Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
48/23.7T8PSR.E1
Relator: FILIPE CÉSAR OSÓRIO
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
OMISSÃO
FACTOS
SUBSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 10/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. A omissão de indicação dos factos que o tribunal a quo considerou não provados e da correspondente fundamentação determina a nulidade da sentença prevista no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.
II. Em relação a esta nulidade não opera a regra de substituição do tribunal recorrido, prevista no art.º 665.º, do C.P.C., sob pena de violação do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 48/23.7T8PSR.E1
(1.ª Secção Cível)
Relator: Filipe César Osório
1.º Adjunto: José António Moita
2.º Adjunto: Manuel Bargado
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ACORDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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I. RELATÓRIO
Ação Declarativa, Processo Comum
Autora EMP01... UNIPESSOAL, LDA.
EMP02... UNIPESSOAL, LDA.
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Objecto do litígio – Responsabilidade civil contratual resultante da falta de cumprimento de contrato de empreitada, designadamente falta de pagamento de trabalhos a mais, consubstanciado no seguinte pedido de condenação da Ré:
“Nestes termos, deve a presente Acção, ser Julgada procedente e a R., ser condenada no pagamento à A., da quantia global de 12.105,38€ (doze mil cento e cinco euros e trinta e oito cêntimos) acrescidos de juros vincendos à taxa legal, desde a propositura da presente Acção até completo e integral pagamento, custas e procuradoria.”.
Para o efeito, a Autora alegou essencialmente que no exercício da sua atividade celebrou com a ré um contrato de empreitada tendo em vista a construção de uma moradia e que, para além de ter executado a obra objeto do contrato, executou ainda diversos trabalhos a mais, solicitados pela Ré e no seu interesse, que discriminou, cujo valor global corresponde a €11.375,45, valor que a Ré não liquidou, não obstante as diversas interpelações da autora para tal efeito, acrescendo juros de mora que à data da P.I. perfazia a quantia de €729,93.
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Na sua Contestação, a Ré pediu a absolvição do pedido, alegando, em síntese, ter pago todas as quantias devidas no âmbito do contrato de empreitada celebrado com a Autora e desconhecer quaisquer trabalhos a mais que tivessem sido executados pela mesma, os quais afirmou não terem sido acordados, nem autorizados.
Foi realizada audiência prévia, com prolação de despacho saneador e do despacho a que alude o artigo 596.º, n.º 1, do CPC.
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Foi realizada a audiência final e proferida sentença.
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Dispositivo em Primeira Instância:
Foi proferida sentença onde se decidiu o seguinte:
“Pelo exposto, julgo totalmente improcedente a presente ação, por não provada, e, consequentemente, absolvo a ré do pedido que contra a mesma foi deduzido pela autora.”.
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Inconformado com a decisão, a Autora interpôs recurso de apelação com as seguintes conclusões:
“A) A ora Apelante não se conforma com a Sentença proferida, na medida em que a mesma julgou totalmente improcedente a Acção intentada;
B) Razão pela qual veio a interpôr o devido e competente recurso;
C) O Tribunal, entendeu não valorar os Depoimentos das Testemunhas arroladas, assim como as Declarações de Parte do Legal Representante da A., descritas e transcritas no presente Recurso;
D) A que acresce o Documento, junto pela A., e no qual estribou a sua fundamentação;
E) Vejamos, no que às Testemunhas diz respeito, as mesmas confirmaram a existência no local da obra, conforme se encontra descrito, dos trabalhos a que a A., faz referência na sua Acção;
F) As Testemunhas, em causa, não foram de ouvir dizer, mas sim através da presença no local, devido a outros trabalhos por conta de outras Entidades;
G) Prestaram o referido Depoimento de forma isenta e clara, no que respeita às circunstâncias da existência em obra, das situações mencionadas pela A., e que pelo facto de terem sido prestados tais serviços e não liquidados reclama a A., os mesmos;
H) A conjugação dos Depoimentos das Testemunhas com as Declarações de Parte do Legal Representante da A., serão no entender desta, bastantes e suficientes para dar à evidência, a feitura de tais serviços e bem assim o não pagamento, razão pela qual veio reclamar os mesmos;
I) No que respeita ao Documento junto pela A., o mesmo reveste força probatória, na medida em que e de acordo com o Artº 376 do C.Civil e os que o antecedem, fará prova plena, quanto às declarações atribuídas ao seu Autor;
J) O Autor do referido documento foi a ora A., através do seu Legal Representante, na medida em que enumera o conjunto de serviços prestados à R., a pedido da mesma e com conhecimento desta, e que não liquidou;
K) O referido documento particular terá força probatória, na medida em que não foi objeto de impugnação pela parte prejudicada pelo conteúdo do mesmo, conforme (Acórdão Relação de Lisboa de 2.10.1997-CJ, 1997 4º-100);
L) Ao não ter decidido este Tribunal, em conformidade quer com a Prova Testemunhal, anteriormente evidenciada, quer com o documento particular, que da presente Acção faz parte;
M) Impediu este mesmo Tribunal recorrido, de julgar procedente a referida Acção;
N) Pelo que, vem a A., ora Apelante, requerer e fazer questão de com o presente recurso e nova apreciação, vir a ser alterada a referida decisão;
O) E em consequência, ser julgada a Acção procedente por provada, o que se requer, para os devidos e competentes efeitos;
Nestes termos, deve ser decretada a nulidade da sentença proferida, com as legais consequências,
COMO É DE INTEIRA JUSTIÇA.”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Objecto do recurso – Questões a Decidir:
O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Deste modo, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem nas seguintes:
1.ª – Nulidade da sentença – Se a decisão de facto carece de fundamentação;
2.ª – Impugnação da matéria de facto;
3.ª – Reapreciação jurídica da causa – Falta de cumprimento da obrigação de pagamento do preço por trabalhos a mais realizados no âmbito de contrato de empreitada.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Em Primeira Instância consignaram-se os seguintes factos provados:
A) Factos Provados
Resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
1) A autora dedica-se à edificação de imóveis e à compra e venda de terrenos.
2) No exercício desta sua atividade, a autora tomou de empreitada uma obra a pedido da ré na povoação de Local 1.
3) Por conta da referida empreitada, a ré veio a liquidar à autora as seguintes importâncias: 19.262,19€, 32.103,65€ e 12.841,44€.
B) Mais se provou (artigo 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC):
4) A obra referida em 2) antecedente tinha em vista a construção de uma moradia.
5) Pode ler-se na cláusula 6.ª do contrato de adjudicação celebrado entre a autora e a ré para construção da mesma moradia, que a autora comprometia-se “em caso de existir trabalhos a mais à empreitada, de enviar por escrito ou via email para aprovação” da ré.”.
“Ficaram por provar quaisquer outros factos que se não compaginam com a factualidade apurada nem nela constam, o que se deveu à ausência de prova segura, clara e objetiva quanto à sua ocorrência, que tivesse sido produzida em audiência de julgamento.
Não se considerou matéria conclusiva, irrelevante ou de Direito.”.
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B. ENQUADRAMENTO JURÍDICO – APRECIAÇÃO JURÍDICA DO RECURSO:
Primeira questão: Nulidade da sentença – Se a decisão de facto carece de fundamentação:
A consequência da falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão é a nulidade da sentença – cfr. art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.
Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência – cfr. art. 607.º, n.º 4, do CPC
Este dever geral de fundamentação está de acordo com o princípio constitucional contido no art.º 205.º, n.º 1, da C.R.P., que exige que as decisões do tribunal, que não sejam de mero expediente, sejam fundamentadas na forma prevista na lei, de molde a assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo, conforme decorre do disposto no art.º 20.º, n.º 4, da C.R.P.
Compreende-se que assim seja, a decisão tem de ser perceptível para os seus destinatários, para que estes, em face da fundamentação exposta na sentença, possam impugná-la quer de facto (através do recurso previsto no art.º 640, do CPC) quer de direito.
Reafirma-se, assim, em sede de sentença, a obrigação imposta pelo art. 154.º, do CPC, e pelo art. 205.º, n.º 1, da CRP, do juiz fundamentar as suas decisões (não o podendo fazer por «simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade», conforme n.º 2, do art. 154.º citado).
Com efeito, visando-se com a decisão judicial resolver um conflito de interesses (art. 3.º, n.º 1, do CPC), a paz social só será efectivamente alcançada se o juiz passar de convencido a convincente, o que apenasse consegue através da fundamentação (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex Edições Jurídicas, 1997, pág. 348).
Reconhece-se, deste modo, que é a fundamentação da decisão que assegurará ao cidadão o respectivo controlo; e, simultaneamente, permitirá ao Tribunal de recurso a sindicância do bem ou mal julgado. «A motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível (…) de garantia do direito ao recurso» (Ac. da RC, de29.04.2014, Henrique Antunes, Processo n.º 772/11.7TBBVNO-A.C1, www.dgsi.pt).
Como se escreveu, a propósito de situação semelhante, no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/10/2023 (Cristina Neves, proc. n.º 525/21.4T8LRA.C1, www.dgsi.pt):
“Em cumprimento deste dever de assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo, exige-se não só a indicação dos factos provados, como dos não provados e ainda, a indicação do processo lógico – racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbia a cada uma das partes, conforme o disposto no artº 607º, nº 4 do CPC.
Sendo imprescindível a um processo equitativo, por só através do seu escrupuloso cumprimento se salvaguardar as garantias das partes possibilitando a sua cabal reacção, em caso de discordância (mormente através do recurso ao disposto no artº 640 do C.P.C.), a sua não observância, pela total falta de indicação dos factos provados ou dos não provados, constitui fundamento de nulidade da decisão.
Com efeito, decorre do disposto no artº 607, nº4 do C.P.C. que o juiz deve declarar quer os factos que julga provados, quer os que julga não provados. Esta indicação não se basta com meras remissões para os articulados, nem com a indicação de que os não provados são todos os que não resultarem provados. Tal afirmação equivale a nada dizer.
Cumpre ao magistrado judicial, em cumprimento do disposto no nº 4, do artº 607 do C.P.C., indicar de forma concreta os factos relevantes e controvertidos que julgou não provados, fundamentando a sua decisão, em conformidade com o disposto nos nºs 4 e 5 deste preceito.”.
E ainda no recentíssimo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26/09/2024 (Manuel Bargado, proc. n.º 7114/15.0T8STB.1.E1, www.dgsi.pt), onde se sumariou o seguinte:
“I - A obrigação de fundamentação das decisões judiciais tem a função de permitir um controlo interno (das partes e instâncias de recurso) do modo como o juiz exerceu os seus poderes.
II - A fundamentação visa ainda expor os motivos determinantes da decisão para a opinião pública, devendo o juiz demonstrar a consistência dos vários aspetos da decisão, que vão desde o apuramento da verdade dos factos na base das provas, até à correta interpretação e aplicação da norma jurídica aplicável.
III - A Relação pode oficiosamente anular a decisão que omita integralmente a matéria de facto.”.
De igual modo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/06/2023 (Maria João Matos, proc. n.º 3096/17.2T8VNF-J.G1, www.dgsi.pt), sumariou-se o seguinte:
“I. É deficiente a decisão proferida pela 1.ª instância quando o que tenha dado como provado e como não provado não corresponda a tudo o que, de forma relevante, foi previamente alegado pelas partes; e constituirá o grau máximo dessa deficiência a omissão total de fundamentação de facto, justificando a anulação oficiosa da decisão de mérito assim proferida, nos termos do art. 662.º, n.º 2, al. c), do CPC.
II. A possibilidade de alteração oficiosa da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no art. 662.º, n.º 2, do CPC, não pode ser feita de forma tão ampla que retira a garantia, legal e constitucional, do duplo grau de jurisdição na apreciação, julgamento e decisão da matéria de facto; e, assim, será inaplicável quando tenha ocorrido omissão absoluta de fundamentação de facto.”
Com efeito, no caso concreto em apreciação, o objecto do litígio consiste essencialmente em saber se a Autora realizou certos trabalhos “a mais” que elencou detalhadamente, por certos montantes que especifica, a pedido e no interesse da Ré, entre outros, ou seja, este é o cerne, o núcleo essencial da fundamentação de facto da pretensão da Autora, contudo, tal factualidade não consta elencada nos factos não provados.
Aliás, a fundamentação de facto da sentença em causa não contém a descrição de qualquer facto não provado, adoptando-se a seguinte formulação genérica e obscura:
“Ficaram por provar quaisquer outros factos que se não compaginam com a factualidade apurada nem nela constam, o que se deveu à ausência de prova segura, clara e objetiva quanto à sua ocorrência, que tivesse sido produzida em audiência de julgamento.
Não se considerou matéria conclusiva, irrelevante ou de Direito.”.
Assim, não se pode extrair desta formulação a que factos concretos se refere a Primeira Instância, o que desde logo inviabiliza que possa a recorrente, nesta parte, lançar mão do disposto no art.º 640.º, do C.P.C., óbice que igualmente se verifica em relação ao tribunal ad quem, pelo desconhecimento da realidade fáctica que a Primeira Instância considerou não provada
Esta omissão determina a nulidade da sentença recorrida, por se integrar nos fundamentos de nulidade previstos no art. 615.º, n.º 1, al. b) do CPC.
Como se refere de igual modo no primeiro Acórdão supra citado, ao contrário daquelas nulidades que podem e devem ser sanadas pelo tribunal ad quem, ao abrigo da regra de substituição do tribunal recorrido, prevista no art.º 665.º, do C.P.C., esta nulidade só pode ser sanada pelo tribunal e magistrado que proferiu a sentença, sob pena de violação do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.
Importa salientar que, em relação aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo tribunal “ad quem”, versa o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
Assim se conclui que o tribunal recorrido incorreu em nulidade da sentença, pela não especificação concreta dos factos não provados e sua concreta motivação, por referência aos artigos 154.º, 607.º n.º 4, e 615.º, n.º 1, b) e c) do C.P.C. e se impõe determinar a devolução dos autos à primeira instância, a fim de que profira nova decisão, elencando os factos não provados e a sua concreta fundamentação, com observância do disposto no art.º 607.º, n.º 4 do C.P.C.
Em consequência da nulidade, ficam prejudicadas as demais questões suscitadas pela recorrente.
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III. DISPOSITIVO
Nos termos e fundamentos expostos,
- Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em anular a decisão recorrida, ordenando a baixa dos autos à primeira instância, a fim de esta suprir as causas de nulidade acima apontadas.
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Évora, 25-10-2024
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Filipe César Osório (Juiz Desembargador – Relator)
José António Moita (Juiz Desembargador – 1.º Adjunto)
Manuel Bargado (Juiz Desembargador – 2.º Adjunto)