Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
310/19.3T8PTG-C.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 10/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
No caso de omissão, ou preterição, do exercício do contraditório, traduzida na não audição prévia das Partes, ou de alguma delas, que se revele apenas na sentença proferida através de decisão sobre questão relevante não debatida anteriormente nos autos é de considerar que aquela padece do vicio de nulidade por excesso de pronúncia, prevista na segunda parte do n.º 1, da alínea d), do artigo 615.º, do CPC.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Apelação nº 310/19.3T8PTG-C.E1
Tribunal Judicial da Comarca ...
Juízo Central Cível e Criminal ... – Juíz ...
Apelantes: Caixa Geral de Depósitos, SA
A..., Lda
Apeladas: Caixa Geral de Depósitos, SA
A..., Lda
***
I – Relatório
A..., Lda, deduziu embargos de terceiro conta Caixa Geral de Depósitos, S.A. alegando, em síntese que celebrou com os executados, AA e BB um contrato de arrendamento do imóvel situado na Avenida ..., da freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...08, inscrito na matriz sob o artigo ...92, da actual União de Freguesias ... e ..., em 1 de Julho de 1997, o qual se manteve até aos dias de hoje.
Requer que se julgue procedente os embargos com sustação definitiva da ordem que mandou entregar o imóvel à embargada, livre da presença da embargante.
A embargada contestou, alegando, no essencial, que desconhece a existência do aludido contrato, impugnando os factos alegados pela embargante.
Mais pugnou pela intempestividade dos embargos e invocou a existência de abuso de direito.
Os executados apresentaram contestação pugnando pela procedência dos embargos.
Em sede de despacho saneador decidiu-se pela tempestividade dos embargos e relegou-se o conhecimento das demais questões para sede de sentença.
Realizou-se audiência final, após o que foi proferida sentença, que comporta o seguinte dispositivo:
“III- DECISÃO
Em face do exposto, julgo procedentes, por provados, os presentes embargos de terceiro, deduzidos por A..., Lda contra Caixa Geral de Depósitos, S.A. e, em consequência, decido que:
a) O contrato de arrendamento celebrado pela embargante com os executados, AA e BB, em 17 de Dezembro de 2017 não caducou com a venda executiva e que a posição de senhorio, ocupada pelos executados AA e BB, se transmitiu à embargada, A..., Lda, na data da adjudicação do imóvel, podendo a embargante manter a posse do imóvel até ao dia 1 de Janeiro de 2024, data em que o citado contrato de arrendamento atinge o termo certo, sem prejuízo do previsto no art.º 1096.º, n.º 1 e 1097.º ambos do Código Civil, sustando-se a ordem de entrega imediata do imóvel, proferida no âmbito dos autos principais;

b) Não se ter provado que a embargante A..., Lda litiga abusando do seu direito.
Custas a cargo da Embargada, nos termos do disposto no artigo 527º, nos 1 e 2 do Código de Processo Civil.”
Inconformada com a decisão, a Embargada Caixa Geral de Depósitos, SA, apresentou requerimento de recurso de apelação independente alinhando as seguintes Conclusões:
“IV Conclusões
A)A Recorrente impugna a sentença recorrida por entender que o mesmo padece de erro de julgamento, por violação de lei substantiva, mormente o disposto nos n.º 2 do art. 824.º e art. 1057.º, ambos do Código Civil.
B)Flui da matéria de facto julgada como provada que a Recorrida celebrou em 1995 um contrato de arrendamento com os executados, que caducou, tacitamente, em resultado da celebração de um novo contrato de arrendamento em 17 de dezembro de 2017, ambos têm por objeto o Imóvel adjudicado à Recorrente e sobre o qual tinha uma hipoteca registada em 11/06/2014.
C)A hipoteca, de acordo com o regime legal estabelecido no art. 686.º, nº 1 do CC, representa uma garantia real, constituída em benefício do imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade de registo. Para produzir efeitos, a hipoteca deve ser registada, conforme dispõe o art. 687.º do CC.
D) De acordo com o n.º 2 do art. 824.º do CC, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
E) O artigo 1057.º do CC consagra o princípio emptio non tollit locatum, ou seja, a locação não caduca com a venda, corolário da natureza real do instituto do arrendamento, uma vez que lhe confere uma característica de que só os direitos reais beneficiam – o direito de sequela: o arrendamento acompanha o bem independentemente de quem seja o titular do direito real de base, propriedade.
F) Não obstante, tal regra sofre, contudo, restrições, como a prevista no artigo 824.º, n.º 2 do CC, relativo à venda executiva, segundo a qual, não caduca o arrendamento (seja direito real ou obrigacional), apenas nos casos em que o contrato de locação foi celebrado anteriormente à constituição de arresto, penhora ou garantia (como a hipoteca voluntária ou judicial).
G) Donde, o contrato de arrendamento celebrado em 17-12-2017, pela Recorrida e executados, cujo imóvel estava onerado com hipoteca registada a favor da Recorrente, em 14-06-2014, caducou com a venda judicial, nos termos do art. 824.º, n.º 2, do CC.
H) O Acórdão de Uniformização de jurisprudência (AUJ) n.º 2/2021, segundo o qual “[a] venda, em sede de processo de insolvência, de hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, conjugado com o artigo 1057,º do Código Civil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil», não é aplicável ao caso dos autos», não é aplicável ao caso subjudice. Isto porque,
I)A divergência jurisprudencial anterior ao AUJ respeitava aqueles casos em que o arrendamento fosse de constituição posterior à constituição (ou registo) de todos os direitos reais de garantia invocados ou constituídos no processo de execução.
J)Neste contexto, o AUJ não importou qualquer alteração na posição que vinha sendo assumida na doutrina e pelos nossos tribunais no sentido da manutenção do contrato de arrendamento, quando anterior à constituição da hipoteca ou de qualquer outro direito real de garantia que onerem os bens vendidos judicialmente, mantendo-se fiel à posição maioritária da jurisprudência e doutrina quanto à caducidade dos arrendamentos constituídos após a constituição da hipoteca ou de qualquer outro direito real de garantia que oneram os bens vendidos judicialmente.
K)Ademais, no AUJ foi fundamental para a decisão proferida a aplicação da norma excecional do n.º 3 do art. 109.º do CIRE, que não podia ser derrogada pela norma geral prevista no n.º 2 do art.824.º do CC, o que não é o caso dos autos.
L)De igual modo, foi fundamental ao sentido da decisão do AUJ a existência de uma relação locatícia, para fins habitacionais, o que também não é o caso destes autos.
M)Destarte, contrato de arrendamento em vigor – celebrado em 17 de dezembro de 2017 – é posterior ao registo da hipoteca – 11 de junho de -, pelo que este contrato, que revogou o anterior celebrado em 1995, caducou com a venda judicial do Imóvel.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá a presente apelação ser julgada procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, substituindo-a por Acórdão que julgando improcedente os embargos de terceiro, declare a caducidade do contrato do arrendamento celebrado em 17-12-2017, por força do n.º 2 do art. 824.º do CC, por ser inoponível à Recorrente.
Assim se fazendo a tão costumada,
JUSTIÇA!”
A Apelada A..., Lda respondeu ao recurso pugnando pela sua total improcedência rematando a resposta do seguinte modo:
Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas doutamente suprirâo, deve manter-se a decisào que declarou procedentes os embargos e para tal tomou como fundamento näo ter caducado o arrendamento.”
A Embargante A..., Lda, apresentou igualmente recurso de apelação independente da decisão final proferida pelo Tribunal a quo elencando no seu final as seguintes conclusões:
“CONCLUSÕES
a) As nulidades:
1- Como se sustenta nesta alegação, a Meritissirna Juiz vai, na sentença, além do permitido pela lei: fixou a data para o termo do contrato celebrado, em apreço no recurso, situando-a em 1-1-2024, sem quo tal
haja sido incluído no pedido; e incluiu no objecto do litigio a questão da revogação, quo nenhuma das partes invocou, de forma inesperada, sem que tenha sido facultado o exercício do contraditório.
2- Com essas decisões surpresa — verdadeiras decisões surpresa, com reflexo nas expectativas das partes — incorreu a mesma sentença na nulidade do artigo 609°, n° 1 e artigo 615°, n° 1, al. e) e no artigo 3°, n°
3 e 615°, n° 1, al. d), respectivarnente, ambos do C. P. Civil.
b) Reapreciação da prova incluída a gravada:
3- Na matéria do facto quo a Meritissirna Juiz teve corno discutível na sentença, pôs-se nela em confronto um texto contratual de 1-7-1995 e outro de 12-12-2017; e em prejuízo da prevalência de um e outro como
data de início do contrato ern vigor, elencou como matéria de facto não provada a constante das seguintes alineas:
a) que o objectivo do contrato de arrendamento elencado nos pontos 19 a 26 dos factos provados foi documentar a redução da renda como forma de contenção das despesas e a data de 1-1 -2018 queria significar, não o inicio do contrato, rnas o inicio do nova renda;
b) que o documento supra foi elaborado no contexto das negociações para acordo no âmbito do processo especial de revitalização com o n° ...4/19.....
4- A embargante entende que esses factos devem ser tidos como provados.
5- Prendem-se aqueles factos com a intenção que se tenha tido como subjacente à elaboração do texto de 12-12-2017; com o peso que possa ter, na análise, o comportamento do gerente da embargante, por si, em
audiência e, antes, através do seu advogado; e com a influência que possa ter tido no caso a existência do PER.
6- Para dar como prejudicada a intenção que a embargante lhe aponta e o seu gerente enfaticamente sustentou ao depor em audiência, a Meritíssima Juiz invoca o facto de todo o clausulado de 1-7-1995 ter
sido repetido no texto de 12-12-2017. Isso, diz, aponta, sim, para a existência de revogação.
7- Invoca também o facto de o advogado dos executados ter apresentado um texto no processo corno expressão de um contrato novo.
8- E considera irrelevante o PER por ter sido aprovado depois da aprovação no processo de execução do documento.
9- Com o devido respeito não se consideram justificantes nem justificados esses argumentos.
10- Não se afigura também justificada a afirmação de que o gerente da embargante, ao depor em audiência, não merece credibilidade.
11- Não vale como argumento a repetição do clausulado se se tiver em conta que foi a própria razão do ser da sua elaboração quo justificou a repetição. Também não vale o argumento da intervenção do advogado
da embargante quo confirma aquele motivo, face a estratégia processual que tinha em monte.
12- E a interferência do PER e a alegada falta de credibilidade, em vez de favorecerem aquele juízo conduzem a juízo inverso, se olharmos ao outro lado da moeda, pois que, pensa a embargante, a falta de credibilidade não é fundada e o PER é até argumento decisivo do aparecimento do texto de 2017.
13- Só a presença do PER o justifica, porque sem ele não era necessário; e a sua precedência relativamente ao PER é exactamente o elo de ligação causal que o toma crível.
14- Há, por outro lado, que ter em conta o texto do facto 38 da matéria de facto provada que situa em 1-7-1995 o inicio da posse actual da embargante, obviamente contrário a ideia de revogação e que considera, como adiante se referirá, que a mudança de data trazia consigo a mudança de regime legal.
15- Há, finalmente, a considerar, em prevalência da credibilidade que merece o depoimento do gerente da embargante em audiência, a firmeza com que afirmou pela positiva os factos acima referidos, face ao cerrado interrogatório que lhe foi feito, de que a Meritíssima Juiz dá conta na sentença, alias bem perceptivel no texto que se transcreve da gravação da audiência.
16- Deve, pois, considerar-se que estão provados os factos acima referidos e faze-los transitar da relação dos não provados para provados, em termos de se ver na elaboração e apresentação do texto de 12-12-2017
não uma intenção revogatória, mas antes a de melhoramento para a arrendatária no que estava previsto no texto de 1-7-1995.
17- Deve, a par disso, incluir-se na relação dos factos provados a correspondência trocada entre as partes após notificação da sentença, com o alcance de que a embargada entende que a cessação do contrato não dispensa a oposição a renovação, em tempo legal, naturalmente.
c) Segue-se o direito:
18- Conjugados os primeiros com os demais factos provados, é legitimo, e deve concluir-se pela inexistência de revogação e pela aceitação de que o contrato que prevalece é o de 1-7-1995, completado com o de 12-12-2017 no que se refere ao prazo e à renda.
19- E que, não havendo declaração expressa de revogação, presume a lei que ela nem como tácita pode ser havida se não puder deduzir-se de facto que com toda a probabilidade a revelassem (artigo 217°, n° 1 do C.
Civil). 0 quo não ocorre.
20- Efectivamente, os factos à disposição do julgador é precisamente para a não revogação que apontam caminho; pois que a origem da posse actual da embargante a situa o facto 38 na data do contrato de 1-7-1995, e o PER, de existência reconhecida na sentença, é, até, enquanto posterior a
data do texto, factor de justificação para a emissâo deste. A intenção que o gerente da embargante lhe aponta encontra aí justificação, o que não ocorre com o argumento em contrário da Meritissirna Juiz.
21- Aceite a não existência de revogação e entendido o texto de 12-12-2017 como visando apenas a alteração da renda e do prazo previstos no texto de 1-7-1995 segue-se tirar a primeira inevitável conclusão: a de que, situada a celebração do contrato em data anterior a Setembro de 1995, o contrato está sujeito ao regime jurídico imperativo, o designado por vinculistico.
22- Nesse sentido decidiu o Ac. da Rel. Lisboa de 7-12-2022 (Proc. n° 6459/18.2T8FNC1.1-2-Des. Borges Carneiro), publicado com o seguinte resumo:
“III- Os contratos do arrendamento, para fins não habitacionais, celebrados antes e na vigência do RAU e do DL n.° 257/95, de 30/9, scm duração limitada, não obstante se lhes aplicar o regime do NRAU, não são livremente denunciáveis pelo senhorio, por força do disposto nos arts. 26°, n° 4 e 28°, n° 2, ambos da Lei n.° 6/2006, de 27/2.
IV- As disposições transitórias do NRAU acabam por funcionar como não tocando nos anteriores regimes do arrendamento urbano em matérias como a denúncia ou oposição a renovação do contrato”.
23- Mesmo que se entenda que houve revogação e que por isso o regime não é o vinculativo ainda assim não terminaria o contrato em 1-1-2024.
24- A conclusão seria a de se ter reduzido a 6 anos o prazo de 10 anos inserida no texto de 12-12-2017, que levará a outra necessária conclusão: a de que o contrato nunca podia terminar em 1-1-2024 porque aquele prazo de 6 anos está sujeito a regra geral de renovação automática se não tiver havido oposição a essa renovação.
25-Assirn se decidiu no Ac. do STJ de 7-12-1994 (Proc. n° 085897— Cons. Gusmão de Medeiros), publicado com o seguinte resumo, no que ao caso interessa;
“Os contratos de arrendamento celebrados por prazo superior a 6 anos, sem ser por escritura pública e sem registo, são tidos e havidos como contratos celebrados por prazo não superior a 6 anos, ou seja, corno actos de administração ordinária”.
Em texto, no penúltimo parágrafo do ponto IV, esclareceu:
“Haverá, assim, que aceitar quer se trata de um arrendamento com prazo certo, embora renovável nos ternos do artigo 1095°, do Código Civil” (e, como se pensa, que concluiria o douto acórdão, nos termos do artigo 1110 do C. Civil, se o caso fosse de arrendamento, como aqui, para fins não habitacionais)”.
26- De tudo se conclui que não houve revogação e por isso não pode o contrato ser renovado; mas que, tenha ou não havido, ele não terminou em 1-1-2024. Conclusão naturalmente condicionada a hipótese de não se reconhecerem as nulidades invocadas, com a consequência de baixa do processo à 1ª instância.
27- Decidindo como decidiu, indo alem do pedido e conhecendo de questão nova scm facultação do contraditório, incorreu a douta sentença em nulidades nos termos do artigo 609°, n° 1 e 615°, n° 1, al. e) e no artigo 3°, n° 3 e 615°, n° 1, al. d) do C. P. Civil; e acolhendo como provada a revogação tácita violou as normas de interpretação dos contratos particularmente em colisão com a presunção que decorre do artigo 217.º, n.º 1, do C. Civil, no confronto com os factos provados.
Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas doutamente suprirão, deve proferir-se acórdão que, julgando procedentes as nulidades, anule a sentença, ou, não lhes atribuindo esse efeito, mande que sejam considerados provados os que na douta sentença foram tidos como não provados e confirme a procedência dos embargos, mas sem fixação de termo de prazo para o contrato.
Essa será, Senhores Desembargadores, a expressão da JUSTIÇA.”
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A Apelada Caixa Geral de Depósitos, SA, respondeu ao recurso interposto pela Embargante finalizando a sua peça processual do seguinte modo:
NESTES TERMOS, E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EX.ª DOUTAMENTE SUPRIRÁ, NÃO DEVERÁ SER CONHECIDO O OBJETO DO RECURSO INTERPOSTO PELA EMBARGANTE, ATENTA A FALTA DE INTERESSE NA INSTÂNCIA RECURSIVA E, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, SEMPRE DEVERÁ SER NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO, POR MANIFESTAMENTE INFUNDADO”
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Foi proferido despacho no Tribunal a quo que admitiu ambos os recursos a subir de imediato e nos próprios autos, fixando efeito devolutivo ao da Apelante Caixa Geral de Depósitos, SA e efeito suspensivo ao da Apelante A..., Lda, ordenando a subida dos autos a este Tribunal Superior para apreciação dos mesmos.
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Correram Vistos.
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O recurso interposto pela Embargada é o próprio e foi admitido pelo Tribunal a quo no modo e com o efeito correcto.
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II- Questão Prévia relativa à (in)admissibilidade do recurso interposto pela Embargante A..., Lda, Lda:
Sustenta a Embargada Caixa Geral de Depósitos, S.A. (doravante apenas CGD, S.A.), que o recurso independente interposto pela Embargante A..., Lda, Lda, deve ser indeferido por virtude de esta última não ter o mínimo interesse na instância recursiva dado os seus interesses terem sido “inteiramente acautelados pelo sentido decisório da sentença a quo, não tendo sido prejudicada em nenhuma temática trazida à colação”, razão pela qual não integrando aquela o conceito de parte vencida carece de interesse em agir quanto ao recurso que interpôs dado nenhum efeito útil poder retirar da eventual procedência da mesma.
Na sua resposta a este recurso argumenta a Embargante A..., Lda, Lda, com vista a justificar o interesse em recorrer da sentença. que “A embargante, não obstante terem sido declarados procedentes os embargos, não se conformou com a fixação do termo do contrato de arrendamento; nem com a decisão de que o contrato de 2017 revogou, anulando-o, o de 1995, quer porque não se provou a revogação, quer porque não foi facultado o contraditório.
No primeiro caso, imputa à sentença as nulidades do artigo 615.º, n° 1, als. d) e e) do C.P. Civil; no segundo o ter incorrido em errada apreciação de prova e na nulidade do artigo 3°, n° 3 do C. P. Civil, neste último caso com a consequência de influenciar a natureza, vinculistica ou não, do contrato e o calendário da sua renovação.”
Vejamos, de que lado está a razão.
... a petição inicial dos Embargos de Terceiro em causa, assim como o requerimento apresentado pela Embargante em 09/12/2022 visando a correcção do petitório expresso naquela peça processual, o qual foi deferido por despacho proferido na acta de audiência prévia realizada em 28/09/2023, verificamos que a Embargante pediu expressamente o seguinte:
Requer-se que, recebidos liminarmente os embargos se suste imediatarnente a ordem de entrega (artigo 3500 do C.P.Civil), se ordene a citacão da embargante e, a final, se julguem os embargos procedentes, com reconhecimento de que a embargante é arrendatária do prédio mandado entregar à embargada pelo douto despacho de 3-11-2022, descrito no artigo 2° da peticão, e ela, nessa qualidade, vem possuindo desde 1-7-1995, e com sustação definitiva da ordem que o mandou entregar Iivre da presença da embargante.”
Na sentença recorrida determinou-se no dispositivo, que:
Em face do exposto, julgo procedentes, por provados, os presentes embargos de terceiro, deduzidos por A..., Lda contra Caixa Geral de Depósitos, S.A. e, em consequência, decido que:
a) O contrato de arrendamento celebrado pela embargante com os executados, AA e BB, em 17 de Dezembro de 2017 não caducou com a venda executiva e que a posição de senhorio, ocupada pelos executados AA e BB, se transmitiu à embargada, A..., Lda, na data da adjudicação do imóvel, podendo a embargante manter a posse do imóvel até ao dia 1 de Janeiro de 2024, data em que o citado contrato de arrendamento atinge o termo certo, sem prejuízo do previsto no art.º 1096.º, n.º 1 e 1097.º ambos do Código Civil, sustando-se a ordem de entrega imediata do imóvel, proferida no âmbito dos autos principais;

b) Não se ter provado que a embargante A..., Lda litiga abusando do seu direito.
Custas a cargo da Embargada, nos termos do disposto no artigo 527º, nos 1 e 2, do Código de Processo Civil.”
Verificamos que no arrazoado da petição inicial de embargos e no pedido que no final daquela deixa expresso a Embargante pretende que se suste em definitivo a ordem de entrega do imóvel à Embargada, por manutenção da vigência de um contrato de arrendamento incidente sobre o imóvel adquirido pela Embargada, mais pretendendo o reconhecimento da sua posição de arrendatária.
Porém, da leitura da sentença recorrida e do dispositivo da mesma percebemos que a ordem de sustação de entrega imposta pelo Tribunal a quo apenas produz efeitos até 01/01/2024, data em que se entendeu atingir o contrato de arrendamento referido nos autos o seu termo certo, não sendo de olvidar que a dita sentença foi proferida em 04/12/2023.
Decorre do artigo 631.º do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), que:
“1.Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.
2. As pessoas direta e efcetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.
[…]”
Ora no caso em apreço ainda que possamos aceitar que a sustação imediata da ordem de entrega do imóvel à Embargada decidida na sentença recorrida vai de encontro à pretensão manifestada pela Embargante e obstaculiza à da Embargada e daí admitirmos a referência no dispositivo a embargos “procedentes”, certo é que, no mínimo, temos igualmente que aceitar que a Embargante, em face do que articulou e argumentou nos presentes embargos, saiu prejudicada com a referência expressa, também naquele dispositivo, a que a dita sustação da entrega do imóvel apenas perdurasse até 01/01/2024, por virtude de, conforme expresso na sentença recorrida, o contrato de arrendamento atingir o seu termo certo em tal data, o que, no caso vertente, significou a sustação da entrega do imóvel à Embargada por um período de apenas quatro semanas sobre a data do proferimento da sentença.
Na conformidade expressa e independentemente de o julgamento da causa plasmado na sentença recorrida estar, ou não, inteiramente correcto, o certo é que devemos enquadrar a pretensão recursiva da Embargante pelo menos na previsão do n.º 2 do artigo 631.º do CPC e como tal reconhecer que a mesma tem interesse em recorrer da sentença proferida em primeira instância.
Indefere-se, como tal, a não admissão do recurso interposto pela Embargante requerida pela Embargada por alegada falta de interesse em agir em sede de instância recursiva.
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O recurso interposto pela Embargante é o próprio e foi admitido pelo Tribunal a quo no modo e com o efeito correcto.
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II – Questões objecto do(s) recurso(s)
Nos termos do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugado com o artigo 639º, nº 1, ambos do CPC, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que são as seguintes as questões que integram o objecto desta apelação:
1- Quanto ao recurso interposto pela Embargante/Apelante A..., Lda:
a) Nulidades de sentença;
b) Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
c) Reapreciação de mérito.
2- Quanto ao recurso interposto pela Embargada/Apelante CGD, S.A.:
Reapreciação de mérito – eventual caducidade do contrato de arrendamento celebrado em 17/12/2017.
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IV – Fundamentação de Facto
Constam da sentença recorrida o seguinte no tocante à matéria de facto:
A) FACTOS PROVADOS
Com interesse para a decisão da causa apurou que;
1. AA e BB, executados nos autos principais, são sócios e gerentes da Embargante, A..., Lda Lda., tendo-a constituído em 1988, com sede no n.º ...8 da Avenida ..., ..., ....
2. Para garantia de todas as operações pecuniárias assumidas ou a assumir por A..., Lda Lda. perante a Caixa Geral de Depósitos foi constituída hipoteca genérica pelos executados AA e BB através de procedimento casa pronta celebrado em ... em 11.06.2014 sobre o prédio urbano sito na Av. ... ..., União de Freguesias ... e ... concelho ... descrito na conservatória do registo predial desse concelho sob o n.º ...79 e inscrito na matriz predial urbana sob art.º ...92;
3. A aludida hipoteca foi registada pela Ap. ...18 de 2014/06/11;
4. Em 11 de Junho de 2015, a Caixa Geral de Depósitos concedeu um empréstimo à A..., Lda, Lda. no montante inicial de €100.000,00, o qual não foi reembolsado nos termos acordado, levando a CGD a intentar acção executiva para cobrança coerciva dos montantes em dívida, a que os presentes autos estão apensos;
5. No âmbito do aludido empréstimo ficou acordado que quaisquer quantias que fossem devidas à Caixa Geral de Depósitos ficariam garantida pela hipoteca supra indicada;
6. No âmbito dos autos principais foi penhorado, a 11 de Maio de 2019, o prédio urbano sito na Av. ... ..., União de Freguesias ... e ... concelho ... descrito na conservatória do registo predial desse concelho sob o n.º ...79 e inscrito na matriz predial urbana sob art.º ...92;
7. A aludida penhora foi registada pela Ap. ...1 de 2019/05/11;
8. A realização da penhora foi notificada a AA e BB;
9. A 11 de Julho de 2019, a agente de execução decidiu proceder à venda do aludido imóvel, mediante leilão electrónico;
10. Tal decisão foi notificada aos executados, AA e BB;
11. Frustrada a venda por leilão electrónico, foi decidido que o imóvel seria vendido por negociação particular;
12. A 1 de Fevereiro de 2021, a Caixa Geral de Depósitos, na qualidade de exequente, junta aos autos principais relatório de avaliação de imóvel, no qual consta “...: Arrendado(E)/paraArrendamendo(F) Pressupomos ocupado – visita pelo exterior”;
13. A 20 de Abril de 2022, a Caixa Geral de Depósitos veio aos autos de execução requerer a adjudicação do imóvel penhorado;
14. Por despacho datado de 9 de Maio de 2022 foi autorizada a adjudicação do imóvel penhorado à exequente;
15. Tal despacho foi notificado a AA e BB e transitou em julgado;
16. A 15 de Setembro de 2022, a Caixa Geral de Depósitos requereu no âmbito da execução a sua investidura na posse do imóvel que havia adquirido, em virtude dos executados não terem efectuado a entrega voluntária do imóvel;
17. Em exercício do contraditório, os executados vieram aos autos informar que não haviam feito a entrega do imóvel devido ao facto de nesse prédio estar localizada uma unidade industrial, propriedade de uma sociedade por quotas denominada “A..., Lda.”, pessoa colectiva nº ...21, com sede naquele local e ocupando ambos os prédios e relativamente à qual corre termos um Processo Especial de Recuperação (PER), com o nº ...4/19.9.... do Juízo Local Cível ..., Juíz ..., cujo Plano de Recuperação foi aprovado pelos credores e cuja sentença homologatória está transitada em julgado, encontrando-se a ser cumprido nos termos e condições acordada e aprovadas;
18. Mais alega “Acontece, porém que em 12 de Dezembro de 2017, há, portanto, cerca de cinco anos, fora outorgado entre os ora Executados e aquela sociedade um contrato de arrendamento comercial/industrial, que teve início no primeiro dia de janeiro de 2018, pelo prazo inicial de dez anos, contrato que até ao presente tem vindo a ser rigorosamente cumprido por ambas as partes (Doc. 1, que se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido, para os devidos e legais efeitos)”;
19. Por documento escrito intitulado “Contrato de Arrendamento”, AA e BB e “A..., Lda, Lda”, na qualidade de primeiros contraentes, declararam que “os primeiros contraentes, são donos e legítimos proprietários do prédio sito na Avª ..., ... ..., designado armazém, composto por ... pisos, ... piso pavilhão afeto à actividade industrial e ... piso com 7 divisões. Inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...92.”;
20. Estipularam como cláusula 1ª “O contrato é feito pelo período de 10 anos e tem o seu início a 01/01/2018”;
21. Como 2ª cláusula “A renda mensal é de 100,00€, sendo da responsabilidade do segundo contraente a liquidação da Água, Luz e Gás consumidos.”;
22. Como 3ª cláusula “A renda deverá ser paga, mensalmente até dia 8 de cada mês.”;
23. Como 4ª cláusula “A fracção autónoma destina-se exclusivamente para o desenvolvimento da actividade industrial do segundo contraente.”;
24. Como 5ª cláusula “O arrendatário não poderá fazer quaisquer obras, sem autorização escrita por parte dos senhorios.”;
25. Como cláusula 6 “O segundo contraente aceita, nos termos e para os devidos efeitos legais todas as cláusulas deste arrendamento.”;
26. O dito documento está datado de 12 de Dezembro de 2017 e encontra-se assinado por AA, a título pessoal e como gerente da sociedade A..., Lda;
27. O supra aludido contrato não foi objecto de registo predial;
28. Por documento intitulado “CONTRATO DE ARRENDAMENTO”, AA, como primeiro outorgante, e A..., Lda, Lda, contribuinte fiscal n.º ...21, como segundo outorgante declararam:
“1.º O primeiro outorgante é dono e legítimo proprietário do edifício industrial, sito na ..., ..., em ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...11;
29. 2º - O primeiro outorgante, pela importância mensal de 200 000$00 (Duzentos mil escudos) dá de arrendamento ao segundo outorgante o prédio aqui identificado;
30. 3º - O prédio destina-se a nele serem exercidas as actividades industriais e comerciais que o segundo outorgante entender desenvolver, ficando desde já autorizado a efectuar as infraestruturas e alterações que for necessário introduzir, sendo da responsabilidade deste as licenças que foram exigidas;
31. 4º - O arrendamento é celebrado pelo prazo de seis meses, com início em 1 de Julho de 1995 e termo em 31 de Dezembro de 1995, supondo-se sucessivamente renovado por iguais períodos até o mesmo ser denunciado.”;
32. O aludido documento está datado de 1 de Julho de 1995 e assinado por AA, como 1º outorgante, e BB, na qualidade de gerente da 2ª outorgante;
33. O prédio era então o lote ... da ..., inscrito na matriz sob o artigo ...11. Este deu origem ao artigo ...88 e, hoje, ao actual, que é o artigo ...92;
34. Nas actas da assembleia geral da ora embargante era o lote ... da ..., em ..., que depois passou a ser identificado como Av. ..., da ... quer era tido como local da sede da empresa;
35. Por aditamento de 9-5-2003, os contratantes actualizaram a renda para 3250$00 por mês;
36. A partir daí foram-na actualizando, umas vezes subindo outra descendo, sendo em Junho de 2022 de €1.200,00 por mês;
37. O contrato supra aludido foi participado ao Serviço de Finanças e liquidado o imposto de selo;
38. Não foi até hoje denunciado, nem ocorreu oposição à renovação, mantendo-se a embargante na posse do prédio desde 1995.
*
B) FACTOS NÃO PROVADOS
Com interesse para a decisão da causa não se apurou que:
a) O objectivo do contrato de arrendamento elencado nos pontos 19 a 26 dos factos provados foi documentar a redução da renda como forma de contenção de despesas e a data de 1-1-2018 queria significar, não o início do contrato, mas o início da nova renda;
b) O documento supra indicado foi elaborado no contexto das negociações para acordo no âmbito do processo especial de revitalização com o n.º ...4/19....;
c) Já havia sido criada na Embargada a legítima expectativa de que o imóvel lhe seria entregue livre de pessoas e bens. “
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V - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1-Recurso interposto pela Embargante/Apelante A..., Lda
a)Nulidades de sentença
Comecemos, então, por abordar a primeira questão objecto deste recurso atinente às nulidades de sentença invocadas pela Embargante.
Argumenta a Embargante que o Tribunal a quo ao ter fixado a data para o termo do contrato de arrendamento celebrado entre aquela e os Executados em 01/01/2024 , sem que tal tenha sido incluído no pedido e bem assim incluído a questão da revogação do mesmo no objecto da causa, sem que tal tenha sido invocado por qualquer das Partes , não fazendo preceder a mesma de exercício do contraditório, incorreu na tomada de decisões-surpresa com reflexo nas decisões das Partes, padecendo, assim, a sentença recorrida das nulidades previstas nas alíneas d) e e) do n.º 1, do CPC.
Na respectiva resposta ao recurso da Embargante sustenta a Embargada não estar a sentença recorrida inquinada de nulidade por excesso de pronúncia, pugnando pela improcedência da mesma.
Vejamos de que lado está a razão.
Comecemos pela fixação do termo certo do contrato para a data de 01/01/2024, que ficou, sem margem para rebuços, expressa no dispositivo da sentença recorrida.
Analisando a petição inicial de embargos de terceiro verificamos que a Embargante invocou no essencial a existência de um contrato de arrendamento comercial/industrial firmado com os Executados sustentando ainda a manutenção da sua vigência após a adjudicação do imóvel, sobre o qual aquele contrato se reflete, à Embargada, nada discutindo no tocante ao termo do dito contrato.
Por seu turno, na sua contestação aos embargos a Embargada arguiu a excepção de intempestividade dos embargos de terceiro, bem como refutou o conhecimento e existência de qualquer contrato de arrendamento válido sobre o imóvel que lhe foi adjudicado sustentando em essência que a existir o dito contrato sempre será de considerar que o mesmo caducou com a venda e adjudicação do imóvel a si.
Foi proferido despacho no Tribunal a quo reconhecendo à Embargante o direito de se pronunciar sobre tais questões excepcionais ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC.
Em audiência prévia o Tribunal a quo decidiu pela improcedência da arguida extemporaneidade dos embargos e relegou a questão da caducidade do contrato para final indicando o objecto do litigio e enunciando os temas de prova da seguinte forma:
O objecto do litígio é apurar se os executados deram de arrendamento à embargante o prédio urbano sito em ..., Avenida ..., freguesia ..., concelho ..., composto por edifício destinado a armazéns e actividade industrial composto por ... pisos e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o número ...08 e inscrito na matriz sob o artigo ...92.º da actual União de Freguesias ... e ....
Na afirmativa, impõe-se ainda apurar se a embargante age em violação do princípio da boa fé, abusando do seu direito.
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Temas da prova:
a)Os executados deram de arrendamento à embargante o prédio urbano sito em ..., Avenida ..., freguesia ..., concelho ..., composto por edifício destinado a armazéns e actividade industrial composto por ... pisos e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o número ...08 e inscrito na matriz sob o artigo ...92.º da actual União de Freguesias ... e ....”
Conforme facilmente se percebe em nenhum momento da tramitação dos autos foi levantada a questão do termo do contrato de arrendamento ocorrer a 01/01/2024 ou noutra qualquer data concreta.
Porém, vem a ser integrado no próprio dispositivo da sentença recorrida que a sustação da entrega do imóvel vigora apenas até àquela data de 01/01/2024 devido ao facto de na mesma a Embargante deixar de ter a posse sobre o mesmo fundada no termo de vigência do contrato.
Por outras palavras, o Tribunal recorrido resolveu discutir e apreciar em sede de fundamentação de direito da sentença a questão do termo do contrato de arrendamento daí retirando consequências jurídicas que fez constar expressamente no dispositivo da sentença, questão essa que não foi objecto do pedido formulado nos embargos de terceiro nem integrou a matéria da contestação aos embargos, mas que inegavelmente se reflete sobre o momento em que cessa a sustação da entrega do imóvel, podendo, assim, aceitar-se que constitui matéria de excepção ao pedido formulado,
Do exposto devemos reconhecer que a decisão tomada sobre a data concreta do termo do contrato de arrendamento em apreço nos autos não pode deixar de enquadrar uma questão relevante nos mesmos cuja decisão demandava a possibilidade de as Partes previamente a debaterem em sede de exercício do contraditório.
Dispõe o n.º 3 do artigo 3.º do CPC, o seguinte:
“O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Por seu turno, resulta do artigo 195.º do mesmo CPC, que.
“1.Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de uma ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”
Decorre, outrossim, do artigo 615º, nº 1, do CPC que:
“É nula a sentença quando:
[ …]
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. “
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Relativamente à nulidade prevista na alínea d), do aludido artigo 615º, do CPC, sabemos que na primeira parte da alínea se previu a chamada “omissão de pronúncia “, enquanto na segunda parte o “excesso de pronúncia”, sendo que no tocante a este último António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, (in “Código de Processo Civil Anotado , Vol I”, 2.ª edição atualizada, 2020, Almedina, pág. 764), enquadram-no na “apreciação de questões de facto ou de direito que não tenham sido invocadas e que não sejam de conhecimento oficioso.“
Importa salientar que na dimensão jurisprudencial dos Tribunais Superiores existem ideias solidificadas quanto a esta nulidade.
A título meramente exemplificativo salientamos o acórdão do STJ de 04/03/2004 (Procº 04B522, acessível in www.dgsi.pt), onde consta expresso que a nulidade por excesso de pronúncia “reporta-se a questões e não a motivações, ou seja, apenas se reporta a pontos essenciais de facto ou de direito em que as partes centralizaram o litígio, incluindo as excepções“ […] e não à sua argumentação em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos “ (Na mesma senda veja-se o acórdão do STJ de 05/02/2004, Procº 03B3809, publicado na mesma base de dados).
Já ao nível dos Tribunais de Relação e igualmente na mesma linha orientadora destacamos o acórdão da Relação de Guimarães de 24/01/2012, (Procº 3782/09, também acessível em www.dgsi.pt ), particularmente no excerto em que refere que “ Não padece de nulidade , por excesso de pronúncia […], a sentença que, com fundamentos jurídicos diversos dos invocados pelas partes, decide das questões que lhe são colocadas“ e ainda da mesma Relação o acórdão de 10/09/2013 (Proc.º n.º 4211/11, acessível in www.dgsi.pt), quando salienta estar o juiz da causa “[…] limitado pelo princípio do dispositivo, que exprime a liberdade com que as partes definem o objeto do litigio , não podendo condenar-se além do pedido , nem considerar causa de pedir que não tenha sido invocada“.
Dito de outro modo , “haverá excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido” (cfr. acórdão da Relação Coimbra de 09/04/2013, Procº 621/09, in www.dgsi.pt ).
Já relativamente à nulidade mencionada na alínea e), que se debruça sobre a chamada condenação “ultra petitum”, a mesma resulta essencialmente na violação do disposto no art. 609.º, n.º 1, do CPC (ver obra acima citada, a pág. 764).
Relembrando o normativo acabado de referir temos que o mesmo estatui o seguinte:
“A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.”
Ora bem, regressando aos contornos do caso que temos em mãos julgamos poder assumir sem grandes reservas que no caso vertente ao mencionar no dispositivo da sentença recorrida a data de 01/01/2024 como termo certo do contrato de arrendamento aflorado nos autos o Tribunal a quo não incorreu em condenação em quantidade superior do que se pediu, ou em objeto diverso do que pediu, desde logo porque não está em causa no dispositivo do incidente em apreço, pela sua especificidade, condenar qualquer uma das Partes, importando acrescentar ainda que para a primeira parte desse preceito releva sobremaneira a condenação em montantes pecuniários, sendo que relativamente à segunda parte constituindo o termo do contrato um aspecto relativo ao mesmo e sendo o contrato de arrendamento aludido nos autos um elemento conformador da causa de pedir dos presentes embargos de terceiro não cremos que seja de entender que dispor sobre o termo daquele configure própriamente “objecto diverso” do que pediu.
Mas se podemos afastar no caso concreto a nulidade prevenida na alínea e), já no tocante à segunda parte da alínea d), do nº 1, do artigo 615.º do CPC, a situação é diferente, em face do significado supra conferido a tal patologia da sentença.
Na verdade e relembrando tudo o que já se escreveu acima, ao discutir e decidir, fazendo menção expressa no dispositivo da sentença, no tocante à fixação do termo certo do contrato de arrendamento em 01/01/2024 pensamos que o Tribunal a quo, conforme sustentado pela Embargante nas conclusões recursivas do recurso independente que interpôs nos autos, pronunciou-se sobre questão de inegável relevância para o caso em apreço não expressamente suscitada anteriormente nos autos por qualquer das partes e sem conferir a possibilidade às mesmas de sobre ela se pronunciarem em sede de contraditório, querendo, padecendo desse modo a sentença recorrida de excesso de pronúncia.
Ponto assente é que ao não ter concedido previamente às Partes a possibilidade de, antecipadamente a decidir sobre tal na sentença, exercerem o contraditório relativo à questão da fixação do termo certo na data de 01/01/2024 quanto ao contrato de arrendamento incidente sobre o imóvel adjudicado à Embargada em consequência da venda executiva do mesmo, o Tribunal a quo omitiu a prática de uma formalidade que se traduziu em irregularidade com influência na decisão do incidente em apreço passível de subsunção ao regime dos artigos 3.º, n.º 3 e 195.º, n.º 1, ambos do CPC.
Porém, é certo que apenas na sentença tal patologia se manifestou através da pronúncia em excesso sobre tal matéria não discutida, nem debatida anteriormente, constituindo a decisão sobre tal questão uma decisão-surpresa para as Partes
No caso de omissão, ou preterição, do exercício do contraditório, traduzida na não audição prévia das Partes, ou de alguma delas, que se revele apenas na sentença/despacho proferida(o), a doutrina e a jurisprudência tem-se dividido sobre o tipo de nulidade em causa.
Com efeito, existe uma corrente que considera estar em causa essencialmente uma nulidade processual, ou vicio procedimental, subsumível à previsão do supra transcrito artigo 195º, nº 1- do CPC, aplicando-se a tal nulidade o regime de arguição prevenido no supra mencionado artigo 199.º do CPC, enquanto outra entende tratar-se mesmo de uma nulidade de sentença fundada em excesso de pronúncia prevista na segunda parte da alínea d), do nº 1-, do artigo 615º, do CPC, igualmente acima reproduzido.
Sobre esta temática sustentou Miguel Teixeira de Sousa (in https:// blogippc.blogspot.pt), o seguinte:
O proferimento de uma decisão surpresa é um vício que afeta esta decisão (e não um vício de procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual”), argumentando complementarmente que até ao proferimento da decisão “não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir” , mais esclarecendo ainda que “o vício que afeta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria.”
Na mesma esteira diz-nos o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, 2018, Almedina, pág. 27-28), o seguinte:
Por conseguinte,[…], parece mais seguro assentar em que sempre que o juiz, ao proferir alguma decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d).
Afinal, designadamente quando a sentença traduza para a parte uma verdadeira decisão-surpresa (não precedida do contraditório imposto pelo art. 3º, nº 3), a mesma nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do ato, sendo o recurso a via mais ajustada a recompor a situação integrando no seu objecto a arguição daquela nulidade.” (itálico nosso).
Esta solução jurídica foi adoptada em vários arestos destacando-se, por todos, os acórdãos proferidos pelo STJ em 22/07/2017 (Processo nº 5384/15), em 23/06/2016 (Processo nº 1937/15), ambos acessíveis para consulta em www.dgsi.pt. e em 17/03/2016, (acessível in CJ, tomo I, pág. 176),
Neste último aresto, referido expressamente por Abrantes Geraldes na obra acima citada, decidiu-se que “a decisão-surpresa alegada e verificada constitui um vício intrínseco da decisão e não do iter procedimental, acarretando a nulidade do acórdão…”
Concordamos com a posição doutrinária e corrente jurisprudencial acabada de expor, pelo que devemos considerar tempestiva a arguição da nulidade de sentença em causa em sede do recurso independente interposto pela Embargante para esta instância.
Assim, na conformidade exposta, consideramos padecer a sentença recorrida de nulidade por excesso de pronúncia vicio esse que no caso concreto impede este Tribunal Superior de fazer uso da regra de substituição ao tribunal recorrido prevenida no artigo 665.º, n.º 1, do CPC, uma vez que o cumprimento, omitido, do contraditório quanto à questão da fixação do termo certo do contrato de arrendamento deverá ocorrer no Tribunal a quo, que subsequentemente elaborará nova sentença, ficando, em consequência, comprometida a apreciação das demais questões levantadas no recurso independente da Embargante e a questão suscitada no recurso independente da Embargada, de acordo com o disposto nos artigos 663.º, n.º 2, 2.ª parte e 608.º, n.º 2, 1.ª parte, ambos do CPC.
*
VI – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em conceder provimento ao recurso de apelação independente interposto pela Embargante/Apelante A..., Lda e em consequência:
A) Anular a sentença proferida no Tribunal a quo em 04/12/2023 devendo naquele Tribunal ser proferido despacho que determine a notificação das Partes para em prazo a fixar exercerem, querendo, o contraditório sobre a questão do termo certo do contrato de arrendamento aludido nos autos, elaborando-se subsequentemente no mesmo nova sentença, ficando prejudicada a apreciação das demais questões levantadas no recurso independente da Embargante, bem como a apreciação da questão levantada pela Embargada no seu recurso independente;
B) Fixar custas a cargo da Embargada CGD, SA , nos termos do disposto no artigo 527º , nº 1 e 2 , do C.P.C.
*
Notifique e registe.
*
ÉVORA, 10 de Outubro de 2024
(José António Moita, relator)
(Maria Adelaide Domingos, 1.ª Adjunta)
(Manuel Bargado, 2.º Adjunto)