Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
814/16.0T8EVR.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 10/02/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I. Quem intenta uma acção de simples apreciação tem de demonstrar o seu interesse em propor a acção, ou seja, a necessidade em obter a declaração judicial da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
II. Tendo as acções de simples apreciação por objectivo pôr termo a uma situação de incerteza, só é legítimo o recurso a este tipo de acções quando o autor estiver perante uma incerteza real, séria e objectiva, de que lhe possa resultar um dano.
III. Ainda que se reconheça que a conduta do réu, ao acordar a venda do imóvel com terceiros, e a alegada recusa em notificar os autores para exercerem a preferência seja susceptível de causar nos autores “incerteza” quando à existência do seu direito de preferência na aludida alienação, certo é que enquanto a venda não se consumar não há qualquer frustração do eventual direito de preferência dos autores na aludida venda.
IV. Tal “incerteza” não gera na esfera jurídica dos autores um dano que legitime o recurso à acção de simples apreciação para declaração do direito de preferência, dano esse que só se concretizará com a realização da venda sem que seja facultada antecipadamente a preferência aos autores na respectiva aquisição. Nesse momento haverá então a efectivação de um dano na esfera jurídica dos AA., mas para o qual a lei prevê um remédio, que é a instauração da competente acção de preferência.
Decisão Texto Integral:

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. BB e CC instauram contra DD, S.A., acção declarativa de simples apreciação, pedindo que se declare a existência do direito legal de preferência dos AA., ao abrigo do disposto no artigo 26.º, n.º 1, da Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, em caso alienação ou dação em cumprimento do prédio rústico melhor identificado no artigo 2.º da petição inicial, seja este alienado isolada ou conjuntamente com outros prédios que sejam propriedade da R..

2. O R. contestou, invocando, além do mais, que havendo direito legal de preferência e pretendendo os AA. exercê-lo apenas o poderão fazer no momento da venda e/ou dação em cumprimento, e não quando esta ainda não se concretizou, não permitindo a lei que seja declarada a titularidade sobre a expectativa de um direito que não existe ainda na esfera jurídica de quem o invoca.

3. Foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu, julgar procedente a excepção dilatória da falta de interesse em agir dos AA., e, em consequência, absolver o R. da instância.

4. Inconformados recorrem os AA. pedindo a revogação da decisão recorrida, com os fundamentos seguintes [segue transcrição das conclusões do recurso]:
1.ª O presente recurso é interposto da Sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou procedente a excepção dilatória de falta de interesse em agir dos ora Apelantes, absolvendo o ora Recorrido da instância.
2.ª A presente acção de simples apreciação teve como propósito único obter do Tribunal uma decisão que confirmasse que os Apelantes, proprietários do prédio rústico denominado "Herdade da C…", são titulares de um direito legal de preferência em caso de venda do prédio rústico denominado "Herdade da Z…" por parte do Recorrido, ao abrigo do disposto no artigo 26, n.º 1, da Lei n.º 73/2009, de 31 de Março.
3.ª Prevê o artigo 26, n.º 1, da Lei n.º 73/2009, de 31 de Março que "sem prejuízo dos direitos de preferência estabelecidos no Código Civil e em legislação complementar, os proprietários de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área da RAN gozam do direito de preferência na alienação ou dação em cumprimento de prédios rústicos ou mistos confinantes. "
4.ª A Herdade da C… e a Herdade da Z… são prédios rústicos confinantes entre si e a primeira encontra-se localizada em área da Reserva Agrícola Nacional (RAN), pelo que não há dúvidas de que os Apelantes são titulares do direito legal de preferência em qualquer alienação ou dação em cumprimento que o Recorrido pretendesse realizar.
5.ª A presente acção de simples apreciação foi instaurada pelos Apelantes após tomarem conhecimento de que o Recorrido, que se encontrava em pleno processo de venda da Herdade da Z…, juntamente com outros quatro prédios, tinha acabado de chegar a um acordo com um terceiro adquirente para a compra e venda dos mesmos pelo preço de €1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil euros), tendo apenas ficado a faltar a sua formalização.
6.ª Este conhecimento adveio no dia 30 de Março de 2016 - data anterior à interposição da presente acção - através de mensagens escritas remetidas ao Primeiro Apelante pelo funcionário do Recorrido, Paulo …, que confirmou o pleno acordo para a compra e venda e o preço mencionado no ponto anterior.
7.ª Após tomarem conhecimento de tal facto, os Apelantes dirigiram-se ao Recorrido, no sentido de chamar a atenção para o direito legal de preferência de que são titulares, o qual foi sendo, expressa e sucessivamente, negado pelo Recorrido, gerando-se a partir deste momento uma conflitualidade clara e objectiva entre as partes.
8.ª Assim, atendendo (i) à vontade expressa e declarada do Recorrido em vender a Herdade da Z… juntamente com os restantes prédios, (ii) à compra e venda acordada entre o Recorrido e um terceiro adquirente que estava iminente e que apenas faltava formalizar, (iii) à conflitualidade expressa e objectiva entre os Apelantes e o Recorrido, pelo facto de este não querer notificá-los para o exercício do direito legal de preferência; e (iv) à certeza e segurança jurídicas que se exigem e ao direito dos Apelantes - todos merecedores de tutela jurídica -, numa situação que era passível de comprometer o valor da relação jurídica, o que os Apelantes pretendiam era apenas que o Tribunal a quo se pronunciasse no sentido de confirmar a existência do direito legal de preferência em apreço;
9.ª Desde logo, e apenas com base nesta factualidade, encontravam-se reunidos todos os pressupostos que conferiam aos Apelantes o interesse em agir e o Tribunal a quo estava em condições de julgar, inequivocamente, a existência de tal interesse e de proferir uma decisão final respeitante ao pedido formulado.
10.ª O Tribunal a quo entendeu que "os Autores invocam o seu interesse em demandar com fundamento no facto de terem conhecimento de que o Réu se encontra em negociações avançadas com terceiros com vista à venda do imóvel descrito no artigo 2.º da petição inicial" e de que se estava perante uma "alienação que ainda não ocorreu e verdadeiramente não há previsibilidade de que venha a ocorrer e em que termos, questões que assumem toda a pertinência porquanto podem inclusive determinar o interesse ou não daqueles em exercê-lo".
11.ª Estamos perante uma conclusão incompreensível e que é completamente contrariada pelo que se alegou e juntou ao processo, ou seja, à data da propositura da presente acção, já os Apelantes tinham indicação expressa de que a venda tinha sido negociada e acordada entre o Recorrido e um terceiro adquirente, pelo preço de €1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil euros), aguardando-se apenas a sua formalização.
12.ª A situação era, nessa data, concreta e objectiva, encontrando-se o Apelante na posse de todas as informações relevantes respeitantes ao negócio.
13.ª Acresce ainda que, também contrariamente ao que consta da Sentença recorrida, a alienação acabou por ocorrer efectivamente já na pendência dos presentes autos, disso tendo sido dado conhecimento ao Tribunal a quo, mediante a junção da Petição Inicial de uma acção, em que se invoca a nulidade de um contrato de locação financeira imobiliária, entretanto, celebrado entre o Recorrido e um terceiro, no sentido de defraudar o exercício do direito legal de preferência.
14.ª Nessa acção, e entre outros pedidos, requereu-se ao Tribunal que fosse declarado nulo, por simulação relativa, o contrato de locação financeira e fosse declarado igualmente nulo o negócio dissimulado, ou seja, a compra e venda dos cinco prédios em apreço; que fosse ordenado o consequente cancelamento das respectivas inscrições prediais; e que fosse ordenado que os Apelantes fossem notificados para exercer o direito legal de preferência, nos termos e condições acordados entre o Recorrido e o terceiro adquirente.
15.ª Isto porque, de um momento para o outro, um negócio que foi anunciado, negociado e acordado como uma compra e venda se transformou, inesperada e aberrantemente, numa locação financeira imobiliária.
16.ª É inequívoco que, com a celebração deste contrato de locação financeira imobiliária, o Recorrido e o terceiro tiveram como único propósito o de evitar que os Apelantes exercessem o direito legal de preferência de que são titulares, tendo pretendido realizar, muito simplesmente, uma compra e venda dos prédios acima mencionados.
17.ª São inúmeros os indícios que demonstram claramente o negócio simulado - que serão julgados em sede própria - e que vão desde a promoção, a publicidade e os anúncios feitos pelo Recorrido, à mediação imobiliária realizada por inúmeros agentes e à vasta troca de correspondência, em particular com o funcionário Paulo …, que confirmou, a 30 de Março de 2016, que o negócio alcançado entre o Recorrido e terceiro foi uma compra e venda pelo preço de €1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil euros), o valor constante do contrato de locação financeira imobiliária.
18.ª Já para não falar de que, para defraudar o direito dos Apelantes, o Recorrido e o terceiro adquirente celebraram um contrato de locação financeira imobiliária sem que um dos seus requisitos fundamentais estivesse verificado, ou seja, os cinco prédios "locados" não foram objecto de uma aquisição pelo locador a terceiro por indicação expressa do locatário.
19.ª Pelo que o único intuito deste negócio foi o de enganar os Apelantes, que se mostraram sempre intransigentes quanto a serem notificados para o exercício do direito de preferência no negócio, cujos termos e condições relevantes já eram do seu pleno conhecimento.
20.ª Esta factualidade, superveniente à instauração dos presentes autos, apenas reforça um interesse em agir que já existia, pelos motivos supra expostos, à data da sua propositura, encontrando-se, presentemente, ainda mais reforçado e sendo ainda mais evidente.
21.ª Foi, pois, com enorme espanto que os Apelantes tomaram conhecimento da Sentença recorrida, em que o Tribunal a quo agiu e decidiu como se nada tivesse passado e "fechando os olhos" à pretensão e ao interesse dos Apelantes - face a uma perturbação e conflitualidade real e concreta - não lhes tendo sido conferido a tutela jurídica merecida.
22.ª Contrariamente ao vertido na Sentença recorrida, estávamos, à data da instauração dos presentes autos, perante uma situação concreta e justificada, prestes a ser formalizada pelo Recorrido e pelo terceiro adquirente, e não perante um mero capricho ou uma situação hipotética e de contornos completamente desconhecidos para os Apelantes
23.ª Toda esta factualidade, completamente desconsiderada e irrelevada pelo Tribunal a quo, teria sempre de ser valorada e atendida por este, sem que lhe coubesse outra alternativa que não a de julgar que existe interesse em agir e decidir sobre a questão jurídica suscitada.
24.ª Tribunal a quo que foi ainda mais longe na Sentença recorrida, ao sustentar que "não tendo o Réu procedido à alienação do prédio, desrespeitando um alegado direito de preferência - que só perante o caso concreto poder ser verificada a sua (in) existência, sendo que inclusive pode ocorrer alguma das situações previstas no n.º 2, do artigo 1380. º do código Civil -, não faz sentido os Autores anteciparem-se pedindo que se declare a sua existência, porquanto inexiste uma verdadeira situação de conflitualidade objectiva entre Autores e Réu."
25.ª Contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, os Apelantes consideram que esta "antecipação" era fundamental e plenamente admissível logo que tomaram conhecimento do acordo alcançado entre o Recorrido e um terceiro adquirente e da intenção deste em não notificar os Apelantes para efeitos do exercício do direito de preferência. Tanto que optaram por uma acção de simples apreciação.
26.ª Aliás, o Tribunal a quo vem sustentar que a alienação teria primeiro que ocorrer e apenas depois os Apelantes poderiam encetar a sua reacção. Com o devido respeito, tal entendimento não pode merecer acolhimento.
27.ª Este entendimento não se coaduna, de maneira alguma, com a finalidade prosseguida pelo tipo de acção declarativa de simples apreciação - esvaziando-lhe totalmente o âmbito e sentido para que foi criada pelo legislador -, não protege ou salvaguarda qualquer direito ou interesse numa situação de conflitualidade objectiva e é passível de causar prejuízos na esfera jurídica dos interessados, neste caso dos Apelantes, e de comprometer irremediavelmente o valor da relação jurídica.
28.ª Nem se compreende a alusão ao artigo 1380.°, n.º 2, do Código Civil, quando se trata de uma situação que não se coloca e que nem foi invocada pelo Recorrido. Mais, ainda que se colocasse, o que se refere apenas a benefício de raciocínio, isso nunca representaria um obstáculo para que o Tribunal a quo se pronunciasse sobre o pedido dos Apelantes, na medida em que, mesmo havendo concurso de direitos de preferência, para que estes pudessem beneficiar de tal direito e exercê-lo, concorrendo, seria sempre necessário obter uma decisão quanto à questão ora suscitada.
29.ª Nem quando o Tribunal a quo diz que "não se alcança a pertinência de em abstracto decidir a existência de um direito de preferência que perante um determinado caso concreto poderá não ser exercido, quer por imposição legal – nomeadamente se o eventual comprador detiver um direito de preferência prioritário por exemplo –, quer por falta de vontade dos Autores em face do negócio em concreto.
30.ª Porquanto, como se referiu, seria sempre pertinente, quer no sentido de concorrer com outros direitos de preferência, caso existissem, quer pelo facto de os Apelantes serem conhecedores do negócio em concreto que havia sido acordado entre Recorrido e o terceiro adquirente. Ora, perante este caso concreto, seria seguramente exercido pelos Apelantes.
31.ª Não pode o Tribunal a quo continuar a ignorar uma situação flagrante como esta em que houve um acordo prévio para a compra e venda, não se pretendendo notificar os Apelantes para o exercício do direito de preferência e houve recurso a um negócio simulado para defraudar tal direito, devendo antes dar cumprimento aos princípios e finalidades em que assentam as acções de simples apreciação.
32.ª A presente acção era, à data em que foi instaurada e à luz da factualidade conhecida e das manifestações das partes, o meio idóneo e adequado para que os Apelantes pudessem obter a tutela pretendida, situação que se viu reforçada e ainda mais legitimada com o negócio nulo posteriormente celebrado pelo Recorrido.
33.ª Como refere Teixeira de Sousa, neste tipo de acções, o "Autor pede a declaração da existência ou da inexistência de um direito ou de um facto. Há interesse processual quando há incerteza objectiva sobre a situação jurídica do Autor", acrescentando ainda que "falta o interesse processual se o Autor pudesse intentar uma acção de condenação em vez de uma acção de simples apreciação, uma vez que estas são de instauração subsidiária face àquelas." - neste caso, a incerteza objectiva existia à data da instauração da acção e ainda não tinham ocorrido quaisquer outros factos que pudessem ter levado os Apelantes por outro caminho que não este.
34.ª E, como acima se refere, a tutela não é apenas um modo de garantir o exercício da respectiva posição jurídica, é-o também perante uma violação ou ameaça, sendo que a tutela supõe a oposição com outro, isto é, o conflito.
35.ª Pelo que o interesse em agir se traduz na necessidade de recorrer à acção, exigindo-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável e fundada de lançar mão do processo.
36.ª Só quando a situação de incerteza, contra a qual se pretende reagir através da acção de simples apreciação, reunir os requisitos de objectividade, por um lado, e gravidade, por outro, se pode afirmar que há interesse processual.
37.ª O que, nos presentes autos, é inequívoco, porquanto é objectivo que, previamente à presente acção, (i) houve um acordo entre o Recorrido e o terceiro adquirente para a compra e venda dos prédios sem reconhecimento do direito legal de preferência dos Apelantes, e, em face disso, que (ii) havia intenção de praticar um acto grave e lesivo completamente ao arrepio desse direito.
38.ª É objectiva a incerteza que decorre de factos exteriores, de circunstâncias externas, e não apenas da mente ou dos serviços internos do autor, o que neste caso, como se demonstrou, foi manifesto. Por seu lado, a gravidade da dúvida medir-se-á pelo prejuízo que a situação de incerteza possa criar ao autor, prejuízo esse que pode ser material ou moral.
39.ª A este respeito, e conforme acima se citou, de forma detalhada, toda a jurisprudência dos Tribunais superiores tem sido no sentido de acolher integralmente o entendimento que os Apelantes defendem, manifestando exactamente as preocupações por estes aqui trazidas.
40.ª Mais se justifica o dever de o Tribunal a quo decidir, desde logo, sobre o mérito da causa em lugar da proferida extinção da instância por falta de interesse em agir, quando, além das referidas consequências, serão manifestamente impostos mais custos, despesas e incómodos aos ora Alegantes, à comunidade em geral (aos contribuintes) e ao Tribunal,
41.ª Os quais, sendo também prejudiciais para a almejada celeridade na administração da justiça, reflectem uma violação grave dos direitos e interesses legalmente protegidos dos Apelantes, por desrespeito ao preceituado no artigo 20° da CRP quanto ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, bem como no artigo 2°, n.º 1 do CPC.
42.ª Neste sentido, não se verifica qualquer excepção inominada de falta de interesse em agir dos ora Apelantes, pelo que o Tribunal a quo dever-se-á pronunciar sobre o pedido muito concreto que aqui lhe foi colocado.

5. Contra-alegou o recorrido, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
O recurso foi admitido, como de apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo.
Cumpre agora apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.
Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas a única questão a decidir consiste em saber se os AA. têm interesse em agir na presente demanda.
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III – Fundamentação Fáctico-Jurídica
1. Na decisão recorrida concluiu-se pela falta de interesse em agir dos AA. com os seguintes fundamentos:
«Vieram os Autores peticionar que se declare a existência do seu direito legal de preferência, ao abrigo do disposto no artigo 26.°, n.º1 da Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, em caso de alienação ou dação em cumprimento do prédio rústico identificado no artigo 2.° da petição inicial, seja este alienado isolada ou conjuntamente com outros prédios que sejam propriedade do Réu.
Por seu turno, invoca o Réu que os Autores pretendem que seja declarada a titularidade sobre uma expectativa de um direito que ainda não existe na sua esfera jurídica, podendo tal apenas ocorrer após a transmissão dos imóveis.
(…)
O interesse em agir tem sido definido como “(...) O direito do demandante estar carecido de tutela judicial, representando o interesse em utilizar a acção judicial e em recorrer ao processo respectivo, para ver satisfeito o interesse substancial lesado pelo comportamento da parte contrária” (cf. Acórdão do S.T.J. de 12/01/1999, disponível em www.dgsi.pt).
Do mesmo acórdão extrai-se que “o pedido de declaração da existência de um direito deve decorrer da sequência da alegação de uma determinada situação de conflitualidade entre as partes ou da alegação de um estado de incerteza objectivamente determinado, passível de comprometer o valor da relação jurídica e que se não traduza num mero capricho, ou em um puro interesse subjectivo, para obter uma decisão jurídica”. Ora, a mesma tese é aplicável no pedido de declaração da inexistência de um direito (acção de apreciação negativa).
In casu, verificamos que os Autores invocam o seu interesse em demandar com fundamento no facto de terem conhecimento de que o Réu se encontra em negociações avançadas com terceiros com vista à venda do imóvel descrito no artigo 2.º da petição inicial, sobre o qual alegadamente dispõem de um direito de preferência em face do disposto no artigo 26.º, n.º1, da Lei n.º 73/2009, de 31 de Março.
Estabelece o artigo 1380.º, n.º1, do Código Civil, que “Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.”.
Ainda, dispõe o invocado artigo 26.º, n.º 1 , da Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, que “Sem prejuízo dos direitos de preferência estabelecidos no Código Civil e em legislação complementar, os proprietários de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área da RAN gozam do direito de preferência na alienação ou dação em cumprimento de prédios rústicos ou mistos confinantes.”.
Ora, pretendem os Autores que se declare a existência de um direito de preferência numa alienação que ainda não ocorreu e verdadeiramente não há previsibilidade de que venha a ocorrer e em que termos, questões que assumem toda a pertinência porquanto podem inclusive determinar o interesse ou não daqueles em exercê-lo.
Não tendo o Réu procedido à alienação do prédio, desrespeitando um alegado direito de preferência - que só perante o caso concreto pode ser verificada a sua (in)existência, sendo que inclusive pode ocorrer alguma das situações previstas no n.º 2, do artigo 1380.º, do Código Civil -, não faz sentido os Autores anteciparem-se pedindo que se declare a sua existência, porquanto inexiste uma verdadeira situação de conflitualidade objectiva entre Autores e Réu.
Por outro lado, como acima afloramos, não se alcança a pertinência de em abstracto decidir a existência de um direito de preferência que perante um determinado caso concreto poderá não ser exercido, quer por imposição legal - nomeadamente se o eventual comprador detiver um direito de preferência prioritário por exemplo -, quer por falta de vontade dos Autores em face do negócio em concreto.
Desta forma, inexiste qualquer situação de incerteza objectiva que prejudique os Autores, ou por outras palavras, um qualquer interesse substancial lesado merecedor de tutela jurídica.
Por tudo o quanto se deixa expendido, verifica-se in casu a excepção inominada da falta de interesse em agir, que é de conhecimento oficioso, conducente à absolvição do Réu da instância, nos termos dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.°, alínea i), 580.º e 278.º, n.º 1, alínea e), todos do Código de Processo Civil.»

2. Desde já se adianta que esta decisão não merece reparo quanto à conclusão da falta de interesse em agir por parte dos AA., conducente à absolvição do RR. da instância, nos termos dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.° e 278.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil
Senão vejamos:
«O interesse processual consiste na necessidade de usar o processo, por isso mesmo que exprime a necessidade ou a situação objectiva de carência de tutela judiciária por parte do autor, face à pretensão que deduz, ou do réu, à luz do pedido reconvencional que tenha oportunamente formulado (…) Essa situação de carência de tutela exprime-se na concreta utilidade da concessão dessa mesma tutela judiciária para a parte que formula a pretensão …» (Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2ª edição, p. 393).
E, como acrescenta o mesmo autor, «[e]ste pressuposto processual assume especial relevo nas acções de simples apreciação. É que, nestas acções, a situação de incerteza quanto à afirmação ou à negação do direito ou do facto por parte do réu tem que ser uma situação de incerteza objectiva – que brote de factos exteriores, de circunstâncias externas e não apenas da mente do autor – e, sobretudo, de incerteza grave, que não se traduza num mero capricho. E será grave essa incerteza se for considerável o prejuízo material ou extrapatrimonial causado pela manutenção dessa situação de incerteza.» (Ob. cit., pág 394).
Ora, com a presente acção pretendem os AA. que se declare a existência do direito legal de preferência dos AA., ao abrigo do disposto no artigo 26.º, n.º 1, da Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, em caso alienação ou dação em cumprimento do prédio rústico melhor identificado no artigo 2.º da petição inicial, seja este alienado isolada ou conjuntamente com outros prédios que sejam propriedade da R..
Fundamentam esta sua pretensão no facto de terem tido conhecimento de que o R. se prepara para alienar o imóvel em causa a um terceiro, com o qual já terá acertado a venda, embora ainda não a tenha concretizado, sem que dê aos AA. a possibilidade de exercerem a preferência na dita alienação, que entendem possuir ao abrigo daquela citada disposição legal [artigo 26.°, n.º 1 , da Lei n.º 73/2009, de 31 de Março], onde se dispõe que “[s]em prejuízo dos direitos de preferência estabelecidos no Código Civil e em legislação complementar, os proprietários de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área da RAN gozam do direito de preferência na alienação ou dação em cumprimento de prédios rústicos ou mistos confinantes.”.
Não subsistem dúvidas de que a presente acção, tendo em conta o pedido e a causa de pedir formulados, configura uma acção de simples apreciação (positiva), porquanto a mesma tem por fim obter unicamente a declaração da existência de um direito (cf. artigo 10º, n.º 2 e 3, alínea a) do Código de Processo Civil).
Na acção declarativa de simples apreciação, “não se exige do réu prestação alguma, porque não se lhe imputa a falta de cumprimento de qualquer obrigação. O autor tem simplesmente em vista pôr termo a uma incerteza que o prejudica: incerteza sobre a existência de um direito” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 15) .
Como justificação das acções de simples apreciação, escreve ainda o mesmo autor (R.L.J. Ano 80º- 231): “o estado de incerteza sobre a existência de um direito ou de um facto é susceptível de causar prejuízo a uma pessoa; deve, por isso, pôr-se à disposição dessa pessoa um meio de se defender contra tais prejuízos. Esse meio é a acção declarativa. Quer dizer, o prejuízo inerente à incerteza do direito ou do facto legitima e justifica o uso da acção de simples declaração positiva ou negativa”.
Assim, como se salienta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/11/2008 (proc. n.º 08A2603), disponível como os demais que venham a ser citado sem outra referência em www.dgsi.pt: “O autor que intenta uma acção de simples apreciação tem de demonstrar o seu interesse em propor a acção, a sua necessidade em obter a declaração judicial da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
Tendo as acções de simples apreciação por único objectivo pôr termo a uma situação de incerteza, só é legítimo o recurso a este tipo de acções quando o autor estiver perante uma incerteza real, séria ou objectiva, de que lhe possa resultar um dano.”

3. Ora, no caso em apreço, ainda que se reconheça que a conduta do R. ao acordar a venda do imóvel com terceiros, e a alegada recusa em notificar os AA. para exercerem a preferência seja possa causar nos AA. incerteza quando à existência do seu direito de preferência na aludida alienação, certo é que enquanto a venda não se consumar não há qualquer frustração do eventual direito de preferência na venda a que os AA. se arrogam.
Como se diz na sentença os AA. têm uma mera expectativa de preferirem na venda, mas enquanto a mesma não se consumar não foi causada qualquer lesão ao seu direito geradora de dano que demande tutela jurisdicional.
Verdadeiramente, a “incerteza” criada aos AA. pela conduta do R. não gera na esfera jurídica daqueles AA. um dano que legitime o recurso a este tipo de acções, dano esse que só se concretizará com a realização da venda sem que seja facultada antecipadamente a preferência aos AA. na respectiva aquisição. Nesse momento haverá então a efectivação de um dano na esfera jurídica dos AA., mas para a qual a lei prevê um remédio, que é a instauração da competente acção de preferência, nos termos previstos nos artigos 26º, n.º 1, da Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, e 1380º do Código Civil.
De facto, perante a perspectiva de realização do negócio em causa, os AA. detêm apenas uma expectativa de preferência nessa alienação, a qual só poderão exercitar caso a alienação do imóvel se concretize em frustração do seu alegado direito.
Acresce que, do eventual reconhecimento do direito de preferência aos AA. nesta acção de simples apreciação, não resulta qualquer interesse objectivo prático, porquanto tal não obsta a que a venda se venha a efectivar sem que o R. notifique os AA. para exercerem o direito de preferência e os AA. sempre teriam que exercitar o seu direito, instaurando a respectiva acção condenatória de preferência.
Deste modo, entende-se que não têm os AA. necessidade de intentar a presente acção de simples apreciação, porquanto ainda não lhes foi causado qualquer dano que demande tutela jurisdicional e, a serem violadas as suas expectativas de preferência na aquisição do imóvel em causa, dispõem da competente acção para efectivação do seu direito, não fazendo sentido, por isso, invocar a violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, a que se reporta o artigo 20º da Constituição, nem a violação do artigo 2º, n.º1, do Código de Processo Civil.
E tanto assim é que no decurso da presente acção os AA. vieram dar conta de que na sequência de negócio jurídico efectuado pelo R., tendo por objecto o prédio em causa, instauraram acção, arguindo a nulidade, por simulação, do negócio celebrado, e exercitaram o seu direito de preferência, como referem nas alegações.

4. Em suma, não detêm os AA. interesse processual na presente demanda, pelo que improcede a apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
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Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
I. Quem intenta uma acção de simples apreciação tem de demonstrar o seu interesse em propor a acção, ou seja, a necessidade em obter a declaração judicial da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
II. Tendo as acções de simples apreciação por objectivo pôr termo a uma situação de incerteza, só é legítimo o recurso a este tipo de acções quando o autor estiver perante uma incerteza real, séria e objectiva, de que lhe possa resultar um dano.
III. Ainda que se reconheça que a conduta do réu, ao acordar a venda do imóvel com terceiros, e a alegada recusa em notificar os autores para exercerem a preferência seja susceptível de causar nos autores “incerteza” quando à existência do seu direito de preferência na aludida alienação, certo é que enquanto a venda não se consumar não há qualquer frustração do eventual direito de preferência dos autores na aludida venda.
IV. Tal “incerteza” não gera na esfera jurídica dos autores um dano que legitime o recurso à acção de simples apreciação para declaração do direito de preferência, dano esse que só se concretizará com a realização da venda sem que seja facultada antecipadamente a preferência aos autores na respectiva aquisição. Nesse momento haverá então a efectivação de um dano na esfera jurídica dos AA., mas para o qual a lei prevê um remédio, que é a instauração da competente acção de preferência.
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IV – Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo dos AA. .

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Évora, 2 de Outubro de 2018

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(Francisco Xavier)

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(Maria João Sousa e Faro)

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(Florbela Moreira Lança)