivo e o contrato será automática e imediatamente rescindido, sem necessidade de qualquer outra comunicação (…) Em caso de incumprimento definitivo, terá que proceder à devolução da viatura em perfeito estado de conservação no prazo máximo de 5 (cinco) dias a contar da data da resolução, nas nossas instalações (…) 14 - Em 14.01.2022 a Requerente enviou ao Requerido a carta registada com aviso de receção, cuja cópia se encontra junta a fls. 27 e vº, para a Rua (…), n.º 13, 3.º-Dto., 2910-449 – Setúbal, onde sob a epígrafe: Assunto: Incumprimento do Contrato de Aluguer de Longa Duração n.º (…) - Matrícula: 00-…-25, é referido: “Informamos que se encontram por pagar os seguintes valores relativos ao contrato indicado:
Assim, solicitamos que proceda ao pagamento do montante total em dívida no prazo máximo ele 15 (quinze) dias a contar da data da presente carta, através de transferência bancária para o IBAN PT50 (…), ou envio de cheque. Decorrido o prazo de 15 (quinze) dias sem que tenha procedido ao pagamento solicitado, a mora será convertida em incumprimento definitivo e o contrato será automática e imediatamente rescindido, sem necessidade de qualquer outra comunicação. Em caso de incumprimento definitivo, terá que proceder à devolução da viatura em perfeito estado de conservação no prazo máximo de 5 (cinco) dias a contar da data da resolução...”. 15 – As cartas acima referidas não foram rececionadas pelo Requerido. 16 – O Requerido efetuou diversos pagamentos, todos com data anterior à do envio das cartas a que acima se alude. 17- À data da resolução dos contratos não estavam a ser liquidados os seguros de responsabilidade civil em relação aos veículos acima identificados.
Factos não provados: A) O Requerido apenas deixou de efetuar pagamentos após um contacto telefónico que estabeleceu com a requerente e em que lhe foi informado que não deveria efetuar mais pagamentos uma vez que a requerente iria agir judicialmente. B) Todos os contactos entre a requerente e o requerido faziam-se por via telefónica. III Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), é a seguinte a questão de direito a decidir: i) Se os contratos celebrados entre Requerente e Requerido se encontram validamente resolvidos, tendo o tribunal a quo aplicado erradamente a cláusula 14.ª, n.º 1, das Condições Gerais dos contratos de ALD.
Colhe-se da sentença a seguinte fundamentação: “Na situação dos autos está em causa a celebração de dois contratos de aluguer de longa duração celebrados entre Requerente e Requerido, que tinham por objeto dois automóveis da marca mercedes e em relação aos quais o Requerido omitiu o pagamento de várias mensalidades, o que levou à respetiva resolução por parte da Requerente. (…) No caso vertente, o direito de propriedade da Requerente em relação aos veículos não foi posto em causa pelo Requerido e resulta também do que consta de fls. 21 e 22. Paralelamente, está provado que entre as partes foram celebrados dois contratos de aluguer de longa duração acima identificados. Não lhes sendo aplicáveis as regras do contrato de locação financeira, a resolução rege-se pelo que consta do disposto nos artigos 432.º e seguintes do CC, donde resulta que a mesma se efetua mediante declaração à outra parte (artigo 436.º, n.º 1, do CC), com base no incumprimento que se considera definitivo se a mora não for sanada no prazo convencionado ou fixado pelo credor (artigo 808.º do Código Civil). Acontece que em ambos os contratos as partes estabeleceram uma regra específica (que replica o disposto no artigo 20.º do DL 133/2009, de 02/06) e que estabelece: “1. O locador poderá rescindir o presente Contrato sempre que o locatário incorra na falta de pagamento de duas prestações sucessivas cujo montante perfaça 10% do montante total do crédito e, cumulativamente, o locatário não proceda ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas de juros da mora e de eventuais encargos, despesas e comissões devidas, no prazo da 15 (quinze) dias de calendário após o envio pelo locador ao locatário de comunicação interpelando-o para o efeito. 2. Constituirá igualmente fundamento de rescisão do presente Contrato pelo locador o incumprimento pelo locatário de quaisquer obrigações decorrentes do presente Contrato ou …” (cláusula 14ª). E em qualquer um dos contratos, à data da resolução, os montantes em dívida não perfaziam 10% do crédito, pelo que não estavam reunidas as condições para a respetiva resolução. É certo que na carta de interpelação atinente ao contrato (…), se fala na omissão de seguro, motivo que poderia dar azo à resolução, nos termos do n.º 2 da referida cláusula, mas esse argumento não é invocado no presente procedimento cautelar, motivo porque não pode ser conhecido. Assim sendo, porque o direito à restituição só surge com a resolução válida dos contratos e esta não operou (independentemente de a carta não ter sido levantada, o que no quadro factual acima elencado é irrelevante) só pode concluir-se pela improcedência do presente procedimento cautelar, ficando prejudicada a apreciação da inversão do contencioso”.
Não se questiona nos autos a relação negocial estabelecida entre as partes, como sendo um contrato de Aluguer de Longa Duração (vulgo ALD), sendo este “[u]m contrato atípico que o exercício da liberdade contratual pode configurar com uma pluralidade de tipos contratuais distintos – designadamente, para além do próprio aluguer de longa duração, um contrato de compra e venda a prestações e um contrato-promessa de compra e venda do bem alugado – todos interligados por uma relação de coligação funcional. Quando os contraentes lhe facultam uma tal configuração, o mesmo revela afinidades com o contrato de locação financeira. Mas os contratos denominados de “ALD” em que se não preveja o direito ou a obrigação de compra da coisa locada não são havidos como contratos de crédito e, assim, sendo, não têm essa afinidade com o contrato de locação financeira: «Inexistindo no misto contratual o fim indireto ou a pluralidade contratual em coligação, visando a aquisição, a final, do bem locado, pelo locatário, não sobra mais que um aluguer, por mais longa que seja a sua duração estipulada” – cfr. Ac. do STJ de 27.04.2017, Proc. 300/14.2TBOER.L2.S1, in www.dgsi.pt. O contrato de ALD desdobra-se em moldes semelhantes ao contrato de locação financeira, integrando com este e outros tipos contratuais, um genérico contrato de crédito ao consumo em especial. Rege-se o mesmo pelo DL 133/2009, de 2 de Junho, que transpõe para a ordem jurídica interna a diretiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento e do Conselho, de 23 de Abril, relativa a “Contratos de Crédito aos Consumidores”. No preâmbulo do referido diploma refere-se que “na linha do disposto nos artigos 934.º a 936.º do Código Civil, estabelecem-se novas regras aplicáveis ao incumprimento do consumidor no pagamento de prestações, impedindo-se que, de imediato, o credor possa invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato”. Esta linha de orientação vem expressamente consagrada no artigo 20.º (não cumprimento do contrato de crédito pelo consumidor) cujo n.º 1 preceitua: “1- Em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício de prazo ou a resolução do contrato se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias seguintes: a) A falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito. b) Ter o credor, sem sucesso, concedido ao consumidor um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato”. Na cláusula 14.ª de ambos os contratos consta o seguinte: “1. O locador poderá rescindir o presente Contrato sempre que o locatário incorra na falta de pagamento de duas prestações sucessivas cujo montante perfaça 10% do montante total do crédito e, cumulativamente, o locatário não proceda ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas de juros da mora e de eventuais encargos, despesas e comissões devidas, no prazo da 15 (quinze) dias de calendário após o envio pelo locador ao locatário de comunicação interpelando-o para o efeito. 2. Constituirá igualmente fundamento de rescisão do presente Contrato pelo locador o incumprimento pelo locatário de quaisquer obrigações decorrentes do presente Contrato (…)”. O n.º 1 da cláusula 14.ª tem, pois, teor idêntico ao do artigo 20.º do citado DL 133/2009. Resulta provado que: Com referência ao Contrato de Aluguer de Longa Duração n.º (…), o valor de aquisição do veículo foi de € 28.373,98 - IVA: € 6.526,02 - Valor Total: € 34,900,00. O valor do crédito foi de igual montante. O valor dos alugueres, com exceção do 1º, era de € 353,01, acrescido de comissões, portes e seguro. O Requerido não pagou as seguintes quantias: - aluguer vencido em 20.09.2021: € 191,29; - aluguer vencido em 20.10.2021: € 400,40; - aluguer vencido em 20.11.2021 : € 400,44; - aluguer vencido em 20.12.2021: € 400,40; - aluguer vencido em 20.01.2022: € 400,31. E com referência ao Contrato de Aluguer de Longa Duração n.º (…), o valor de aquisição do veículo foi de € 41.463,41 - IVA: € 9.536,59 - Valor Total: € 51.000,00. O valor do crédito foi de igual montante. O valor dos alugueres, com exceção do 1º, era de € 633,47, acrescido de comissões, portes e seguro. O Requerido não pagou as seguintes quantias: - aluguer vencido em 20.07.2021: € 121,61; - aluguer vencido em 20.08.2021: € 689,97; - aluguer vencido em 20.09.2021: € 689,94; - aluguer vencido em 20.10.2021: € 689,83; - aluguer vencido em 20.11.2021: € 689,89; - aluguer vencido em 20.12.2021: € 689,83. Entendeu a sentença recorrida que: “em qualquer um dos contratos, à data da resolução, os montantes em dívida não perfaziam 10% do crédito, pelo que não estavam reunidas as condições para a respetiva resolução”. Está em causa a legitimidade desta interpretação. Para o que, importa interpretar o disposto na cláusula 14.ª, n.º 1, das condições gerais do contrato, o que implica interpretar o disposto no artigo 20.º do DL 133/2009. Escreveu a este propósito o Ac. TRL de 21-05-2015, Proc. 1160/14.9TJLSB.L1-8: «(…), o legislador teve em vista, no artigo 20.º do DL 133/2009, primordialmente, garantir que o credor só pode invocar a perda do benefício de prazo ou a resolução do contrato se ocorrerem as circunstâncias cumulativas das alíneas a) e b) do seu n.º 1. A alínea a) não contém duas condições cumulativas mas apenas uma “falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito”. Compreende-se que assim seja, isto é, que seja dada proteção ao consumidor que deixe de pagar duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito, mas já não se justifica que subsista a mesma proteção relativamente àquele consumidor que deixe de pagar mais do que duas prestações sucessivas, qualquer que seja o montante dessas prestações não pagas. Este consumidor relapso, reincidente, não merece aquela proteção quanto à perda do benefício do prazo e à resolução do contrato.» A situação dos autos corresponde a esta descrita situação, pois que à data da resolução dos contratos pela requerente, mostravam-se vencidas e não pagas cinco prestações sucessivas num dos contratos e seis prestações sucessivas no outro e, posteriormente, nenhuma prestação mais foi paga. O facto de essas cinco e seis prestações sucessivas não representarem mais do que 10% do montante total do crédito concedido, não significa que a requerente não pudesse resolver o contrato, depois de conceder, sem êxito, ao requerido, o prazo suplementar de 15 dias para pagar as prestações então em atraso, vencidas que estavam, acrescidas dos juros de mora e despesas, sob pena de resolução do contrato findo aquele prazo. Questiona-se “se o montante das prestações em dívida só exceder 10% do montante total do crédito quando se vencer, por exemplo, a 8ª prestação, deverá o credor aguardar o final dessas prestações para poder invocar a resolução do contrato? É evidente que não, pois tal significaria uma forte penalização do credor para ver reconhecido judicialmente o seu crédito e constituiria um injusto benefício para o devedor relapso e pouco escrupuloso” – cfr. o citado acórdão da Relação de Lisboa de 21-05-2015. Na mesma linha se pronunciou o Ac. deste Tribunal da Relação de Évora de 28-06-2018, Proc. 857/18.9T8STB.E1, in www.dgsi.pt. A seguir-se o entendimento da decisão recorrida, o requerido (locatário consumidor) podia durante toda a vigência do contrato de ALD incumprir 9,99% do crédito total financiado, e essa percentagem corresponder a um período temporal substancial da vida do contrato, sem que a requerente pudesse resolver o mesmo. Não é essa, a ratio do artigo 20.º do DL 133/2009, de 02 de junho. Assim, contrariamente ao que defende a decisão recorrida, verificando-se o não pagamento de três ou mais prestações sucessivas, independentemente do montante total que elas representem em relação ao crédito concedido, e efetuada a comunicação aí prevista, a cláusula 14.ª, n.º 1, da Condições Gerais do contrato de ALD não veda a resolução do contrato nos termos gerais de direito e, nomeadamente, ao abrigo do n.º 2 da mesma cláusula 14.ª, acima transcrito. Procede, em consequência, tal fundamento do recurso. A Requerente fez prova do direito de propriedade sobre os bens, bem como do direito do crédito de que se arroga às quantias em dívida pela locação dos mesmos. Sendo fundado pelas regras da experiência, o receio da Requerente de que o Requerido continue a utilizar os veículos em seu benefício, o que agrava o prejuízo já verificado pelo incumprimento contratual, designadamente, pela violação do seu direito de propriedade, pelos riscos inerentes à condução dos veículos, pela sua eventual perda por acidente, desgaste complementar das viaturas, depreciação dos seus valores comerciais e impossibilidade que para a Requerente resulta de vir a dispor das viaturas.” Verificados que estão todos os pressupostos do artigo 362.º do CPC (âmbito das providências cautelares não especificadas), a pretensão da requerente deverá proceder, na totalidade. Mais se determina ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 369.º do Código de Processo Civil, dispensar a Requerente do ónus da propositura da ação principal, porquanto a matéria provada no presente procedimento permite ao Tribunal formar convicção segura acerca do direito acautelado, sendo a providência que se irá decretar adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
Síntese conclusiva: (…) IV Termos em que se revoga a sentença recorrida que se substitui por outra que reconhece o direito da Requerente à apreensão das viaturas. Pelo que se ordena a apreensão dos veículos automóveis da marca Mercedes Benz, modelo (…), com a matrícula 33-…-36, e modelo (…), com a matrícula 00-…-25 e, entrega das mesmas à Requerente. Mais se determina, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 369.º do Código de Processo Civil, dispensar a Requerente do ónus da propositura da ação principal, porquanto a matéria provada no presente procedimento permite ao Tribunal formar convicção segura acerca do direito acautelado, sendo a providência ora decretada adequada a realizar a composição definitiva do litígio. Sem custas face ao vencimento do recurso, sem oposição. Évora, 13 de outubro de 2022 Anabela Luna de Carvalho (Relatora) Mário João Canelas Brás (1º Adjunto) Jaime Pestana (2º Adjunto) |