Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2994/23.9T8STB.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: ANULAÇÃO DE SENTENÇA
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Perante a omissão do convite ao aperfeiçoamento da petição inicial e a consequente insuficiência detetada na matéria de facto julgada provada, que conduz à parcial improcedência do pedido formulado pela autora, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, cumpre anular a decisão proferida pela 1ª instância, de forma a serem supridas as deficiências detetadas, após convite à concretização factual da matéria alegada.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2994/23.9T8STB.E1
Juízo Local Cível de Setúbal
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

(…) Seguros, S.A. intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra (…), pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de € 15.373,67, acrescida de juros de mora contabilizados desde a citação até efetivo e integral pagamento.
A autora peticiona o indicado montante a título de reembolso das quantias que alega ter despendido com a satisfação de indemnizações devidas em resultado de lesões corporais sofridas pelo sinistrado que identifica, em consequência de acidente de viação que descreve, ocorrido quando aquele se encontrava ao serviço da respetiva entidade patronal, a qual havia transferido para a autora a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho que pudessem advir aos trabalhadores ao seu serviço; mais imputa ao réu a culpa exclusiva na produção do acidente, pelos motivos que expõe na petição inicial.
O réu contestou, defendendo-se por exceção – arguindo a prescrição do direito a exigir o reembolso do montante pago – e por impugnação motivada.
Foi realizada a audiência prévia, na qual se proferiu despacho saneador e se fixou o valor à causa, após o que se identificou o objeto do litígio e se procedeu à enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença, na qual se julgou a ação procedente, decidindo-se o seguinte:
Pelo exposto, julgo a acção totalmente procedente, por provada, e em consequência, condeno o Réu a pagar à Autora a quantia de € 15.373,67, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde a sua citação até integral pagamento.
Custas pelo Réu, nos termos acima determinados.
Registe e notifique.
Inconformado, o réu interpôs recurso desta sentença, pugnando pela respetiva revogação e prolação de decisão que o absolva do pedido formulado, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1 - A sentença ora recorrida padece de erro de facto e de Direito, ao considerar provados os alegados pagamentos feitos pela seguradora A. e aqui recorrida e a existência de sub-rogação.
2 - Está em causa uma situação de sub-rogação legal, como estabelecem os n.ºs 1 e 4 do artigo 17.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, e o exercício do direito sub-rogação pressupõe sempre por parte do respetivo titular o cumprimento da obrigação, em concreto, aqui, os pagamentos efetuados para ressarcimento do sinistrado dos danos sofridos.
3 - Ao considerar que tais pagamentos foram feitos, sem que tivesse efetivamente sido feita essa prova, o Tribunal a quo considera erradamente verificados os pressupostos da sub-rogação por parte da seguradora, o que é uma questão prévia relativamente à verificação do pressuposto da eventual responsabilidade civil do R., uma vez que este será apenas o terceiro dos pressupostos da sub-rogação.
4 - A procedência da ação de sub-rogação instaurada pela seguradora contra o terceiro responsável pelo acidente de trabalho, depende da alegação e prova, por parte daquela, de 3 pressupostos cumulativos para que possam ter aplicação os mencionados n.ºs 1 e 4 do artigo 17.º do DL 89/2009, de 4 de setembro, a saber:
a) da existência de um contrato de seguro ao abrigo do qual teve que pagar ao lesado a indemnização devida pelo acidente de trabalho por ele sofrido;
b) de ter, efetivamente, realizado o pagamento da indemnização devida em consequência desse acidente;
c) de que foi o réu o responsável pelos factos que originaram o acidente de trabalho.».
5 – Não se concorda com a matéria de facto considerada provada, nos seus pontos 25, 26, 28, 29, 30 e 31, porque se entende que não resultou provado que tenha sido efetivamente feito o pagamento por parte da A. da indemnização devida em consequência do acidente, e nomeadamente o valor da mesma, em todos os seus componentes e como um todo, sem o que nunca poderá a ação proceder por, consequentemente, não estarem verificados os pressupostos da sub-rogação, que é o que legitima e enquadra a condenação do réu.
6 - A sentença baseia-se em presunções de pagamento, entendendo que pode o juiz valer-se de uma prova de primeira aparência, o que consideramos incompatível com a exigência de alegação e prova de que foi efetivamente realizado o pagamento para aplicação do artigo 17.º, n.ºs 1 e 4, do DL 98/2009, de 4 de setembro, e retira à autora o ónus da prova que sobre si impende e que neste caso concreto deverá ser considerado exigente, reforçado e estruturante do direito que alega.
7 - Sem pagamento não há sub-rogação. Sem prova do pagamento não há sub-rogação. Ou seja, a presunção não é uma prova e à autora cabia provar que efetivamente realizou o pagamento dos valores peticionados nos autos.
8 - Também nos dizem as regras de experiência comum que uma seguradora não faz pagamentos sem a existência de faturas e respetivos recibos de quitação dos valores pagos aos prestadores de serviços e mesmo aos sinistrados e, ao admitir que a autora não faça prova dos pagamentos, apresentando para o efeito os respetivos documentos (faturas e recibos), a sentença desobriga a autora do seu ónus da prova.
9 - Com base nestas presunções, a sentença considera que os montantes dos alegados pagamentos se mostram “verosímeis” e “credíveis” e o tribunal dá como provados, por presunção, os alegados pagamentos e respetivos valores, que são condição sine qua non para que exista sub-rogação.
10 - Era necessário provar documentalmente o pagamento, e era expectável, presumível, e mesmo básico, que uma seguradora possuísse documentos comprovativos de pagamentos que diz ter efetuado, não se limitando a sentença a dizer que os mesmos são “verosímeis”, provando-se as datas dos mesmos, que não se apuraram, sem que a autora tenha cumprido o ónus da prova que lhe cabe, sem documentos que permitam essa prova, sem ter havido prova testemunhal de efetivo pagamento.
11 - A sentença considera provados os factos 25, 26, 28, 29, 30 e 31, sem que tenha sido feita qualquer prova nesse sentido.
12 - Para fundamentação de decisão de facto diz a sentença, relativamente aos factos 25 a 31 (não se pondo aqui em crise o ponto 26), que quanto aos factos 25) a 31), cumpriu ao tribunal analisar os prints do sistema informático da Autora juntos com a petição inicial, concatenados com a cópia da sentença e da notificação do despacho que fixou o capital de remição, as requisições dos atos médicos, bem como os depoimentos testemunhais de (…) e (…).
13 – Considera-se aqui reproduzida a fundamentação da matéria de facto quantos aos factos 25) a 31), a qual se põe em causa, incluindo no que se refere à referida questão das presunções concerne.
14 - Não foram juntos aos autos quaisquer comprovativos de pagamento, seja de que despesa for, e foram impugnados especificamente os documentos 3, 4, 5, 6, 7 e 8 juntos com a PI, quanto ao seu valor probatório e para os fins pretendidos pela A., não tendo estes a virtualidade de demonstrar o pagamento, nem daquele valor nem de outro qualquer, não havendo sequer coincidência entre os valores constantes da sentença e do despacho relativo ao cálculo do capital de remição e os valores que a A. diz ter pago e que não demonstrou.
15 - Resultou demonstrado que a Autora celebrou com a entidade empregadora do sinistrado um contrato de seguro, ao abrigo do qual estava obrigada a pagar a indemnização devida pelo acidente de trabalho sofrido por (…), trabalhador da empresa sua segurada, mas já não se pode considerar que tenha sido efetuada prova de ter sido efetivamente realizado o pagamento da indemnização devida em consequência desse acidente.
16 – Fez-se a análise dos documentos juntos aos autos pela A. e que serviram de base à decisão sobre a matéria de facto, por um lado, e ainda do depoimento das testemunhas (…) e (…), indicados na sentença, por outro.
17 - Nenhum desses documentos comprova qualquer pagamento, indicando a autora que despendeu com a regularização do sinistro o montante de € 15.373,67 a título de indemnização pelo acidente dos autos, indicando para prova do que alega, os documentos 6, 7 e 8 juntos com a PI.
18 - O documento 6 é o despacho do Tribunal de Trabalho do Barreiro, subsequente à sentença igualmente junta, que constitui o documento 5 e que igualmente serviu para suportar a fundamentação de facto da decisão aqui em causa, com o cálculo do capital de remição e com o comprovativo do IBAN do sinistrado. Em concreto, é a notificação à autora para, em 10 dias, proceder ao pagamento do capital de remição no valor de € 6.688,68, juros de mora no valor de € 299,07, transportes no valor de € 15,00, e incapacidades temporárias no montante de € 4.650,40, ao qual deveria ser deduzido o montante eventualmente já pago, com juros de mora desde 04/07/2019. Mais refere o despacho em causa que o pagamento desses montantes deveria ser demonstrado nos autos, e nem isso a autora comprova ter feito.
19 - O facto de a autora ter sido notificada para proceder ao pagamento dos valores constantes do mencionado despacho não quer dizer que o tenha efetuado, ou que o tenha feito naqueles montantes, nem se sabe em que data o possa ter feito.
20 - No que se refere ao montante relativo às incapacidades temporárias no valor de € 4.650,40, cabe referir que deveria ter sido deduzido o montante eventualmente já pago sendo que nada é demonstrado neste sentido, ou seja, se estes valores já tinham sido pagos, no todo ou em parte, ou se alegadamente terão sido pagos aquando do cálculo do capital de remição em março de 2022, sendo certo que o acidente ocorreu em julho de 2019. O sinistrado mencionou que lhe foram pagos mensalmente os salários por parte da autora, sendo que nada se apurou quanto a este valor para além daquilo que vai referido no despacho do Tribunal de Trabalho.
21 - A decisão refere ainda, para fundamentação da matéria de facto constante dos factos 25) a 31), que analisou os prints do sistema informático da A. e que constituem o documento 7 que está designado como “fatura”, mas não o é, sendo uma mera lista de alegados pagamentos/reembolsos, um resumo financeiro de alegados pagamentos, não são faturas, não são recibos, não são comprovativos de transferência ou de qualquer pagamento. São meros documentos particulares que qualquer pessoa pode fazer num computador, não há uma assinatura, não há um carimbo, não há nada de nada! Não há uma identificação da A., nem o seu número de contribuinte. Não consta sequer um único número de contribuinte dos alegados recebedores e nem do sinistrado! São meros documentos particulares sem qualquer valor probatório. Mesmo sendo um print do sistema informático da A., o que o tribunal presume porque a autora não o diz, antes lhe chamando fatura, não comprova qualquer pagamento e nem a correção dos valores em causa.
22 - Na primeira página desse print os valores indicados não correspondem ao despacho do Tribunal do Barreiro. Tem ainda uma referência a “Data inválida em date”. Tem como data de início 01-01-1901 e de fim 99-99-9999. E a última coluna do resumo financeiro por natureza do pagamento tem a zeros o total faturado. Apresenta ainda como valor total alegadamente pago o montante de € 15.171,61, ou € 15.271,65 com IVA, e não o montante de € 15.373,67 constante da PI,
23 - A sentença dá como provado ao dar como boas, de forma acrítica, todas as parcelas indicadas na PI como sendo pagamentos realizados.
24 - O depoimento da testemunha (…), gestor do sinistro em causa, e o do sinistrado (…), que serviram para criar a convicção do tribunal, foram devidamente identificados supra com a referência às respetivas gravações, como se impõe quando se recorre da matéria de facto, fazendo-se a propósito as considerações que se consideram pertinentes, nomeadamente no que concerne às contradições existentes entre ambos e entre os depoimentos e os documentos, o que aqui se dá por reproduzido.
25 – Evidenciou-se a parcialidade do depoimento do gestor de sinistros (…) bem como a falta de informação suficiente para se poder dar a matéria em causa como provada, nem quanto ao pagamento propriamente dito e a quem, nem quanto ao respetivo valor, nem quanto às datas dos mesmos.
26 - Não pode o Tribunal dizer que o pagamento do capital de remição, o seu valor e a data do mesmo resultam do print junto aos autos pela autora, mostrando-se a mesma verosímil tendo em conta a data da notificação relativa ao capital de remissão em 9/03/2022, porque essa prova não é suficiente e ser verosímil não é ter sido efetivamente demonstrado e, portanto, não pode a sentença dar como provado o facto 25), que deverá ser excluído da matéria de facto provada, a saber:
25) Assim, em 18/03/2022, a autora liquidou ao sinistrado o montante de € 6.688,68 a título de capital de remição.
27 – Não pode o tribunal dizer que a autora liquidou a quantia total de € 1.123,02 referentes a despesas de transportes, por não ter sido feita qualquer prova de que tenha sido pago seja que montante for, a título de despesas de transporte, seja a quem for, nomeadamente não pode a sentença dizer que esses pagamentos são verosímeis e, portanto, não pode a sentença dar como provado o facto 26), que deverá ser excluído da matéria de facto provada, a saber:
26) Ainda, liquidou a autora a quantia total de € 1.123,02 referente a despesas de transporte.
28 - A sentença dá também como provado no facto 27) que a Autora procedeu ao acompanhamento médico do sinistrado na sequência das lesões decorrentes do acidente objetos autos, o que não se põe em causa. Contudo, não se pode dizer que o valor dessas despesas resulta do documento 8, que são meras requisições de atos médicos da própria seguradora, havendo até divergência quanto ao número de sessões de fisioterapia e de telereabilitação, entre o que é dito pela autora e o que resulta do depoimento do sinistrado.
29 - Não se põe em causa que tenham sido realizados atos médicos e que tenha havido acompanhamento do sinistrado, o que resulta genericamente do depoimento deste, mas nem sabemos se foram estes ou outros os atos médicos realizados, naquela quantidade, se os atos ali mencionados como tendo sido requisitados foram efetivamente realizados, se o sinistrado os cumpriu e se foram pagos e qual o seu valor que, aliás, nem consta dos mesmos. Estes documentos não têm qualquer valor probatório.
30 - Quando o sinistrado refere que foi tudo pago pela seguradora significa apenas, neste contexto, que ele próprio nada pagou, mas como é evidente não sabe se a A. pagou fosse o que fosse aos prestadores dos serviços ou que valores podem ter sido pagos, exceto no que concerne aos salários que, esses, ter-lhe-ão sido pagos diretamente, e os táxis de que era reembolsado. É obviamente esta a interpretação correta daquilo que foi dito pela testemunha em causa, o sinistrado.
31 – A sentença fundamenta a sua decisão dizendo que quanto aos valores relativos aos tratamentos médicos e despesas de transporte mostram-se os mesmos verosímeis atento o relato do sinistrado de tudo o que fez vista à sua recuperação, confirmando o mesmo que se deslocou sempre de táxi e que o mesmo foi liquidado pela companhia mas não pode a sentença dar como provado o facto 28), devendo ser excluído da matéria de facto considerada provada, a saber:
28) bem como veio assegurar o pagamento das despesas hospitalares consultas e despesas de farmácia para tratamento do sinistrado que lhe foram sendo sucessivamente apresentadas no valor global de € 1.971,83.
32 – A sentença dá como provado que a A. despendeu também a quantia de € 404,46 com custas judiciais e honorários e ainda a quantia de € 181,68 com despesas de averiguação e gestão”, mais uma vez suportado no mesmo documento 7, reforçando-se a falta de valor probatório suficiente e adequado deste documento.
33 – Em sede de fundamentação, a sentença diz que no que respeita aos montantes das custas judiciais, igualmente mostram-se as mesmas verosímeis, uma vez se demonstrou a existência de um processo judicial mas o que está em causa é saber se o valor foi este e se foi pago, para que o mesmo possa ser imputado ao réu. O facto de ser verosímil a existência de custas judiciais não demonstra que tenha havido pagamento das mesmas nem em que montante, sendo que o montante alegado na PI nem sequer corresponde ao valor constante do documento em causa.
34 - A sentença refere que o custo de peritagem se mostra credível, atento o facto de resultar do depoimento de (...) que existiu efetivamente uma averiguação, o que habitualmente acontece nas situações similares. Não se pondo em causa que possam ter existido despesas de averiguação e de gestão, o que interessa saber é se o valor despendido foi aquele, e se foi pago, para que o mesmo possa ser imputado ao réu, pelo que o tribunal não pode dar como provado que o valor pago em sede de despesas de gestão e peritagem foi de € 181,68, face à falta de qualquer prova nesse sentido.
35 – O facto 29) não poderá ser dado como provado, devendo ser excluído da matéria de facto, a saber:
29) A autora despendeu também a quantia de € 404,46 com custas judiciais e honorários e ainda a quantia de € 181,68 com despesas de averiguação e de gestão.
36 - No que concerne ao facto 30 dos factos provado, relativo aos pagamentos referentes às incapacidades temporárias, não é indicado qualquer documento para prova do que se alega, enfrentando-se os mesmos problemas de prova assinalados aos factos anteriores na medida em que não foi junto qualquer documento comprovativo dos pagamentos em causa e os documentos constantes dos autos não são suficientes para essa prova.
37 – Não resultou provado o montante que possa ter sido pago, e só esse pode ser imputado o réu, desde logo porque a sentença do Tribunal de Trabalho refere o valor de € 4.516,25 a título de indemnização relativa às incapacidades temporárias, o despacho relativo ao cálculo do capital de remição refere o montante de € 4.650,40, o resumo financeiro que constitui o documento 7 refere este último valor, a lista de pagamentos/reembolsos refere o montante de € 906,25, e a soma de todos os valores indicados como sendo recebedor o sinistrado (…) ascende a € 4.925,12, pelo que não é possível dizer qual o valor que foi pago a título de indemnização pelas incapacidades temporárias, ou se houve outros valores pagos ou reembolsados e a que título, até porque o sinistrado referiu que lhe foram reembolsados transportes, não soube precisar valores, e os valores constantes do documento são completamente díspares uns dos outros.
38 - Como tal, não é possível dizer, como a autora alega e o tribunal dá como provado no ponto 30 dos factos provados, que a autora tenha pago ao sinistrado um montante de € 4.650,40 a título de indemnização pelas incapacidades temporárias, pelo que o facto 30) não poderá ser considerado provado e deverá ser excluído da matéria de facto considerada provada, a saber:
30) Por outro lado a autora pagou ao condutor do motociclo (…) a quantia de € 4.650,40 por conta das perdas salariais ocorridas durante o período em que este (esteve) temporariamente impossibilitado de exercer a sua atividade profissional.
39 – Também quanto ao facto 31) e aos juros que possam ter sido pagos, a sentença fundamenta a sua decisão na sentença do Tribunal do Trabalho e no despacho relativo ao cálculo do capital de remição, mas nada foi demonstrado quanto a este valor, sendo aliás divergente, pelo que o facto 31) da matéria de facto não poderá ser considerado provado, devendo ser excluído da matéria de facto provada a saber:
31) Por fim, a autora liquidou a título de juros de mora o montante de € 353,60.
40 - Nem dos depoimentos das duas testemunhas (…) e (…), indicados na sentença como fundamentando a decisão do Tribunal, nem dos documentos juntos aos autos pela autora, que não são recibos de pagamento, nem cópias de cheques, nem recibos de transferência, nem faturas, que não identificam devidamente os prestadores de serviços a quem possam ter sido pagos quaisquer montantes, documentos que não podem ter qualquer valor probatório e que o Tribunal assumiu como sendo prints do sistema informático da autora, sem qualquer identificação, a que acrescem as contradições e discrepâncias supra identificadas, se pode concluir, com a segurança e a certeza exigíveis para que se possa imputar o pagamento ao réu, nem que tais pagamentos foram efetivamente efetuados, quando é que tal tais pagamentos podem ter sido feitos, nem em que valores concretos.
41 – Está errado o tribunal ao considerar que é possível que a mesma resulte de presunções com base na experiência comum, retirando à autora a obrigação do ónus da prova que lhe cabe. Pelo contrário, as regras de experiência dizem-nos que uma seguradora tem comprovativos de pagamento, que simplesmente não se juntam.
42 - A explicação para essa não junção passa pelo facto de terem decorridos mais de 3 anos sobre o pagamento parcelar de núcleos cindíveis de despesas, nomeadamente o que concerne aos salários alegadamente pagos ao sinistrado, uma vez que este teve alta clínica relativa ao acidente de trabalho em 22/01/2020, e a ação deu entrada em 20/04/2023, ou seja mais de 3 anos sobre esta alta clínica e sobre os alegados pagamentos relativos às incapacidades temporárias, verificando-se a prescrição devidamente alegada pelo réu.
43 - As presunções permitem que o julgador possa produzir juízos de verosimilhança, probabilidade, certeza e verdade, mas há uma exigência de racionalidade, ponderação e justificação de todo o raciocínio feito pelo julgador e que permite a solução do litígio e dificilmente permitem o alcance da verdade material, não se reconduzindo a um meio de prova próprio.
44 - À cautela, por mero dever de patrocínio, admite-se que possa constar como provado que a autora teve despesas relativas transportes, acompanhamento médico do sinistrado, despesas hospitalares, consultas e despesas de farmácia para tratamento do sinistrado, bem como custas judiciais e despesas de averiguação, e ainda que tenha pago montantes relativas a perdas salariais relativas ao período de incapacidade temporária, sem que se tenha apurado os respetivos montantes, a quem foram pagos e em que datas, o que não será suficiente para condenar o réu em qualquer pagamento.
45 -À autora cabia, sem margem para dúvidas, demonstrar o pagamento efetivo, o que naturalmente desde logo pressupõe identificar devidamente o recebedor, o montante do pagamento e data do mesmo. E a autora falhou essa prova.
46 - Falecendo esta prova, mesmo admitindo-se que houve pagamentos nos termos referidos supra, natural e consequentemente, a decisão de Direito terá que ser outra, não podendo considerar-se verificado o segundo pressuposto da sub-rogação acima já referido, que é o efetivo pagamento por parte da autora dos valores cujo pagamento reclama do réu e aqui recorrente.
47 - Para que possamos falar em sub-rogação, o pagamento carece de ser alegado, por um lado, e demonstrado como tendo sido efetivamente efetuado. Não foi junto aos autos um único documento que comprove um único pagamento. O pagamento e o montante do mesmo é uma questão fulcral a ser analisada pelo Tribunal e não pode ser decidida com base em meras presunções, devendo ser documental.
48 - Não havendo prova de que foi efetivamente feito algum pagamento ao sinistrado ou a qualquer outro prestador, nem quando, nem em que valor, a questão da prescrição não se coloca. Se não há pagamento não há sub-rogação e se não há sub-rogação não há prazo de prescrição do exercício deste direito.
49 - No entanto, à cautela e por mero dever de patrocínio, admitindo-se a possibilidade da existência de pagamentos, cabe dizer que o direito de exercer a sub-rogação prescreve no prazo de 3 anos a contar do pagamento.
50 - Não havendo prova de pagamentos nos autos, não é possível identificar em que datas foram alegadamente pagas as despesas que se consideram núcleos indemnizatórios autónomos, juridicamente diferenciados e normativamente cindíveis, para efeitos de prescrição, desde logo o capital de remição resultante da indemnização relativa a Incapacidade Permanente Parcial, bem como custas judiciais e honorários, e ainda perdas salariais ocorridas durante o período em que o sinistrado esteve temporariamente impossibilitado de exercer a sua atividade profissional, constituem núcleos indemnizatórios autónomos, juridicamente diferenciados e normativamente cindíveis, entre si e relativamente às despesas hospitalares, consultas, despesas de farmácia, acompanhamento médico e despesas de transportes, sendo que o sinistrado teve alta em janeiro de 2020.
51 – O acidente ocorreu em 3 de julho de 2019, e não tendo sido produzida prova nos autos nem tão pouco sendo invocada a data em que possa ter sido feito qualquer dos pagamentos alegados, invoca-se expressamente, e à cautela, a prescrição do direito de sub-rogação alegado pela A., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 498.º do Código Civil.
52 - A sentença considerou também que resulta dos factos provados que todos os pagamentos efetuados pela autora estão relacionados com os danos corporais que sofreu o sinistrado, nomeadamente até a peritagem que visou averiguar o modo como ocorreu o acidente pelo que não se justifica autonomização dos mesmos, concluindo que a contagem do prazo prescricional se iniciou com o último pagamento ocorrido em 18/03/2022, pelo que não estava atingido o prazo de 3 anos para o exercício do direito da autora.
53 - Ao considerar-se na sentença que foram efetuados os pagamentos, ainda que não produzida prova nem de que tenham sido efetuados, nem dos respetivos valores, nem das datas em que possam ter sido efetuados, a questão da prescrição mantém-se válida, admitindo-se que o capital de remição não poderia ter sido pago antes da notificação do respetivo cálculo por parte do Tribunal do Trabalho. Mas isso, independentemente da necessidade da prova de que esse pagamento foi efetivamente efetuado, apenas se aplica aos valores ali em causa e não relativamente aos restantes que deverão considerar-se núcleos autónomos para efeitos de prescrição.
54 - Mesmo sem ser feita prova do pagamento, mas até admitindo que tenham sido pagos os salários enquanto o trabalhador esteve de baixa, até janeiro de 2020, já estaria prescrito o direito da autora quanto a estes valores, que seriam os únicos que, à cautela, ainda se admitiriam como tendo sido pagos, ainda que não se saiba qual o valor efetivo desse pagamento, nomeadamente para efeitos de condenação do Réu nesse pagamento, devendo a questão da prescrição ser apreciada por parte deste Venerando Tribunal.
55 - No que concerne à alegada existência do direito de sub-rogação da autora, a sentença conclui que estão verificados os pressupostos do direito de sub-rogação por parte da autora.
56 – Como referido, para que a Autora obtivesse êxito com a presente ação, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 17.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, tinha que alegar e provar como pressupostos do direito de sub-rogação legal, para além de ter que a exercer dentro do prazo de 3 anos a contar desse cumprimento, em concreto a existência de um contrato de seguro ao abrigo do qual a Autora tem que pagar ao lesado a indemnização devida pelo acidente de trabalho; ter efetivamente realizado o pagamento; e a existência de um responsável pelos factos que originaram o acidente de trabalho.
57 - Não se pôs em causa que a A. tenha celebrado um contrato de seguro com a entidade empregadora do sinistrado, mediante o qual foi transferida a responsabilidade por acidentes de trabalho para a Autora e do qual resulta obrigação de pagar a indemnização devida pelo acidente de trabalho do trabalhador em causa, nem que o acidente em causa tenha sido caracterizado como acidente de trabalho.
58 – No que concerne à verificação do segundo pressuposto da sub-rogação – ter a autora efetivamente realizado o pagamento – considera-se, como dito acima, que não foi feita prova e, por isso, está a sentença errada quando diz que resultou efetivamente demonstrado que a autora realizou o pagamento da indemnização devida em consequência do acidente de trabalho, e está a sentença errada, aqui no que ao direito concerne, quando considera que consequentemente está verificado o segundo pressuposto da sub-rogação, bem como, de seguida, o terceiro, concluindo que se mostram verificados todos os pressupostos ínsitos ao funcionamento da sub-rogação da seguradora, nos termos do disposto no artigo 17.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, considerando, por isso, procedente o pedido da autora no pagamento da quantia de € 15.373,67, acrescida de juros.
59 – Para que opere o segundo pressuposto da sub-rogação, o pagamento carece de ser demonstrado como tendo sido efetivamente efetuado, e não foi. Nos termos legais, a autora só fica sub-rogada no pagamento que provar ter efetuado, o que não fez. Entendemos, assim, que a autora tinha que demonstrar que efetivamente efetuou o pagamento, não bastando alegar que o fez, e a prova que procurou produzir não foi suficiente para que se possam dar como provados os pontos 25) 26) 28) 29) 30 e 31) da matéria de facto provada, correspondente aos artigos 42º a 49º da PI, e nessa medida não está verificado o segundo pressuposto da sub-rogação.
60 - Assim, para que haja sub-rogação teriam que estar cumulativamente verificados os 3 pressupostos da mesma, já referidos, acrescido do exercício desse direito no prazo de 3 anos, pelo que nem sequer se torna necessário verificar a responsabilidade do réu pelo acidente, uma vez que sem a verificação do segundo pressuposto falece o direito de sub-rogação por parte da autora.
61 - Como tal, não poderá a ação ser considerada procedente, porque não foi provada no que aos pagamentos concerne, não se podendo extrair as consequências de direito relativas à sub-rogação, entendendo-se que não foi bem aplicado o artigo 17.º, n.º 1 e 4, do DL n.º 98/2009, de 04 de setembro, inexistindo para autora o direito de vir pedir a condenação do réu no montante peticionado nos autos, considerando-se para o efeito verificados os pressupostos da sub-rogação legal.»
A autora apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
i) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
ii) da obrigação de o réu reembolsar a autora dos montantes despendidos;
iii) do decurso do prazo de prescrição.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto

2.1.1. Factos considerados provados em 1ª instância:
1) Em 01/10/2020, foi concretizada a inscrição da fusão, na modalidade de fusão por incorporação, das da (…), Companhia de Seguros, S.A., pessoa coletiva n.º (…) e (…) Vida, Companhia de Seguros, S.A., pessoa coletiva n.º (…) na Seguradoras (…), S.A..
2) Em 02/10/2020, a (…) Unidas, S.A. alterou a sua denominação social para (…) Seguros, S.A..
3) A Autora manteve o seu n.º de pessoa colectiva (…), mas alterou a sua denominação social.
4) A Autora exerce a atividade de Seguros, para a qual se encontra devidamente autorizada.
5) No exercício da sua actividade, a ora Autora celebrou com a (…) – Comércio e Reparação Automóvel, S.A., um contrato de seguro de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem titulado pela apólice (…).
6) Através do referido contrato, a Autora assumiu a responsabilidade da tomadora do seguro pelos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho em relação às pessoas seguras, incluindo o trabalhador (…).
7) No dia 03/07/2019, pelas 13h07, na E.N. 252, aos … km, no concelho de Setúbal, na freguesia de Palmela ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes:
• O motociclo de matrícula (…) conduzido pelo sinistrado;
• O veículo de matrícula (…), conduzido pelo Réu.
8) O local onde se deu o acidente, configura um cruzamento formado pela EN 252, a via de acesso ao Parque Industrial das (…) e a via de acesso à localidade (…).
9) Na EN 252, a faixa de rodagem comporta duas vias de trânsito, estando afecto um sentido de circulação a cada via de trânsito, delimitadas por uma linha longitudinal descontínua.
10) Naquele local da EN 252, a faixa de rodagem mede 6,70m e o limite de velocidade é de 50 km/h.
11) No momento do acidente, o piso encontrava-se seco, em normal estado de conservação, na medida em que está devidamente asfaltado, é regular e não tem buracos.
12) Nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas, o condutor do motociclo (…) circulava no sentido Pinhal Novo-Palmela, pela via de circulação da direita, atento o seu sentido de marcha.
13) O veículo (…) circulava no sentido Palmela-Pinhal Novo.
14) Ao aproximar-se do cruzamento, o condutor do veículo (…) assinalou a sua intenção de mudança de direcção à esquerda através do accionamento do sinal luminoso respectivo e imobilizou-se, tendo verificado o trânsito que circulava no sentido contrário.
15) Não obstante o motociclo (…) seguir no sentido oposto e ter sido visualizado pelo o condutor do veiculo (…), este decidiu efectuar a referida manobra, tendo para o efeito invadido a faixa de circulação daquele.
16) Consequentemente, cortou a linha de marcha ao motociclo (…).
17) Cujo condutor, perante a inesperada invasão da sua via de circulação, nada conseguiu fazer para evitar o embate.
18) O que determinou o embate entre a parte lateral direita do veículo (…) e a parte frontal do motociclo (…).
19) Na sequência do embate, o motociclo e o seu condutor foram projectados para o lado direito, atento o seu sentido de marcha.
20) Sendo que o condutor do motociclo (…) passou por cima do veiculo (…) e caiu prostrado na faixa de rodagem.
21) Tendo sofrido várias lesões corporais, nomeadamente, fractura com avulsão do planalto tibial externo à direita, fractura de dente incisivo superior e fractura do 5º dedo da mão esquerda.
22) O condutor do motociclo (…) realizava, no momento do acidente, o trajeto habitual da sua residência sita na Rua (…), n.º 18, em direção ao seu local de trabalho, o qual poderia ser desempenhado em qualquer instalação da entidade patronal, desde que nos distritos de Lisboa e Setúbal.
23) O sinistrado desempenhava a função de estafeta.
24) A acção emergente de acidente de trabalho correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo do Trabalho do Barreiro–J1, sob o n.º de processo 581/21.5T8STB, na qual por sentença proferida em 07/02/2022, foi fixada ao sinistrado uma Incapacidade Temporária Absoluta pelo período de 134 dias, uma Incapacidade Temporária parcial em 20% durante 339 dias, uma Incapacidade Temporária parcial em 10% durante 64 dias e Incapacidade Permanente Parcial em 7,50%, a partir do dia 22.01.2021.
25) Assim, em 18/03/2022, a Autora liquidou ao Sinistrado o montante de € 6.688,68, a título de capital de remição.
26) Ainda, liquidou a Autora a quantia total de € 1.123,02 referentes a despesas de transporte.
27) Acresce que a Autora procedeu ao acompanhamento médico do sinistrado na sequência das lesões decorrentes do acidente objeto dos autos.
28) Bem como veio a assegurar o pagamento das despesas hospitalares, consultas e despesas de farmácia para tratamento do Sinistrado que lhe foram sendo sucessivamente apresentadas, no valor global de € 1.971,83.
29) A Autora despendeu também a quantia de € 404,46 com custas judiciais e honorários, e ainda a quantia de € 181,68 com despesas de averiguação e de gestão.
30) Por outro lado, a Autora pagou ao condutor do motociclo (…) a quantia de € 4.650,40 por conta das perdas salariais ocorridas durante o período em que este esteve temporariamente impossibilitado de exercer a sua actividade profissional.
31) Por fim, a Autora liquidou a título de juros de mora o montante de € 353,60.
32) A Autora procedeu à interpelação do Réu para pagamento da quantia peticionada.
33) Todavia, até ao momento, o Réu não procedeu a qualquer pagamento.

2.1.2. Factos considerados não provados em 1.ª instância:
a) O motociclo surgiu a uma velocidade excessiva quanto o condutor do veiculo (…) já se encontrava a fazer a manobra de mudança de direcção.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

Vem posta em causa na apelação a decisão que, na procedência da ação, condenou o réu a pagar à autora a quantia de € 15.373,67, acrescida de juros de mora contabilizados desde a citação até integral pagamento, a título de reembolso de montantes pela mesma despendidos com o pagamento de indemnizações consideradas devidas em consequência de acidente de viação sofrido por sinistrado que se encontrava ao serviço da respetiva entidade patronal, a qual havia transferido para a autora a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho que pudessem advir aos trabalhadores ao seu serviço, tendo-se concluído que a produção do acidente ocorreu por culpa exclusiva do réu.
O recorrente põe em causa a decisão sobre a matéria de facto incluída na sentença recorrida, impugnando os factos julgados provados sob os pontos 25, 26, 28, 29, 30 e 31 de 2.1.1., defendendo que sejam excluídos da matéria assente e considerados não provados.
Sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, dispõe o artigo 662.º do Código de Processo Civil, no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Esta reapreciação da decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto deve, de forma a assegurar o duplo grau de jurisdição, ter a mesma amplitude que o julgamento efetuado na 1ª instância, o que importa a apreciação da prova produzida, com vista a permitir à Relação formar a sua própria convicção.
Os factos impugnados pelo apelante, julgados provados na decisão recorrida, têm a redação seguinte:
25) Assim, em 18/03/2022, a Autora liquidou ao Sinistrado o montante de € 6.688,68, a título de capital de remição;
26) Ainda, liquidou a Autora a quantia total de € 1.123,02 referentes a despesas de transporte;
28) Bem como veio a assegurar o pagamento das despesas hospitalares, consultas e despesas de farmácia para tratamento do Sinistrado que lhe foram sendo sucessivamente apresentadas, no valor global de € 1.971,83;
29) A Autora despendeu também a quantia de € 404,46 com custas judiciais e honorários, e ainda a quantia de € 181,68 com despesas de averiguação e de gestão;
30) Por outro lado, a Autora pagou ao condutor do motociclo (…) a quantia de € 4.650,40 por conta das perdas salariais ocorridas durante o período em que este temporariamente impossibilitado de exercer a sua actividade profissional;
31) Por fim, a Autora liquidou a título de juros de mora o montante de € 353,60.
O apelante sustenta que os elementos probatórios tidos em conta pela 1ª instância, nos termos consignados na fundamentação da decisão de facto constante da sentença recorrida, não permitem considerar provados os pontos que impugna da factualidade considerada assente.
Cumpre reapreciar a decisão proferida pela 1ª instância, no que respeita aos pontos da matéria de facto impugnados pelo recorrente, com vista a apurar se, face à prova produzida, devem ser excluídos da factualidade julgada provada.
Porém, analisando a indicada factualidade, desde logo se verifica que as afirmações constantes dos pontos 26, 28, 29, 30 e 31 comportam imprecisões ou elementos conclusivos, o que impõe se averigue as consequências daí decorrentes, previamente à reapreciação da prova produzida.
No que respeita ao ponto 26 – com a redação: Ainda, liquidou a Autora a quantia total de € 1.123,02 referentes a despesas de transporte – e ao ponto 28 – com a redação: Bem como veio a assegurar o pagamento das despesas hospitalares, consultas e despesas de farmácia para tratamento do Sinistrado que lhe foram sendo sucessivamente apresentadas, no valor global de € 1.971,83 –, não configuram matéria de facto, antes se traduzindo em conclusões eventualmente baseadas em factos que extrapolam a respetiva redação, o que impede se verifique se os mesmos resultam ou não da prova produzida.
Não constando destes pontos os concretos pagamentos efetuados pela autora a título de despesas de transporte, despesas hospitalares, consultas e despesas de farmácia, desconhecendo-se que montantes foram tidos em conta nos valores globais indicados, a quem foram pagos e em que datas, não poderá ferir-se se a prova produzida permite considerar verificados tais pagamentos.
De igual modo, a afirmação constante do ponto 29 – com a redação: A Autora despendeu também a quantia de € 404,46 com custas judiciais e honorários, e ainda a quantia de € 181,68 com despesas de averiguação e de gestão – é constituída por elementos conclusivos, considerando que não são especificados os pagamentos efetuados a título de custas judiciais e a título de honorários, nem concretizadas as despesas a que se reporta a segunda quantia indicada, o que impede se verifique se a prova produzida permite considerar provados os pagamentos em causa.
Também o teor do ponto 30 – com a redação: Por outro lado, a Autora pagou ao condutor do motociclo IC a quantia de € 4.650,40 por conta das perdas salariais ocorridas durante o período em que este temporariamente impossibilitado de exercer a sua actividade profissional – é constituído por uma conclusão eventualmente baseada em factos que extrapolam a respetiva redação, dele não constando os concretos pagamentos a este título efetuados pela autora ao sinistrado, desconhecendo-se os montantes tidos em conta no valor global indicado e as datas dos respetivos pagamentos, o que impede se verifique se os mesmos resultam ou não da prova produzida.
O ponto 31 – com a redação: Por fim, a Autora liquidou a título de juros de mora o montante de € 353,60 –, por seu turno, também se mostra conclusivo, sendo constituído unicamente por um elemento de natureza jurídica, do qual se não extrai a quem foi efetuado o pagamento, em que data e com que fundamento, não permitindo aferir se o mesmo resulta ou não da prova produzida.
Nesta conformidade, considerando que os elementos constantes dos pontos 26, 28, 29, 30 e 31 não constituem matéria de facto, antes envolvendo uma apreciação sobre factos não elencados, assim assumindo natureza conclusiva, cumpre determinar a respetiva exclusão da factualidade provada, mostrando-se desnecessária a reapreciação dos meios de prova indicados para o efeito pelo recorrente.
Analisada a decisão recorrida, verifica-se que a procedência da ação, com a consequente condenação do réu a pagar à autora o montante peticionado, acrescido de juros de mora, se baseou, além do mais, no teor dos pontos 26, 28, 29, 30 e 31. Ora, a exclusão destes pontos da factualidade julgada provada tem como consequência necessária a revogação, pelo menos parcial, da decisão recorrida, e a absolvição do réu do pedido formulado, na parte relativa ao reembolso dos montantes consignados nos pontos 26, 28, 29, 30 e 31.
Aqui chegados, verificando que o teor dos pontos em apreciação foi alegado nos mesmos termos pela autora na petição inicial, conforme decorre dos artigos 43º – «(…) a Autora liquidou ao Sinistrado (…) € 1.123,02 referentes a despesas de transportes» –, 45.º – «Bem como veio a assegurar o pagamento das despesas hospitalares, consultas e despesas de farmácia para tratamento do sinistrado que lhe foram sendo sucessivamente apresentadas no valor global de € 1.971,83» –, 46.º – «A Autora despendeu também a quantia de € 404,46 com custas judiciais e honorários, e ainda a quantia de € 181,68 com despesas de averiguação e de gestão» –, 47.º – «Por outro lado, a Autora pagou ao condutor do motociclo (…) a quantia de € 4.650,40 por conta das perdas salariais ocorridas durante o período em que este temporariamente impossibilitado de exercer a sua atividade profissional» – e 48.º – «Tendo liquidado ainda a título de juros de mora o montante de € 353,60» –, cumpre apreciar se a 1ª instância, findos os articulados, deveria ter convidado a demandante a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria alegada, conforme dispõe o artigo 590.º, n.º 4, do CPC.
Resulta do estatuído nos n.ºs 2, alínea b) e 4, do mencionado preceito, que, findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, incumbindo-lhe convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
O convite ao aperfeiçoamento, conforme explica José Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pág. 144), “constitui um remédio para casos em que os factos alegados por autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundam as exceções) são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados. No primeiro caso, está em causa a falta de elementos de facto necessários à completude da causa de pedir ou duma exceção, por não terem sido alegados todos os que permitem a subsunção na previsão da norma jurídica expressa ou implicitamente invocada. No segundo caso, estão em causa afirmações feitas, relativamente a alguns desses elementos de facto, de modo conclusivo (abstrato ou jurídico) ou equívoco”.
Decorre da análise supra efetuada que o caso presente se integra na previsão deste preceito, dado que a matéria alegada pela autora nos artigos 43º (na parte relativa às despesas de transportes), 45º, 46º, 47º e 48º da petição inicial carece de concretização factual.
Verificando que os factos alegados pela autora se mostram insuficientes ou não suficientemente concretizados, à luz do direito ao reembolso invocado na ação, deveria o tribunal recorrido ter convidado ao aperfeiçoamento do articulado, o que não fez.
Não tendo o tribunal recorrido convidado a autora a suprir as aludidas insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, incumpriu o dever que lhe é imposto pelo artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b) e 4, integrado no dever de gestão processual plasmado no artigo 6.º, ambos do CPC.
No caso presente, em que a exclusão da factualidade assente dos pontos 26, 28, 29, 30 e 31, tidos em conta pela 1ª instância para a procedência da ação, conduz à improcedência, ainda que parcial, do pedido formulado pela autora, verifica-se que a falta de aperfeiçoamento das mencionadas deficiências da petição inicial tem como consequência a improcedência da pretensão deduzida; isto é, a falta de concretização factual detetada nos artigos 43º (na parte relativa às despesas de transportes), 45º, 46º, 47º e 48º da petição inicial impede a procedência do pedido de reembolso dos montantes neles indicados, pelo que tal improcedência tem como fundamento aquelas deficiências.
Assim sendo, perante a omissão do despacho de aperfeiçoamento, não tendo sido facultada à autora a possibilidade de suprir as deficiências da petição inicial – através de convite à concretização da factualidade alegada de forma conclusiva nos artigos 43º (na parte relativa às despesas de transportes), 45º, 46º, 47º e 48º –, não pode esta Relação apreciar as consequências decorrentes da exclusão dos pontos 26, 28, 29, 30 e 31 da factualidade assente, determinada com fundamento naquelas deficiências, sob pena de incorrer no vício de excesso de pronúncia previsto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, do CPC.
Estando em causa a omissão do convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, em violação do dever imposto pelo artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b) e 4, do CPC, previamente à apreciação do mérito da causa, impõe-se determinar a prolação do aludido despacho.
Reportando-se ao conhecimento pelo juiz de questões de que não podia tomar conhecimento [excesso de pronúncia – artigo 615.º, n.º 1, alínea d)], explicam João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, volume I, Lisboa, AAFDL Editora, 2022, pág. 633) o seguinte: «(…) a não possibilidade do conhecimento de uma questão pode ser absoluta, se o tribunal não pode conhecer, em circunstância alguma, dessa questão (como sucede quando a questão não tiver sido levantada pelas partes e não for de conhecimento oficioso), ou relativa, se o tribunal não pode conhecer, em certas condições, dessa questão, mas poderia conhecê-la em outras circunstâncias (por exemplo: (…) o tribunal não pode proferir uma decisão-surpresa (artigo 3.º, n.º 3), mas pode decidir com base num fundamento não alegado pelas partes depois de as ouvir previamente)».
Definindo os poderes da Relação em sede de modificabilidade da matéria de facto, o artigo 662.º do CPC dispõe, na alínea c) do seu n.º 2, que este Tribunal deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância, designadamente quando, não constando do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados.
Com relevo para a questão em apreciação, afirma Miguel Teixeira de Sousa [Controlo pela Relação da omissão do dever de cooperação da 1.ª instância, Blog do IPPC, in: https://blogippc.blogspot.com/2014/06/controlo-pela-relacao-da-omissao-do.html] o seguinte: «(…) nada impede que a Relação anule oficiosamente a decisão da 1ª instância se considerar que dela faltam factos que poderiam ter sido alegados pela parte se a 1ª instância tivesse cumprido o seu dever de convite ao aperfeiçoamento do articulado. A circunstância de a nulidade decorrente da omissão do dever de cooperação não ser de conhecimento oficioso não impede a anulação oficiosa da decisão que é proferida após essa omissão.»
Perante a omissão do convite ao aperfeiçoamento da petição inicial e a consequente insuficiência detetada na matéria de facto, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, cumpre anular a decisão proferida pela 1ª instância, de forma a serem supridas as deficiências detetadas nos pontos 26, 28, 29, 30 e 31 de 2.1.1., após convite à concretização factual da matéria alegada nos artigos 43º (na parte relativa às despesas de transportes), 45º, 46º, 47º e 48º da petição inicial, nos termos supra expostos.
Como tal, mostra-se prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.

Em conclusão: (…)


3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em anular a decisão proferida pela 1.ª instância, determinando a exclusão dos pontos 26, 28, 29, 30 e 31 de 2.1.1. e ordenando a repetição da audiência final quanto à matéria de facto a que respeitam (podendo incidir sobre outros pontos a fim de evitar contradições), após despacho a convidar a autora ao aperfeiçoamento da petição inicial, em prazo a fixar, visando a concretização factual do alegado nos respetivos artigos 43º (na parte relativa às despesas de transportes), 45º, 46º, 47º e 48º.
Custas pela parte vencida a final.
Notifique.
Évora, 02-10-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Maria Domingas Alves Simões (1ª Adjunta)
Mário João Canelas Brás (2º Adjunto)