Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA DOMINGAS SIMÕES | ||
Descritores: | INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS PARTILHA PRESCRIÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 12/16/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. Correndo inventário para separação de meações e tendo as partes sido remetidas para os meios comuns, com suspensão daqueles autos, o decidido na acção autónoma, com trânsito em julgado, impõe-se no processo de inventário como coisa julgada, implicando o acatamento da decisão proferida. II. Impõe o artigo 1689.º, n.º 1, do CC que, cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, se proceda às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges, e entre estes e o património comum, como forma de obviar a que um dos cônjuges fique enriquecido à custa do outro. III. Sendo na partilha que se procede a tal apuramento, é este o momento a partir do qual se conta o prazo de prescrição do exercício do direito de crédito pelo ex-cônjuge a quem tenha sido reconhecido sobre o património do outro. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo 4954/20.2T8STB-A.E1[1] Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal Juízo de Família e Menores de Setúbal - Juiz 3 I. Relatório (…) instaurou em 22 de Junho de 2016 no Cartório Notarial da Dra. (…), sito em Setúbal, inventário para separação de meações, sendo requerida (…), a qual foi nomeada para o exercício do cargo. Nas declarações prestadas, a cabeça de casal declarou não existirem bens comuns a partilhar, assim deduzindo oposição ao inventário, tendo requerido o arquivamento dos autos. Por despacho datado de 13 de Março de 2017, a Sra. Notária, “(…) atendendo à natureza sumária da instrução do processo de inventário e tendo sido suscitadas questões cuja decisão necessita de mais larga e profunda indagação”, determinou a remessa das partes para os meios judiciais comuns, nos termos do n.º 2 do artigo 16.º do RJPI, “para aí dilucidarem as questões relativas à existência (ou não) de um crédito a favor do requerente”, acrescentando que “(…) a determinação da remessa originará o arquivamento do presente processo de inventário por inexistirem quaisquer bens a partilhar, indicados pelas partes”. O requerente do inventário impugnou judicialmente a decisão proferida pela Sra. Notária, vindo o Tribunal de Família e Menores de Setúbal a proferir em 2 de Outubro de 2017 decisão revogatória do despacho, tendo consignado que: “Assim, reconhecendo ambos, recorrente e recorrida, que o prédio desta foi alvo de obras de conservação e beneficiação na constância de casamento, obras que não poderão deixar de integrar o conceito de benfeitorias, já que nenhuma das partes alegou que foram realizadas gratuitamente (cfr. artigo 216.º, n.º 1, do Código Civil), presumem-se comuns as benfeitorias delas resultantes, integrando por conseguinte o património do dissolvido casal, a não ser que a recorrida prove que tais benfeitorias foram realizadas com dinheiro ou valores seus (artigo 1723.º, alínea c), do Código Civil). Nessa medida, não poderia a Ex. Sra. Notária concluir, tout court, pela inexistência de património comum. Nem poderia, chegando a essa conclusão, remeter as partes para os meios comuns, determinando o arquivamento dos autos. Das duas uma: ou a Sra. Notária, face aos elementos carreados para os autos, estava em condições de se pronunciar pela existência de benfeitorias próprias da recorrida (e para isso teria de apreciar quais as obras realizadas na constância do casamento, a sua qualificação enquanto benfeitorias – necessárias, úteis ou voluptuárias, de acordo com o artigo 216.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil –, qual foi o meio de pagamento dessas obras e se a recorrida as suportou em exclusivo – tendo necessariamente de produzir prova já que as partes divergem sobre estas questões), ou, concluindo pela existência de benfeitorias comuns, julgar procedente a alegada caducidade do direito do recorrente e ordenar, em consequência, o arquivamento dos autos por inexistência de património comum; ou, face à complexidade da causa, deveria ter remetido as partes, mediante despacho fundamentado, para os meios comuns, declarando suspensos os autos de inventário, em conformidade com o disposto no artigo 16.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março. Neste circunspecto, a decisão objecto de recurso padece pois de contradição, tornando-se nula nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil”. Com os aludidos fundamentos julgou “procedente o recurso interposto por (…) da decisão proferida em 13/03/2017 pela Exa. Sra. Notária (…)” e, em consequência, revogou tal decisão, “determinando a remessa dos autos ao respectivo Cartório Notarial a fim de ser proferida nova decisão em conformidade com o ora decidido”. Devolvidos os autos ao Cartório Notarial, após incidências várias, foram as partes remetidas para os meios comum por despacho proferido em 12 de Fevereiro de 2018. Comprovada a instauração da acção declarativa pela cabeça de casal – a qual tomou o n.º 3183/18.0T8STB no Juízo Central Cível de Setúbal – foram os autos suspensos até à prolação da decisão naquela, assim entendida como prejudicial. A requerimento do interessado (…), vigorando ainda a suspensão, foi ordenada a remessa dos autos a juízo por despacho proferido em 9 de Setembro de 2020. Proferida sentença na identificada acção 3183/18, a qual foi inteiramente confirmada por acórdão deste TRE proferido em 15 de Dezembro de 2022, transitado em julgado, prosseguiram os autos de inventário, tendo a cabeça de casal apresentado relação de bens, dela constando como verba única um crédito no valor de € 8.500,00 a favor do interessado (…). O interessado apresentou reclamação, acusando a omissão de relacionação das duas viaturas que integravam o património comum do casal à data da dissolução do casamento, as quais reconhece terem sido entretanto alienadas, do que resulta, alega, um crédito a seu favor, para além de um estabelecimento comercial, que era igualmente bem comum do dissolvido casal. Tendo a cabeça de casal impugnado antecipadamente a obrigação de relacionar os bens cuja falta foi acusada ou o crédito de que o interessado reclamante se arroga titular, decorrente da alienação dos aludidos bens, foi designada data para a realização da audiência de julgamento. Apresentou então a cabeça de casal requerimento em 6/2/2024, no qual alegou, em síntese, que: -os ex cônjuges partilharam extrajudicialmente todos os bens comuns do casal por meio de escritura outorgada no dia 20 de Maio de 2005; - inexistindo bens comuns, o presente processo de inventário é inadequado à pretensão do requerente – o qual pretende que se reconheça o seu direito de crédito a título de benfeitoria –, existindo assim erro na forma do processo, nulidade que é de conhecimento oficioso, conducente à absolvição da requerente da instância. - Quando assim se não entenda, fundando-se o crédito reclamado pelo autor no instituto do enriquecimento sem causa, o mesmo encontra-se prescrito, nos termos dos artigos 301.º e 303.º do CC, o que deve ser declarado. O requerente do inventário exerceu contraditório e, tendo sustentado que a existência, pelo menos, de um direito de crédito a partilhar entre os interessados neste inventário, constitui caso julgado, atentas as decisões antes proferidas sobre esta questão, o que teria sido “implicitamente reconhecido pela Cabeça-de-Casal quando apresentou a relação de bens”, pronunciou-se no sentido de não ser “descabido considerar que esta litiga de má-fé ao voltar a suscitá-la”. Tendo ainda refutado que esteja em causa um crédito com origem no enriquecimento sem causa, pronunciou-se no sentido do requerido dever ser indeferido. Foi então proferido despacho em 25 de Março de 2024 [Ref.ª 98934872], ora recorrido, no qual se considerou existir um crédito de benfeitorias judicialmente reconhecido e discutir-se ainda a inclusão na relação de outros bens, donde ser o processo de inventário o próprio, não só para fazer valer tal crédito, mas também para proceder à partilha do produto da venda dos bens comuns alienados, não se verificando a arguida nulidade decorrente do erro na forma do processo, tendo sido igualmente julgada improcedente a invocada prescrição. Dissentindo do assim decidido, apresentou a cabeça de casal o presente recurso e, tendo desenvolvido nas alegações os fundamentos da sua discordância, veio a reproduzi-los quase ipsis verbis nas assim indevidamente chamadas conclusões, com o seguinte teor: “1) O presente recurso é interposto do despacho proferido em 25/03/2024 e versa exclusivamente sobre matéria de direito quanto ao decidido sobre a) Erro na forma do processo/impropriedade do meio; b) Prescrição do direito do Recorrido; 2) O despacho que se põe em crise incidiu sobre os dois pedidos formulados pela Requerente, como se transcrevem: “Nos termos supra expostos, e nos melhores de direito que V. Ex.ª doutamente decidirá, requer-se: Que o vício invocado quanto ao erro na forma de processo, de conhecimento oficioso, seja procedente e, dessa forma, anulado todo o processado, bem como todas as diligências marcadas, por inutilidade das mesmas, absolvendo-se a interessada da instância, nos termos do disposto nos artigos 196.º e 193.º do Código do Processo Civil. Ou, caso assim não se entenda, Se conheça e declare o direito de crédito do qual se arroga o Requerente de acordo com os artigos 301.º e 303.º do Código Civil e nos termos do artigo 482.º do Código Civil, prescrito. O que se requer”. 3) Quanto aos pedidos, o Tribunal a quo assim ajuizou, como se transcreve (...) 4) Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, a aqui Recorrente não se conforma com o entendimento professado pelo Tribunal a quo, porquanto: I-2 Do erro na forma do processo ou da impropriedade do meio: 5) Em 1.º lugar importa enfatizar que a Recorrente formulou dois pedidos, um principal e um subsidiário, por mera cautela de patrocínio no sentido de que, caso o Tribunal a quo defendesse que o processo de inventário era o meio adequado para satisfazer a pretensão do Recorrido, então seria este o Tribunal competente para apreciar a excepção da prescrição. 6) No que concerne ao pedido principal, quanto ao erro do processo, é abundante a doutrina e jurisprudência sobre esta matéria e importa trazer, desde já, os conceitos que sustentam a posição da Recorrente. 7) A forma de processo afere-se em função do tipo de pretensão formulado pelo autor e, fazendo jus ao que se defende na jurisprudência e doutrina, o processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei, enquanto o processo comum se aplica a todos os casos a que não corresponda processo especial (artigo 546.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), assim se consagrando o princípio da especialidade das formas processuais. 8) Sendo que o elemento da acção fundamental para determinar a forma do processo é o pedido: o processo deve seguir a forma em cuja finalidade se integre o pedido formulado pelo autor. 9) Na esteira deste entendimento pronunciou-se Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pág. 288 (…). 10) Parece-nos isento de controvérsia que o pedido mais não é do que o efeito jurídico que o autor pretende obter com a ação e, ainda, que a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo. 11) Nas palavras de Lopes Cardoso, neste caso, «O inventário não se destina unicamente a descrever e a avaliar bens; esse é um dos seus objectivos, mas não é o único, nem o primacial. Vai mais além, procurando obter a partilha desses mesmos bens». A partilha é, neste caso, o fim último do inventário (vide João António Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, Vol. I, Livraria Almedina, Coimbra, 3.ª edição, págs. 18 e 19). 12) Do exposto supra resulta inequívoco que o processo de inventário é um processo especial que visa fazer cessar a comunhão de bens e que tem como fim último a partilha dos bens comuns, após apurada a responsabilidade pelo passivo. 13) Ora, não só resulta inegável que entre Recorrente e Recorrido inexistem bens comuns a partilhar, como resulta inegável que o Recorrido pretende que lhe seja pago um crédito por benfeitorias. 14) É incontornável que o pedido do Recorrido desvirtua o regime jurídico do processo especial de inventário, já que resulta transparente que o pedido de “partilha de um direito de crédito” feito pelo recorrido para entrada do processo de inventário – é estranho aos fins e funções do regime em apreço. 15) De facto, é mais do que evidente que o Recorrido, crendo ser titular de um direito de crédito para com a Recorrente, ex-cônjuge, teria, na qualidade de um qualquer credor, direito de lançar mão de uma acção declarativa de condenação, na qual, grosso modo, provadas as benfeitorias e à luz do enriquecimento sem causa, pediria a condenação da Recorrente no seu pagamento. 16) Não o fez e lançou mão de um meio impróprio, de um meio ínvio e inidóneo para a sua pretensão- a não ser que se defenda que o processo de inventário serve para “partilhar direitos de crédito” o que, com o devido respeito, se repudia veementemente. 17) Ora, o pedido do Recorrido, como se prova pela peça que instrui este recurso (ao abrigo do artigo 646.º do CPC), é como se transcreve: “Pretende-se realizar a partilha do direito de crédito consubstanciado nas benfeitorias em imóvel propriedade da cabeça de casal (…) – ou seja, a pretensão do Requerente sempre foi – e é – que se reconheça o seu direito de crédito, a título de benfeitorias – direito fundado no enriquecimento sem causa da aqui Recorrente – e que seja a Recorrente condenada ao seu pagamento. 18) Tal pedido não se aconchega ao fim, determinado por lei, no que concerne ao processos especial de inventário previsto e regulado no Livro V, Título XVI, artigos 1082.º a 1135.º do CPC. De facto, o processo de inventário é um processo especial e tal forma processual especial contém especificidades que determinam que o legislador tenha erigido o processos de inventário como um dos processos especiais regulados no CPC (cfr. o Título XVI do Livro V do CPC). 19) Sendo, por demais evidente e cristalino, que o processo de inventário, cujo fim último é a partilha do património comum dos ex-cônjuges, comporta uma série de procedimentos e operações que nunca se produzirão neste processo de inventário: inexistem bens próprios, inexistem bens comuns, inexiste um valor activo comum e inexiste a possibilidade de se pagar qualquer crédito através da meação no património comum. 20) Em abono do que se defende, Ac. TRL de 28-02-2023, Proc. n.º 1301/21.0T8PDL-L1-7, cuja parte relevante se transcreve (…) 21) Sufragando-se o entendimento plasmado no Acórdão do TRL supra referido, resulta evidente que o concreto pedido do Recorrido não se harmoniza com o fim do processo especial de inventário, que a sua utilização defrauda a lei e o espírito do legislador e, nesse sentido, ocorre uma situação de erro na forma do processo, estando em causa uma excepção dilatória inominada, traduzida no uso indevido do processo especial de inventário, porquanto não se encontram reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização. 22) Em abono do que se afirma, na esteira do Ac. do TRL de 05-02-2019, Proc. 70173/17.5YIPRT.L1-7 (…). 23) Salvo o devido respeito, é evidente o erro na forma do processo, porquanto: i) a pretensão do Requerente não se ajusta à forma deste processo especial, já que não cumpre a função do processo de inventário (cfr. artigo 1082.º do CPC); ii) é inegável que, não havendo bens comuns, não há activo; iii) é inegável que a tramitação processual nele prevista não se cumprirá mormente quanto á composição dos quinhões (cfr. artigo 1111.º do CPC) – na verdade, o fim último do inventário, que é a partilha, nunca se cumprirá. 24) Pelo que se defende que há erro na forma do processo como se afere pela própria pretensão formulada, e que tem o especial regime consagrado no artigo 193.º do CPC, constituindo uma nulidade de conhecimento oficioso (artigo 196.º do CPC), impondo-se, na observância do princípio do aproveitamento dos actos, seja privilegiada a adaptação do processado à forma processual adequada (vide n.º 3 daquele preceito) e, apenas, na existência de obstáculos que constituam limites naturais à convolação, na anulação de todo o processado, absolvendo-se a interessada da instância (n.º 1 do artigo 193.º, alínea b) do n.º 1 do artigo 278.º, n.º 2 do artigo 576.º e alínea b) do artigo 577.º, todos do Código de Processo Civil). 25) E esta nulidade de conhecimento oficioso, caso não tenha sido apreciada antes, como no caso sub judice, poderá ser apreciada até à sentença final, impondo-se, contudo, ao juiz o dever de proceder à correcção oficiosa do erro, determinando que sejam seguidos os teros processuais adequados nos termos do n.º 3 do artigo 193.º do Código de Processo Civil. 26) Sucede, porém, que o erro na forma do processo, que constitui uma nulidade processual (a importar a anulação dos actos que não possam ser aproveitados), é configurável como excepção dilatória, conducente à absolvição da instância, quando nem a petição inicial se pode aproveitar – o que, no entendimento da Recorrente, é o caso dos presentes autos. 27) Estando em causa um erro na forma do processo – quanto ao concreto processo de inventário - e se este erro se traduz, como se defende, numa excepção dilatória de conhecimento oficioso, o argumento ara recusar tal conhecimento com base numa sentença judicial é injustificada, não tem cobertura legal e, por isso, é ilegal porque contrário à lei. 28) A existência de uma excepção dilatória de conhecimento oficioso ou, dito de outra forma, a constatação de um erro na forma do processo, não é beliscada, nem pode ser afastada, pela existência de um crédito de benfeitorias judicialmente reconhecido: até porque, obviamente, os processos são distintos e a causa de pedir é diversa. 29) Sendo importante esclarecer os Venerandos Desembargadores quanto à referência feita ao processo que transitou em julgado, que o Tribunal a quo usou como argumento para defender o indefensável e abster-se de dar cumprimento ao que dispõe o artigo 578.º do Código de Processo Civil. 30) A acção em causa era uma acção declarativa de simples apreciação negativa, na qual se pedia que se declarasse a inexistência de um direito de crédito (artigo 2.º, n.ºs 2 e 3) e, por isso, tanto a sentença de 1.ª instância, como depois o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, reconheceram, face ao thema decidendum, o direito do aqui Recorrido a ser ressarcido das benfeitorias realizadas na casa de morada de família (que era bem próprio da Recorrente) que, por relatório pericial, teriam aumentado o valor do imóvel em € 17.000,00. 31) Ou seja, na acção em causa, o que se reconheceu foi a existência de um direito na esfera jurídica do Recorrido – o direito de exigir compensação pelas benfeitorias – e tanto assim é que a sentença deste processo, pela sua especificidade – acção declarativa de mera apreciação negativa – não pode ser dada à execução como título executivo. 32) Nem sendo compreensível que a decisão judicial invocada, já esclarecida supra, justifique a decisão de que o processo especial de inventário “é o meio próprio para fazer valer o referido crédito a benfeitorias”. 33) Pelas razões aduzidas supra e salvo melhor entendimento, reitera-se que a alusão a esta decisão judicial transitada em julgado não justifica a decisão do Tribunal a quo (…) 34) É consabido que o artigo 577.º do CPC enumera as excepções dilatórias de forma exemplificativa, que tais excepções, como decorre do artigo 576.º, n.º 2, obstam a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância. 35) Pelo que se impunha ao Tribunal a quo julgar verificada a excepção dilatória inominada consistente em erro na forma do processo e, nos termos dos artigos 576.º,n.ºs 1 e 2 e 577.º do CPC, absolver a interessada da instância, aqui apelante. 36) Por não o ter feito violou Tribunal a quo as normas jurídicas dos artigos 2.º, n.º 2, 3.º, n.º 1, 130.º, 193.º, 200.º, 573.º, n.º 2, in fine, 578.º, 1082.º, 1084.º, 1097.º e 1098, todos do Código do Processo Civil. E, em consequência, deverá a decisão do Tribunal a quo ser revogada e absolver-se a Recorrente, ali interessada, da instância. O que se requer. Caso assim não entenda os Venerandos Desembargadores, o que não se concede, mas por mera cautela de patrocínio, então: I-3 Da prescrição do direito de crédito fundado em benfeitorias 37) Por se considerar relevante para a questão em apreço, importa clarificar que quer a prescrição, quer a caducidade, assentam no não exercício do direito durante determinado período (…). 38) (…) 39) (…) 40) A prescrição não alcança o direito, mas sim a sua exigibilidade: o decurso de um prazo de prescrição não tem por efeito extinguir o direito que estiver em causa: apenas confere ao correspondente sujeito passivo o direito de se opor ao respectivo exercício ao invocar a prescrição (assim, o acórdão do STJ de 22 de Outubro de 2015, processo n.º 2743/13.9YHLSB.L1.S1). 41) Firmada a distinção, veio o Tribunal a quo considerar não verificada a excepção da prescrição com base em duas ordens de razão (…): 1) por um lado entendeu que o prazo de prescrição em causa é de 20 anos, atendendo ao Processo n.º 3183/18.0TBSTV, julgado definitivamente pelo TRE; 2) por outro lado, entendeu que a prescrição deveria ter sido invocada aquele processo, quer na petição inicial, quer na réplica. 42) Quanto ao 1.º argumento, não se pode dissentir mais do entendimento do Tribunal a quo quanto aos alegados 20 anos do prazo de prescrição, porquanto: 43) Como é sabido, as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução do casamento, conforme disposto no artigo 1688.º do CC e, dúvidas não há, de que, cessadas as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, será através do instituto do enriquecimento sem causa (artigos 473.º e seguintes do CC) que a responsabilidade de um ex-cônjuge por vantagem patrimonial indevida poderá ser assacada. 44) De acordo com o Acórdão do STJ de 21-04-2022, Proc. n.º 463/13.4TMMTS-B.P1.S1 «Para efeitos de compensação entre o património comum e os patrimónios próprios de ex-cônjuges, que foram casados em regime da comunhão de adquiridos, o prazo de prescrição do crédito por benfeitorias realizadas e com meios comuns num bem próprio de um dos cônjuges começa a contar no momento da partilha». 45) Sucede que “(…) o artigo 482.º do CC estabelece dois prazos prescricionais do direito à restituição por enriquecimento; um de três anos a partir do momento em que o credor teve conhecimento do enriquecimento, isto é do seu direito e do responsável; e um de vinte anos a partir do momento da verificação do enriquecimento, independentemente de qualquer conhecimento” (Menezes Cordeiro, in “direito das Obrigações”, edição de 1981, volume 2, pág. 65). 46) Ainda o mesmo Autor e obra: «Quando o legislador se refere no mencionado artigo 482.º ao “conhecimento do direito” reporta-se, obviamente, ao conhecimento dos elementos constitutivos do seu direito; conhecimento fáctico e não conhecimento jurídico (pág. 65). 47) Na senda de Almeida e Costa (in “Direito das Obrigações”, 4.ª edição, página 339) a prescrição ordinária só é relevante quando o direito à restituição não houver prescrito antes pela prescrição de três anos; porém, releva sempre que o empobrecido não chegue a ter conhecimento do seu direito e da pessoa responsável. 48) No caso em apreço, Recorrente e Recorrido divorciaram-se em 27 de Maio de 2004 e partilharam os bens comuns do casal em 20 de Maio de 2005, por escritura lavrada em Cartório Notarial – pelo que é evidente que o prazo de 3 anos do artigo 492.º do Código Civil começou a contar apos 20 de Maio de 2005. 49) Aqui chegados, e esclarecida a existência de 2 prazos no artigo 482.º do Código Civil, importa dizer que as obras/benfeitorias realizadas na casa de morada de família propriedade da Recorrente, na constância do matrimónio entre ambos, datam do ano de 1989. 50) O mesmo é dizer que o Recorrido sabe, desde 1989, do enriquecimento da aqui Recorrente e ainda, que o prazo de prescrição ordinário terminou em 2009. 51) Ora, se Recorrente e Recorrido partilharam os bens comuns do casal em 20 de Maio de 2005 e o processo judicial de inventário é de 22-06-2016, dúvidas não há de que, à data, o direito do Recorrido à restituição já estava prescrito: tanto quanto ao prazo ordinário como quanto ao prazo de 3 anos do artigo 482.º do CC. 52) Na verdade, atente-se que a prescrição ordinária deixa de ser relevante porque o direito à restituição já estava prescrito antes, pela prescrição de 3 anos – como se afirmou supra, o prazo de prescrição de 3 anos, contados a partir da partilha, terminou no ano de 2008 – sendo, no caso, incompreensível que o Tribunal a quo, com o pleno domínio dos autos, afirme que à data da citação da Recorrente (2016) ainda não se havia esgotado tal prazo prescricional de 20 anos. 53) Dúvidas não há de que a prescrição opera pela inércia do titular do direito e, no caso sub judice, o Recorrido negligenciou o seu direito à restituição do valor aplicado nas benfeitorias realizadas durante mais de 20 anos, não se compreendendo como se inverte o ónus do exercício deste direito para a Recorrente nem, muito menos, que se ressuscite um novo prazo de prescrição a favor de quem negligenciou o exercício do seu direito. 54) De todo o exposto supra resulta que não houve qualquer interrupção do prazo de prescrição e que, tanto à data do inusitado processo de inventário em 2016, como à data da acção declarativa de simples apreciação negativa, em 2018, o direito do Recorrido á restituição estava prescrito, de acordo com os dois prazos previstos no artigo 482.º do Código Civil, reafirma-se, tanto no ano de 2016, como no ano de 2018. 55) Quanto ao 2.º argumento do Tribunal a quo, importa enfatizar que o processo em causa era uma acção declarativa de simples apreciação negativa, na qual se discutia a existência ou não do direito de crédito do Recorrido quanto às benfeitorias realizadas na casa de morada de família. 56) Tanto assim era que o decidido pelo Acórdão do TRE foi, no seu ponto III, como se transcreve: “A vantagem patrimonial adveniente de benfeitorias úteis para o titular da coisa, em caso de divórcio, confere ao outro cônjuge o direito a ver-se indemnizado, segundo as regras do enriquecimento sem causa, na medida da sua contribuição para a valorização do imóvel”. 57) Salvo o devido respeito, não se alcança como, naquela concreta acção, em que apenas estava em causa o reconhecimento, ou não, do direito do Recorrido a benfeitorias, se pudesse invocar a prescrição de um direito que era o thema decidendum em análise: que utilidade teria a recorrente em invocar a prescrição de um direito que ainda não estava reconhecido e que, pro isso, não era, ainda, um direito exigível? 58) A invocação da prescrição foi atempadamente deduzida em sede de inventário, na fase correspondente (…) 59) (…) 60) (…) 61) (…) 62) (…) 63) Ora, no caso sub judice o processo de inventário está ainda na fase de Oposição, impugnação à reclamação – artigo 1104.º – e tanto assim é que foi a Recorrente notificada para prestar declarações de parte, momento em que arguiu as excepções deduzidas e de cujo despacho interpôs o presente recurso. 64) De facto, no processo especial de inventário em curso ainda há diligências probatórias em curso nesta Fase 2 – e só depois de concluídas as mesmas se passará para a fase seguinte – que é a fase do saneamento (artigo 110.º do Código de Processo Civil). 65) Ora, quando a recorrente foi notificada para prestar declarações de parte (sendo que o pedido do Requerido foi para “depoimento de parte” e não declarações de parte, como erradamente se lê na notificação à Recorrente), um meio de prova que visa a confissão da ali interessada quanto ao passivo alegado pelo ali interessado/requerido, a Recorrente requereu ao Tribunal a quo a verificação da excepção do erro na forma do processo como pedido principal (o que estava em tempo de fazer, de acordo com a fundamentação jurídica supra aduzida) e, por mera cautela de patrocínio, e como pedido subsidiário, o reconhecimento e declaração da prescrição do direito de crédito do Recorrido. 66) O que, diga-se, e como já se defendeu supra, estava em tempo de o fazer – por ainda se encontrar dentro da fase processual do processo de inventário que lhe permitia esse meio de defesa. 67) Por todas as razões aduzidas, e como o Tribunal a quo decidiu ser este o processo adequado à pretensão do Recorrido, impunha-se-lhe, perante todos os elementos carreados para o processo, dar razão à Recorrente quanto à prescrição invocada – o momento ainda era o momento certo, a prestação de declarações de parte está sistematicamente inserida na Fase 2 do processo de inventário, fase na qual a recorrente pode aduzir todos os seus meios de defesa. 68) Por assim não ter entendido, violou o Tribunal a quo as normas jurídicas dos artigos 298.º, 303.º, 304.º, n.º 1, 306.º, 482.º do Código Civil, alínea e) do n.º 1 do artigo 278.º, n.º 1 do artigo 152.º, n.º 3 o artigo 576.º, todos do Código de Processo Civil e n.º 2 do artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa. Conclui pela revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que julgue procedente a excepção dilatória do erro na forma do processo, absolvendo a Recorrente da instância ou, assim não se entendendo, deve ser julgada procedente a excepção da prescrição do direito de crédito do Recorrido. Ao que resulta dos autos não foram oferecidas contra alegações. * Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões suscitadas: i. da nulidade decorrente do erro na forma do processo; ii. da prescrição do alegado direito de crédito do autor. * II. Fundamentação De facto À decisão importam os factos constantes do relatório que antecede e ainda os seguintes, os quais resultam assentes por via dos documentos autênticos juntos aos autos: 1. Requerente e requerida foram casados um com o outro sob o regime de bens adquiridos, casamento celebrado em 28 de Dezembro de 1988 e dissolvido por divórcio decretado pela Sra. Conservadora do Registo Civil de Palmela em 27 de Maio de 2004, decisão transitada em julgado nesta mesma data. 2. Para instruir o requerimento para o divórcio os então cônjuges elaboraram e subscreveram relação de bens, da qual ficou a constar: Verba n.º 1 Prédio urbano constituído por lote de terreno destinado à construção urbana sita em (…), Freguesia de (…), Concelho de Setúbal onde se encontra inscrita na matriz predial urbana sob o artigo (…), da dita Freguesia de (…) e descrita sob o n.º (…), da 1ª Conservatória do Registo Predial com o valor de 26.838,60 euros; Verba n.º 2 ½ de um prédio rústico composto de vinha e árvores de fruto, sito em (…), Freguesia de (…), Concelho de Palmela, onde se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…) e inscrito na matriz cadastral rústica sob o artigo (…), da Secção (…), com o valor de 2.500 euros. Verba n.º 3 Prédio rústico constituído por parcela de terreno hortícola de regadio, sito em (…), Freguesia e Concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º (…), da Freguesia de Palmela, inscrito na matriz cadastral respectiva sob parte do artigo (…), da Secção (…), no valor de 40.000 euros. 3. Os bens correspondentes às verbas n.ºs 1 e 3 foram vendidos pelo requerente e pela requerida após o divórcio, tendo dividido entre si o produto das vendas. 4. Quanto ao bem descrito sob a verba n.º 2, partilharam-no por escritura de 25.05.2005, aí tendo declarado que «pela presente escritura procedem à partilha do património comum do seu dissolvido casal que consta da verba seguinte: …». 5. A fracção autónoma (…), correspondente ao rés-do-chão do prédio situado na Praceta (…), nºs 6, 7 e 8 e Praceta (…), nº 7, 8 e 9, freguesia de Setúbal (…), concelho de Setúbal, foi adquirida pela Autora em data anterior ao casamento com o Réu. 6. No ano de 1989, na constância do casamento, foram efectuadas na fracção autónoma identificada no ponto anterior diversas obras. 7. Na acção que correu termos sob o n.º 3183/18.0T8STB, a autora (…) pediu que se declarasse que o Réu não tinha “o direito de crédito que invoca como fundamento para o inventário que requereu e, caso se decida que o tem, seja o seu exercício declarado ilegítimo, por configurar abuso de direito.” 8. Alegou, para tanto, que as partes foram casadas entre si sob o regime de bens adquiridos entre 28/12/1988 e 27/05/2004; que o R. intentou contra si um inventário para partilha subsequente a divórcio, para partilha do direito de crédito consubstanciado nas benfeitorias realizadas na constância do matrimónio em imóvel alheio, propriedade da cabeça de casal, e que o casal habitava na constância do matrimónio; no âmbito do referido inventário foi proferida decisão que remeteu as partes para os meios judiciais comuns. Mais alegou que os ali A. e Réu instruíram o requerimento para divórcio com relação de bens comuns que partilharam de seguida, não tendo incluído na relação de bens comuns quaisquer benfeitorias, tendo a A. procedido à venda da casa em 28/04/2016, tendo sido na sequência desta venda que o R. veio instaurar o inventário reclamando o referido direito de crédito por benfeitorias. Invocou, por fim, que o R. actua em abuso de direito, porque só ao fim de 12 anos após o divórcio e após terem partilhado o património comum e, bem assim, após ter sido vendida a casa, é que vem invocar a questão de alegadas benfeitorias, quando já nem era possível proceder ao levantamento das mesmas, tudo a conduzir à procedência da acção. 9. Na referida acção o R. apresentou contestação e deduziu reconvenção, pedindo que se apurasse o valor das benfeitorias realizadas no imóvel, procedendo-se à quantificação do seu valor para se estabelecer o direito de crédito próprio do reconvinte, a fim de prosseguir a partilha no processo de inventário. 10. Alegou o R., em síntese, que não assistia razão à A. quando pretendia que as benfeitorias, não constando da relação de bens que acompanhou o requerimento de divórcio, não são susceptíveis de serem partilhadas, inexistindo qualquer renúncia à partilha do património restante, e que, estando incorporadas no imóvel, o seu valor traduz-se num enriquecimento da A. concretizado aquando da venda do imóvel, pelo que tem direito à partilha desse crédito, sem que ocorra qualquer abuso no seu exercício. 11. A Reconvinda apresentou réplica, pronunciando-se pela improcedência do pedido reconvencional. 12. No aludido processo foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente a acção e parcialmente procedente o pedido reconvencional, “quantificando-se em € 17.000,00 o valor aportado ao imóvel, por força das benfeitorias realizadas pelo casal na fracção”. 13. Na sentença proferida, confirmada por douto acórdão deste TRE proferido em 15/12/2022, consignou-se: “Por conseguinte, atenta a factualidade apurada, tendo cessado as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges por divórcio (cfr. artigos 1688.º, 1788.º e 1789.º do CC), deverá proceder-se à relacionação do valor das obras realizadas como benfeitorias, no inventário instaurado para partilha dos bens, por forma a que se opere a compensação devida (Ac. STJ de 06-05-2021 in www.dgsi.pt).” 14. No acórdão confirmatório concluiu-se que “o R. tem o direito ao valor correspondente a ½ do valor aportado ao imóvel que pertencia à A., por força das obras realizadas pelo casal na fracção, devendo ser o montante de € 17.000,00 objecto de inventário para partilha”. * De Direito Do erro na forma do processo Depois de ter apresentado relação de bens na qual, em conformidade com o despacho proferido em 23 de Maio de 2023, relacionou como verba única um crédito a favor do requerente do inventário no valor de € 8.500,00, do qual é devedora, veio a cabeça de casal e requerida nos autos, suscitar novamente, agora a pretexto de um erro na forma do processo, a mesma questão que levantou logo nas declarações iniciais, ou seja, a inexistência de bens comuns, a determinar a inexistência de fundamento para inventário. Mas quando assim alega, olvida a apelante o teor da decisão proferida na acção que correu termos sob o n.º 3183/18.0T8STB, a qual, ao invés do que pretende, constitui caso julgado material das decisões nela apreciadas, tendo assim ficado definitivamente decidido, para não mais poder ser discutido, que o crédito proveniente de benfeitorias realizadas na fracção autónoma antes pertença da requerente, no valor então apurado de € 17.000,00, é um crédito do património comum do casal sobre a cabeça de casal, e há-de ser partilhado nos presentes autos de inventário, meio processual adequado para o efeito (cfr. artigo 619.º, n.º 1, do CPCiv.)[2]. Dito de outro modo, decididas na acção autónoma, com trânsito, as questões que no presente inventário se discutiam a título incidental, tal obsta, não só a que venham a ser novamente objecto de discussão nestes autos, como implicam o acatamento do ali decidido, constituindo impedimento a que a definição da relação jurídica controvertida venha a ser contemplada de forma diversa. Não é, pois, de aceitar a versão da requerente – cuja conduta roça mesmo a litigância de má fé, conforme aponta o apelado- assente na completa desvalorização do resultado da acção instaurada, a qual afinal nada teria decidido para efeitos do presente inventário, o que contraria desde logo a sua finalidade. Recorde-se que o inventário foi suspenso pela Sra. Notária ao abrigo do disposto no artigo 16.º do então vigente RJPI, suspensão que, nos termos do preceito, se mantém até que a decisão tenha lugar. Proferida decisão definitiva na assim entendida causa prejudicial, o inventário prosseguirá os seus termos, tomando necessariamente em consideração o conteúdo daquela, que se impõe no processo de inventário como coisa julgada, para não voltar a ser discutida. Acresce que, embora no despacho de 23 de Maio de 2023 [Ref.ª 97302147] tenha sido, a nosso ver incorrectamente, ordenada a relacionação “(…) no passivo, a dívida da requerida ao cabeça de casal, fundada no enriquecimento sem causa no valor de € 8.500,00”, o que não encontra correspondência no decidido, tendo este TRE expressado com clareza dever ser “o montante de € 17.000,00 objecto de inventário para partilha”, ou seja, como verba do activo correspondente a crédito do património comum do casal sobre [o património próprio d]a interessada (…) [3], daí não decorre que o presente inventário tenha um objecto diverso daquele que, por sentença transitada, lhe foi fixado, a saber, a partilha do crédito proveniente de benfeitorias ali reconhecido. Tal como, aliás, foi indicado pelo apelado que, no requerimento inicial, indicou pretender «realizar a partilha do direito de crédito consubstanciado nas benfeitorias em imóvel alheio propriedade da cabeça de casal – Fracção D», o que não impede que sejam partilhados outras verbas, que se encontram ainda controvertidas, desde logo porque, conforme também já foi decidido, a omissão na relação de bens apresentada no divórcio consensual não faz precludir a sua inclusão na relação a apresentar no processo de inventário[4]. Não assiste, pois, razão à apelante que, usando de censurável criatividade – a circunstância de ter mandatado uma diferente Il. Mandatária não pode servir de ensejo a que os autos voltem ao seu início- visou ressuscitar aqui, oito anos volvidos sobre as declarações iniciais que, como cabeça de casal, prestou nos autos, a mesmíssima questão que invocou para se opor ao inventário, a qual se encontra definitivamente decidida em seu desfavor. Improcede, pelo exposto, a primeira questão suscitada, confirmando-se a decisão recorrida. * Da prescrição Subsidiariamente, para o caso de não ser decretada a pretendida absolvição da instância face à excepção dilatória de nulidade de todo o processo decorrente do erro na forma processual escolhida, sem possibilidade de aproveitamento de qualquer acto, invocou a recorrente a prescrição do direito de crédito do requerente por, à data em que foi instaurado o presente inventário, ter há muito decorrido o prazo de 3 anos previsto no artigo 482.º do CC, contado da partilha; a entender-se, com o que não concorda, ser aplicável o prazo ordinário de 20 anos, encontra-se o mesmo igualmente esgotado, uma vez que, devendo contar-se da data da realização das obras benfeitorizantes, tal prazo completou-se em 2009. Antes de entrar na apreciação do mérito dos fundamentos recursivos invocados, impõe-se precisar que o direito que o requerente aqui pretende exercer e, como tal, lhe foi reconhecido na decisão transitada em julgado, foi o direito a exigir a partilha das benfeitorias realizadas na fracção bem próprio da apelante, crédito no valor de € 17.000,00 reconhecido como comum do dissolvido casal. Podendo cada um dos ex-cônjuges requerer a partilha quando lhe aprouver, instaurando para tanto o processo de inventário (artigo 1133.º do CPC, tramitação agora seguida pelos presentes autos, conforme expressamente determinado no despacho proferido em 26/9/2021 – Ref.ª 93076303), não ocorre obviamente prescrição do aludido direito. E quanto ao direito de crédito a favor do requerente que resulte das operações de partilha, não assiste igualmente razão à recorrente quando invoca encontrar-se o mesmo prescrito, pela razão fundamental de não ter ainda ocorrido, quanto às reconhecidas benfeitorias, a partilha, momento a partir do qual se inicia a contagem do prazo de prescrição do crédito que, em favor do requerente, vier a ser apurado, caso não possa fazer-se pagar através da meação da cabeça de casal, como se antevê que venha a acontecer, respondendo então os bens próprios da devedora. Vejamos: O artigo 1689.º do CC, dispondo sobre a partilha do casal na sequência da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges – de que o divórcio, como resulta do precedente artigo 1688.º, é uma das causas – determina uma cadeia de procedimentos em ordem a definir os direitos patrimoniais de cada um dos ex-cônjuges, prescrevendo que estes, ou os seus herdeiros, recebem os seus bens próprios e a meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património (vide n.º 1 do preceito). E para o que aqui releva, atento o disposto no n.º 3 “Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor”. É pois o momento da partilha aquele a partir do qual poderá ser exigido o crédito que se apurar, pelo que só a partir daí se inicia o prazo de prescrição. Esta a solução indicada pelo STJ, no acórdão proferido 21 de Abril de 2022 (processo 463/13.4TMMTS-B.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt) citado pela recorrente mas que, ao invés do que indica, não depõe a favor da sua pretensão, antes pelo contrário. Questionando-se no aresto identificado se o prazo de prescrição do direito a compensação por benfeitorias começava a correr “a partir do trânsito em julgado da sentença de divórcio, que determina a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, ou apenas da liquidação e partilha, por se tratar de direito apenas exigível com a partilha”, entendeu-se que era o momento da partilha que deveria relevar, justificando-se tal entendimento por apelo à seguinte argumentação: “Excluído que se possa retirar da lei que o crédito se torne exigível na vigência do casamento (cfr. o princípio que resulta do n.º 2 do artigo 1726.º do Código Civil, que, literalmente, se reporta à hipótese de haver lugar a compensações entre patrimónios, caso tenham sido adquiridos bens “em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns”), o diferimento da exigibilidade para o momento da partilha é a solução expressamente acolhida, quer para a exigibilidade de créditos decorrentes de pagamento de dívidas comuns por bens próprios (artigo 1697.º, n.º 1), quer para o pagamento de dívidas próprias por bens comuns (n.º 2 do mesmo artigo 1697.º), quer para os créditos de um dos cônjuges sobre o outro (n.º 3 do artigo 1689.º). Decisivo, na verdade, é o regime definido pelo n.º 1 do artigo 1689.º, ao determinar como se apura o património comum e a meação de cada cônjuge (“conferindo o que cada um deles dever a este património”). Rita Lobo Xavier (Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, Coimbra, 2000, pág. 394 e segs.) observa que desta norma se pode retirar “um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges, e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento de outro” (pág. 395). Cristina Araújo Dias, “Compensações Devidas pelo Pagamento de Dívidas do casal, Coimbra, 2003, escreve, impressivamente, que “A inevitável osmose patrimonial que ocorre em virtude da comunhão de vida exige a previsão de determinados mecanismos destinados a realizar um justo equilíbrio patrimonial entre os cônjuges. Na constância do matrimónio é possível que ocorram transferências de valores entre as diferentes massas de bens em presença. Tais transferências darão origem, no final do matrimónio” – “em rigor, a lei não prevê tais mecanismos no momento da dissolução do casamento mas no momento da partilha” (nota 3) – “a créditos e débitos recíprocos: os patrimónios próprios podem ser credores do comum, este daqueles e os próprios de cada um podem ser devedores dos próprios do outro” (pág. 13). E acentua por que razão as “compensações são exigíveis” apenas no momento da partilha: porque “só nesse momento” (da partilha) “se apura o saldo final” “das contas de compensação” (n.ºs 1 e 2 do artigo 1697.º)”. Aderindo-se sem reserva ao entendimento expendido, e tendo em atenção que a partilha que para aqui releva é aquela que tenha por objecto as benfeitorias que estão na origem do crédito compensatório titulado pelo ex-cônjuge não beneficiado, a conclusão que se impõe é a de que a contagem do prazo prescricional nem sequer se iniciou, sendo irrelevante para este efeito a partilha parcial que teve lugar em 2005 (relativamente à qual, afigura-se pertinente recordar, foi rejeitada na sentença proferida no processo que correu termos sob o n.º 3183/18.0T8STB a alegação de que com a sua realização tinha o ora requerente renunciado aos créditos de compensação, actuando em abuso de direito ao requerer o inventário, conforme a agora recorrente ali invocou). Improcedentes os fundamentos do recurso, impõe-se confirmar a decisão recorrida. * III. Decisão Acordam as juízas da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando integralmente a decisão recorrida. Custas a cargo da recorrente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv). * Sumário: (…) * Évora, 16 de Dezembro de 2024 Maria Domingas Simões Maria Emília dos Ramos Costa Isabel de Matos Peixoto Imaginário __________________________________________________ [1] Exmas. Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas: 1.ª Adjunta: Sr.ª Juíza Desembargadora Maria Emília dos Ramos Costa; 2.ª Adjunta: Sr.ª Juíza Isabel Maria Peixoto Imaginário. [2] Conforme anotam Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, in “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, em comentário ao artigo 1133.º do CPCiv, pág. 155, “(…) o inventário regulado no artigo pode ter como função obter a partilha dos bens comuns do casal, na sequência do trânsito em julgado de sentença de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens (…). Acessoriamente, o inventário pode ter como finalidade a liquidação do património comum do casal, isto é, o pagamento de dívidas comuns e o recebimento de créditos comuns, bem como a liquidação das compensações entre o património comum e os patrimónios próprios de cada um dos cônjuges (cfr. artigo 1689.º)”. [3] Cfr., sobre o modo de relacionação, acórdãos do STJ de 29/11/2022, processo n.º 1530/23.8T8VNF.G1.S1, e de 21 de Abril de 2022, processo n.º 463/13.4TMMTS-B.P1.S1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt., concluindo-se neste último, citado pela própria recorrente e que versa sobre caso com semelhanças, que “(…) cumpre relacionar como bem comum o valor das benfeitorias”. Cfr. ainda Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, in “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, pág. 159. “A relação de bens também deve conter as compensações devidas ao património comum pelos patrimónios próprios de cada um dos ex-cônjuges, isto é, os créditos do património comum sobre os patrimónios próprios (cfr. artigos 1689.º, n.º 1, do Código Civil e 1697.º, n.º 2, 1722.º, n.º 2, 1726.º, n.º 2 e 1728.º, n.º 1, do Código Civil)”. De resto, já assim era entendido no domínio do CPC cessante, como se vê de Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. I, Almedina, Coimbra 1990, 4.ª edição, pág. 477. [4] Cfr. neste sentido, autores e ob. citados na nota anterior, pág. 158, não interessando discutir aqui, por se encontrar tal questão subtraída ao objecto do recurso, logo, aos poderes de cognição deste Tribunal, o valor da relação de bens apresentada no processo de divórcio. |