Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2201/19.9GBABF.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
CAUSAS DE ATIPICIDADE PENAL
Data do Acordão: 02/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Face à factualidade descrita nas acusações, não resulta que o bem-estar físico do ora recorrente tenha sido afetado de forma minimamente apreciável, e, considerando o contexto da ocorrência dos factos, não pode deixar de reputar-se a conduta do arguido insignificante do ponto de vista da afetação da integridade física do ora recorrente, enquanto bem jurídico tutelado pelo crime imputado.
Isto é, ao preenchimento aparente do tipo não corresponde, no caso sub judice, a concretização do juízo de ilicitude material subjacente à sua formulação, pelo que se revela atípica a conduta do arguido.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Albufeira, Juiz 1, no âmbito dos autos com o NUIPC nº2201/19.9GBABF foi, em 3 de novembro de 2021, proferida a seguinte decisão (transcrição):
“Saneamento do processo:
O tribunal é absolutamente competente, o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal quanto ao crime de ofensa à integridade física e o assistente de aderir à acusação do Ministério Publico.
* 1. Questões prévias:
1.1. Da falta de legitimidade do assistente para deduzir acusação particular relativamente ao crime de difamação:
O assistente LA veio deduzir acusação particular contra LE pela pratica de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1 do CP.
A factualidade descrita na acusação particular imputada ao arguido resume-se em sumula a que no dia 11/9/2019, cerca das 15h30, junto à piscina do condomínio do edifício (…), em (…), o arguido LE dirigiu-se à esposa do assistente, na presença de ambos, apodando-a de “puta”.
Dispõe o artigo 180º, n.º 1 do C.P.: “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”.
Difamar é desacreditar alguém, é diminuir a sua reputação, é rebaixar as suas qualidades pessoais, é fazer alterar negativamente o conceito público em que alguém é tido (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/04/2005, em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ com o nº 0416341).
A difamação consiste assim na imputação a alguém, levada ao conhecimento de terceiros e na ausência do visado, de factos ou condutas que encerrem em si mesmos uma reprovação ético-social, sendo ofensivos da honra e consideração do visado, bem jurídico que implica o reconhecimento a todos da pretensão de respeito que decorre da dignidade da pessoa humana e da pretensão ao reconhecimento da dignidade moral da pessoa por parte dos outros.
O bem jurídico assim delineado apresenta um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação ou consideração) fundidos numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa por parte dos outros. Tal bem jurídico tem consagração constitucional, como direito fundamental, nos termos da norma contida no n º 1, do artigo 26 º da Constituição da República Portuguesa.
Elementos objetivos: o facto típico:
Os elementos do tipo objetivo da difamação são os seguintes: percebido como a valoração de um dado ou ideia); crime de difamação. Se tais factos ou juízos são imputados diretamente ao visado, está-se perante um crime de injúria; não estando o visado presente quando da sua prolação, estar-se-á perante um crime de difamação.
Ora, da factualidade imputada resulta evidente que a expressão foi efetuada diretamente à esposa do assistente, na presença da mesma, bem como do próprio assistente. Assim, a ter ocorrido qualquer ilícito criminal, o mesmo seria subsumível ao crime de injuria, previsto no art. 181.º do CP e nunca do crime imputado pelo assistente ao arguido dada a presença física quer deste, quer da sua esposa quando o arguido proferiu as alegadas expressões, faltando assim elementos objetivos do ilícito criminal de difamação.
Acresce que os alegados insultos se dirigiram apenas e tão só à esposa de LA, pelo que só esta tinha legitimidade para exercer o direito de queixa (o que, no caso em apreço, não ocorreu no prazo estipulado para tal – art. 115.º do CP), não podendo o assistente, na qualidade de marido da ofendida, apresentar queixa em nome daquela ou mesmo sentir-se visado com o insulto dirigido à sua esposa.
Cumpre, pois, declarar o assistente parte ilegítima para promover o julgamento do arguido pelo crime supra referidos.
Pelo exposto, julgo o assistente parte ilegítima para promover o processo penal relativamente ao crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º do CP.
*** 2. Acusação manifestamente infundada:
O Ministério Publico e o assistente vieram deduzir acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal.
Dispõe o artigo 283º, n.º 3, al. b), do Cód. de Processo Penal que «a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de coação.
Por sua vez, o artigo 311º, n.º 2, al. a), do Cód. de Processo Penal, o juiz deve rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada. A acusação é manifestamente infundada quando não contenha a narração dos factos (alínea b), do n.º 3 do artigo 311º) e se os factos não constituírem crime (alínea d) do mesmo preceito).
Assim, acusação manifestamente infundada é aquela que em face dos seus próprios termos não tem a potencialidade de vir a ser julgada procedente, nomeadamente é aquela que, seja por ausência de factos que a suportem, resultaria inevitavelmente em absolvição.
Na acusação publica a fls. 241 e particular constante a fls. 261 a 262, são descritos factos objetivos e subjetivos que eventualmente seriam subsumíveis ao tipo criminal indicado que, no entanto, da sua leitura atenta verifica-se que se está de facto perante uma conduta atípica.
Efetivamente, descreve a acusação que o arguido LE ao ver LA deitado numa espreguiçadeira a apanhar sol junto ao chuveiro, dirigiu-se ao chuveiro, acionou-o e começou a atirar água contra o corpo de LA, tendo persistido nessa conduta mesmo apos aquele ter demonstrado que estava a ser molhado.
É a seguinte a redação do art. 143.º do Código Penal, na parte que interessa: «Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.»
O bem jurídico protegido com a incriminação legal é a integridade física e a saúde das pessoas, não podendo ser insignificantes, para que atinjam dignidade penal e sejam subsumíveis à previsão deste artigo. De acordo com a construção doutrinária quanto ao tipo legal em questão (vide Comentário Conimbricense ao Código Penal, Coimbra Editora, 1999, anotação de Paula Ribeiro Faria ao artigo 143.º, Tomo I, pag. 204) estamos perante um crime material e de dano, visto abranger um determinado resultado que é a lesão do corpo ou da saúde de outrem, fazendo-se a imputação objetiva deste resultado à conduta ou à omissão do agente. Trata-se, por isso, de um ilícito de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado descrito (a gravidade dos efeitos ou a sua duração serão apenas valorados no âmbito da determinação da medida da pena). Atento o preceito legal em causa, pode-se discernir ao nível do tipo objetivo do ilícito, duas modalidades de realização do tipo, ou ofensas no corpo, ou ofensas na saúde, podendo muitas vezes haver coincidência entre estas duas, mas não necessariamente. Contudo, não é condição de relevância típica a provocação de dor ou de mal-estar corporal, incapacidade da vítima para o trabalho ou marca. Quanto ao elemento subjetivo do tipo, o crime em apreço é um crime doloso, que se pode manifestar em qualquer das suas modalidades (art. 14.º do Código Penal), sendo que o dolo se refere às ofensas no corpo ou na saúde do ofendido. A motivação do agente é irrelevante sob este ponto de vista, embora possa ser tida em consideração para efeitos de determinação da medida da pena.
É suficiente para o preenchimento do elemento objetivo do tipo previsto no artigo 143º do Código Penal que a integridade física seja atingida em resultado da conduta do arguido, sem que a lei penal faça depender a verificação do resultado típico de formas determinadas da lesão, pelo que se entende que o tipo legal pode preencher-se independentemente da dor ou sofrimento causados, como sucederá quando a vítima não se encontra em condições de sentir qualquer dor ou quando a ofensa é completamente indolor (como sucede com o corte de cabelo ou ser molhado com água).
No entanto, entendendo-se por lesão do corpo “todo o mau trato através do qual o agente (passivo) é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”, ao preenchimento aparente do tipo não corresponde, no caso sub judice, a concretização do juízo de ilicitude material subjacente à sua formulação, pelo que se revela atípica a conduta do arguido.
Tal como supra se referiu, não vemos que tais factos assumam a relevância jurídico-penal atribuída, já que tal conduta não pode deixar de reputar-se como insignificante, do ponto de vista da afetação da integridade física, enquanto bem jurídico tutelado pelo crime em análise, ao que acresce que não assumiu particular gravidade, sendo mínimo o desvalor objetivo do facto ou do resultado e também por ser mínimo o desvalor subjetivo da ação, razão pela qual se convocam aqui as chamadas causas de atipicidade ou de exclusão da tipicidade, não se olvidando as concretas circunstâncias em que os factos ocorreram, que se quedaram por uma simples atuação jocosa desagradável e moralmente censurável e não de circunstâncias de agressão, ainda que possa tal conduta ser censurável, é de afastar contudo a ocorrência de um ilícito criminal tipo, ate porquanto a intervenção penal deverá ser sempre o último recurso na proteção dos bens jurídicos. Efetivamente, o foro criminal é o meio correto para reagir aos mais graves atentados aos bens jurídicos tidos como essenciais e consagrados constitucionalmente como tal, e é esta a sua única função.
Com efeito, a gravidade que a reação penal importa para os que a ela são sujeitos não se justifica, de modo algum, quando a lei prevê soluções, menos gravosas e adequadas, para solucionar problemas da “vida jurídica”.
O que vai dito reconduz-se à aplicação prática dos princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade e da proibição do excesso, e bem assim dos supra apontados princípios “da insignificância, a tolerância social, alguns casos de adequação social, certos casos de consentimento não plenamente válido ou a inexigibilidade penal geral”, todos princípios basilares da aplicação do direito penal (os quais toda a aplicação prática do direito penal tem, antes de mais, que respeitar, e pela aplicação dos quais se deve pautar), que se referem à estrita limitação da aplicação do sistema penal às violações mais gravosas e atentatórias de bens jurídicos constitucionalmente garantidos como essenciais na sociedade.
Em face do supra exposto, concluímos que a acusação publica, assim como a acusação particular deduzida é manifestamente infundada por falta de alegação de factos subsumíveis a um tipo legal e como tal rejeita-se a mesma nos termos do art. 311º n.º 2 al. a) e 3, alínea a) do CPP.
Face à rejeição da acusação, insubsistente é o pedido de indemnização civil formulado por impossibilidade superveniente da lide - artigo 277° al. e) do CPC.
A rejeição da acusação não implica o arquivamento dos autos, mas a remessa dos autos para inquérito, para que o Ministério Público tiver por conveniente.
Pelo exposto, rejeito acusação.
Notifique e, após trânsito, remeta os autos aos Serviços do Ministério Público.”
*
Inconformado com a decisão, o assistente LA interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
a) O despacho recorrido rejeitou acusações que cumprem com os requisitos a que se referem os arts. 283.º e 284.º do CPP; e
b) Verificou os factos, tendo concluído, sem julgamento pela atipicidade da conduta do arguido;
c) Contudo, em manifesta contradição com afirmações produzidas no despacho, relativas ao preenchimento do tipo de crime em face das condutas descritas nas acusações e em face do crime pelo qual o arguido foi acusado;
d) Na verdade, o despacho refere que o tipo de crime exige “suficiência”, “dor”, e “sofrimento”, como se fossem essas os únicos requisitos de preenchimento do tipo de crime!; para, mais à frente,
e) Contradizendo-se, ao referir que, afinal, não são estes os únicos requisitos para o preenchimento do tipo de crime, sendo suficiente para o preenchimento do elemento objetivo do tipo previsto no artigo 143º do Código Penal que a integridade física seja atingida em resultado da conduta do arguido, sem que a lei penal faça depender a verificação do resultado típico de formas determinadas da lesão, pelo que se entende que o tipo legal pode preencher-se independentemente da dor ou sofrimento causados, como sucederá quando a vítima não se encontra em condições de sentir qualquer dor ou quando a ofensa é completamente indolor ( como sucede com o corte de cabelo ou ser molhado com água);
f) Contudo, anota-se que, em face do despacho, que o dolo por parte do arguido, já se encontra verificado e á saciedade.
g) Por outro lado, o despacho recorrido, pretende alterar o enquadramento fáctico-criminal da conduta do arguido deduzido pelo MP; e,
h) Na óptica do despacho, entende dever existir intervenção mínima, da proporcionalidade e da proibição do excesso;
i) É manifesto que o despacho a quo tomou conhecimento dos factos, analisou os factos, enquadrou os factos em normativos jurídico-penais, verificou silogisticamente os pressupostos, requisitos e estatuições das normas; e decidiu, tudo isto sem julgamento;
j) Por outro lado, rejeitar liminarmente a acusação quando não se trata de um caso manifesto de rejeição, mas sim – como o despacho faz - de interpretações sobre factos e a sua subsunção às normas jurídicas;
k) O que significa que o juiz de julgamento se substitui ao MP e decide não prosseguir com o processo, como se o MP decidisse «não acusar»;
l) Ora, o MP acusou e o Assistente também;
m) Será consabido do Tribunal a quo que a estrutura acusatória exige, em cumprimento de enunciados constitucionais, diferenciação entre o órgão que investiga e (ou) acusa e o órgão que julga;
n) O que o Tribunal a quo, respeitosamente, incumpre;
o) O despacho recorrido ao identificar o verbo “atirar” – referindo-se à conduta do Arguido - não podia deixar de verificar que, no léxico comum, o verbo «atirar», através do qual o Arguido caracterizou a sua conduta, contém sempre a acção forte, vigorosa, dirigida à deslocação de uma pessoa ou objecto;
p) A aferição da ilicitude do facto deve ser feita em função da esfera de protecção da norma incriminadora e dos limites da moldura penal, nos quais o legislador já reflecte a natureza e densidade do bem jurídico protegido, todas as formas de ataque ou violação ao mesmo e ainda as finalidades preventivas da punição penal. O que o despacho incumpre;
q) Viola, ainda, o despacho recorrido, o art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, no sentido de apenas permitir a rejeição da acusação quando seja manifesto, indubitável, que os factos não constituem crime, no fundo, quando houve lapso manifesto ao acusar;
r) O que não se verifica, dado que os factos descritos nas acusações constituem, manifestamente crime, pelos quais o Arguido foi devidamente acusado. Factos esses que o Tribunal a quo desvalorizou;
s) A acusação do MP assim como a acusação particular deduzida não podiam ser rejeitadas por serem manifestamente infundadas por falta de alegação de factos subsumíveis a um tipo legal e como tal rejeita-se a mesma nos termos do art. 311 º n.º 2 al. a) e 3, alínea a) do CPP;
t) Por outro lado, apela ainda o despacho recorrido a pretensos enunciados de conveniência, a qual é contrária ao enunciado legal a que se refere o disposto do n.º 1 do art. 219.º da CRP e à concretização que a lei penal confere, nos arts. 262.º e 283.º ambos do CPP.
Pelo exposto, o despacho proferido encontra-se viciado de ilegalidade, sendo nulo, uma vez que nos termos do art. 379.º, n.º 1 al. c) do CPP, o Tribunal a quo deixou de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, remetendo o arguido para jugamento e conheceu de questões de que só em julgamento podia tomar conhecimento, violando, ainda, enunciados constitucionais, em total desrespeito pela função do MP e do Assistente.
Requer-se o provimento do recurso e, em consequência, o início do julgamento, nos termos do art. 312.º do CPP, tal como consta das acusações e, bem assim, quanto ao pedido de indemnização cível.
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O recurso foi admitido.
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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto alegando que “ (…) o despacho recorrido se deverá manter quanto à decisão de considerar a acusação pública manifestamente infundada e deverá improceder o recurso interposto pelo assistente” e formulando as seguintes conclusões:
1.º O regime de nulidades do artigo 379.º do Código de Processo Penal é exclusivo da sentença, não aplicável ao despacho recorrido.
2.º O artigo 311.º não permite a rejeição por manifesta insuficiência nos casos em que, apesar da narração dos factos que integram o crime, possa vir a concluir-se em julgamento pela falta de dignidade penal destes.
3.º O crime de ofensa à integridade física p. p. pelo artigo 143.º é um crime de resultado,
4.º A descrição do resultado proveniente do impacto da água no corpo do ofendido não foi feita na acusação pública, razão pela qual é acertada a decisão de rejeitar por falta de factos, para o efeito do previsto no artigo 311.º, n.º 2 a) do Código de Processo Penal.
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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer nos seguintes termos:
”Nada obsta ao conhecimento do recurso, interposto tempestivamente por quem tem legitimidade e interesse em agir, sendo de manter o regime e efeito que lhe foi atribuído.
É entendimento pacífico da nossa jurisprudência que o objecto e o âmbito do recurso se afere e delimita pelas conclusões da respectiva motivação, reportando-se às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, isto é, as concretas controvérsias centrais a dirimir, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso (entre outros, Acs. do STJ de 17-9-97, Col. Jur., Acs. STJ, V, 3, 173 e de 1-11-01, Proc. n.º 3408/00 - 5.ª secção).
I – O assistente LA interpôs recurso do douto despacho proferido a 3-11-2021 pelo Juiz do Juízo Local Criminal de Albufeira – Juiz 1 no qual decidiu:
- “…que a acusação publica, assim como a acusação particular deduzida é manifestamente infundada por falta de alegação de factos subsumíveis a um tipo legal e como tal rejeita-se a mesma nos termos do art. 311º n.º 2 al. a) e 3, alínea a) do CPP.
Face à rejeição da acusação, insubsistente é o pedido de indemnização civil formulado por impossibilidade superveniente da lide - artigo 277° al. e) do CPC.
A rejeição da acusação não implica o arquivamento dos autos, mas a remessa dos autos para inquérito, para que o Ministério Público tiver por conveniente.
Pelo exposto, rejeito acusação.
Notifique e, após trânsito, remeta os autos aos Serviços do Ministério Público.”
O Ministério Público respondeu ao recurso defendendo a manutenção do decidido.
II – A Magistrada do Ministério Público, na sua peça processual, analisa correctamente as questões suscitadas no recurso, rebate as motivações do recorrente e defende justificadamente o decidido no douto despacho, pelo que nos louvamos na respectiva argumentação e dispensamos de outros comentários por manifesta desnecessidade.
III – Acresce ainda que o douto despacho recorrido, com o qual também se concorda inteiramente, mostra-se devidamente ponderado e fundamentado, sem quaisquer erros ou contradições, não padecendo de quaisquer vícios ou violação de quaisquer preceitos legais, não se vislumbrando também a existência de qualquer factualidade ou elemento que possa, ainda que de forma ténue, apontar para a sua revogação.
Nesta conformidade somos de parecer que o recurso interposto pelo assistente deve ser julgado improcedente, confirmando-se integralmente o despacho recorrido”.
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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada qualquer resposta ao Parecer.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.
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Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
No caso sub judice a questão suscitada pelo recorrente e que, ora, cumpre apreciar, traduz-se em saber se deve ser revogada a decisão recorrida, onde se decidiu ser “ (….) a acusação publica, assim como a acusação particular deduzida (…) manifestamente infundada por falta de alegação de factos subsumíveis a um tipo legal e como tal (…) “ rejeitadas nos termos do art. 311º n.º 2 al. a) e 3, alínea a) do CPP, sendo substituída por outra que receba as acusações, admita o pedido de indemnização civil e designe data para a audiência de julgamento, nos termos do disposto no artigo 312º do Código de Processo Penal.
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Apreciando e decidindo
Dispõe o artigo 311º nº 2 do CPP que «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respetivamente».
A acusação considera-se manifestamente infundada, segundo a norma do nº 3 do referido artigo:
a) quando não contenha a identificação do arguido;
b) quando não contenha a narração dos factos;
c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;
d) se os factos não constituírem crime».
Nos termos do artigo 32.º da Constituição Política da República Portuguesa:
1 - O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
(...)
5 - O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
Isto significa que a acusação e o julgamento têm que estar sedeados em órgãos diferentes: em ordem a conciliar o interesse público da perseguição criminal e as exigências da imparcialidade, isenção e objetividade do julgamento, a investigação e acusação, por um lado, e o julgamento, por outro, terão que caber a entidades diferentes. Quem acusa não julga e quem julga não pode acusar.
Deste mesmo princípio decorre outra consequência: a de o poder de cognoscibilidade do juiz estar delimitado pelo conteúdo da acusação, sendo esta que determina o objeto do processo. É o chamado princípio da vinculação temática.
"O princípio acusatório (n.º 5, 1.ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).
A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjetiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjetivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.
O princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame. Logicamente, o princípio acusatório impõe a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento (cf. Acs TC n.ºs 219/89 e 124/90)." () J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, p. 522).
Nos termos da alínea b), do nº3 do artigo 283º do CPP a acusação contem, sob pena de nulidade, os factos relevantes para a imputação do crime.
Desta forma, são lógicas as exigências de conteúdo constantes dos preceitos acima referidos, na medida em que são impostas pela evidente premência, naquele contexto, de demarcar os factos concretos suscetíveis de integrar o ilícito de cuja prática está o arguido acusado.
“… regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos: - um, inerente ao objetivo imediato (….): a comprovação judicial da pretensa indiciação (que, para que se possa demarcar o âmbito do objeto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados); - e, outro, implícito a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objeto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objeto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a esta a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.” (Ac. RL de 19/10/2006, Rec. 7143.06, 9ª Secção).
Ora, a acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na al. d) do nº3 do artº 311º do CPP, quando resultar evidente que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não preenchem qualquer tipo legal de crime.
O conceito de acusação «manifestamente infundada», assente na atipicidade da conduta imputada, implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate.
Todavia, a alínea d) do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório; o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, ob cit, pág. 790: “O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objetivos e subjetivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante.”
E, a propósito da articulação do n.º 3, do art.º 311º com a nulidade prevista no n.º 3, do art.º 283º, escreve Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, Verbo, 2000, págs. 207 e 208, no que se refere à al. b), deste último normativo:
“Se não há factos objeto da acusação, não pode haver processo, a relação é inexistente, não pode manter-se o processo e, por isso, o juiz não deve receber a acusação. A narração defeituosa, mas suprível, constitui nulidade sanável e, por isso, não é também causa de rejeição da acusação, se não for arguida.” - sublinhado nosso.
Assim, relativamente à alegada inexistência de factos no despacho de acusação dir-se-á que só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.
Com efeito, os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado.
De qualquer forma, conforme acima salientamos, para efeitos da rejeição da acusação, a lei não se basta com a simples falta de fundamento da mesma, exigindo-se que a falta de fundamento seja manifesta, o que quer dizer que teria de ser inequívoco, claro, indiscutível que a factualidade descrita não constitui crime.
Revertendo ao caso dos autos, vejamos:
Descrevem as acusações que o arguido LE ao ver LA deitado numa espreguiçadeira a apanhar sol junto ao chuveiro, dirigiu-se ao chuveiro, acionou-o e começou a atirar água contra o corpo de LA, tendo persistido nessa conduta mesmo após aquele ter demonstrado que estava a ser molhado.
Ora, “o art. 143º do C.Penal prevê um crime de dano e de resultado, pois a lei exige a verificação de um evento separado espácio-temporalmente da conduta do agente que se traduza na lesão efetiva do bem jurídico protegido (a integridade física), quer se trate de lesão efetiva no corpo ou na saúde de outrem. Ou seja, é suficiente para o preenchimento do elemento objetivo do tipo que a integridade física seja atingida em resultado da conduta do arguido, sem que a lei penal faça depender a verificação do resultado típico de formas determinadas da lesão, pelo que se entende que o tipo legal pode preencher-se independentemente da dor ou sofrimento causados, como sucederá quando a vítima não se encontra em condições de sentir qualquer dor ou quando a ofensa é completamente indolor como sucede com o corte de cabelo.
O caso concreto, porém, convoca, ao nível do preenchimento do tipo de ilícito, a temática das chamadas causas de atipicidade ou de exclusão da tipicidade, ou seja, na definição de Luzón Peña[1] (que seguimos de parte nesta matéria), circunstâncias que, por razões materiais, excluem a tipicidade da conduta apesar de esta formalmente encaixar-se na descrição legal, supondo, portanto, a negação do tipo.
Partindo da distinção de Luzón Peña entre causas de exclusão do tipo indiciário e causas de exclusão da tipicidade penal ou do ilícito penal, verificam-se estas últimas quando concorrem circunstâncias que operam como causas, tacitamente subentendidas no sentido dos tipos penais, de restrição e portanto de exclusão da tipicidade penal: embora haja uma perturbação ou lesão de bens jurídicos que em princípio é juridicamente relevante, no entanto não é grave o suficiente para considerar-se juridicopenalmente relevante; portanto, a conduta será de algum modo ilícita, mas não é penalmente típica e ilícita[2].
Assim entendidas, as causas de atipicidade penal são uma parte negativa de qualquer tipo penal, podendo considerar-se como tal, sem exaustividade, o princípio da insignificância, a tolerância social, alguns casos de adequação social, certos casos de consentimento não plenamente válido ou a inexigibilidade penal geral – cfr L.Peña, est. cit. p. 120[3].
De entre estas circunstâncias importa-nos no caso concreto o princípio da insignificância, que Luzón Peña diz ter sido concebido por Roxin como causa de atipicidade, e que também se designa como casos de ilícito bagatela.
Significa o princípio da insignificância que não podem ser penalmente típicas ações que apesar de, em princípio, encaixarem numa descrição típica e de conterem algum desvalor jurídico, ou seja, que não se encontrem justificadas e não sejam plenamente lícitas, apesar disso no caso concreto o seu grau de ilicitude é mínimo, insignificante: porque, de acordo com o seu caráter fragmentário, as condutas penalmente típicas só devem ser constituídas por ações que sejam gravemente antijurídicas, não por factos cuja gravidade seja insignificante. O princípio da insignificância, conclui L. Peña, significa uma restrição tácita dos tipos que, no entanto, só opera quando numa conduta típica que, em princípio, é suficientemente grave, podem encaixar-se casos concretos cujo desvalor seja insignificante, o que pode suceder por ser mínimo o desvalor objetivo do facto ou do resultado ou também por ser mínimo o desvalor subjetivo da ação.
Referindo-se especificamente aos crimes de ofensa à integridade física, que aqui nos interessam, diz Paula Ribeiro de Faria que a “ofensa ao corpo ou a lesão da saúde não podem ser insignificantes”, o que é imposto por critérios de natureza constitucional, como o princípio da dignidade do bem jurídico protegido e da necessidade da intervenção do direito penal …e pelo próprio teor literal do tipo, uma vez que não se poderá considerar existente uma ofensa ao corpo ou à saúde , onde a lesão seja insignificante ou irrelevante. – Cfr Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª ed. p. 309, onde refere, no mesmo sentido, outros elementos doutrinários e jurisprudenciais, máxime os acórdãos da Relação do Porto citados a fls 310.
Parece-nos que efetivamente assim é, aceitando-se a definição de Paula Ribeiro de Faria, segundo a qual por lesão do corpo entende-se “todo o mau trato através do qual o agente [passivo] é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante. (…) ”(cfr. Ac. TRE de 22 de setembro de 2015, acessível em www.dgsi.pt..; Diego-Manuel Luzón Peña, Causas de Atipicidade in AAVV, Problemas Fundamentais de Direito Penal. Homenagem a Claus Roxin, Universidade Lusíada Editora-2002, p. 111 e sgs; Paula Ribeiro Faria, Comentário Conimbricense do C.Penal I, 2ª edição, pgs. 305 e 309).
E, sufragando integralmente tal entendimento, concluímos não assistir razão ao recorrente.
Com efeito, como expresso no despacho sob recurso “não vemos que tais factos assumam a relevância jurídico-penal atribuída, já que tal conduta não pode deixar de reputar-se como insignificante, do ponto de vista da afetação da integridade física, enquanto bem jurídico tutelado pelo crime em análise, ao que acresce que não assumiu particular gravidade, sendo mínimo o desvalor objetivo do facto ou do resultado e também por ser mínimo o desvalor subjetivo da ação, razão pela qual se convocam aqui as chamadas causas de atipicidade ou de exclusão da tipicidade, não se olvidando as concretas circunstâncias em que os factos ocorreram, que se quedaram por uma simples atuação jocosa desagradável e moralmente censurável e não de circunstâncias de agressão, ainda que possa tal conduta ser censurável, é de afastar contudo a ocorrência de um ilícito criminal tipo, ate porquanto a intervenção penal deverá ser sempre o último recurso na proteção dos bens jurídicos. Efetivamente, o foro criminal é o meio correto para reagir aos mais graves atentados aos bens jurídicos tidos como essenciais e consagrados constitucionalmente como tal, e é esta a sua única função.”
Na verdade, face à factualidade descrita nas acusações, não resulta que o bem estar físico do ora recorrente tenha sido afetado de forma minimamente apreciável, e, considerando o contexto da ocorrência dos factos, não pode deixar de reputar-se a conduta do arguido insignificante do ponto de vista da afetação da integridade física do ora recorrente, enquanto bem jurídico tutelado pelo crime imputado.
Isto é, ao preenchimento aparente do tipo não corresponde, no caso sub judice, a concretização do juízo de ilicitude material subjacente à sua formulação, pelo que se revela atípica a conduta do arguido. (cfr. citado Ac. do TRE de 22 de setembro de 2015).
Termos em que, não merecendo censura a decisão recorrida, se julga improcedente o recurso.
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Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar improcedente o recurso interposto, mantendo a decisão recorrida.
- Condenar o recorrente em 3 UCs de taxa de justiça.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 22 de fevereiro de 2022
Laura Goulart Maurício
Maria Filomena Soares