Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
311/20.9GHSTC.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: CRIME DE INJÚRIA AGRAVADO
AGENTES DE AUTORIDADE
INEXISTÊNCIA DE DIREITO DE RESISTÊNCIA
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - O ordenamento jurídico criminal não poderá ficar indiferente ao facto uma pessoa apelidar dois agentes de autoridade em exercício de funções – a quem é devido respeito não só na sua dimensão pessoal, mas também ao nível funcional – de “cabrão” e de “preto do caralho”, uma vez que a atribuição dos citados epítetos, diretamente e de viva voz, não se inclui na categoria das condutas simplesmente desrespeitosas, descorteses, incorretas ou mal educadas.
II - Não tendo sido apurado qualquer contexto que pudesse ter legitimado a prolação das referidas palavras dirigidas aos ofendidos, as mesmas constituíram um atropelo injustificado do direito à honra e consideração e do direito ao bom-nome e reputação daqueles, pelo que a conduta sindicada, sendo penalmente relevante, deverá subsumir-se ao tipo de injúria agravada p. e p. pelos artigos 181.º e 184.º, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal.

III - É totalmente desadequada a convocação pelo recorrente do direito de resistência previsto no artigo 21º da CRP, pois que, considerando o contexto situacional em que os factos ocorreram e, bem assim, a referida previsão constitucional, nem os militares da GNR deram ao arguido qualquer ordem que ofendesse os seus direitos, liberdades e garantias nem o agrediram de qualquer modo, tendo-se limitado a mandá-lo parar a viatura que conduzia e a fiscalizá-lo no âmbito de uma fiscalização de trânsito.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Coletivo que correm termos no Juízo Local Criminal de …- Juiz…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 311/20.9GHSTC, foi o arguido AA, filho de BB e de CC, nascido a …-…-1947, natural de …, divorciado, tubista, residente na Rua de …, …, absolvido e condenado nos seguintes termos:

- Absolvido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal;

- Condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de injúria agravada, previstos e punidos 181.º e 184.º, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, nas penas de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 12,00 (doze euros), por cada um;

- Condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, que será acompanhada de um regime de prova, a elaborar pela DGRSP da respetiva área de residência;

- Condenado pelos crimes de injúria agravada na pena única de 145 (cento e quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 12,00 (doze euros), o que perfaz o total de € 1.740,00 (mil, setecentos e quarenta euros);

- Condenado no pagamento a DD da quantia de € 150,00 (cento e cinquenta euros) a título de danos não patrimoniais;

- Condenado no pagamento a EE da quantia de € 200,00 (duzentos euros), a título de danos não patrimoniais.

***

Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“i. As forças policiais devem ser rigorosas e competentes no cumprimento das suas missões;

ii. Não resultou provado que o arguido conduzisse sem fazer uso do cinto de segurança, motivo invocado pelos militares da GNR para a interpelação que fizeram;

iii. O arguido foi confrontado com a imputação por parte de três militares da GNR da prática de uma contraordenação estradal – não fazer uso do cinto de segurança – o que negou liminarmente, fazendo desenvolver em si um profundo sentimento de injustiça, classificando a abordagem como “perseguição”;

iv. O arguido, um homem de 75 anos de idade, com dificuldade em lidar com situações de stress, com o quarto ano de escolaridade, confrontado com uma acusação injusta e falsa, empurrou um militar da GNR e verbalizou a injustiça que sentiu - «Isto é uma perseguição… Vocês não me vão multar… Eu tenho tudo legal. A mim ninguém me vai multar. Se tivéssemos na Guiné já tinha tratado de vocês. Dá cá a merda dos documentos oh meu cabrão. Se fosse na Guiné já te tinha fodido oh preto do caralho.»;

v. O arguido agiu sob emoção violenta, resultante de lhe imputarem um comportamento que não tinha adotado, que lhe toldou e motivou a sua atuação;

vi. O tribunal a quo reconhece, em sede de fundamentação, que «a diferença física absolutamente manifesta entre o arguido e os três militares, não permite concluir que estes temessem fisicamente aquele»;

vii. Os próprios militares ficaram surpreendidos com a atitude do arguido, como bem se faz notar na sentença a quo – «[...] aliás, neste passo quer EE quer FF aludiram à circunstância de terem sido surpreendidos pela agressão perpetrada pelo arguido.».

viii. Não fora a evidente alteração emocional do arguido, nunca teria encetado qualquer comportamento físico atenta a evidente desproporcionalidade para com os militares da GNR;

ix. O comportamento físico do arguido mais não pode ser entendido do que sendo uma explosão de frustração e impotência face à “acusação” falsa que lhe era feita, agindo ao abrigo do direito de resistência consagrado no artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa;

x. Considerando a análise critica da prova feita na douta sentença e a sua fundamentação, não poderia ter sido dado como provado que: i)O arguido agiu da forma descrita com a intenção de ofender o corpo, a saúde, honra e bom nome profissional do senhor Militar da GNR EE, resultados que logrou alcançar. ii)O arguido agiu, deliberadamente, com intenção de atingir, fisicamente, o ofendido EE, bem como quis e conseguiu provocar no ofendido EE lesões e dores físicas, o que concretizou, não obstante saber que este era Militar da GNR, devidamente, fardado, que se encontrava no exercício das suas funções de Militar da GNR e de força pública e agiu por causa do exercício dessas funções;

xi. Da matéria de facto provada, para efeitos de imputação da prática dos crimes de injúria agravada, pelos quais o arguido foi condenado, teve-se como assente que no decurso de uma abordagem policial, imputando ao arguido a não utilização de cinto de segurança, que o arguido afiança ser falso, sentiu-se injustiçado e debateu-se, invocando que era mentira o que lhe diziam, que tinha tudo legal e que estava a ser perseguido;

xii. Para que se tivesse verificado, em função das afirmações feitas pelo arguido, um crime de injúria, necessário seria que pelo menos uma daquelas expressões consistisse numa imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, com um conteúdo ofensivo da honra ou consideração do visado, ou que as palavras dirigidas ao visado tivessem esse mesmo cariz ofensivo da honra ou da consideração, o que não sucede;

xiii. As expressões não contendem com o conteúdo ético da personalidade moral dos visados nem atingem valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal, não atingindo aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana – tão pouco sob um ponto de vista racial atento o contexto emotivo em que são proferidas;

xiv. No contexto em que foram proferidas, as palavras «preto do caralho» «cabrão» «fodido», não têm outro significado que não seja a mera verbalização das palavras obscenas, sendo absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação dos visados;

xv. As expressões proferidas pelo arguido e os comportamentos por si adotados, terão de ser analisados sob o prisma da intenção ou não de atingir e lesar a honra e o corpo dos senhores militares da GNR, ou se consubstanciam um mero ato de desabafo dentro do quadro de emoção exacerbada experienciada por aquele;

xvi. Não podia ser considerado provado que o arguido, Quis e conseguiu ofender a honra, a reputação e consideração social e profissional destes ofendidos, quer na sua vertente, estritamente, pessoal como na de Militares da GNR.

xvii. Impunha-se a absolvição do arguido relativamente aos crimes de injuria agravada e ofensa à integridade física qualificada que lhe vinham imputados e, bem assim quanto aos pedidos de indemnização deduzidos.

xviii. A sentença revidenda viola o disposto no artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa, e o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal;

xix. Enfermando dos vícios das alíneas b) e c) do artigo 410.º do mesmo diploma legal, revelando erro na apreciação de prova e, bem assim, contradição entre a fundamentação e a decisão condenatória alcançada;

xx. Sem prescindir, não resultando provado o alegado motivo da interpelação por parte dos militares da GNR, bem ao contrário, mostra-se contextualizado e motivado o comportamento do arguido, relevante em termos de culpa para a fixação das penas a aplicar;

xxi. Pecando o tribunal a quo por excesso nas penas fixadas ao arguido;

xxii. No que concerne os crimes de injuria agravada, em face da moldura penal aplicável e da factualidade, a multa a aplicar ao arguido não devia ir além de vinte dias por cada um;

xxiii. No que concerne o crime de ofensa à integridade física qualificada, pelos mesmos fundamentos, impunha-se a substituição de pena de prisão por pena de multa, a fixar pelo mínimo;

xxiv. Decidindo como fez, a sentença revidenda viola o disposto nos artigos 40.º, 45.º e 71.º, todos do Código Penal.”

Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que que absolva o arguido ou, subsidiariamente, que lhe aplique penas mais reduzidas.

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O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1 - Limitando-se a recorrente a dizer que considera incorrectamente julgada a factualidade dada como provada, por discordar da versão acolhida pelo Tribunal, para tal transcrevendo parcialmente o depoimento do ofendido, apreciando-o na generalidade, mas sem indicar as concretas provas e as concretas passagens em que funda a oposição e que impõem decisão diversa da recorrida, não cumpre minimamente as exigências legais de impugnação da matéria de facto, com base em erro de julgamento.

2 - Não sendo caso de convidar a recorrente a aperfeiçoar as conclusões formuladas – até por se estar perante deficiências substanciais da própria motivação – não tendo cumprido os requisitos do artigo 412.º, n.º 4 do C.P.P., deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto pretendida.

3 - Caso assim não se entenda – o que não se concede – sempre se dirá que, conforme jurisprudência dos tribunais superiores, a reapreciação da prova só determinará uma alteração da matéria de facto quando, do respectivo reexame, se concluir que as provas impõem uma decisão diversa; o que não é o caso presente.

4 - Examinando a motivação do recurso, afigura-se que descura por completo os parâmetros de apreciação dos invocados vícios do artigo 410.º, n.º 2 do C.P.P., omitindo que os mesmos devem cingir-se ao que a decisão contém e às máximas da experiência do conhecimento do homem de formação média, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos estranhos àquela para os fundamentar.

5 - Ao invés, para os demonstrar, o recorrente socorre-se da prova alegadamente produzida, não limitando a argumentação ao texto da própria sentença, tanto bastando para concluir pela improcedência na arguição do vício.

6 - Aliás, na sentença recorrida não se descortina qualquer oposição entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou entre a fundamentação e a decisão, antes se percebe que todos se harmonizam no seu devir histórico, sendo que a fundamentação justifica precisamente a decisão prolatada, inexistindo qualquer contradição insanável.

7 - Tal como não se vislumbra que o Tribunal a quo, na apreciação da prova, tenha incorrido em erro notório por ter afrontado qualquer princípio jurídico ou as regras da experiência comum, efectuando uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios que não escaparia ao homem comum, e de que um observador médio se aperceberia com facilidade, por ser patente e ostensivo.

8 - Face à factualidade dada como provada, com as suas condutas, o arguido e ora recorrente constituiu-se autor material de dois crimes de injúria agravados, p. e p. no artigo 181.º, n.º 1 e 184.º do C.P., por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l) do mesmo Código.

9. Igualmente, atendendo à matéria fáctica provada, não merece críticas a condenação do arguido, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, al. a), e n.º 2 do C.P., por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, al. l) do mesmo Código.

10. Não é invocável, no caso presente, o direito à resistência previsto no artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa, sendo manifesta a inexistência dos pressupostos que legitimam o seu exercício, pois a ilicitude das condutas do arguido justificou a intervenção da autoridade policial.

11 - De acordo com o disposto no artigo 40.º, n.º 1 do C.P., a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e, nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização, deverá ser encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa, nos termos do seu n.º 2.

12 - No caso subjudice, na graduação das penas, atendeu-se ao estabelecido no artigo 71.º do C.P., atentando-se, desde logo, ao mediano grau de ilicitude, no que concerne aos crimes de injúria agravados, e ao grau de ilicitude diminuto, no que respeita ao crime de ofensa à integridade física qualificada.

13 - De salientar que a culpa do arguido se mostra muito elevada, a merecer grande censura ética jurídica, sendo que agiu com dolo intenso, na sua forma mais grave, o dolo directo. Além de que, são elevadas as necessidades de prevenção geral, pela frequência com que, no nosso país, são praticados os crimes em causa.

14 - Face ao exposto – em especial, as considerações atinentes à intensidade da culpa e, sobretudo, à necessidade das penas –, afigura-se-nos que as penas concretamente aplicadas pelo Tribunal recorrido satisfazem as sentidas necessidades de afirmação dos bens jurídicos violados, não se revelando a questionada quantificação de todo desproporcionada e mostrando-se a peticionada redução das mesmas insustentável.

15 - Face às razões de prevenção geral e de defesa do ordenamento jurídico, que impedem a substituição da pena de prisão imposta pela pena de multa, não se mostram verificados os pressupostos de aplicação da pretendida pena de substituição, mostrando-se esta incapaz de realizar, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

16 - Pelo que, decidindo como decidiu, o Tribunal, subsumiu correctamente os factos ao direito e não violou qualquer preceito legal.”

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O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do recurso.

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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber:

A) Apreciar se a sentença recorrida enferma dos vícios consagrados no artigo 410º nº 2, alíneas b) e c) do CPP, concretamente, contradição insanável da fundamentação (al. b)) e erro notório na apreciação da prova (al. c)) e se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova produzida em audiência, com desrespeito do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127º do CPP.

B) Determinar se existiram os seguintes erros de julgamento da matéria de direito: a) Em caso de procedência da impugnação da matéria de facto, relativamente à qualificação jurídica dos factos que o recorrente entende deverem ser tidos por provados, em virtude de os mesmos não integrarem os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de ofensas à integridade física qualificada e de injúria pelos quais o arguido foi condenado. b) Em caso de improcedência da impugnação da matéria de facto, relativamente à subsunção dos factos considerados provados nos autos ao crime de injúria agravada – em virtude de as expressões dirigidas aos ofendidos não se revelarem penalmente relevantes – e relativamente à não integração das condutas fisicamente agressivas do arguido no exercício do direito de resistência tutelado pelo artigo 21º da CRP. d) Aos princípios e regras legalmente previstos para a determinação das medidas das penas.

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II.II - A decisão recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que deu como provados e não provados, com relevo para a apreciação da situação do arguido recorrente, os seguintes factos:

“Da produção da prova e da discussão da causa o Tribunal considerou provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:

1. No dia 25-07-2020, cerca das 19H30, na zona da Rotunda …, …,, os Militares da GNR infra indicados mandaram parar a viatura de matrícula …, de marca …

2. No âmbito da fiscalização de trânsito efetuada ao arguido pelos dois Militares da GNR, DD e EE, o arguido dirigindo-se ao Militar da GNR DD disse-lhe «Isto é uma perseguição…Vocês não me vão multar … Eu tenho tudo legal.»

3. Após o arguido ser informado de que seria multado por falta de cinto de segurança, o mesmo, dirigindo-se aos Militares DD e EE, disse: «A mim ninguém me vai multar. Se tivéssemos na Guiné já tinha tratado de vocês», abrindo de seguida a porta dessa viatura de forma violenta acertando com a mesma no membro inferior esquerdo do Guarda EE, tendo sido de imediato informado para que não continuasse com o referido comportamento, pois, perante o mesmo, seria detido.

4. Seguidamente, o arguido encontrando-se já fora dessa viatura, dirigindo-se ao referido Militar EE, disse «Dá cá a merda dos documentos oh meu cabrão» e acrescentou, dirigindo-se a DD, «Se fosse na Guiné já te tinha fodido oh preto do caralho».

5. De seguida, o arguido desferiu um murro na mão do Militar EE e com as duas mãos empurrou o Guarda EE com violência na zona do tórax fazendo o mesmo desequilibrar-se.

6. Então, os senhores Guardas deram ordem de detenção ao arguido, que não colaborou, tendo sido necessário usar a força estritamente necessária para o imobilizar e para o conseguirem algemar.

7. O arguido agiu da forma descrita, bem sabendo que os referidos Militares da GNR estavam no exercício das suas funções.

8. O arguido agiu da forma descrita com a intenção de ofender o corpo, a saúde, honra e bom nome profissional do senhor Militar da GNR EE, resultados que logrou alcançar.

9. Os ofendidos são militares da GNR no Posto Territorial de … e encontravam-se no exercício da sua profissão, devidamente, fardados.

10. Os ofendidos intervieram, nas circunstâncias de espaço e de tempo acima descritas, no exercício das suas funções de Militares da GNR.

11. O arguido agiu, deliberadamente, com intenção de atingir, fisicamente, o ofendido EE, bem como quis e conseguiu provocar no ofendido EE lesões e dores físicas, o que concretizou, não obstante saber que este era Militar da GNR, devidamente, fardado, que se encontrava no exercício das suas funções de Militar da GNR e de força pública e agiu por causa do exercício dessas funções.

12. Quis e conseguiu ofender a honra, a reputação e consideração social e profissional destes ofendidos, quer na sua vertente, estritamente, pessoal como na de Militares da GNR.

13. O arguido agiu por causa do exercício dessas funções, não ignorando que essas expressões não correspondiam à verdade e eram falsas, bem sabendo que estes eram Militares da GNR e que se encontravam no exercício das suas funções, e que traziam vestido o correspondente uniforme da GNR.

14. O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

15. O arguido trabalha na refinaria, como tubista, auferindo um rendimento mensal de cerca de € 1.200,00/€ 1.300,00 euros.

16. Vive sozinho em casa própria.

17. Tem o 4.º ano de escolaridade.

18. O arguido não tem os antecedentes criminais averbados ao seu registo criminal.

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2. FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente não se provou que:

A. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1), o arguido encontrava-se a conduzir a viatura ali referida sem cinto de segurança

B. O arguido sabia que as aludidas expressões que dirigiu aos senhores Guardas eram adequadas a causar-lhes medo e a limitar a sua liberdade de determinação, resultados que logrou alcançar.

C. Em razão da seriedade e conteúdo daquelas expressões e por acreditarem que o arguido seria capaz de as concretizar, sentiram os dois ofendidos medo e inquietação, temendo pelas suas vidas.

D. O arguido agiu com o propósito de causar medo e inquietação nos ofendidos DD e EE, o que logrou alcançar.”

***

II.III - Apreciação do mérito do recurso.

*

Dos invocados vícios previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas b) e c) do CPP – concretamente, da contradição insanável da fundamentação (al. b) e erro notório na apreciação da prova – e do incumprimento dos requisitos da impugnação da matéria de facto estabelecidos no artigo 412.º, nºs 3 e 4 do CPP.

Os poderes de cognição dos Tribunais da Relação encontram-se expressamente consignados no artigo 428.º do CPP, dispondo o mesmo que “As Relações conhecem de facto e de direito”. Importa ter presente que a impugnação da matéria de facto em sentido amplo, ou a invocação de um erro de julgamento – com observância dos ónus impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 – não se confunde com a invocação dos vícios consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, que denominamos de impugnação restrita. Na impugnação restrita, diferentemente do que sucede na impugnação da matéria de facto em sentido amplo, os vícios da decisão, consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP e invocados no recuso, deverão resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Conforme decorre do disposto no artigo 412.º, nº 3.º do CPP, o erro de julgamento, ocorre quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova bastante, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

A este propósito, preceitua o art.º 412.º do CPP, com referência à motivação e às conclusões do recurso:

“(…) 3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a ) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b ) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c ) As provas que devem ser renovadas.

4 – Quando as provas tenham sido gravadas , as especificações previstas nas alíneas b ) e c ) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”

Na situação dos autos não nos encontramos perante uma impugnação ampla da matéria de facto, realizada com respeito pelo disposto no artigo 412.º do CPP. Relativamente à satisfação de tais requisitos, escreve Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação à referida norma, no Comentário do Código de Processo Penal “[a] especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (…)” ; “[a] especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (…) [m]ais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento”. “(…) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação.” (1)

Para a arguição de um erro de julgamento não é suficiente a invocação de mera divergência de entendimento do recorrente relativamente à convicção formada pelo julgador, uma vez que é a este que a lei atribui o poder de apreciar livremente as provas, o que deverá fazer de acordo com o disposto no artigo 127.º CPP, ou seja, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, mas segundo parâmetros racionais controláveis.

Assim, sempre que seja impugnada a matéria de facto, por se entender que determinado aspeto da mesma foi incorretamente julgado, o recorrente deverá indicar expressamente: tal aspeto; a prova em que apoia o seu entendimento; e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida. Tais indicações constarão, pois, da motivação do recurso, que deverá ser elaborada de forma a permitir apontar ao Tribunal ad quem o que, na perspetiva do recorrente, foi mal julgado, oferecendo uma proposta de correção que possa ser avaliada pelo tribunal de recurso.

Tal claramente não sucede nos presentes autos.

De facto, na sua motivação e nas conclusões do recurso em apreciação, alega o recorrente relativamente à decisão recorrida, que a mesma valorou erradamente as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas produzidos em julgamento, solicitando a este tribunal que proceda à reapreciação da prova no que diz respeito aos factos constantes dos pontos 8.,11., 12., 13. e 14. dos factos provados. Porém, fê-lo sem invocação do erro na apreciação da prova sustentado no artigo 412º do CPP, não tendo dado cabal cumprimento a tal preceito.

Efetivamente, apesar de o recorrente referir na sua motivação a existência de factos incorretamente tidos por provados – concretamente constantes dos pontos 8.,11., 12., 13. e 14. dos factos provados – não faz, porém, alusão às passagens concretas da gravação nas quais tais declarações e depoimentos se encontram reproduzidos, nem procedeu à transcrição dos respetivos excertos, não tendo, pois, cuidado de elaborar a sua motivação de forma a apontar o que, na sua perspetiva, foi mal julgado e porquê, oferecendo uma proposta de correção que pudesse ser avaliada pelo tribunal de recurso.

É o que se extrai claramente das conclusões do recurso, nas quais, relativamente à impugnação da matéria de facto, mais não se consignou do que a mera discordância relativamente à convicção do julgador, nos seguintes termos:

“(…)ii. Não resultou provado que o arguido conduzisse sem fazer uso do cinto de segurança, motivo invocado pelos militares da GNR para a interpelação que fizeram;

iii. O arguido foi confrontado com a imputação por parte de três militares da GNR da prática de uma contraordenação estradal – não fazer uso do cinto de segurança – o que negou liminarmente, fazendo desenvolver em si um profundo sentimento de injustiça, classificando a abordagem como “perseguição”;

iv. O arguido, um homem de 75 anos de idade, com dificuldade em lidar com situações de stress, com o quarto ano de escolaridade, confrontado com uma acusação injusta e falsa, empurrou um militar da GNR e verbalizou a injustiça que sentiu - «Isto é uma perseguição… Vocês não me vão multar… Eu tenho tudo legal. A mim ninguém me vai multar. Se tivéssemos na Guiné já tinha tratado de vocês. Dá cá a merda dos documentos oh meu cabrão. Se fosse na Guiné já te tinha fodido oh preto do caralho.»;

v. O arguido agiu sob emoção violenta, resultante de lhe imputarem um comportamento que não tinha adotado, que lhe toldou e motivou a sua atuação;

vi. O tribunal a quo reconhece, em sede de fundamentação, que «a diferença física absolutamente manifesta entre o arguido e os três militares, não permite concluir que estes temessem fisicamente aquele»;

vii. Os próprios militares ficaram surpreendidos com a atitude do arguido, como bem se faz notar na sentença a quo – «[...] aliás, neste passo quer EE quer FF aludiram à circunstância de terem sido surpreendidos pela agressão perpetrada pelo arguido.».

viii. Não fora a evidente alteração emocional do arguido, nunca teria encetado qualquer comportamento físico atenta a evidente desproporcionalidade para com os militares da GNR;

ix. O comportamento físico do arguido mais não pode ser entendido do que sendo uma explosão de frustração e impotência face à “acusação” falsa que lhe era feita, agindo ao abrigo do direito de resistência consagrado no artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa;

x. Considerando a análise critica da prova feita na douta sentença e a sua fundamentação, não poderia ter sido dado como provado que: i)O arguido agiu da forma descrita com a intenção de ofender o corpo, a saúde, honra e bom nome profissional do senhor Militar da GNR EE, resultados que logrou alcançar. ii)O arguido agiu, deliberadamente, com intenção de atingir, fisicamente, o ofendido EE, bem como quis e conseguiu provocar no ofendido EE lesões e dores físicas, o que concretizou, não obstante saber que este era Militar da GNR, devidamente, fardado, que se encontrava no exercício das suas funções de Militar da GNR e de força pública e agiu por causa do exercício dessas funções;(…)”.

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Reiterando o que acima explicitámos, os vícios da decisão, consagrados no artigo 410º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP e invocados no recurso, deverão resultar do próprio texto da decisão recorrida e a sua verificação pelo tribunal ad quem prescinde da análise da prova concretamente produzida e atém-se à conexão lógica do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum. Assentemos, pois, em que, “in casu” nos encontramos perante uma impugnação restrita da matéria de facto que passaremos a apreciar.

Alega o recorrente que na sentença recorrida se detetam os vícios previstos nas alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 410º do CPP, ou seja, a contradição insanável da fundamentação (al. b) e o erro notório na apreciação da prova (al. c), sem que, no entanto, justifique minimamente tal alegação.

Ora, salvo o devido respeito, carece de sentido tal arguição.

Vejamos. Quanto ao vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, tal como os demais previstos no nº 2 do artigo 410º, ocorre nas situações em que a simples leitura da decisão, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, permite concluir ter-se verificado a referida contradição insanável. Por seu turno, quanto ao erro notório na apreciação da prova, é consabido que a sua verificação demanda a presença dos seguintes requisitos: a notoriedade do erro e que este resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Notório, significa ostensivo, patente, percetível e identificável pela generalidade das pessoas e ocorre quando as provas revelem claramente um sentido contrário ao que se firmou na decisão recorrida, em virtude de o sentido aí firmado ser logicamente impossível, por se ter incluído ou excluído da matéria de facto provada algum facto essencial ou quando determinado facto provado se mostra incompatível com outro também provado. Ora, na situação vertente, não detetamos nem a invocada contradição, nem qualquer erro notório na apreciação da prova. Efetivamente, confrontando a sentença recorrida, nela se não descortina qualquer contradição lógica entre os factos provados, nem entre estes e a motivação da respetiva convicção probatória, nem qualquer erro na apreciação da prova. Ao invés, analisado o texto da decisão recorrida, constata-se que a conexão lógica existente entre os factos que o tribunal recorrido julgou provados e não provados, os meios de prova em que se baseou e a valoração criteriosa que fez dos mesmos, não só não indiciam o alegado erro ou a invocada contradição, como, ao invés, permitem inferir exatamente o contrário, ou seja, que os meios de prova tidos em conta sustentam logicamente a decisão e que a factualidade provada e não provada se encontra expurgada de qualquer contradição. Assim, não ostentando a decisão qualquer erro manifesto na apreciação das provas aí indicadas, ou seja, não revelando estas um sentido contrário ao que se fixou na decisão recorrida, nem a decisão tendo firmado um sentido logicamente impossível, com exclusão de factos essenciais ou com consideração de factos incompatíveis, mais não haverá do que concluir não enfermar a mesma dos vícios invocado no recurso. Não se verificam, pois, os apontados vícios de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova a que se reporta o artigo 410.º, nº 2, alíneas b) e c) do CPP. A discordância do recorrente quanto à factualidade provada poderia eventualmente sustentar a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412º do CPP – a qual nos encontramos impedidos de conhecer pelas razões acima explicitadas – não suportando, de todo, a alegação da existência de nenhum dos vícios previstos ao artigo 410º, nº 2 do CPP.

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Da qualificação jurídica dos factos e da sua subsunção aos crimes de ofensa à integridade física qualificada e de injúria pelos quais o arguido foi condenado.

Propugna o recorrente que a factualidade a seu ver apurada nos autos não permite concluir pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada pelo qual foi condenado, em virtude de não se ter demonstrado que o arguido atuou com o propósito de molestar o corpo ou a saúde dos ofendidos. Considerando que o recurso fez assentar o pedido de absolvição na impugnação da decisão quanto à matéria de facto, a improcedência de tal impugnação, nos termos sobreditos, prejudica, obviamente, o conhecimento das questões associadas a tal pedido, entre elas a da subsunção dos factos ao crime de ofensa à integridade física qualificada. Porém, a respeito da condenação por tal crime, invoca ainda o recorrente o direito de resistência, alegando concretamente que “(…) Aliás, salvo melhor opinião, a conduta do arguido sempre estaria a coberto do direito de resistência consagrado no artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa.(…)”.

Dispõe o artigo 21º da CRP nos seguintes termos: “Artigo 21.º (Direito de resistência) Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.” Ora, considerando o contexto situacional em que os factos ocorreram e, bem assim, a previsão constitucional acima transcrita, afigura-se-nos totalmente desadequada a convocação pelo recorrente do direito de resistência, pois que nem os militares da GNR deram ao arguido qualquer ordem que ofendesse os seus direitos, liberdades e garantias nem o agrediram de qualquer modo, tendo-se limitado a mandá-lo parar a viatura que conduzia e a fiscalizá-lo no âmbito de uma fiscalização de trânsito. Ainda subsidiariamente – e implicitamente – no que diz respeito ao crime de injúria agravada, o arguido sustenta que, ainda que se mantenha a factualidade provada constante da sentença recorrida, as expressões dirigidas aos ofendidos são apenas palavras obscenas, que não põem em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação dos visados. Vejamos.

Para além da condenação pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, foi o arguido condenado pela prática de dois crimes de injúria agravada p. e p. nos artigos 181.º e 184.º, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal.

Dispõe o tipo base da injúria nos seguintes termos:

“Artigo 181.º

Injúria

1 - Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.

2 - Tratando-se da imputação de factos, é correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 2, 3 e 4 do artigo anterior.”

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Com vista a melhor compreendermos o tipo penal ao qual se reportam as questões de natureza jurídica que somos chamados a apreciar no presente recurso, façamos uma breve referência aos elementos constitutivos do tipo e aos bens jurídicos que a sua previsão visa tutelar. O artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal pune com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias aquele que imputar a outra pessoa, mesmo que sob a forma de suspeita, um facto, ou lhe dirigir palavras, ofensivos da sua honra ou consideração.

Consiste este ilícito penal na “imputação a alguém (...) de facto ou de juízo que encerre em si uma reprovação ético-social por serem ofensivos da honra e consideração do ofendido, enquanto pretensão de respeito que decorre da dignidade da pessoa humana e pretensão ao reconhecimento dessa dignidade por parte dos outros, quer no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político.” (2)

Trata-se de um crime contra as pessoas, no qual se pretende proteger as respetivas honra e consideração. Independentemente da forma como se caracterize a honra e, consequentemente, da posição que se adote quanto à querela que opõe as diferentes conceções normativas e as diversas sensibilidades fáctico-normativas, é indiscutível que é esse o bem jurídico que se pretende tutelar com a incriminação da injúria e que o mesmo tem natureza eminentemente pessoal.

Neste campo a Constituição da República Portuguesa afirma no artigo 25.º, n.º 1 que a integridade moral e física das pessoas é inviolável, acrescentando no seu artigo 26.º, n.º 1 que a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom-nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação. É, pois, manifesto que a nossa Constituição inclui entre os vários direitos de personalidade, o direito ao bom-nome e reputação, como corolário do princípio basilar da dignidade humana.

Reportando-se ao direito ao bom-nome e reputação refere Silva Dias que “(…) como explicitação direta do princípio da dignidade humana integra este direito um núcleo essencial representativo da dimensão existencial do homem, pelo que, sem a sua proteção perante certas agressões, não é concebível o desenvolvimento social da pessoa humana. O seu conteúdo é constituído, basicamente, por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros (…)” (3).

A Declaração Universal dos Direitos do Homem tutela o direito aqui em causa, consignando no seu artigo 12.º que ninguém sofrerá ataques à sua honra e reputação.

São duas as vertentes que podemos descortinar no direito à honra: a honra subjetiva, o bom-nome, que consiste no juízo valorativo que cada pessoa faz de si própria; e a honra objetiva, a reputação, que se traduz na consideração que os outros têm sobre uma pessoa, a chamada opinião pública.

Ao nível do tipo objetivo o crime de injúria comporta duas condutas distintas:

- A imputação a outra pessoa de um facto, que consiste na atribuição de um facto a outra pessoa, entendido facto como um acontecimento passado ou presente, passível de prova, ou seja, cuja existência é demonstrável (sendo que a imputação de factos desonrosos não é ilícita quando é verdadeira e quando prossegue interesses legítimos);

- A direção a outra pessoa de palavras ofensivos da sua honra ou consideração;

A lei equipara estas duas situações, considerando ser tão desvaliosa a imputação de factos, como a direção a outra pessoa de palavras, essencial se torna que tais condutas sejam adequadas a ofender a honra ou consideração da pessoa a quem foram dirigidas e a quem se reportam. Relativamente a tal juízo de adequação, como escreve Silva Dias “o critério decisivo para aferir do carácter injurioso de uma afirmação de facto não consiste na violação de um qualquer preceito legal mas (…) na sua suscetibilidade para lançar o descrédito e a suspeita sobre a vítima perante a opinião pública. Por opinião pública deve entender-se a opinião de um grande círculo de pessoas que não esteja em contradição com as valorações da ordem jurídica: a determinação deste ponto de vista requer uma interpretação pelo juiz do significado social da afirmação proferida, tendo em conta o conjunto das circunstâncias internas e externas, como o grau de cultura dos intervenientes, a sua posição social, as valorações do meio, os objetivos reconhecíveis da afirmação”. (4)

Por outro lado, essas afirmações desonrosas do agente devem reportar-se à pessoa a quem se dirigem. Trata-se de um elemento fundamental, que permite distinguir o tipo de injúria do tipo de difamação, uma vez que neste caso as imputações de facto ou os juízos de desvalor se dirigem não ao próprio visado, mas a terceiros.

A nível do tipo subjetivo, o crime de injúria comporta o dolo, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, sendo irrelevante que o agente tenha, ou não, o propósito de ofender a honra e consideração do visado. Com efeito, é hoje pacífico na doutrina e na jurisprudência, que o tipo não exige um dolo específico, o chamado animus injuriandi, bastando o chamado dolo genérico. Isto é, para o preenchimento do tipo penal de injúria basta que o agente tenha conhecimento que está a atribuir um facto ou a dirigir palavras a outrem cujo significado se pode considerar ofensivo do seu bom-nome e reputação e o queira fazer. (5)

*

Conhecidos os elementos fundamentais do crime de injúria, detenhamo-nos então sobre a situação dos autos, avaliando se a condenação do arguido deverá manter-se, conforme foi decidido na decisão recorrida, ou se o mesmo deverá ser absolvido em virtude de as palavras dirigidas aos ofendidos não assumirem relevância penal, como se defende no recurso. Sustentando esta última linha argumentativa, invoca o arguido na sua motivação de recurso que “(…)“Já a ofensa à honra ou consideração não é suscetível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direcionadas a pessoa identificada, distinção que importa ter bem presente porque estas últimas, ainda que possam gerar repulsa social, não são objeto de sanção penal. Importava, pois, questionar se alguma das expressões proferidas pelo arguido tem a virtualidade de causar dano à honra dos militares em qualquer das vertentes penalmente tuteladas.(…) Para que se tivesse verificado, em função de tais afirmações, um crime de injúria, necessário seria que pelo menos uma daquelas expressões consistisse numa imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, com um conteúdo ofensivo da honra ou consideração do visado, ou que as palavras dirigidas ao visado tivessem esse mesmo cariz ofensivo da honra ou da consideração. É certo que a expressão “Se fosse na Guiné já te tinha fodido oh preto do caralho” não é meramente indelicada; é verdadeiramente grosseira, constituindo utilização de linguagem desbragada, denotando profunda falta de educação por parte de quem a profere. Mas daí até que se possa afirmar um atentado à personalidade moral do interlocutor, medeia significativa distância. Aquela expressão não contende com o conteúdo ético da personalidade moral do visado nem atinge valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal não atinge aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana – tão pouco sob um ponto de vista racial atento o contexto em que é proferida. Também a expressão “Dá cá a merda dos documentos oh meu cabrão” traduz grosseria e má educação; mas também esta, por razões em tudo idênticas, não assume carácter ofensivo da honra ou da consideração. No contexto em que foram proferidas, as palavras «preto do caralho» «cabrão» «fodido», não têm outro significado que não seja a mera verbalização das palavras obscenas, sendo absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação dos visados. Traduzem um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral, que fere as regras do civismo exigível na convivência social. Contudo, esse tipo de comportamento, socialmente desconsiderado, tido por boçal e ordinário e violador das normas consuetudinárias da ética e da moral, é destituído de relevância penal, particularmente ao nível do elemento subjetivo do crime imputado ao arguido, não se podendo considerar provado que o arguido Quis e conseguiu ofender a honra, a reputação e consideração social e profissional destes ofendidos, quer na sua vertente, estritamente, pessoal como na de Militares da GNR.

Quanto à expressão “Se tivéssemos na Guiné já tinha tratado de vocês”, também ela grosseira e de baixo jaez, assume essencialmente um significado de desafio ou de provocação, mas não releva como ofensa à honra ou consideração.(…)”

Cremos, porém, que não lhe assiste razão.

Vejamos.

Resulta do ponto 4. dos factos provados da sentença que o arguido apelidou os ofendidos de EE e DD, militares da GNR em exercício de funções e devidamente fardados, respetivamente de “cabrão” e de “preto do caralho”.

Desde já adiantamos que, a nosso ver, não poderá deixar de reconhecer-se relevância penal à conduta sindicada, uma vez que a mesma atingiu o respeito mínimo indispensável ao relacionamento lícito em sociedade, pelo que bem andou o tribunal recorrido ao subsumi-la à previsão do tipo penal de injúria. Importa reterá este propósito que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) – que, nos termos do artigo 8.º, nº 2.º da Constituição, vigora em Portugal, na hierarquia normativa, como direito supra ordinário, ainda que infraconstitucional – no seu artigo 10.º, regula a liberdade de expressão e suas exceções. Igualmente importante se revela atentar na interpretação que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a fazer, casuisticamente, nas questões que se lhe têm colocado relativamente a esta matéria e que se tem traduzido num amplo reconhecimento do direito à liberdade de expressão, garantindo a sua tutela alargada, com base na consideração de que a divulgação de opiniões estimula o debate sobre vários assuntos, promovendo a autonomia pessoal e fomentando o progresso das sociedades, tornando-as mais abertas e democráticas.

No sentido da necessária compatibilização entre o direito à honra e o direito à liberdade de expressão, a realizar pelos tribunais, se pronunciou (a propósito de uma publicação no Facebook que aí se entendeu não ter conteúdo difamatório) o Acórdão da Relação de Guimarães, de 05.03.2018, relatado pelo Desembargador Jorge Bispo e disponível em www.dgsi.pt, nos seguintes termos: “I - O direito fundamental ao bom nome e reputação de qualquer pessoa tem de ser compatibilizado com o também direito fundamental da liberdade de expressão e informação, o qual tem como manifestação o direito de divulgar a sua opinião e exercer o direito de crítica. II - Uma vez que o exercício deste direito pode entrar em conflito com bens jurídicos pessoais, como a honra e a consideração, importa que as expressões utilizadas se circunscrevam ao sentido próprio da crítica, não atingindo o nível da ofensa pessoal desnecessária, inadequada ou desproporcional a um normal exercício do direito de expressar a opinião, cabendo aos tribunais judiciais o controlo da crítica excessiva, arbitrária, gratuita ou desproporcionada, na medida em que seja ofensiva do bom nome e da reputação da pessoa. III - O eventual conflito entre esses dois direitos terá de ser resolvido por ponderação dos respetivos interesses, fazendo intervir critérios como o da proporcionalidade, da necessidade e da adequação, salvaguardando, porém, o núcleo (alcance e conteúdo) essencial dos preceitos constitucionais em jogo, que ocupam igual peso na hierarquia dos valores constitucionalmente protegidos.(…)”.

É sabido que a jurisprudência dos tribunais superiores tem vindo a entender que a mera verbalização de palavras obscenas, por si só, revelará apenas falta de educação, o que se traduzirá numa violação das normas da ética e da moral reguladoras da convivência social, não tendo, porém, a capacidade de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação do visado, pelo que tal tipo de comportamento será destituído de relevância penal. Porém, tal como eloquentemente se consignou no Acórdão do STJ de 12.01.2017, relatado pelo Conselheiro Souto de Moura (6), “(…) saber quando é que certas palavras são ofensivas da honra e consideração de alguém depende em primeiro lugar da intensidade ou perigo da ofensa. (…) Depois, a ofensividade potencial das palavras, mesmo independentemente do modo de sentir do visado, depende das circunstâncias do caso. E então não poderá ignorar-se, para além do mais, a banalidade ou não banalidade com que, em certos meios ou até regiões geográficas, certas expressões se usam.

Por último, a tarefa do julgador, para saber se há crime de injúrias, não se basta com a objetividade da pronúncia de certas palavras, antes reclama a valoração dos factos, aqui as palavras dirigidas. Ora, essa valoração e designadamente o grau do caráter ofensivo a partir do qual se passa da obscenidade e má criação para o crime, depende sempre da mundividência e sensibilidade do julgador. É inultrapassável.(…)”

Sufragando tal linha de entendimento, estamos convictos que o que permitirá aferir se os epítetos dirigidos aos ofendidos no caso em análise integram o regular exercício da liberdade de expressão do arguido, ainda que com a utilização de palavras grosseiras e soezes, será a sua contextualização, isto é, a consideração das circunstâncias em que os factos aconteceram e, bem assim, dos objetivos subjacentes à conduta sindicada. (7)

Porém, na situação dos autos, a matéria factual que foi considerada provada na decisão recorrida e que nos habilita a fazer tal contextualização – relativa à ação de fiscalização de trânsito que se encontrava a ser realizada pelos ofendidos enquanto militares da GNR, devidamente fardados – não nos permite considerar que a conduta do arguido se encontra legitimada por se encontrar abrangida pelo regular exercício do seu direito à liberdade de expressão ou por se tratar de um comportamento socialmente aceite ou tolerado. Nada se apurou no que diz respeito a qualquer outro objetivo que o arguido tivesse visado prosseguir com a sua conduta para além do propósito consignado nos factos provados, qual fosse o de injuriar os visados. E nem se diga, como afirma o arguido no seu recurso, que “(…) As expressões proferidas pelo arguido (…) consubstanciam um mero ato de desabafo dentro do quadro de emoção exacerbada experienciada por aquele. A exaltação do arguido, por todos confirmada e superiormente resumida pela Meritíssima Juiz a quo na expressão «é notório que tem dificuldade em lidar com situações de stress», não pode deixar de ser considerada para que se subsumam a um tipo criminal, ou não. (…)”, pois que tal estado de emoção ou de exaltação de forma alguma condicionou o seu conhecimento e vontade de dirigir aos ofendidos epítetos que lhes dirigiu e que bem sabia consubstanciarem expressões ofensivas da sua honra e consideração.

Discordamos, pois, totalmente da conclusão a que chegou a recorrente no sentido de que as expressões utilizadas não assumem relevância que justifique a intervenção criminal.

É certo que, como bem se consignou no acórdão da Relação de Lisboa 09.02.2011 (8) “o Direito Penal não deve intervir para criminalizar condutas comuns, simples desrespeitos, descortesias ou más educações” e “os tribunais não existem para apelidar de criminosas pessoas que adotam comportamentos destemperados, incorretos e avessos a uma conduta bem educada”. Porém, a nosso ver, a situação sindicada não se inclui na categoria das condutas “comuns”, simplesmente desrespeitosas, descorteses, incorretas ou mal educadas. Ao contrário do que o recorrente pretende fazer crer, o desvalor dos epítetos dirigido aos assistentes, está muito para além da descortesia e da falta de educação, pois põe ostensivamente em causa a honra do visado.

Poderá o ordenamento jurídico criminal ficar indiferente ao facto uma pessoa apelidar dois agentes de autoridade em exercício de funções de “cabrão” e de “preto do caralho”?

Pensamos que não.

Na verdade, a atribuição dos citados epítetos, diretamente e de viva voz, a dois militares da GNR em exercício de funções, a quem é devido respeito não só na sua dimensão pessoal, mas também ao nível funcional, acarreta incontornavelmente uma desvalorização das suas pessoas, enquanto seres humanos e enquanto agentes de autoridade. No tipo legal de crime agravado previsto no artigo 184º do CP, pelo qual o arguido foi condenado, a honra, a reputação e a consideração protegidas pela norma do artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal são protegidas de forma qualificada face ao estatuto funcional da vítima cuja ofensa, no exercício de funções, representa um desvalor notoriamente mais relevante.

Em suma, é manifesta a afetação do direito à honra, ao bom nome e à reputação dos ofendidos, pelo que não podemos concordar com a alegação constante da motivação de recurso quando aí se afirma que “(…) Para que se tivesse verificado, em função de tais afirmações, um crime de injúria, necessário seria que pelo menos uma daquelas expressões consistisse numa imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, com um conteúdo ofensivo da honra ou consideração do visado, ou que as palavras dirigidas ao visado tivessem esse mesmo cariz ofensivo da honra ou da consideração. É certo que a expressão Se fosse na Guiné já te tinha fodido oh preto do caralho não é meramente indelicada; é verdadeiramente grosseira, constituindo utilização de linguagem desbragada, denotando profunda falta de educação por parte de quem a profere. Mas daí até que se possa afirmar um atentado à personalidade moral do interlocutor, medeia significativa distância.

Aquela expressão não contende com o conteúdo ético da personalidade moral do visado nem atinge valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal não atinge aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana – tão pouco sob um ponto de vista racial atento o contexto em que é proferida.

Também a expressão Dá cá a merda dos documentos oh meu cabrão traduz grosseria e má educação; mas também esta, por razões em tudo idênticas, não assume carácter ofensivo da honra ou da consideração.

No contexto em que foram proferidas, as palavras « preto do caralho» «cabrão» «fodido», não têm outro significado que não seja a mera verbalização das palavras obscenas, sendo absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação dos visados. Traduzem um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral, que fere as regras do civismo exigível na convivência social. Contudo, esse tipo de comportamento, socialmente desconsiderado, tido por boçal e ordinário e violador das normas consuetudinárias da ética e da moral, é destituído de relevância penal, particularmente ao nível do elemento subjetivo do crime imputado ao arguido, não se podendo considerar provado que o arguido Quis e conseguiu ofender a honra, a reputação e consideração social e profissional destes ofendidos, quer na sua vertente, estritamente, pessoal como na de Militares da GNR. (…).”

Cientes de que o recurso aos meios penais, no que diz respeito à regulação das relações sociais, apenas será legítimo como solução excecional ou de ultima ratio, não devendo, por conseguinte, criminalizar-se condutas que sejam evitáveis por outros meios, aos aplicadores do direito, caberá sindicar e, sendo caso disso, punir criminalmente, as situações que forem chamados a apreciar nas quais os fins prosseguidos se traduzam na violação dos bens jurídicos que a lei pretendeu tutelar com as incriminações consagradas nas normas penais. Nessa categoria se enquadra, a nosso ver, o caso dos autos, pois que, ao chamar, deliberadamente, os ofendidos de “cabrão” e de “preto do caralho”, bem sabia o arguido que, dessa forma, atingiria severamente o direito à honra, ao bom nome e à reputação daqueles, que, ademais, se encontravam no regular exercício das suas funções de agentes de autoridade, devidamente identificados. Tal como se consignou no Acórdão da Relação de Évora de 20.05.2014, relatado pelo Desembargador Alberto João Borges, disponível em www.dgsi.pt,“O que é ofensivo da honra e consideração alheia não é aquilo que o é para o concreto ofendido, mas sim o que é considerado como tal pela generalidade das pessoas de bem de um certo país e no contexto sócio-cultural em que os factos se passaram, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento.”

Não temos, pois, dúvida de que o comportamento do arguido, analisado à luz dos padrões médios de valoração social, pelo significado e pela carga desvaliosa associados aos epítetos dirigidos aos ofendidos, inequivocamente ofensivos da honra e consideração dos visados, atingiu “o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa [os ofendidos] possa ter apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros” (9), situando-se, pois, muito para além da mera violação das regras de cortesia e de boa educação, pelo que tem relevância criminal.

Revela-se, assim, incontornável a conclusão de que, não tendo sido apurado qualquer contexto que pudesse ter legitimado a conduta sindicada, as palavras dirigidas aos ofendidos, apelidando-os de “cabrão” e de “preto do caralho”, constituíram um atropelo injustificado do direito à honra e consideração e do direito ao bom-nome e reputação daqueles, pelo que, sendo penalmente relevantes, são geradoras de responsabilidade penal e civil, termos em que o recurso deverá improceder, nesta parte, devendo manter-se a subsunção dos factos ao crime de injúria agravada.

***

Da escolha da pena de substituição e das medidas das penas

O recorrente questiona não só a medida concreta de cada uma das penas parcelares, mas também a pena de substituição da pena curta de prisão e a pena única aplicada, pugnando pela aplicação de penas de multa – como penas principais e como pena de substituição – mais reduzidas.

Analisemos então se lhe assiste razão.

Sabendo-se que os recursos são soluções de natureza jurídico processual, que se encontram vocacionados para verificar a existência e, sendo caso disso, para corrigir erros de julgamento – quer os que resultam da violação de normas direito processual, quer os emergentes da não aplicação ou da aplicação incorreta de normas de direito substantivo – importa ainda ter presente que no caso dos recursos sobre a pena ou sobre a medida da pena aplicada na decisão recorrida, ao tribunal ad quem caberá verificar o respeito pelas normas e pelos princípios gerais que regulam tal matéria. E tão somente isso. Conforme é amplamente aceite pela jurisprudência dos tribunais superiores, o sistema de recursos no processo penal português tem como escopo a correção dos erros ocorridos na primeira apreciação judicial dos factos e na sua subsunção ao direito. Daqui resulta que o tribunal de recurso só deve intervir na escolha da pena e da sua medida concreta quando detetar incorreções no processo da sua determinação, quer ao nível da valoração factual, quer no que diz respeito à aplicação das normas legais que regem a matéria em causa. Tal sindicância não abrange, pois, a fiscalização do quantum exato de pena, na perspetiva da realização de uma nova determinação da mesma, devendo manter-se a pena concretamente aplicada sempre que se verifique que a sua fixação assentou numa correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais e que, consequentemente, não se revela desajustada, nem desproporcionada. Estabelecida a margem de atuação deste tribunal da Relação no presente recurso, será importante recordar os princípios basilares e orientadores da matéria que temos em análise. Assim, estabelece o artigo 40º do CP que a finalidade das penas é a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena exceder a medida da culpa do infrator. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º e 40.º do CP, se os crimes forem puníveis alternativamente com pena de prisão ou com pena de multa, o tribunal deve dar preferência à pena de multa, desde que a mesma realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. A medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, determina-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com respeito pelos critérios definidos pelo artigo 71.º do CP.

Realizado o enquadramento normativo, analisemos então as circunstâncias do caso em apreço e, bem assim, o processo de escolha e de determinação das penas concretas realizado pelo tribunal a quo, na perspetiva da realização da sindicância com a abrangência acima delineada. Respeitando a preferência estabelecida no artigo 70.º CP, o tribunal optou, quanto às penas a aplicar pela prática dos crimes de injúria – único dos tipos da condenação cuja estatuição prevê alternativamente a prisão e a multa – pela aplicação da pena de multa, mostrando-se tal escolha adequada à situação do arguido, atendendo à dimensão dos crimes praticados e à circunstância de o mesmo ser primário. No que diz respeito à graduação das penas, a sentença recorrida fixou-as em 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 12,00 € (doze euros), por cada um dos crimes de injúria agravada – penas, que deviamente cumuladas, geraram a condenação do arguido na pena única de 145 (cento e quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 12,00 € (doze euros), o que perfaz o total de 1 740,00 € (mil, setecentos e quarenta euros) – e na pena de 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, com regime de prova, para o crime de ofensa à integridade física qualificada. Pensamos, porém, que, ao contrário do que sustenta o recorrente, o fez com justificação bastante.

Vejamos.

Devemos em primeiro lugar atentar na factualidade provada – que acima transcrevemos e para a qual remetemos – na qual se descreve a atuação do arguido, as consequências da mesma, o contexto em que ocorreu e as suas motivações e, bem assim, os elementos relativos às condições pessoais do arguido. Dando aplicação aos critérios definidos pelo artigo 71.º do CP, temos que, no que diz respeito à culpa, tal como nos explica Figueiredo Dias, a mesma reporta-se à censura dirigida ao agente por referência à prática do facto ilícito, consistindo na desaprovação da sua atitude face às exigências do dever ser sociocomunitário (10). Para além de considerações estritamente teóricas, alega o recorrente a este propósito, tão somente, que: “(…) Destarte, no que concerne os alegados crimes de injuria agravada, em face da moldura penal aplicável, a multa a aplicar ao arguido não devia ir além de vinte dias por cada um considerando que não ficou provado o motivo que determinou a intervenção policial.

No que concerne o crime de ofensa à integridade física qualificada, pelos mesmos fundamentos, impunha-se a substituição de pena de prisão por pena de multa, a fixar pelo mínimo. (…)”

Não lhe assiste, porém, razão. Efetivamente, ao contrário do que o recorrente pretende fazer crer, todas as circunstâncias indicadas no artigo 71º do CP, foram tidas em conta na sentença, conforme claramente se atesta pela leitura das considerações aí tecidas relativamente à determinação das medidas das penas, que passamos a transcrever apenas nas partes especificamente reportadas à situação dos autos:

“(…) 4.2.1. Da escolha e determinação da medida concreta da pena:

O crime de injúria agravada, quando a vítima seja uma das pessoas referidas no artigo 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal no exercício de funções ou por causa delas, é punido com pena de prisão de 1 mês e 15 dias a 4 meses e 15 dias ou com pena de multa de 15 a 180 dias – cf. artigos 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, 181.º e 184.º do Código Penal.

O crime de ofensa à integridade física qualificada imputado ao arguido é punido com pena de prisão de 1 mês a 4 anos – cf. artigos 41.º, n.º 1, 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal.

Assim, porquanto ao crime de injúria agravada é aplicável, alternativamente, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o Tribunal, em cumprimento do disposto no artigo 70.º do Código Penal, deve dar preferência à segunda sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades de punição (cf. ainda o artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa).

(…)

No caso vertente, estando em causa a prática de um crime de injúria agravada consideramos que as necessidades e exigências de prevenção geral são elevadas, uma vez que o crime de injúria tutela, em última análise, o valor do respeito pela dignidade da pessoa humana, na vertente da honra de outrem, que se agudiza pelas especiais qualidades das vítimas do crime em análise e pela deferência que lhe é exigida, quando no exercício de funções.

Quanto às exigências de prevenção especial, consideramo-las de grau diminuto, atendendo, em especial, a que o arguido, nascido em 1943, não tem quaisquer antecedentes criminais averbados ao seu registo criminal, o que permite inferir que este constitui um contacto pontual com o sistema judiciário, o que deverá militar a seu favor.

Por outro lado, também se afigura que o arguido se mostra social, familiar e profissionalmente inserido, o que, de igual modo, depõe a seu favor.

Tudo ponderado, afigura-se que é possível realizar um juízo de prognose positiva, no sentido de que a pena de multa realizará de forma adequada as finalidades da punição de proteção da confiança da comunidade na validade da norma jurídica violada e de interiorização, pelo arguido, do desvalor da sua conduta e subsequente ressocialização daquele, pelo que se opta pela pena de multa, quanto ao crime de injúria agravada.

*

Cumpre, agora, determinar a medida concreta das penas a aplicar ao arguido.

Com efeito, como dispõe o artigo 71.º, n.º 1, do CP e dentro dos limites definidos na lei, a medida da pena é determinada em função das exigências de prevenção e da culpa do agente, estipulando o n.º 2, do mesmo artigo que, na dosimetria da pena atender-se-ão a uma série de fatores, que deponham a favor ou contra o agente e que se reflitam no caso concreto, mas que não integrando o tipo legal, são relativos à execução do facto, à personalidade do agente anterior e posterior ao facto – cf. ainda o artigo 47.º, n.º 1, do Código Penal, no que tange à pena de multa.

No que respeita ao respeita ao quantitativo diário da pena de multa, versa o n.º 2 do artigo 47.º, do Código Penal, o qual determina que a cada dia de multa corresponde uma quantia entre os € 5,00 e € 500,00, a determinar tendo por referência a situação económica e financeira, bem como encargos pessoais do condenado.

Na determinação do quantum, o Tribunal ter presente que a pena de multa deve ser apta a representar uma censura do facto e também uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada, mas deve ainda ser assegurado ao condenado o nível existencial mínimo, considerando as suas condições socioeconómicas.

Baixemos, então, ao caso sub judice.

No que respeita ao grau de ilicitude, no que concerne aos crimes de injúria agravada, o Tribunal considera-o mediano, tendo por referências as concretas expressões e imputações.

No que tange ao crime de ofensa à integridade física qualificada, consideramos que o grau de ilicitude é diminuto, com base no tipo de agressão e ao meio empregado para a perpetrar, uma vez que o arguido utilizou apenas a força física e o seu corpo, que não manifesta uma idoneidade lesiva que se afigure especialmente expressiva, em particular atento à forma de agressão em causa.

Já no que tange às consequências dos factos, impor-se-á dizer que não se mostram significativas, designadamente, no que tange ao crime de ofensa à integridade física qualificada.

No que respeita à intensidade da culpa do arguido, revelada pelo grau de conhecimento e a intensidade da vontade, considera-se que se encontra num nível elevado, uma vez que se resultou provado que aquele atuou sempre, em todas as suas condutas, com dolo direto, ou seja, o mais elevado grau de censura jurídico-penal.

Quanto às necessidades de prevenção especial positiva e geral positiva, remetemos para o que oportunamente discorremos em sede de escolha da pena.

Em face do exposto, entende-se adequado e suficiente condenar AA pela prática de cada um dos dois crimes de injúria agravada na pena de 85 dias de multa e pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada na pena de 3 meses de prisão.

Finalmente, na determinação do quantitativo diário da sobredita pena de multa, atento ao que se julgou demonstrado nos n.ºs 15) a 17) quanto às condições socioeconómicas do arguido, afigura-se equilibrada a fixação do quantitativo diário das penas de multa em € 12,00 (doze euros).

Ademais, em face do expendido, afigura-se justo e equilibrado condenar o AA, pela prática de:

a) Dois crimes de injúria agravada, previstos e punidos 181.º e 184.º, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, nas penas de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, por cada um, à taxa diária de € 12,00 (doze euros);

b) Um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão.

Assim se decidirá.

*

4.2.2. Do cúmulo jurídico:

Determinadas as penas concretas que cabem a cada um dos crimes praticados pelo arguido, importa proceder à determinação da pena única do concurso de acordo com o artigo 77.º do Código Penal.

Tal pena deverá ser determinada dentro de uma moldura calculada nos termos do artigo 77.º, n.º 2, do mesmo código, cujo seu máximo corresponderá à soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, que quanto à pena de multa não poderá ultrapassar os 900 dias e quanto à pena de prisão não poderá ultrapassar 25 anos, e o mínimo fixar-se-á na mais alta das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Acrescentando n.º 3 deste ínsito normativo que se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.

No caso sub judice, para o arguido essa moldura abstrata de concurso das penas de multa fixar-se-á no seu mínimo em 85 dias multa e o máximo em 170 dias de multa.

Com efeito, como prescreve o artigo 77.º, n.º 1, in fine, do Código Penal, na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Desta forma, esta ponderação deverá centrar-se na ideia da “gravidade do ilícito global” que os factos em apreço ofereçam, bem como refletir a resposta à questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade – Figueiredo Dias, in Direito Penal Português..., ob cit, pág. 291, §421.

De acordo com os apontados critérios, e tendo em conta a gravidade dos ilícitos perpetrados pelo arguido, afigura-se-nos adequado, fixar a pena única de concurso das penas de multa em 145 (cento e quarenta e cinco) dias, com a aplicação de um quantitativo diário de € 12,00 (doze euros), nos termos atrás definidos, e mantendo-se incólume a pena de prisão aplicada.

O que se decidirá.

Face ao exposto, deve o arguido AA ser condenado pela prática, como autor material e em concurso efetivo, de dois crimes de injúria agravada, do Código Penal, devendo ser-lhe aplicada a pena única de 145 (cento e quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 12,00 (doze euros), o que perfaz a quantia global de € 1.740,00 (mil setecentos e quarenta euros) e pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, na pena 3 (três) meses de prisão.

Assim se decidirá.

*

4.2.3. Da suspensão da execução da pena de prisão:

Por fim, uma vez que ao arguido AA foi aplicada, além do mais, uma pena de 3 (três) meses de prisão, nos termos sobreditos, importa ainda ponderar a sua substituição por outra não privativa da liberdade.

A pena de prisão pode, no geral, ser cumprida em regime de permanência na habitação (cf. artigo 43.º do CP) ou ser substituída por pena de multa (artigo 45.º do CP), proibição do exercício de profissão, função ou atividade (artigo 46.º do CP), de prestação de trabalho a favor da comunidade (artigos 58.º e 59.º do CP) ou, ainda, suspensa na sua execução (artigo 50.º e seguintes do CP).

Confrontados os respetivos regimes, afigura-se que o Tribunal tem o dever de ponderar a possibilidade de substituição da pena de prisão e, verificados os pressupostos ali vertidos, deve fazê-lo. Ou seja, dos regimes das penas de substituição deflui um verdadeiro poder-dever, do Tribunal, de ponderar a substituição da pena e, sendo caso disso, optar por uma pena de substituição.

Na decisão de substituição da pena de prisão não são considerações de culpa que relevam, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto em análise, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.

No caso sub iudice, considerando a sua medida concreta, afigura-se admissível a ponderação substituição da pena por qualquer umas das sobreditas formas.

Todavia, tendo presente os concretos factos em apreço, as normas violadas e as finalidades da punição, consideramos que apenas a suspensão da pena de prisão deverá ser de equacionar, por se afigurar compaginável os fins da pena reclamados, sendo que as demais formas de cumprimento não os acautelam suficientemente.

Com efeito, dispõe o artigo 50.º do Código Penal que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Assim, alicerçando-nos apenas nas motivações apontadas no sobredito ínsito normativo e desconsiderando a culpa do agente na prática do facto, diremos que o facto de o arguido não ter antecedentes criminais de qualquer natureza e de se mostrar profissional, social e familiarmente inserido, impõe-nos a conclusão de que, neste momento, é perfeitamente possível fazer-se um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento daquele, no sentido de que a simples ameaça da pena de prisão é adequada e suficiente para permitir a reintegração do arguido na sociedade e a proteção dos bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora.

O artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal prescreve que o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.

Ademais, o artigo 53.º, n.º 1, do Código Penal, dispõe que o tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade, que, nos termos do n.º 2, assentará num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social.

Ora, atento os contornos específicos da prática do crime em discussão nestes autos, em meu entender, será de manifesta importância que a predita suspensão da execução da pena de prisão seja acompanhada por regime de prova, como forma de o arguido, nesse período, ter permanentes contactos com o sistema de justiça, materializados no plano de adaptação social a elaborar pela DGRSP.

Pelo exposto, deverá o arguido AA ser condenado, além do mais, na pena de 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, que será acompanhada de um regime de prova, a elaborar pela DGRSP da respetiva área de residência.

O que se decidirá.

(…)”

Nenhum reparo nos merece a sentença recorrida neste temário. Subscrevemos integralmente todas as considerações transcritas, que se nos afiguram acertadas e respeitadoras dos critérios legais, inexistindo nos autos, de outra sorte, elementos que suportem a conclusão apresentada pelo recorrente no sentido de que as penas de multa deveriam situar-se praticamente no limite mínimo da moldura abstrata. Assim, e ao contrário do que propugna o recorrente, a censurabilidade que nos merece a sua conduta, nos termos acima consignados, associada à ilicitude dos factos e à necessidades de prevenção geral e especial, também corretamente avaliadas pelo tribunal a quo, sustenta totalmente as penas concretas de multa, a pena única resultante do concurso e a pena de prisão fixadas pelo tribunal recorrido. No que diz respeito à aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão, diremos que tal decisão se nos afigura igualmente justificada. Nos termos do artigo 45.º, n.º 1 do Código Penal, a pena de multa aplicada em medida não superior a um ano “é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes”. Mais decorre do artigo 58.º, n.º 1, do Código Penal que a substituição da pena de prisão não superior a 2 anos por prestação de trabalho a favor da comunidade deve ocorrer sempre que o Tribunal concluir, «nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição”.

Ora, tais possibilidades de substituição foram criteriosamente valoradas pelo tribunal recorrido, conforme resulta do excerto transcrito, e não se revelaram adequadas. A verdade é que a gravidade das condutas do arguido leva a que se conclua que uma pena de multa ou de trabalho, aplicadas como penas de substituição, não seriam suficientes para realizar as finalidades da punição. As penas de substituição são penas autónomas, não existindo qualquer hierarquização na sua escolha. “In casu”, o tribunal suspendeu a execução da pena por ter entendido que as circunstâncias concretas permitem acreditar que a ameaça da prisão será suficiente para realizar a ressocialização, em liberdade, do arguido e, consequentemente, para realizar as finalidades da punição, decisão que não nos merece qualquer reparo.

*

Sopesadas todas as circunstâncias enunciadas, entendemos revelarem-se adequadas e proporcionais as penas parcelares e a pena única de multa e os respetivos quantitativos diários e bem assim a pena de prisão suspensa na sua execução com sujeição a regime de prova aplicados ao arguido pelo tribunal a quo, consignando-se o acerto no processo aplicativo desenvolvido na sentença, na qual avulta uma ponderação correta dos factos e uma adequada valoração dos mesmos à luz das regras e dos princípios que regem a escolha e a determinação da medida concreta da pena acima enunciados. Nesta conformidade, somos a concluir que a sentença recorrida realizou uma correta e equilibrada ponderação de todas as circunstâncias relevantes, tendo cumprido os critérios legalmente estabelecidos para a determinação das medidas das penas, encontrando-se adequadamente fundamentada, pelo que o recurso deverá improceder também quanto a este aspeto.

Improcedendo todos os fundamentos do recurso, nenhum reparo nos merece a decisão recorrida, pelo que a mesma se manterá nos seus precisos termos.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 28 de fevereiro de 2023.

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

Artur Vargues

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1 3.ª edição, página 1121.

2 Acórdão da Relação de Guimarães de 5 de março de 2018, relatado pelo Desembargador Jorge Bispo e disponível em www.dgsi.pt, reportando-se ao crime de difamação.

3 Silva Dias, “Alguns aspetos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias”, 1989, pág. 17.

4 Silva Dias, ob. cit. pág. 25.

5 Neste sentido, entre outros, ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de janeiro de 2009, Proc. 08P3056 e Acórdão da Relação do Porto de 27 de novembro de 2019, relatado pelo Desembargador Raúl Esteves, disponíveis em disponível em www.dgsi.pt.

6 Acórdão do STJ de 12.01.2017, relatado pelo Conselheiro Souto de Moura que rejeitou o Recurso para Uniformização de Jurisprudência interposto com vista a fixar se se determinada expressão, dirigida a alguém é, por si e independentemente de tudo mais, um crime de injúrias, disponível em www.dgsi.pt.

7 No sentido da imprescindível contextualização das palavras obscenas dirigidas aos visados para aferição da sua tipicidade penal, se pronunciaram também o acórdão da Relação de Évora de 20.12.2018, relatado pela Desembargadora Ana Barata Brito e o acórdão da Relação de Lisboa de 24.11.2020, relatado pelo Desembargador João Carrola, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

8 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.02.2011, proferido no Processo nº 16/07.6S6LDB.L1-3 e relatado por Maria José Costa Pinto.

9 Acórdão da Relação do Porto de 26.11.2003, relatado pelo Desembargador Manuel Braz, disponível em www.dgsi.pt.

10 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 3.ª Edição, 2019, Gestlegal, pp. 318/319.