| Acórdão do Tribunal da Relação de  Évora | |||
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| Relator: | FILIPE AVEIRO MARQUES | ||
| Descritores: | INDEFERIMENTO LIMINAR PROCEDIMENTO CAUTELAR DECISÃO SURPRESA MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA CONTA BANCÁRIA CONTA BLOQUEADA | ||
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| Data do Acordão: | 10/16/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
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| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA | ||
| Área Temática: | CÍVEL | ||
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| Sumário: | Sumário: 1. Os procedimentos cautelares estão sujeitos a despacho liminar e, por isso, a ausência de notificação da requerente para a intenção de indeferimento liminar não consubstancia a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva nem constitui qualquer decisão surpresa. 2. Há lugar a indeferimento por manifesta improcedência do pedido quando seja inequívoco que o procedimento nunca poderá proceder. 3. Numa relação contratual entre cliente e banco, fortemente regulada, pode acontecer que os deveres contratuais deste último para com o primeiro (desde logo o principal, que é o de restituir a quantia que lhe foi entregue assim que exigido, mas também a de executar ordens de pagamento) sejam condicionados pela necessidade de cumprimento de outras regras legais ou de outras decisões a que deva obediência, como as de penhora ou arresto das contas bancárias. 4. Estando, de acordo com a alegação da requerente, a conta apreendida ou bloqueada por ordem judicial, é manifesto que não tem o direito a exigir do banco requerido a restituição da quantia depositada ou o direito de exigir que este cumpra uma ordem de transferência para outra conta bancária e, consequentemente, deve ser liminarmente indeferida a providência requerida. | ||
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| Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 2236/25.2T8FAR.E1 (1.ª Secção) Relator: Filipe Aveiro Marques 1.º Adjunto: Francisco Xavier 2.ª Adjunta: Ana Pessoa * *** * Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora: I. RELATÓRIO: I.A. “AA e Associados – Sociedade de Advogados, RL”, requereu procedimento cautelar comum contra “Banco Comercial Português S.A.” e terminou com o seguinte pedido: “Face ao exposto, requer.se a V. Exa. se digne condenar o Requerido a: 1) Levantar o bloqueio da conta de que a requerente é titular, com o nº ...69. 2) Transferir o saldo existente nessa conta para a conta de que o signatário é titular no Banco Santander com o IBAN PT50 ...37, BIC/SWIFT TOTAPTPL.”. Alegou, muito em suma, que é titular de uma conta no banco requerido, usada como “conta clientes”, movimentada pelos seus sócios administradores. Em 7/04/2022 os sócios administradores da autora deixaram de poder movimentar a sua conta, apesar de a mesma ter saldo. O banco requerido nunca justificou a impossibilidade de movimentar a conta até que, em Agosto de 2022, a conta foi creditada com o valor 23.759,00€. Entretanto, a conta continuava a ser movimentada a débito pelo próprio banco, que mensalmente debitava as comissões de gestão de conta e imposto de selo, o que justifica a diminuição do valor creditado, 23.750,00€, para o atual, 23.392,94€. Só após muitas insistências foi obtida informação que a conta estava bloqueada à ordem do processo judicial com o nº 243/21.3... A autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora da decisão que ordenou o bloqueio da conta, mas este Tribunal decidiu rejeitar o recurso por não se ter concretizado qualquer bloqueio/apreensão/arresto da conta do Millennium BCP com o n.º ...69 (a requerente, em nota de fundo de página, a este propósito alegou que: “A decisão do TRE é, no mínimo, estranha: foi pedido que fosse “revogada a decisão que ordenou o bloqueio da conta bancária no Millennium BCP de que a recorrente é titular, com o nº ...69”; A decisão rejeita o recurso, não porque não existisse a decisão ordenando a apreensão do saldo, mas porque “neste processo de Inquérito não se concretizou qualquer bloqueio/apreensão/arresto da conta do Millennium BCP com o nº ...69 ”. A verdade é que a decisão, cuja revogação foi pedida, existe. Que o bloqueio/apreensão/arresto não se tenha concretizado, é falso.”). Mais alegou que por carta de 21/04/2025, tentou obter do requerido uma explicação para a situação, mas este respondeu que cumpriu a ordem judicial de apreensão de saldo bancário do processo 243/21.3... Em 25/06/2025 o administrador da requerente tentou transferir o saldo da conta em causa, com o n.º ...69, para outra conta no Banco Santander, para fazer face a compromissos urgentes, mas não conseguiu porque a conta continuava bloqueada. Mais alegou que não é possível o exercício da advocacia (sua actividade) sem o recurso ao uso de contas bancárias e está impossibilitada de pagar as quotas dos seus sócios e de pagar as dívidas fiscais de outra sociedade, de quem eram os fundos creditados na conta do requerido. Não há dano para o banco requerido com o levantamento do bloqueio da conta. Foi proferido, em 24/07/2025 (Referência: 137308683), o despacho recorrido (em turno) pelo Juízo Local Cível de Loulé - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, com o seguinte teor: “Veio AA e Associados – Sociedade de Advogados, RI, intentar procedimento cautelar comum contra Banco Comercial Português, SA, pedindo a condenação do Requerido no levantamento do bloqueio da conta bancária de que a Requerente é titular naquela instituição bancária, com o nº ...69, e na transferência do respetivo saldo para a conta que a Requerente é titular no Banco Santander, e que identifica. Do alegado pela Requerente resulta que existe um processo crime (p. nº 243/21.3...), no âmbito do qual foi determinada a apreensão do saldo/bloqueio da conta bancária nº nº ...69. Naturalmente, o levantamento daquele bloqueio só pode ocorrer no âmbito do referido processo crime, não podendo este tribunal, cível, revogar uma ordem do tribunal criminal. Para além do mais, ainda que assim não se entendesse, também não se mostra suficientemente alegado o dano grave e dificilmente reparável, considerando que a apreensão tem mais de 3 anos e que não foi invocado qualquer novo facto que impeça o exercício da atividade de advocacia pela Requerente, sendo certo ainda que a Requerida, instituição bancária sobejamente conhecida no giro financeiro internacional, seguramente terá a solvência necessária para indemnizar eventuais prejuízos invocados. Termos em que, por manifesta improcedência, se indefere liminarmente o requerimento inicial. Custas pela Requerente. Fixo à causa o valor 23.392,94€.”. I.B. A requerente/apelante veio recorrer desse despacho e apresentou alegações onde termina com as seguintes conclusões: “1. A decisão recorrida afirma que do alegado pela Requerente resulta que existe um processo crime (p. nº 243/21.3...), no âmbito do qual foi determinada a apreensão do saldo/bloqueio da conta bancária nº nº ...69, o que não corresponde à verdade. 2. O que a Requerente alegou foi que o banco requerido a informou que a conta estava bloqueada à ordem do processo judicial com o nº 243/21.3..., que esse processo era desconhecido dos sócios da Autora, e que a autora interpôs recurso, para o Tribunal da Relação de Évora, da decisão que ordenara o bloqueio da conta, embora desconhecesse o seu conteúdo e fundamentos. 3. O Tribunal a quo baseou a decisão recorrida num facto que não podia conhecer, porque os autos não continham elementos que lho permitissem, o que constitui a nulidade prevista na última parte da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC. 4. A decisão recorrida considera que a apreensão tem mais de 3 anos, o que contraria a decisão do Tribunal da Relação de Évora, proferida no processo 243/21.3...-B.E1, em 15 de julho de 2024, refª 9171637, que afirma perentoriamente não existir tal apreensão. 5. A afirmação de “que não foi invocado qualquer novo facto que impeça o exercício da atividade de advocacia pela Requerente” é incompreensível. Novo relativamente a quê? O exercício da advocacia sem uma conta bancária, cuja existência é imposta pelo art. 102º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 09 de setembro, não é legalmente possível. O alegado bloqueio (existente de facto, embora não de Direito) durar há 3 anos, há 6 meses ou há 2 dias é irrelevante. O argumento é incompreensível. 6. Esta contradição (com a decisão do TRE) e incompreensibilidade preenchem a causa de nulidade da decisão recorrida, prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC. 7. Ao omitir pronunciar-se sobre a existência da decisão do Tribunal da Relação de Évora proferida no processo 243/21.3...-B.E1, e das suas consequências no processo, o Tribunal a quo incorreu na nulidade prevista na primeira parte da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC. 8. A decisão recorrida menciona, para considerar não se mostrar suficientemente alegado o dano grave e dificilmente reparável, apenas que “a apreensão tem mais de 3 anos e que não foi invocado qualquer novo facto que impeça o exercício da atividade de advocacia pela Requerente”. Ao omitir o conhecimento da impossibilidade de pagar despesas, não só da Requerente como da cliente a quem os fundos pertencem, alegado pela Requerente, a decisão recorrida incorre, mais uma vez, na causa de nulidade prevista no artigo 615º do CPC, nº 1, alínea d). 9. No requerimento inicial, a Recorrente alegou todos os pressupostas legais para requerer o procedimento cautelar em causa: o direito invocado, a lesão grave dos direitos da Requerente, nomeadamente a impossibilidade do exercício da advocacia e a impossibilidade de fazer pagamentos urgentes, não só da própria como da cliente a quem pertencem os fundos ilegalmente retidos pelo Requerido, a inexistência de danos para o Requerido e a inexistência de providência específica para acautelar o direito da Requerente. 10. A decisão recorrida não se pronuncia sobre o direito da Requerente, dá por assente o que não podia (que a conta em causa se encontra bloqueada no âmbito do processo nº 243/21.3..., ignorando a decisão do TRE proferida no recurso com o nº 243/21.3...-B.E1), refere uma coisa incompreensível (que a apreensão tem mais de 3 anos e que não foi invocado qualquer novo facto que impeça o exercício da atividade de advocacia pela Requerente) e um facto aparentemente irrelevante que ninguém alegou (que a Requerida, é uma instituição bancária sobejamente conhecida no giro financeiro internacional), daí tirando uma conclusão inesperada: que essa instituição “seguramente terá a solvência necessária para indemnizar eventuais prejuízos invocados.” 11. No âmbito da providência requerida, a lei não impõe que a Requerida exponha todos os prejuízos que a situação causa, quer a si, quer aos seus sócios, nem a prova de que a entidade Requerida terá a solvência necessária para indemnizar eventuais prejuízos invocados. 12. A lei pretende afastar as decisões surpresa com o respeito pelo princípio do contraditório, imposto pelo artigo 3º, nº 3, do PCP. 13. A reforma de 1996/1997, através do aditamento a esse artigo 3º de um novo comando (n.º 3), mantido no código atualmente vigente, acentuou a relevância concedida à garantia do contraditório no aspeto relativo ao direito de resposta, impondo ao juiz o «dever de observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório», com a consequência de não lhe ser lícito, «salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem». 14. A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico, mesmo que adjetivo. 15. A Magistrada que proferiu a decisão recorrida violou o disposto no nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de julho, nos termos do qual “Os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores”. 16. O nº 2 do artigo 202º da Constituição estabelece que “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados e o artigo seguinte dispõe que “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.” O Tribunal a quo, ao indeferir liminarmente o requerimento da Recorrente, nos termos em que o fez, violou os deveres de administrar justiça (em nome do povo) e de respeitar a lei. Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas., como sempre, doutamente suprirão, deverá a decisão recorrida ser declarada nula, com as legais consequências.” I.C. Notificado o banco requerido, o mesmo apresentou contra-alegações (18/09/2025) onde concluiu que “deve ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se o despacho recorrido na íntegra”. I.D. O recurso foi recebido pelo tribunal a quo. Após os vistos, cumpre decidir. *** II. QUESTÕES A DECIDIR: As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma). Assim, no caso, impõe-se apreciar: a. A eventual nulidade da decisão recorrida; b.	Em caso negativo, a insuficiência da alegação, no requerimento inicial, dos factos respeitantes a todos os requisitos para se decretar o procedimento cautelar. * III. FUNDAMENTAÇÃO: III.A. Fundamentação de facto: A matéria a considerar encontra-se descrita no relatório. * III.B. Fundamentação jurídica: a) Nulidade do despacho recorrido: Invoca a recorrente a nulidade do despacho recorrido, ao abrigo do artigo 615.º, alínea c), do Código de Processo Civil, por o mesmo conter “contradições” com outras decisões e “incompreensibilidade” (pontos 5 e 6 das conclusões apresentadas). Ora, estabelece o artigo 615.º, na sua alínea c), do Código de Processo Civil que: “É nula a sentença quando: (…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;”. Em face da letra e espírito da lei não pode confundir-se entre a nulidade da decisão e a discordância quanto ao resultado. E entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida. Quanto à nulidade prevista na referida alínea c), do artigo 615.º do Código de Processo Civil, a mesma ocorre quando exista ininteligibilidade (ou seja, quando a decisão contém algum passo cujo sentido seja ininteligível ou ambíguo, o que, no caso, não se verifica, dada a clareza da decisão – e que o recorrente bem compreendeu) ou quando a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final (o que, evidentemente, também não ocorre – pois toda a argumentação aponta no sentido da decisão que veio a ser tomada). Esta nulidade não se pode confundir com o eventual erro de julgamento, pelo que improcede a alegação da recorrente nesta parte. * Imputa a recorrente ao despacho recorrido a nulidade por violação do artigo 615.º, alínea d), do Código de Processo Civil, por o mesmo ter baseado a sua decisão num facto não podia conhecer (ponto 2 e 3 das conclusões), ao omitir pronunciar-se sobre a existência de uma decisão da Relação de Évora (ponto 7 das suas conclusões), ao omitir o conhecimento da impossibilidade de pagar despesas da requerente e da cliente a quem os fundos pertencem (ponto 8 das suas conclusões). Estabelece o artigo 615.º, na sua alínea d), do Código de Processo Civil que: “É nula a sentença quando: (…) d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;”. A omissão de pronúncia a que se refere essa alínea está relacionada com o disposto no artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, onde se exige ao juiz que resolva todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cujas decisões estejam prejudicadas pela solução dada a outras. Mas são coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que devia conhecer‑se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Na verdade, “importa não confundir questões colocadas pelas partes, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido. As questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio” (nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/04/2024, processo n.º 1610/19.8T8VNG.P1.S1[1]). E o excesso de pronúncia ocorre quando o tribunal conhece de questões que, não tendo sido colocadas pelas partes, não são de conhecimento oficioso. E essas questões são as que integram matéria decisória, os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções (neste sentido, por exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/11/2005, processo n.º 05S2137[2]). Não se vislumbra que o despacho tenha deixado de conhecer alguma questão relevante para apreciação da única questão que lhe competia conhecer naquele momento: apreciar liminarmente a alegação da requerente (como se lhe impunha, já que o procedimento estava sujeito a despacho liminar, conforme resulta do artigo 226.º, n.º 4, alínea b), do Código de Processo Civil) para verificar se o pedido era manifestamente improcedente ou ocorriam excepções dilatórias insupríveis (cf. artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Ora, o despacho recorrido mais não fez que apreciar liminarmente o requerimento inicial e pronunciou-se sobre o que lhe competia (apreciou apenas a alegação da requerente). Também não se confunde esta nulidade com a eventual errada aplicação do direito, sendo bem diferente saber se, em face dos factos alegados, o Tribunal a quo decidiu bem ao indeferir liminarmente o requerimento inicial. Improcede, por isso, esta parte da apelação. * Invoca a recorrente, ainda, ser o despacho recorrido nulo por se tratar de uma decisão surpresa e, por essa via, violador do princípio do contraditório (pontos 12 a 14 das suas conclusões). Como se viu, os procedimentos cautelares estão sujeitos a despacho liminar, como decorre dos artigos 226.º, n.º 4, alínea b) e 590.º do Código de Processo Civil e, por isso, a ausência de notificação do requerente do procedimento cautelar para a intenção de indeferimento liminar não consubstancia a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 195.º, n.º 1, desse mesmo diploma. Mas também não se vislumbra que antes de proferir um despacho de indeferimento liminar (que, por definição, não é precedido de nenhum outro), o Tribunal tenha de comunicar essa intenção ao requerente. Seguindo o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/03/2022 (processo n.º 1/22.8T8PVZ.P1[3]), “não pode considerar-se que o despacho de indeferimento liminar proferido (…) constitua uma decisão surpresa, a menos que assim se considerassem todos os despachos de indeferimento liminar. É evidente que, ao propor o procedimento cautelar, os requerentes têm a expetativa de que o mesmo tenha melhor sorte que um indeferimento liminar, pelo que este último será, senão sempre, pelo menos na generalidade dos casos, inesperado. Ainda assim, a lei continua, como se referiu, a prever, expressis verbis, o indeferimento liminar, sinal evidente de que se trata de uma figura processual compatível com o disposto no n.º 3 do citado art. 3.º. Acresce que que a lei adjetiva não descura de todo a proteção da posição jurídica dos requerentes, “compensando” esta ausência de audição antes da prolação do despacho de indeferimento liminar através da admissibilidade de recurso deste último independentemente do valor da causa e da sucumbência, nos termos do art. 629.º, n.º 3, al. c), permitindo, por essa via, um contraditório diferido.” Não há, por isso, qualquer nulidade por violação do contraditório e, por isso, improcede também esta parte do recurso apresentado. * Finalmente, numa manifestação de puro inconformismo inconsequente, a recorrente veio invocar que a decisão recorrida terá violado o artigo 4.º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (ponto 15 das suas conclusões) e o artigo 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (ponto 16 das suas conclusões), mas não se vislumbra que uma decisão judicial fundamentada e tomada em tempo, ainda que eventualmente errada, possa violar as normas citadas quando, precisamente, o Tribunal fez o que lhe competia: apreciou liminarmente um requerimento. Improcede, por isso, também esta parte do recurso. * b) Suficiência da alegação dos requisitos do procedimento cautelar: Da conjugação dos artigos 362.º e 368.º, nº 1 do Código de Processo Civil resulta que os requisitos substanciais e formais para que seja decretado um procedimento cautelar comum são os seguintes: a) probabilidade séria da existência de um direito: que muito provavelmente exista o direito alegadamente ameaçado, objecto de futura acção declarativa ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; b) justo e fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito que o requerente se arroga na acção em curso ou a instaurar: ou seja, que haja fundado receio de que outrem, antes de proferida a decisão de mérito (ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente), cause lesão grave e dificilmente reparável de tal direito; c) adequação da providência requerida para obstar à lesão (esta adequação há de ser aferida perante cada caso concreto): que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; d) não resultar do procedimento cautelar prejuízo superior ao dano que o mesmo pretende evitar; e) inaplicabilidade de qualquer tipo de procedimento cautelar nominado, ou seja, que ao caso não convenha nenhuma das providências especificadas nos artigos 393.º a 427.º do Código de Processo Civil. Os procedimentos cautelares, em geral, são o tipo de medidas que são requeridas e decretadas tendo em vista acautelar o efeito útil de uma acção, mediante a composição dos interesses em conflito, mantendo ou restaurando a situação de facto antes da eventual realização efectiva do direito. Neste sentido, ensina Antunes Varela[4] que: “As denominadas providências cautelares visam precisamente impedir que, durante a pendência da acção declarativa ou executiva (e antes mesmo da sua instauração), a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou perto dela. Pretende-se deste modo combater o periculum in mora (o prejuízo da demora inevitável do processo), a fim de que a decisão se não torne uma decisão puramente platónica”. No caso, olhando para o pedido deduzido na providência (levantar o bloqueio e transferir o saldo existente nessa conta para a conta de que o signatário é titular no Banco Santander) fica sem se saber qual o efeito útil que teria uma acção subsequente. Em caso de procedência, haveria uma satisfação definitiva e irreversível de um direito que só poderia ser definido num processo declarativo comum e, por isso, ignorou-se o caráter instrumental e provisório do procedimento face à acção principal. Ou seja, falhou a requerente, desde logo, na explanação de tal requisito. Por outro lado, a verdade é que foi alegada a abertura de uma conta bancária por parte da requerente no banco requerido. De acordo com essa alegação, passou a vigorar entre cliente e banco o que se denomina de contrato de depósito bancário, que reveste uma natureza em que, no seu núcleo essencial, a propriedade da quantia entregue pelo cliente (depósito bancário) se transfere para o banco (mutuário) a partir do momento da entrega, podendo este último livremente utilizá-la e ficando obrigado a restituir outro tanto do mesmo género[5]. Nessa relação contratual entre o cliente e o banco, fortemente regulada (com submissão, desde logo, a supervisão do Banco de Portugal[6]), pode acontecer que os deveres contratuais do banco para com o cliente (desde logo o principal, que é o de restituir a quantia que lhe foi entregue assim que exigido, mas também a de executar ordens de pagamento[7]) sejam condicionados pela necessidade de cumprimento de outras regras legais [8] e, mesmo, de outras decisões a que deva obediência (sendo os casos de mais fácil compreensão as decisões que determinam penhoras ou arrestos dos saldos das constas bancárias, mas também outras, no domínio dos processos criminais[9]). Ora, ao contrário do que afirma no recurso (pontos 1, 2 e 4 das suas conclusões), a requerente não se limitou a dizer que o banco informou que a conta estava bloqueada. Pelo contrário, no seu requerimento inicial alegou, sem margem para dúvidas e conforme se retira da alegação acima transcrita no relatório, que a decisão que ordenou a apreensão do saldo e “cuja revogação foi pedida, existe. Que o bloqueio/apreensão/arresto não se tenha concretizado, é falso”. Tudo isto para dizer que o direito de crédito que está em causa na alegação da requerente, aquele a que requerente se arroga (ou seja, o direito de exigir do banco a restituição da quantia depositada ou o direito de exigir que este cumpra uma ordem de transferência para outra conta bancária) não pode ser, de acordo com a sua própria alegação, cumprido pelo banco (pois que a própria requerente alegou que a conta está apreendida por ordem judicial). Falha, por isso, a alegação do primeiro dos requisitos necessários para que fosse decretada a providência cautelar. Sempre se diga que, em substância, o que a requerente pretende é que o Tribunal Cível (em turno[10]) revogue uma decisão do Tribunal da Relação de Évora proferida no âmbito de um processo crime (e com a qual a requerente disse não concordar porque é, no seu ver, errada). Bem se vê, portanto, que nunca seria este o processo próprio para o fazer, nem o Tribunal onde foi requerida a providência seria competente para revogar ou alterar qualquer decisão que tivesse sido tomada no âmbito do processo crime, como bem observou a decisão recorrida (ver, de resto, o que se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/09/2024, processo n.º 30216/23.5T8LSB.L1-2[11]). Não é verdade, por isso, que a decisão recorrida não se tenha pronunciado sobre a questão da falta de alegação do direito da requerente (pontos 9 e 10 das suas conclusões) como, sobretudo e em face do que se disse, é manifesta a falta de razão da recorrente (no fundo, o direito de que a recorrente se arroga não é contra o requerido, pois que este se limitou a cumprir uma ordem judicial, mas contra quem não é parte no processo e não pode ser atingido, de todo o modo, por uma decisão de um Tribunal Cível). Finalmente, para que não se deixe sem resposta o último dos argumentos colocados no recurso (ver conclusão 11 das conclusões da recorrente), é manifesto que cabe a qualquer requerente de uma providência cautelar a alegação de factos que indiquem que existe um justo e fundado receio de uma lesão grave e dificilmente reparável do direito invocado e que a requerida não o fez no caso vertente. Não colhe, minimamente, o argumento (não comprovado) de que sem o acesso a essa conta a requerente está impedida de exercer a sua actividade (como se a requerente estivesse impedida de abrir outras contas de depósito à ordem em qualquer outro das dezenas de bancos autorizados a exercer actividade em Portugal; e impedimento de exercício de actividade que, de todo o modo, a simples existência deste processo permite negar) ou de fazer pagamentos urgentes (sendo que, neste caso, a requerente não alegou que esses pagamentos fossem seus e, portanto, que fosse a lesada[12]). António Abrantes Geraldes[13], a propósito do indeferimento liminar por manifesta improcedência do pedido em sede de procedimentos cautelares, refere: “Estamos aqui perante um julgamento antecipado do mérito da providência que se justifica apenas nos casos de evidente inutilidade de qualquer instrução ou discussão posterior; isto é, quando seja inequívoco que o procedimento nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais. O juiz deve reservar esta decisão apenas para os casos em que a tese propugnada pelo autor não tenha possibilidades de ser acolhida face à lei em vigor e à interpretação que dela façam a doutrina e a jurisprudência”. No caso, em face da alegação que foi feita pela requerente, é inequívoco que o procedimento nunca poderia proceder, qualquer que fosse a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais, pelo que se impunha o indeferimento liminar do requerimento inicial. Consequentemente, o recurso deve ser totalmente improcedente. * As custas do presente recurso deverão ficar a cargo da recorrente, por ter ficado vencida, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil. *** IV. DECISÃO: Em face do exposto, decide-se julgar a apelação totalmente improcedente e, em conformidade, confirma-se a decisão recorrida. Condena-se a apelante nas custas do recurso. Notifique. Évora, 16 de Outubro de 2025 Filipe Aveiro Marques Francisco Xavier Ana Pessoa 
 ________________________________ 1. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/cb9583125d0cc62b80258afc004cdfc9.↩︎ 2. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/37d58e1f5ea473228025712a00549398.↩︎ 3. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/340361a5635a19ca8025883a004a8bd8 e https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/1-2022-189519775.↩︎ 4. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra Editora, Reimpressão, pág. 23.↩︎ 5. Ver o Decreto Lei nº 430/91, de 2 de Novembro e suas alterações.↩︎ 6. Ver Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n,º 298/92, de 31 de Dezembro e suas sucessivas actualizações, com a última pelo Decreto Lei n.º 14/2025, de 17 de Março.↩︎ 7. Ver, entre outros, artigo 130.º do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de Novembro e sucessivas alterações, a última das quais pela Lei 1/2025, de 6 de Janeiro.↩︎ 8. Desde logo e por exemplo, as entidades bancárias têm o dever de se abster de executar qualquer operação que saibam ou que suspeitem poder estar associadas a fundos ou outros bens provenientes ou relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo, conforme se dispõe no artigo 47.º, da Lei 83/2017, de 18 de Agosto.↩︎ 9. Ver artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, republicada pela Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio.↩︎ 10. O que é sintomático.↩︎ 11. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e37c79631c5d5d9280258baa0047983c.↩︎ 12. E também se diga que a simples existência deste processo e o pagamento de taxas de justiça por parte da requerente/recorrente sempre permitiria afastar essa afirmação.↩︎ 13. Temas da Reforma do Processo Civil, III vol., 2ª Edição, pág. 162.↩︎ |