Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | EDGAR VALENTE | ||
Descritores: | LIBERDADE CONDICIONAL PRESSUPOSTOS | ||
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Data do Acordão: | 06/25/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | No caso, a natureza e as características dos crimes cometidos pelo recluso (especialmente a violência doméstica), bem como a pena concreta em cumprimento (as circunstâncias do caso), apesar de não impedirem a concessão da LC (todos os crimes e penas a permitem), devem ser conexionadas de forma especialmente consistente com a evolução da personalidade do recluso durante o cumprimento da pena. Assim e considerando que, “sem interiorização da responsabilidade dificilmente será possível alterar comportamentos”, não é (pelo menos ainda) minimamente seguro que não possa reincidir em crimes até de natureza (violenta) semelhante. Por tudo o exposto, entende-se como prematuro do prognóstico de que o recluso irá passar a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem o cometimento de novos crimes. Consequentemente, entende-se que não se poderá considerar preenchido o requisito da alínea a) do n.º 2 do art.º 61.º do CP. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório. No Tribunal de Execução de Penas de … corre termos o processo de liberdade condicional referente a AA, em reclusão no Estabelecimento Prisional de …, sendo que, para apreciação dos pressupostos da liberdade condicional por referência aos ⅔ da pena, após instrução dos autos, o Conselho Técnico reuniu e emitiu o respetivo parecer, tendo sido ouvido o recluso e vindo a ser proferida decisão que não lhe concedeu a liberdade condicional. Inconformado, o condenado interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição): “A. O presente recurso tem como objeto a decisão judicial proferida no dia 22 de janeiro de 2025 com a referência …, nos termos do qual o Douto Tribunal a quo decidiu julgar improcedente o pedido de concessão de liberdade condicional formulado pelo arguido, B. por considerar por não estarem integralmente preenchidos os requisitos materiais (ou substanciais) da liberdade condicional, em particular, por não estar preenchido o requisito a que alude a alínea a) do n.º 2 do artigo 61.º do Código Penal. C. A decisão proferida padece de erro notório na apreciação de prova, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal ex vi artigo 246.º do CEPMPL. D. Esta assenta num juízo errado relativamente à prognose favorável exigida pela lei, isto é, relativamente ao comportamento do recluso/recorrente, de que quando em liberdade, saberá (ou não) conduzir a sua vida sem cometer crimes; E. Na decisão proferida em outubro no âmbito do processo de aferição da concessão da liberdade condicional a meio da pena (referência …) constatou-se que no “caso concreto, dir-se-á que não serão elevadas as necessidades de prevenção especial.” F. Destaca-se que o recluso tem vindo a desenvolver uma consciencialização mais crítica dos atos praticados apresentando “vergonha e arrependimento”; G. Dedicou-se a estudar o Código da Estrada com vista a poder tirar a carta de condução e, nesse pressuposto, procedeu à sua inscrição numa escola. H. Quanto ao comportamento tem demonstrado ser indivíduo educado, cumpridor das regras e com boa adaptação ao sistema; interage de forma regular e positiva com os seus pares; ao longo da reclusão tem-se mantido emocionalmente estável; sem registo de qualquer ocorrência ou infração durante o cumprimento da pena; I. O mesmo se referiu na informação datada de 5 de setembro de 2023 da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais para concessão da 1.ª saída jurisdicional, J. Atentas as circunstâncias do caso, a personalidade do recluso e a evolução desta ao longo do cumprimento da pena, existem fundadas razões para crer que, posto em liberdade, conduzirá a sua vida de forma socialmente responsável (n.º 2.º, al. a) do artigo 61.º CP); K. para além do facto de a libertação se mostrar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social (n.º 2.º, al. b) do artigo 61.º CP. L. As exigências de prevenção especial de socialização e satisfação das exigências de prevenção geral devem, assim, considerar-se preenchidas. M. O arguido já beneficiou de uma medida de flexibilização da pena, tendo-lhe sido concedidas três licenças de saída jurisdicional (LSJ) gozadas em outubro de 2023, março de 2024 e dezembro de 2024, respetivamente; N. Gozou, ainda, de 4 (quatro) licenças de saída de curta duração gozadas em dezembro de 2023, março/abril de 2024, julho de 2024 e outubro de 2024 -todas com avalização positiva. O. O recluso - desde a data da prática dos factos ocorridos em março de 2019 nunca mais voltou a incorrer na prática de crimes, P. O arguido frequentou programas específicos e/ou outras atividades socioculturais, mormente - e desde dezembro de 2022 - o programa “VIDA” dirigido a reclusos condenados pela tipologia de crime de violência doméstica). Q. O recluso sempre demonstrou vontade de trabalhar, tendo tido a possibilidade de o fazer tanto no EP… como depois no EP … e, mais tarde, no EP …, onde exerce presentemente as funções na brigada da vinha/horta/mata desde 16 de janeiro de 2024. R. O arguido conta com apoio e está inserido num ambiente familiar estável, tendo a possibilidade de reintegrar imediatamente o agregado onde residia com a sua companheira e as duas filhas de ambos contribuindo, desta forma, para a economia doméstica e familiar. A. O arguido tem vindo a ser bem-sucedido nos seus esforços de reintegração na sociedade, tendo obtido colocação profissional no Centro de Reciclagem de …. B. Assim, a possibilidade de uma eventual perda de uma oportunidade que sempre se considera essencial para efeitos da ressocialização dos agentes, muito poderia perigar este fim ao impor-se ao recluso – com a não concessão de liberdade - uma busca de nova colocação laboral que, considerando o carácter estigmatizante da prisão, sempre será complicada. C. Quanto à “personalidade e a evolução deste durante a execução da pena de prisão”, impõe-se sublinhar a postura absolutamente exemplar e irrepreensível do recluso, desde o início e ao longo de todo o período de reclusão – sem registo de qualquer infração disciplinar –, D. Também a nível familiar, não deve ser desconsiderado o risco de deterioração dos laços familiares que, infeliz, mas naturalmente, podem estar associados à distância e ao tempo que, quanto maior, mais difícil tornará a sua reintegração – E. tempo decorrido este que já não apagará a ausência na relação paternal com as filhas, em alturas de formação das crianças que sempre beneficiarão com a presença paterna (que no caso sempre foi edificante e carinhosa). F. Em face do exposto, deverão V. Exas. revogar a decisão recorrida e, nessa medida, conceder ao recluso a liberdade condicional aos 2/3 da pena, para que este possa prosseguir em liberdade o percurso positivo que vinha percorrendo, assim favorecendo o próprio fim das penas e o fim da sua efetiva reintegração social que, atendendo a todas as circunstâncias de prognose sociais, familiares e laboral, se justifica e é urgente, porque só pode ser positiva e trazer bons resultados, para o próprio e para a Justiça.” Peticionando, a final, o seguinte: “Nestes termos e nos melhores de Direito, dado que seja, por V. Exas., Venerandos Desembargadores, o V. douto suprimento, deve o presente ser recebido e, acolhidas que sejam as razões expostas, porque legais e justas, deve ser dada providência ao presente, revogando-se a douta decisão recorrida e substituindo-se por outra que, acolhendo os fundamentos expostos, decida pela concessão da liberdade condicional ao Recluso, aqui Recorrente, com o que será feita a desejada JUSTIÇA!” O recurso foi admitido. O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo: “1.º- O recluso AA interpôs recurso da Douta Sentença referência …, proferida em 22/01/2025, que não lhe concedeu a liberdade condicional, pedindo a revogação da mesma e a sua substituição por decisão que lhe conceda a liberdade condicional. 2.º- A decisão recorrida foi proferida após o conselho técnico, por maioria, ter emitido parecer desfavorável e o Ministério Público se ter pronunciado desfavoravelmente à libertação. 3.º- Aquela decisão foi proferida com referência aos dois terços da pena e decorridos pelo menos 6 meses da última apreciação, pelo que teve de apreciar se estava preenchido o pressuposto do artigo 61.º, n.º 2, alínea a), Código Penal. 4.º- Concordando com o sustentado na douta sentença recorrida, consideramos que não se mostram preenchidos os pressupostos do artigo 61.º, n.º 2, alínea a) Código Penal, o que impede a concessão da liberdade condicional. 5.º- Por decisão proferida no processo n.º 3860/24.6…, do Juízo Central Criminal de … (Juiz …) do Tribunal Judicial da Comarca de …, o recorrente foi condenado na pena única de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão, pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, 1 (um) crime de condução sem habilitação legal, 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário e 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada. A execução da pena foi liquidada nos seguintes termos: meio 20 de Maio de 2024, dois terços em 9 de Fevereiro de 2025 e termo em 20 de Julho de 2026. 6.º- A Douta Sentença recorrida contém uma explicação concreta e detalhada dos fundamentos para não atribuir a liberdade condicional ao recorrente, fazendo uma análise do percurso do recluso, considerando o teor da douta sentença condenatória e todos os elementos que instruem os presentes autos, não se limitando a fazer uma exposição acrítica dos elementos e informações trazidas aos autos. 7.º- Importa sublinhar que o recorrente não pugna pela alteração dos factos dados como provados na Sentença que negou a concessão da liberdade condicional, pelo que não existe fundamento para invocar que a “decisão proferida padece de erro notório na apreciação de prova, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal ex vi artigo 246.º do CEPMPL.” 8.º- O recluso conta com condenações anteriores pela prática de 9 (nove) crimes de condução sem habilitação legal e 1 (um) crime de homicídio por negligência (em acidente de viação), encontrando-se preso pela quinta vez. 9.º- Dos antecedentes criminais resulta uma tendência do recluso para repetir a prática de crimes da mesma natureza. Isso aconteceu com o crime de condução sem habilitação legal. 10.º- No que respeita ao crime de violência doméstica entendemos não existirem evidências sólidas de que o recluso tenha consciência crítica plena sobre as suas condutas, das consequências para a vítima, revelando dificuldade em compreender a danosidade associada à conduta. 11.º- Importa sublinhar que a não concessão de liberdade condicional resultou da ausência de sentido autocrítico do recluso, em especial quanto ao crime de violência doméstica. 12.º- Analisado o percurso prisional e as competências demonstradas e adquiridas, consideramos que o recluso continua a apresentar necessidade de desenvolver estratégias preventivas da reincidência, bem como a necessidade de ganhar competências a nível pessoal que lhe permitam adotar um comportamento e um percurso de vida conforme ao direito. 13.º- Desta forma, continua a não se vislumbrar uma alteração suficiente e sustentada de comportamento e atitude do recluso que permita formular um juízo de que irá conduzir a sua vida de forma diferente em contextos da mesma natureza. 14.º- Ao decidir naqueles termos, a douta sentença efetuou uma correta aplicação do disposto no artigo 61.º n.º 2, al. a), do Código Penal. 15.º- Acresce que o recorrente não pugna pela alteração dos factos dados como provados na sentença que negou a concessão da liberdade condicional. 16.º - A Douta Sentença recorrida não violou qualquer das normas legais invocadas no recurso. 17.º- Pelo exposto, o recurso interposto pelo recluso não merece provimento, devendo manter-se a Douta Sentença recorrida.” O Digno PGA neste TRE emitiu parecer expressando, essencialmente, que: “O arguido não colocou em crise o acervo de factualidade descrito na sentença recorrida e funda a sua pretensão, essencialmente, na sentença proferida nos autos, a 03-10-2023, com a referência … (aferição da concessão da liberdade condicional a meio da pena) e na Informação da DGRSP para concessão da 1ª saída jurisdicional, datada de 05-09-2023. (…) Mesmo assim, consigna-se ainda que, no dia 05.12.2024, a DGRSP remeteu aos autos Relatório Social para a concessão da liberdade condicional aos 2/3 da pena, em que essa entidade considerou que o recluso “Consegue fazer uma apreciação crítica relativamente ao seu comportamento criminal, contudo, já anteriormente aparentava essa competência, o que não o impediu de ter voltado a cometer crimes, revelando défices ao nível do pensamento consequencial e ao nível da empatia para com as vítimas ou potenciais vítimas do seu comportamento desajustado.” E no auto de audição do recluso pelo Tribunal, do dia 06.01.2025, consta que quando instado a pronunciar-se sobre o crime de violência doméstica, por que cumpre pena, afirmou que: “(…) também o praticou. Teve uma desavença com uma ex-companheira. Queria separar-se dela para voltar a viver com a mãe das suas filhas e ela não queria sair de casa. Tiveram várias discussões e numa da ocasião, dentro do carro, deu-lhe uma bofetada, o que admitiu no julgamento.” Estas declarações do recluso, quando confrontadas com a factualidade julgada provada no processo em que foi condenado pela prática do crime de violência doméstica, confirmam as dúvidas suscitadas no relatório da DGRSP e a total desvalorização da conduta do recluso que determinou a sua condenação por aquele crime, pelo que sustentam a conclusão do Tribunal no sentido de não ser possível fazer juízo positivo quanto à evolução da personalidade do recluso e quanto à sua futura capacidade para manter comportamento social responsável e isento da prática de crimes, nomeadamente, daquela mesma natureza. * Pelo exposto, comunga-se da conclusão indicada na resposta ao recurso de que este deverá ser julgado totalmente improcedente e, consequentemente, manter- -se a sentença que não concedeu ao recluso a liberdade condicional.” Procedeu-se a exame preliminar. Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, respondendo o recorrente com conteúdo essencialmente semelhante à motivação anteriormente apresentada e defendendo, em síntese, que este TRE deverá “revogar a decisão recorrida e, nessa medida, conceder ao recluso a liberdade condicional aos 2/3 da pena, para que este possa prosseguir em liberdade o percurso positivo que vinha percorrendo, assim favorecendo o próprio fim das penas e o fim da sua efetiva reintegração social que, atendendo a todas as circunstâncias de prognose sociais, familiares e laboral, se justifica e é urgente, porque só pode ser positiva e trazer bons resultados, para o próprio e para a Justiça!” Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa: “(…) O conselho técnico reuniu, prestando os seus membros os esclarecimentos que lhes foram solicitados e emitindo, por maioria, parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional (art. 175º, nºs 1 e 2, do CEPMPL) – cfr. fls. 213. Procedeu-se à audição do recluso, nos termos estabelecidos no art. 176º do CEPMPL, sendo que aquele consentiu na aplicação da liberdade condicional. Em sede de audição o recluso não ofereceu quaisquer provas – cfr. fls. 214-214v. Cumprido o disposto no art. 177º, nº 1, do CEPMPL, o Ministério Público emitiu parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional – cfr. fls. 215-215v. (…) II – Fundamentação II – A) Dos Factos O tribunal considera provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos: 1. Quanto às circunstâncias do caso: 1.1. O recluso AA cumpre à ordem do processo nº 3860/24.6…, do Juízo Central Criminal de … (Juiz …) do Tribunal Judicial da Comarca de …, a pena única de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão, pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, 1 (um) crime de condução sem habilitação legal, 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário e 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada (pena aplicada em acórdão de cúmulo jurídico de penas, que englobou as penas parcelares aplicadas nos processos nºs 104/19.6… e 1011/19.8…); 1.2. O referido crime de violência doméstica relaciona-se, em síntese, com a seguinte factualidade: o recluso e a ofendida viveram um com o outro como se fossem marido e mulher desde Fevereiro de 2018 até Março de 2019, ocasião em que o recluso foi detido para cumprimento de uma outra pena de prisão, cessando então o relacionamento; entre Março de 2018 e a separação do casal, em diversas ocasiões, designadamente no interior da residência comum, o recluso agrediu a ofendida física e verbalmente; numa dessas ocasiões, ocorrida em 4 ou 5 de Janeiro de 2019, no interior do quarto do casal, o recluso colocou o seu corpo sobre o corpo da ofendida, desferiu-lhe murros na cara e apertou-lhe o pescoço com força, fazendo-a perder o ar, ao mesmo tempo que dizia que qualquer dia a matava (na sequência desse episódio, a ofendida foi internada no Hospital …, com um diagnóstico de acidente vascular cerebral, aí permanecendo internada até ao dia 21 de Janeiro de 2019); no dia 27 de Julho de 2019, encontrando-se o casal já separado, o recluso telefonou para a ofendida, ameaçando-a; 1.3. Os referidos crimes de condução sem habilitação legal, condução perigosa de veículo rodoviário e ofensa à integridade física na forma qualificada na forma tentada relacionam-se, em síntese, com a seguinte factualidade: no dia 2 de Março de 2019, o recluso conduzia um veículo automóvel na via pública, transportando consigo a sua ex-companheira; o recluso conduzia o referido veículo sem que fosse titular de carta de condução e apresentando uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 1,97 g/l; ao avistar elementos da GNR que efectuavam patrulhamento rodoviário, de imediato se colocou em fuga, imprimindo ao veículo por si conduzido velocidade próxima dos 100 km por hora e desrespeitando diversas regras e sinais de trânsito, designadamente transpondo a linha separadora das vias, conduzindo na faixa contrária ao seu sentido de marcha, não parando no sinal “STOP” e no semáforo vermelho, efectuando ultrapassagens em local proibido e não obedecendo a sinais de paragem que lhe foram dados pelo militares da GNR que o perseguiram; a dado passo, o recluso imobilizou o veículo que conduzia, do qual saiu, dirigindo-se a um militar da GNR, que tentou agredir fisicamente; 1.4. A pena referida no ponto 1.1. dos factos provados foi liquidada nos seguintes termos: - Início – 21 de Março de 2022; - Metade (1/2) – 20 de Maio de 2024; - Dois terços (2/3) – 9 de Fevereiro de 2025; - Termo – 20 de Julho de 2026; 2. Quanto à vida anterior do recluso: 2.1. O recluso, nascido a … de 1982 (actualmente conta com 42 anos de idade), é natural e nacional de …; 2.2. Aos 18 anos de idade veio viver para junto da mãe, que residia em Portugal, no …; 2.3. Durante o tempo em que permaneceu em …, o recluso ficou a residir com a avó materna, não tendo conhecimento do paradeiro do pai; 2.4. Pertence a uma fratria de sete irmãos, (quatro rapazes e três raparigas), sendo o recluso o segundo elemento (todos se estabilizaram na zona do …); 2.5. A mãe exercia actividade de …, conseguindo garantir a satisfação das necessidades básicas; 2.6. No entanto, as condições habitacionais e sociais da família eram precárias; 2.7. O recluso completou o 9ºano de escolaridade em … e quando veio para Portugal iniciou actividade laboral na área de construção civil; 2.8. Nos últimos 10/12 anos antes de ser preso, o seu percurso laboral foi como …, nas empresas, …, sempre com contrato de trabalho; 2.9. Aos 21 anos de idade, o recluso iniciou relação amorosa com BB, mãe do seu primeiro filho, vivendo maritalmente com aquela durante cerca de 9 anos; 2.10. Manteve um relacionamento regular com o filho até ao início da pandemia, tendo-se nessa altura registado um afastamento em relação ao descendente; 2.11. O recluso iniciou relação amorosa com CC quando ainda residia com BB; 2.12. O recluso e CC iniciaram relação marital no ano de 2014, tendo da mesma nascido duas filhas gémeas; 2.13. Em 2017, o recluso e CC romperam o relacionamento, quando este já tinha uma relação de namoro com a ofendida mencionada no ponto 1.2. dos factos provados; 2.14. Após a separação da aludida ofendida e durante anterior período de reclusão (que perdurou entre 4 de Março de 2019 e 3 de Novembro de 2020 (o recluso foi libertado no âmbito do perdão previsto na Lei nº 9/2020, de 10 de Abril), verificou-se reconciliação com CC; 2.15. Após a sua libertação, o recluso foi viver para a casa de CC, sita em …; 2.16. A partir de Fevereiro de 2021 passou a trabalhar para a “….”, com contrato de trabalho, auferindo o ordenado mínimo nacional; 2.17. Encontrava-se colocado na Câmara Municipal do …, na manutenção de espaços verdes daquele município e a companheira trabalhava como auxiliar de educação na Santa Casa da Misericórdia do …, tendo como vencimento o ordenado mínimo nacional; 2.18. Para além das condenações referidas no ponto 1.1. dos factos provados, o recluso regista ainda condenações pela prática de 9 (nove) crimes de condução sem habilitação legal e 1 (um) crime de homicídio por negligência (em acidente de viação), respeitando a sua primeira infracção criminal a factos praticados em 13 de Março de 2002; 2.19. Encontra-se preso pela quinta vez, datando a sua primeira reclusão de quando tinha 26 anos de idade; 3. Quanto à personalidade do recluso e evolução daquela durante a execução da pena: 3.1. O recluso refere que cumpre pena de prisão pela prática de crimes de condução sem habilitação legal e de violência doméstica; 3.2. Especifica que «praticou os crimes de condução sem habilitação legal. Utilizava o carro para ir para o trabalho. Inscreveu-se na escola de condução, mas nunca chegou a fazer o exame de código. Continua inscrito na escola de condução (inscreveu-se em 2023, quando estava no …)»; 3.3. Acrescenta que «quanto ao crime de violência doméstica, também o praticou. Teve uma desavença com uma ex-companheira. Queria separar-se dela e voltar para a mãe das suas filhas e ela não queria sair de sua casa. Tiveram várias discussões e numa ocasião, dentro do carro, deu-lhe uma bofetada, o que admitiu no julgamento»; 3.4. No Estabelecimento Prisional (EP) não regista qualquer infracção punida disciplinarmente; 3.5. Tendo iniciado o cumprimento da pena no EP de …, aí exerceu funções como faxina entre 7 de Julho de 2022 e 2 de Janeiro de 2023, sendo então transferido para o EP do …; 3.6. No EP do … exerceu funções como faxina entre 17 de Agosto de 2023 e 14 de Janeiro de 2024, sendo então transferido para o EP de …, onde exerce funções na brigada da vinha/horta/mata desde 16 de Janeiro de 2024; 3.7. Beneficiou de 3 (três) licenças de saída jurisdicional (LSJ), gozadas em Outubro de 2023, Março de 2024 e Dezembro de 2024, bem como de 4 (quatro) licenças de saída de curta duração (LSCD), gozadas em Dezembro de 2023, Março/Abril de 2024, Julho de 2024 e Outubro de 2024, todas com avaliação positiva; 3.8. Encontra-se colocado em regime aberto no interior (RAI) desde 20 de Dezembro de 2023; 4. Situação económico-social e familiar: 4.1. Uma vez em liberdade, o recluso reintegrará o agregado familiar referido no ponto 2.15. dos factos provados, constituído pela sua companheira e pelas duas filhas do casal, actualmente com … anos de idade; 4.2. Tal agregado habita em apartamento próprio, de tipologia T2, com boas condições de habitabilidade, sito em …; 4.3. A companheira do recluso continua a desempenhar a actividade profissional mencionada no ponto 2.17. dos factos provados; 5. Perspectivas laborais/educativas: 5.1. Uma vez em liberdade, o recluso perspectiva voltar a trabalhar no Centro de Reciclagem de …, que lhe apresentou proposta nesse sentido; 5.2. Pretende igualmente frequentar as aulas na escola de condução, na qual se encontra inscrito desde 17 de Julho de 2023 (i.e., quando já se encontrava preso). Com interesse para a decisão, inexistem factos não provados. * II – B) Motivação II – B – 1) Motivação Fáctica (…) * II – B – 2) Motivação de Direito (…) Regressando ao caso concreto e subsumindo os factos ao direito, é isento de dúvidas que se mostram preenchidos os pressupostos formais da liberdade condicional, pois o recluso: - Já cumpriu pelo menos 6 meses de prisão; - Já cumpriu metade da pena; - Aceitou ser libertado condicionalmente. No que diz respeito aos requisitos de natureza material, estando em causa nos autos a apreciação da liberdade condicional por referência aos dois terços da pena, apenas se mostra necessário o preenchimento da primeira das exigências a que supra fizemos referência (…), ou seja, a relacionada com as razões de prevenção especial de socialização. (…) No caso dos autos, verifica-se que o recluso regista antecedentes criminais muito relevantes (encontra-se preso já pela quinta vez), bem como vastos antecedentes criminais, todos relacionados com a prática de crimes estradais. Relevam também as suas supra-referidas de condições de crescimento e de desenvolvimento, bem como, de modo premente, a sua situação sociofamiliar à época da prática dos factos, conforme relatado nos factos provados; (…) No caso dos autos, julgamos que os crimes pelos quais o recluso cumpre pena resultam essencialmente do já referido enquadramento familiar à época da prática dos factos (quanto ao crime de violência doméstica) e da vontade reiterada em conduzir veículos automóveis sem ter habilitação legal para tanto, desconsiderando as diversas condenações de que foi alvo por factos idênticos. (…) De qualquer modo (…), conforme resulta dos pontos 3.1. e 3.2. dos factos provados, verifica-se evidente falta de sentido autocrítico por parte do recluso, que para além de nada referir quanto a alguns dos crimes pelos quais cumpre pena, tenta atribuir ao crime de violência doméstica muito menor gravidade do que aquela que efectivamente teve, assim o desvalorizando. Ora, tal ausência de sentido autocrítico por parte do recluso constitui sério factor de risco de recidiva criminal. Com efeito, a este propósito cumpre referir que nos crimes de violência doméstica a taxa de reincidência é elevada, pelo que a circunstância daquele demonstrar gritante inconsciência quanto ao seu mau-agir constitui motivo de especial preocupação […]. (…) Regressando ao caso concreto, verifica-se que o recluso mantém comportamento prisional isento de reparos, o que lhe é favorável. Tem vindo a demonstrar hábitos de trabalho, o que constitui factor de protecção quanto à sua capacidade para em liberdade se conseguir sustentar sem recorrer à prática de crimes. A sua reaproximação ao meio livre tem vindo a ser testada de forma consistente, positiva e duradoura, através da concessão de LSJ e de LSCD, beneficiando também de forma positiva da sua colocação em RAI há já mais de um ano. As suas perspectivas de inserção familiar, habitacional e laboral são também favoráveis. Fazendo a análise conjunta de todos os factores referidos, verifica-se que apesar da existência de diversos pontos que militam a favor do recluso, verifica-se que estes não são suficientes para debelar o elevado risco de recidiva criminal que no caso se faz sentir, resultante quer do passado criminal e penitenciário do recluso (sobretudo quanto aos crimes estradais, sendo que a circunstância de estar inscrito na escola de condução não significa que venha efectivamente a obter carta de condução e também não significa que fora do circunstancialismo próprio da frequência de aulas de condução não continue a conduzir veículos automóveis, conforme tem vindo reiteradamente a fazer), quer ainda da ausência de juízo autocrítico (em relação a todos os crimes, mas em especial em relação ao crime de violência doméstica). Deste modo, entende o tribunal não ser possível fazer juízo positivo quanto à evolução da personalidade do recluso e quanto à sua futura capacidade para manter comportamento social responsável e isento da prática de crimes (maxime da mesma natureza). Assim, não se encontra preenchido o requisito a que alude a alínea a) do nº 2 do art. 61º do Cód. Penal. Logo, há que concluir no sentido de não se encontrarem reunidos os requisitos necessários para que seja concedida a liberdade condicional.” 2 - Fundamentação. A. Delimitação do objecto do recurso. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412.º do Código de Processo Penal), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso. A questão (única1) a decidir no presente recurso é a seguinte: estão (ou não) verificados todos os pressupostos / requisitos para concessão da liberdade condicional ao recluso recorrente. B. Decidindo. Questão (única): estão (ou não) verificados todos os pressupostos / requisitos para concessão da liberdade condicional ao recluso recorrente. Segundo o n.º 9 do Preâmbulo do D.L. n.º 400/82, de 23 de Setembro, a liberdade condicional (doravante LC) tem como objectivo «criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão». Este instituto tem, pois, uma «finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização»2. Já quanto à natureza jurídica da LC, é a doutrina quase unânime no sentido de que se trata de realidade inerente à execução da pena, ou seja, uma «medida penitenciária»3, uma «circunstância relativa à execução da pena»4, um incidente de execução da pena5, uma medida de execução da pena6, um benefício penitenciário7 ou um direito do condenado8, sendo certo que, com a reforma do Código Penal de 2007, a liberdade condicional terá, em qualquer circunstância, um máximo de 5 anos, considerando-se então extinto o excedente da pena (art.º 61.º, n.º 5), o que consubstancia uma verdadeira modificação redutora da pena9. Segundo o art.º 61.º do C. Penal, são pressupostos (formais) de concessão da LC: 1) Que o recluso tenha cumprido metade da pena e, no mínimo, 6 (seis) meses de prisão (n.º 2), ou dois terços da pena e, no mínimo, 6 (seis) meses de prisão (n.º 3), ou 5/6 da pena, quando a pena for superior a 6 (seis) anos (n.º 4); 2) Que aceite ser libertado condicionalmente (n.º 1); São, por outro lado, requisitos (substanciais) indispensáveis: A) que, fundadamente, seja de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão10, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes; B) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social ; (excetuado o disposto no n.º 3 do preceito em causa) Relativamente aos requisitos da LC, parece líquido que o da alínea A) assegura uma finalidade de prevenção especial enquanto que o da alínea B) prossegue um escopo de prevenção geral 11. Para análise (e avaliação do respetivo preenchimento) dos diversos conceitos que integram o requisito da alínea A)12, importa efetuar uma breve reflexão sobre os objetivos programáticos do instituto. Neste sentido, deve antes de mais sublinhar-se a existência de duas correntes, a saber, por um lado, a europeia tradicional, que concebia a liberdade condicional como uma manifestação do direito de graça e, por outro lado, a anglo-americana, segundo a qual a liberdade condicional se configura como um meio para a reforma do condenado.13 A nossa lei, ao prescrever a exigência de uma “prognose favorável” radicada na ideia de que o recluso virá a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes, tende claramente para a segunda das mencionadas correntes, entendendo-se que o «sistema premial» (inerente à primeira das conceções) não é correto nem legal.14 Assim, sublinhando-se que a efetiva reinserção social (ou, por outras palavras, a condução da vida do libertado condicionalmente de modo socialmente responsável e sem o cometimento de novos crimes) é o objetivo da LC, a possibilidade de, no caso concreto, tal escopo ser efetivamente alcançado há-se revelar-se através das dimensões pessoais cristalizadas no discurso normativo, a saber: 1) as circunstâncias do caso. 2) a vida anterior do agente. 3) a sua personalidade. 4) a evolução desta durante a execução da pena de prisão. Explicitando um pouco tais dimensões subjectivas, entendemos que: 1) A análise das circunstâncias do caso passa, naturalmente, pela valoração do crime cometido, ou seja, para além da sua natureza, das realidades normativas que serviram para a determinação concreta da pena, nos termos do art.º 71.º, números 1 e 2 do C. Penal e, inerentemente, à medida concreta da pena em cumprimento. 2) A consideração da vida anterior do agente (já também valorada na determinação concreta da pena, nos termos da alínea e) do n.º 2 do referido art.º 71.º) relaciona-se com a existência ou não de antecedentes criminais. 3) A referência à personalidade do recluso deve reconduzir-se, para além de uma valoração fundamentalmente estatística decorrente dos antecedentes criminais (quantos mais, mais se indicia uma personalidade não conforme ao direito15 e, potencialmente, não merecedora da liberdade condicional), a uma vertente de compreensão por um determinado percurso criminoso quando o agente a isso foi conduzido por circunstâncias que não controlou ou não controlou inteiramente16. 4) Entendemos que a evolução da personalidade do recluso durante a execução da pena de prisão deve ser percetível através de algo que transcenda a esfera meramente interna psíquica daquele, ou seja, através de padrões comportamentais temporalmente persistentes que indiciem um adequado processo de preparação para a vida em meio livre. Deve sublinhar-se, como flui meridianamente do afirmado, que a evolução positiva da personalidade do recluso durante a execução da pena de prisão não se exterioriza nem se esgota necessariamente através de uma boa conduta17 prisional, muito embora haja uma evidente identidade parcial. Assim, os referidos padrões poderão revelar-se, quer em termos omissivos (através da ausência de punições disciplinares ou de condutas especialmente desvaliosas, como o consumo de estupefacientes18, quando não motive as referidas punições), quer ativamente (através do empenho no aperfeiçoamento das competências pessoais – laborais , académicas, formativas) ao longo do percurso prisional do recluso. Quanto à alínea B), trata-se de, ao ponderar a possibilidade de concessão da liberdade condicional, assegurar a operatividade da prevenção geral positiva, que a lei, aliás, já prevê como um dos escopos da execução da pena de prisão ao instituir que a mesma serve a defesa da sociedade (art.º 43.º, n.º 1 do C. Penal). * In casu, estão preenchidos os pressupostos da LC, pois o recluso já cumpriu mais de ⅔ da pena de prisão em que foi condenado e declarou aceitar a liberdade condicional caso esteja em condições de lhe ser concedida. O pomo nuclear da questão a resolver repousa, assim, nos requisitos da LC, que o Mm.º Juiz a quo entende não estarem preenchidos, entendendo o recorrente o inverso. Vejamos. Desde logo, cumpre salientar os erros em que o recorrente labora quando afirma que o tribunal “decidiu julgar improcedente o pedido de concessão de liberdade condicional formulado pelo arguido”. Assim, mostra-se evidente que, nesta sede, o recluso não é “arguido”, mas condenado, uma vez que se encontra a cumprir uma pena de prisão decretada em decisão transitada em julgado. Depois, a LC não tem de ser pedida (e, como tal, a haver pedido, o tribunal não o julga improcedente), já que, como consta do art.º 61.º do C. Penal, verificadas determinadas condições, o tribunal “coloca o condenado a prisão em liberdade condicional”. Assim, “[v]erificados os requisitos formais e de fundo, é poder-dever do tribunal colocar o condenado em liberdade condicional.”19 Também alega o recorrente a existência de erro notório na apreciação da prova. (art.º 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP) Como é sabido, as circunstâncias previstas no art.º 410.º, n.º 2 do CPP significam uma “extensão do recurso aos chamados «vícios da matéria de facto»”20. Ora, verifica-se que o recorrente não coloca em causa a matéria de facto provada, mas apenas a interpretação (no sentido da ausência de “sentido autocrítico”, como aquele afirma) que o tribunal efetuou de tais factos e da conclusão a que chegou. Deste modo, afigura-se-nos como essencialmente incorreto afirmar que a “decisão não fundamenta as razões de ciência em que se baseou para concluir” pela falta de sentido autocrítico. A referida falta de sentido autocrítico não é um facto, mas uma conclusão que se pode extrair de factos, estando, assim, afastada a existência de tal vício, uma vez que o mesmo “tem lugar quando, nos próprios termos da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência (…) se deva concluir que se teve como provado algo que notoriamente não se poderia como tal considerar, o que logo é perceptível ao observador comum (…).21” Entendemos que a LC não foi concedida por uma plêiade de razões que estão expressamente previstas na lei, integrando a valoração dos antecedentes criminais (AC) muito significativos apenas uma das vertentes (a vida anterior do agente, como vimos) que tem de ser levada em conta para efeito de ponderação sobre a concessão da LC. Aliás, os AC são valorados na determinação de qualquer pena (a conduta anterior ao facto referida no art.º 71.º, n.º 2, alínea e) do CP) e nem por isso deve tal valoração ser afastada porque o agente já cumpriu as penas por tais crimes. Afirma o recorrente que na decisão sob censura resulta “praticamente o inverso” da “falta de sentido autocrítico”. Salvo o devido respeito, tal, efetivamente, não se verifica: Da decisão recorrida consta, como vimos, que o recluso “para além de nada referir quanto a alguns dos crimes pelos quais cumpre pena, tenta atribuir ao crime de violência doméstica muito menor gravidade do que aquela que efectivamente teve, assim o desvalorizando. Ora, tal ausência de sentido autocrítico por parte do recluso constitui sério factor de risco de recidiva criminal.” Assim, sinteticamente quanto aos requisitos substanciais, diremos: (i) As circunstâncias do caso – Os contornos do concreto crime de violência doméstica são especialmente significativos, pelo carácter violento do condenado (expressivamente exteriorizado no seguinte trecho da decisão recorrida referente à decisão condenatória, como vimos: “(…) desferiu-lhe murros na cara e apertou-lhe o pescoço com força, fazendo-a perder o ar, ao mesmo tempo que dizia que qualquer dia a matava (na sequência desse episódio, a ofendida foi internada no Hospital …, com um diagnóstico de acidente vascular cerebral, aí permanecendo internada até ao dia 21 de Janeiro de 2019); no dia 27 de Julho de 2019, encontrando-se o casal já separado, o recluso telefonou para a ofendida, ameaçando-a.” (ii) A vida anterior do recluso – Os numerosos AC do recluso, sendo que está preso pela 5.ª vez. (iii) A personalidade do recluso e a sua "evolução": A personalidade do recluso é, sem margem para dúvidas, violenta. Uma personalidade desse tipo exige que se evidencie uma evolução que exteriorize um efetivo abandono futuro da violência, ou seja, em casos de personalidades violentas, não basta um percurso prisional sem sanções disciplinares, exigindo-se algo mais, um plus que exteriorize que o recluso não praticará (previsivelmente) atos violentos em liberdade. Em síntese, concorda-se com o teor da decisão recorrida quando ali se afirma que o recluso tenta atribuir ao crime de violência doméstica muito menor gravidade do que aquela que efectivamente teve, assim o desvalorizando, sendo que tal ausência de sentido autocrítico por parte do recluso constitui sério factor de risco de recidiva criminal. Do exposto flui que, tratando-se de pessoa com uma personalidade violenta, a ausência de autocrítica consubstancia a existência inquestionável de um substancial perigo de recidiva criminal, que qualquer contrariedade poderá espoletar. Deste modo, consideramos que a natureza e as características dos crimes cometidos pelo recluso (especialmente a violência doméstica), bem como a pena concreta em cumprimento (as circunstâncias do caso), apesar de não impedirem a concessão da LC (todos os crimes e penas a permitem), devem ser conexionadas de forma especialmente consistente com a evolução da personalidade do recluso durante o cumprimento da pena. Assim e considerando que, “sem interiorização da responsabilidade22 dificilmente será possível alterar comportamentos”23, não é (pelo menos ainda) minimamente seguro que não possa reincidir em crimes até de natureza (violenta) semelhante. Por tudo o exposto, entende-se como prematuro do prognóstico24 de que o recluso irá passar a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem o cometimento de novos crimes. Consequentemente, entende-se que não se poderá considerar preenchido o requisito da alínea a) do n.º 2 do art.º 61.º do CP. O recurso é, assim, totalmente improcedente. 3 - Dispositivo. Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais) (Processado em computador e revisto pelo relator) Edgar Valente (relator) Artur Vargues (1.º adjunto) Moreira das Neves (2.º adjunto)
.............................................................................................................. 1 Independentemente da controvertida questão da categorização da decisão que conhece da LC (sentença ou despacho, sendo que, caso se entenda que integra esta última categoria, nunca seria admissível a invocação e conhecimento do alegado vício, privativo das sentenças), como veremos, a alegação in casu do vício de erro notório na apreciação da prova não tem qualquer autonomia relativamente à questão única mencionada. 2 Neste exato sentido, vide Jorge de Figueiredo Dias in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, página 528. 3 Assim, Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend in Tratado de Derecho Penal, Parte General, quinta edição, Comares, Granada, Dezembro de 2002, página 915. 4 É a posição defendida em Curso de Derecho Penitenciario, 2.ª edição, Tirant lo Blanch, Valencia 2005, página 343, por Josep-María Tamarit Sumalla, Ramón Garcia Albero, Maria-José Rodríguez Puerta e Francisco Sapena Grau. 5 Jorge de Figueiredo Dias, ibidem. No mesmo sentido, entre outros, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário ao Código Penal, 3.ª edição, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, página 327 e Maria João Antunes in Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2.ª edição, 2022, páginas 116 e 123. 6 Joaquim Boavida in A Flexibilização da Prisão, da Reclusão à Liberdade, Almedina, Coimbra, 2018, página 125. 7 Neste sentido, vide Manuel Vega Alocén in La Libertad Condicional en el Derecho Espanhol, Civitas, Madrid, 2001, página 139. 8 Direito “sujeito ao cumprimento das condições para a sua concessão...”. Carlos Mir Puig in Derecho Penitenciario. El Cumplimiento de la Pena Privativa de Liberdad, 4.ª edição, Atelier, Libros Jurídicos, Barcelona, 2018, página 162. 9 Segundo Artur Vargues (Alterações ao Regime da Liberdade Condicional, Revista do CEJ, 1.º semestre 2008, página 58), “estamos aqui perante uma verdadeira modificação substancial da condenação penal traduzida na redução da mesma, que manifestamente bule com o princípio da intangibilidade do caso julgado (e coloca em dúvida a própria natureza jurídica da liberdade condicional enquanto entendida como incidente ou forma de execução da pena e não de modificação posterior da condenação, que agora é susceptível de estar posta em causa).” 10 A lei atual seguiu, ipsis verbis, a sugestão de Jorge de Figueiredo Dias (Ob. cit., página 539), ao afirmar que devem ser tomados em consideração todos os elementos necessários ao prognóstico efetuado para decretar a suspensão de execução da pena de prisão. 11 Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Direito Prisional Português e Europeu, Coimbra Editora, 2006, página 356; concordantemente, também António Latas – Intervenção Jurisdicional na Execução das Reacções Criminais Privativas da Liberdade – Aspectos Práticos in Direito e Justiça, Vol. Especial, 2004, página 223 e 224 nota 32. 12 Nos presentes autos especificamente em causa. 13 Josep-María Tamarit Sumalla e outros in Ob. cit., página 343, nota 5). 14 Neste sentido, João Luís Moraes Rocha (coordenador) in Entre a Reclusão e a Liberdade – Estudos Penitenciários, Almedina, 2005, página 47. 15 Neste sentido se pode interpretar a referência de Hans-Heinrich Jescheck e outro in Ob. cit., página 902, quando afirma que a personalidade do agente, como circunstância a levar em conta para determinar se deve ser decretada a suspensão de execução da pena (em que deve ser efetuado um prognóstico similar ao da liberdade condicional, como vimos), o pode ser negativamente, em prejuízo daquele. 16 Estamos aqui a considerar a falta/atenuação da chamada culpa pela condução de vida (expressão utilizada por Günter Jakobs in Derecho Penal, Parte General, Fundamentos e Teoria de la Imputación, Madrid, 1995, página 591, contraposta à chamada culpa pelo facto), ou seja, no âmbito daquilo que se pode denominar por direito penal de autor (contraposto a direito penal do facto) cuja eficácia no domínio da efectiva execução da pena, ao invés da área interpretativa dos tipos de crime (em que se mostra dificilmente compatível com o princípio da legalidade) deve ser incrementada, como defende Claus Roxin in Derecho Penal – Parte General, Tomo I, Fundamentos. La Estructura de la Teoria del Delicto, Madrid, 1997, página 188, posição que se subscreve. 17 A «boa conduta» (buena conducta) é, desde a Lei de 23 de Julho de 1914 e até aos nossos dias, um requisito da concessão da liberdade condicional em Espanha. Atualmente, tal requisito está previsto no art.º 90.º do CP espanhol, com a redação introduzida pela Lei n.º 1/2015, de 30.03: “Artículo 90. 1. El juez de vigilancia penitenciaria acordará la suspensión de la ejecución del resto de la pena de prisión y concederá la libertad condicional al penado que cumpla los siguientes requisitos: a) Que se encuentre clasificado en tercer grado. b) Que haya extinguido las tres cuartas partes de la pena impuesta. c) Que haya observado buena conducta.” 18 De referir que no país vizinho constitui impeditivo da concessão da liberdade condicional, para a generalidade dos autores, a existência de sanções graves ou muito graves, como o consumo de estupefacientes (neste sentido, vide Felipe Renart Garcia in La Libertad Condicional: Nuevo Régimen Jurídico, Madrid, 2003, páginas 115/116; vide, no mesmo sentido, Beatriz Tébar Vilches in El Modelo de Libertad Condicional Español, Navarra, 2006, páginas 152 a 156) entendimento que nos parece perfeitamente justificado no nosso ordenamento jurídico, tanto mais que o consumo de drogas se mostra, em muitos casos, geneticamente ligado à prática dos crimes que justificam a reclusão. 19 Manuel Lopes Maia Gonçalves in Código Penal Português, Almedina, 18.ª edição, 2007, página 244. 20 Pereira Madeira in Código de Processo Penal Comentado, 3.ª edição revista, 2021, Almedina, página 1291. 21 Acórdão do STJ de 10.02.2005 proferido no processo 3207/04-5.ª apud Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª edição, Quid Juris, 2020, página 980. 22 Já em 1836 Alexis de Tocqueville e Gustave de Beaumont (On the Penitentiary System in the United States and its Aplication in France, Southern Illinois University Press, 1964, página 55, tradução nossa) refletiam: “Lançado na solidão o condenado reflecte. Colocado a sós na presença do seu crime, ele aprende a odiá-lo e se sua alma não estiver empedernida pelo mal (…) é no isolamento que o remorso virá assaltá-lo.” Esclarece-se que o contexto da citação é o da comparação entre o sistema penitenciário de Filadélfia e o de Auburn, referindo-se que os dois preconizavam o isolamento dos reclusos como meio para atingir a recuperação moral (moral reformation) do condenado. Feito tal esclarecimento e sendo certo que no EP em que o recluso cumpre a sua pena não existe (a não ser em caso de sanção disciplinar) o regime de isolamento, não pode deixar de se considerar que a reclusão, em conjunto com outros presos é, ela própria, na sua essência, um isolamento da comunidade em geral. Como é óbvio, hoje o binómio crime/pena está expurgado de quaisquer considerações de ordem moral, visando a segunda a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art.º 40.º, n.º 1 do CP). 23 João Luís de Moraes Rocha e Sónia Maria Silva Constantino, Entre a Reclusão e a Liberdade, Pensar a Reclusão, volume II, Almedina, Coimbra, 2008, página 171. 24 “O prognóstico sobre o comportamento do autor adequado ao Direito é de uma importância decisiva para a questão da liberdade condicional.” Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend in Ob. cit., página 917. |