Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
| Processo: |
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| Relator: | MARIA DOMINGAS SIMÕES | ||
| Descritores: | USUCAPIÃO POSSE HIPOTECA | ||
| Data do Acordão: | 10/30/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | I. Se à data em que iniciou a posse o usucapiente conhecia a existência de hipoteca que onerava o prédio usucapido, tendo sido executado na ação executiva logo após instaurada pela credora hipotecária, tal posse sempre se encontrou limitada, quanto ao respetivo exercício, pela hipoteca constituída, que deste modo não se extinguiu com o reconhecimento, em ação autónoma, do direito de propriedade a favor do usucapiente. II. Tendo o alegado possuidor optado pela demanda solitária da titular inscrita, na ação autónoma por si instaurada tendo em vista o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio hipotecado, aquisição fundada na usucapião, a fácil condenação obtida por via da revelia operante da demandada não é oponível à exequente, credora hipotecária, que no processo não interveio. III. A extinção da hipoteca não pode ser ordenada à revelia do credor hipotecário, que terá de ser convencida, em ação para tanto instaurada pelo alegado possuidor, dos factos que afetam o seu direito. (Sumário da Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 392/04.2TBLGS-H.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo de Execução de Silves – Juiz 2 I. Relatório No então Tribunal Judicial da Comarca de Lagos, foi instaurada em 2004 pela CCAM do (…), a quem sucedeu nos autos, na qualidade de cessionária habilitada, a (…) Global Limited, ação executiva para cobrança da quantia de € 155.140,34 e juros vincendos, sendo executados (…) Limited, com sede na Av.ª (…), n.º 3, 4º-C, Edifício (…), (…), em Lisboa, e ainda (…) e (…), tendo a exequente dado à execução contrato de mútuo garantido por hipoteca incidente sobre os imóveis que identificou e livrança subscrita pela 1ª executada e avalizada pelos demais. No prosseguimento dos autos foram penhorados os imóveis sobre os quais incidia a hipoteca, conforme auto de penhora de 18 de Maio de 2009. Tendo sido declarada a insolvência do executado (…) por sentença proferida em 7 de Julho de 2016 no processo n.º 15290/16.9T8LSB, que correu termos na 1.ª secção de Comércio, J2, da Instância Central da Comarca de Lisboa, por despacho datado de 17/1/2017 [Ref.ª 104619616], foi nos autos principais declarada a inutilidade superveniente da lide executiva quanto ao executado declarado insolvente. Por decisão da sra. AE de 7 de Junho de 2023, foi ordenada a venda dos bens penhorados “através de leilão eletrónico na plataforma www.e-leiloes.pt aprovado por despacho n.º 12624/2015 – D.R. n.º 219/2015, Série II, de 2015-11-09”. Mediante requerimentos apresentados em 28.01.2025 e 14.02.2025, veio (…) dar conhecimento aos autos do teor da sentença proferida em 9 de Janeiro de 2025, no âmbito da ação por si instaurada contra a executada (…), Limited, que correu termos pelo Juízo Central Cível de Portimão-Juiz 2, sob o n.º 2179/24.7T8PTM, e que, na procedência da mesma, declarou ter o autor adquirido por usucapião, aquisição reportada ao ano de 2003, os imóveis penhorados, requerendo o cancelamento dos ónus que sobre eles incidem, designadamente a hipoteca registada em favor da exequente e subsequente penhora, com fundamento no facto de os efeitos da usucapião retroagirem à data do início da posse, como decorre do artigo 1288.º do Código Civil. Notificada a exequente, respondeu nos termos dos requerimentos que fez juntar aos autos em 31.01.2025 e 19.02.2025, defendendo, no essencial, que tendo a posse do requerente tido o seu início em 2003, como da referida sentença consta, sendo portanto posterior ao registo das hipotecas, estas devem subsistir. Por despacho proferido em 5 de Maio de 2025 [Ref.ª 135883343], ora recorrido, foi indeferido o requerido. Inconformado, apresentou o requerente o presente recurso, cuja alegação rematou com as necessárias conclusões, de que se extraem, por relevantes, as seguintes: “(…) 5.ª O ora Recorrente não se conforma com o despacho de que ora se recorre. 6.ª Andou mal o tribunal a quo ao não ponderar que os prédios em apreço foram adquiridos por usucapião e como tal são adquiridos ex novo, ou seja, livres de ónus e encargos. 7.ª A usucapião é assim uma forma de aquisição originária de direitos, uma vez que o direito adquirido surge ex novo na esfera jurídica do possuidor independentemente do direito do anterior titular. 8.ª A usucapião funciona como um meio de prova mais fácil do direito por se tratar de uma aquisição originária, o que equivale a dizer que o direito nasce ex novo na esfera jurídica do possuidor, pois não depende de um direito anterior e, portanto, longe de gerar, como acontece nas aquisições derivadas, a chamada prova diabólica (isto é, de se ter de retroceder séculos e séculos até que a cadeia ininterrupta de aquisições derivadas dos sucessivos alienantes termine num aquisição originária, por só assim ser possível provar que se adquiriu de um anterior e real titular). 9.ª Na esteira de Vassalo Abreu, entendemos que, precisamente, pelo facto de o direito do proprietário não ser susceptível de extinção ou prescrição, daí resulta que, “sendo o usucapiente pessoa diversa do dono da coisa, a usucapião consubstancia uma forma valorativamente indiferente de extinção objectiva do direito de propriedade em virtude da (total) incompatibilidade com o que surge ex novo no que vem a usucapir”. 10.ª O despacho de que ora se recorre violou assim o disposto no artigo 1287.º e seguintes do Código Civil e o artigo 5.º do Código de Registo Predial. 11.ª E violou a nossa doutrina dominante que entende que que a usucapião constitui uma forma de aquisição originária, e das regras da usucapião decorre que o direito correspondente à posse exercida é adquirido ex novo e a nossa jurisprudência maioritária. 12.ª Veja-se neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – datado de 28/01/2021 (Proc. n.º 12053/17.1T8LSB.L1-6): “O direito adquirido por usucapião é oponível erga omnes, e sendo uma aquisição originária, extingue-se a hipoteca anteriormente registada, por inexistência de continuação jurídica entre o anterior proprietário e o possuidor que usucapiu.” 13.ª E o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 15/11/2018 (Proc. n.º 1470/07.2TBSXL.L1.S1): "Constituindo a usucapião modo originário de aquisição do direito de propriedade, e não havendo vínculo jurídico com os titulares de ónus registados, é legítimo o cancelamento de tais registos." 14.ª Termos em que e face ao supra exposto deverá o tribunal ad quem revogar o despacho recorrido e consequentemente deverá ser proferido outro que declare que o ora Recorrente adquiriu os prédios por usucapião livres de ónus e encargos, ordenando-se o cancelamento de todos os ónus que incidem sobre os prédios em questão”. Requer a final que, no provimento do recurso, seja revogado o despacho recorrido e proferido outro “que declare que o ora Recorrente adquiriu os prédios por usucapião livres de ónus e encargos, ordenando-se o cancelamento de todos os ónus que incidem sobre os prédios em questão”. Contra alegou a exequente, pugnando pela manutenção do decidido. * Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objeto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se o reconhecimento do direito de propriedade por usucapião determina a extinção da hipoteca que incide sobre o prédio, ainda que de constituição anterior ao início da posse, determinando o cancelamento do respetivo registo. * II. Fundamentação De facto Sem impugnação, é a seguinte a factualidade a atender: 1. Em 06.05.2004, foi apresentado requerimento executivo pela então Exequente, Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL, contra os Executados (…) Limited, (…) e (…), pelos factos aí expostos cujo teor aqui se dão por inteiramente reproduzidos. 2. Foram dadas à execução como título executivo uma escritura pública de compra e venda e hipoteca outorgada em 05/12/2001, contrato de mútuo e uma livrança, subscrita por (…), na qualidade de gerente da sociedade (…), Limited, e avalizada pela Executada … e por … (docs. juntos com o requerimento executivo). 3. Os avalistas subscreveram o contrato de mútuo, do qual consta como garantia a hipoteca sobre os imóveis a adquirir pela mutuária (…), Limited e os avales prestados (doc. n.º 3 junto com o requerimento executivo – facto aditado nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPC). 4. A referida hipoteca encontra-se registada a favor da então Exequente pela Ap. (…), de 2002/02/08 sobre os seguintes prédios: - o prédio urbano sito na Rua das (…), n.º 74, freguesia de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º (…), da referida freguesia e inscrito na matriz sob o artigo (…); - o prédio urbano sito no Largo dos (…), n.º 8, freguesia de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º (…) da referida freguesia e inscrito na matriz sob o artigo (…); - o prédio urbano sito na Rua das (…), n.º 70, freguesia de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º (…) da referida freguesia e inscrito na matriz sob o artigo (…); - o prédio urbano sito na Rua das (…), n.º 72, freguesia de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º (…) da referida freguesia e inscrito na matriz sob o artigo (…). 5. Pela Ap. (…), os referidos prédios mostram-se registados a favor da Executada (…), Limited. 6. (…) foi regularmente citado em 2004 na qualidade de Executado – cfr. fls. 63. 7. Os referidos imóveis foram penhorados à ordem dos presentes autos em 2005 (fls. 153 a 155). 8. Por despacho de 17.01.2017 foi declarada a inutilidade superveniente da lide, quanto ao então Executado, por força da declaração de insolvência. 9. (…) intentou acção contra (…), Limited, com o n.º 2179/24.7T8PTM, formulando os seguintes pedidos: A) Que seja reconhecido e declarado que o Autor é o dono e legítimo possuidor dos prédios: a. Prédio urbano destinado a habitação, sito na Rua da (…), n.° 74, inscrito na matriz sob o artigo (…), Freguesia de (…), Concelho de Lagos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos com o n.º (…); b. Prédio urbano destinado a armazém, sito no Largo dos (…), n° 8, inscrito na Matriz sob o artigo (…), Freguesia de (…), Concelho de Lagos, descrito na CRP Lagos com o n.° (…); c. Prédio urbano, destinado a armazém, sito na Rua da (…), n.º 70, inscrito na Matriz sob o artigo (…), Freguesia de (…), Concelho de Lagos, descrito na CRP Lagos com o n.º (…); d. Prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua da (…), n° 72, inscrito no Matriz sob o artigo (…), Freguesia de (…), Concelho de Lagos e descrito no CRP Lagos com o n.° … (Docs. 10, 11 e 12); Por os ter adquirido por usucapião, com efeitos reportados a 1997; B) Que seja ordenado o cancelamento do registo de cada um dos prédios a favor da Réu; C) Que seja ordenada a inscrição matricial dos 4 prédios a favor do Autor por o ter adquirido em 1997 por usucapião. 10. Citada, a aí Ré não contestou, pelo que foram julgados confessados os factos articulados na petição inicial e proferida sentença em 09.01.2025, cujo teor se dá integralmente por reproduzido, onde se consideram assentes, entre outros, os seguintes factos: “Em data anterior a 1988, os prédios que a seguir se identificam eram propriedade de (…): a) Prédio urbano destinado a habitação, sito na Rua da (…), n° 74, inscrito na matriz sob o artigo (…), Freguesia de (…), Concelho de Lagos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos com o n.º (…); b) Prédio urbano destinado a armazém, sito no Largo dos (…), n.º 8, inscrito na Matriz sob o artigo (…), Freguesia de (…), Concelho de Lagos, descrito na CRP de Lagos com o n.° (…); c) Prédio urbano destinado a armazém, sito na Rua da (…), n.º 70, inscrito na Matriz sob o artigo (…), Freguesia de (…), Concelho de Lagos, descrito na CRP de Lagos com o n.º (…); d) Prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua da (…), n.º 72, inscrito no Matriz sob o artigo (…), Freguesia de (…), Concelho de Lagos e descrito no CRP de Lagos com o n.° (…). (…) os prédios em ruínas que figuram descritos na Conservatória e inscritos nas Finanças já não existem desde 1997 e em sua substituição existem as construções executadas pelo Autor. Na execução destas construções o Autor investiu uma quantia não inferior a € 280.000,00 (duzentos e oitenta mil euros). (Doc. 17). (…) A Ré, representada por (…), a 13 de janeiro de 2003, reconheceu-se devedora dessa importância, que, aliás nunca lhe foi paga (Doc. 19). Em face do não pagamento da dívida, a (…), apresentando-se como mandatária da Ré, vendeu verbalmente ao A. os prédios descritos versados nestes autos, venda que este aceitou. O Autor nunca conseguiu fazer o licenciamento das construções realizadas. A Ré nunca outorgou a escritura de compra e venda a favor do Autor. Não obstante, o Autor está na posse dos prédios identificados na Conservatória Predial e da totalidade das construções já descritas em números anteriores desde 1997. (…) Fê-lo com exclusão de outrem, agindo sempre com a convicção de ser o único e legítimo possuidor e proprietário dos 4 prédios versados nestes autos, desde 2003, à vista de todos, de forma continuada, pública, pacífica e sem a oposição de quem quer que seja.” 10. Nessa sequência, foi proferida a seguinte decisão: “Assim, aderindo à fundamentação plasmada na petição (artigos 1263.º, alíneas a) e b), 1287.º, 1288.º e 1296.º, todos do Código Civil), reportando a aquisição a 2003 (data da alegada aquisição verbal), é de julgar procedente a ação. Por isso: a) Declaro que o autor adquiriu por usucapião (reportando-se a aquisição a 2003) os seguintes prédios: i. Prédio urbano destinado a habitação, sito na Rua da (…), n.º 74, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos com o n.º (…), freguesia de (…); ii. Prédio urbano destinado a armazém, sito no Largo dos (…), n.º 8, descrito na CRP de Lagos com o n.º (…), freguesia de (…); iii. Prédio urbano, destinado a armazém, sito na Rua da (…), n.º 70, descrito na CRP de Lagos com o n.º (…); iv. Prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua da (…), n.º 72, descrito no CRP de Lagos com o n.º (…), freguesia de (…), b) Determino o cancelamento oportuno de cada um dos registos atuais a favor da ré; c) Determino o averbamento oportuno da inscrição a favor do autor”. * De Direito Da aquisição por usucapião a favor de terceiro enquanto causa extintiva da hipoteca com registo anterior. Dissentindo da decisão proferida, sustenta o apelante que, estando em causa uma aquisição originária, o direito adquirido surge ex novo na esfera jurídica do possuidor, sem qualquer relação de continuidade com o anterior, prevalecendo, pois. sobre a hipoteca, ainda que esta beneficie de registo anterior à data do início da posse. Cremos, porém, que não lhe assiste razão, por duas ordens de razões de que nos ocuparemos de seguida. Não se discute que, tal como ensina o Prof. O. Ascensão (Direitos Reais, 5.ª edição, pág. 382), “a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião. Esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registais; vale por si. Por isso, o que se fiou no registo passa à frente dos títulos substantivos, mas nada pode contra a usucapião”. Tal é, de resto, o que de forma expressa consta do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do CRPredial. Não estando assim em causa que a usucapião é uma forma de aquisição originária de direitos, designadamente do direito de propriedade, produzindo o seu reconhecimento efeitos ex tunc, ou seja, retroagindo à data do início da posse e que, no caso vertente, se fixou no ano de 2003, questiona-se, porém, se do seu reconhecimento resulta necessariamente a eliminação de direitos reais menores que oneravam o imóvel adquirido. Citando Vassalo Abreu, alega o apelante que “sendo o usucapiente pessoa diversa do dono da coisa, a usucapião consubstancia uma forma valorativamente indiferente de extinção objectiva do direito de propriedade em virtude da (total) incompatibilidade com o que surge ex novo no que vem a usucapir” (cfr. conclusão 9ª). Não há dúvida de que, tendo sido reconhecido ao usucapiente o direito de propriedade, no que ao caso importa, sobre os imóveis penhorados, tal direito é absolutamente incompatível com o reconhecimento a favor de outrem, designadamente da primeira executada, do mesmo direito. Mas será igualmente incompatível com a subsistência da hipoteca que onera os mesmos prédios? Como se assinalou no acórdão do STA de 20 de Dezembro de 2011 (processo 889/11-30, acessível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-sta/32240-2012-25726879), que se debruçou sobre caso no qual se colocava exatamente a mesma questão, recorrendo à doutrina do Prof. Dias Marques (Prescrição Aquisitiva, II, Lisboa, 1960, págs. 203 e ss., que, no entanto, se mantém atual), fundando-se a usucapião diretamente na posse, é o conteúdo e a extensão desta posse que definirá, por sua vez, o conteúdo e a extensão do direito assim adquirido, com absoluta independência em relação aos direitos que antes daquela aquisição tenham incidido sobre a coisa. Daí que, embora não seja válido o princípio, aplicável à aquisição derivada, de que o adquirente recebe o direito tal como existia na esfera jurídica do transmitente, ainda assim «a subsistência de direitos e de encargos anteriores à aquisição por usucapião pode, na realidade, verificar-se. Só que o fundamento dessa subsistência não é o da aquisição da coisa "cum sua causa", mas é, antes, o de que o direito adquirido tem o seu conteúdo modelado pelo da posse exercida». E daqui resulta que, «se esta posse, para se exercer, não afectava certos direitos que antes incidiam sobre a coisa (v. g., hipotecas, servidões, etc.), continuam eles a subsistir. O fundamento desta subsistência não é, porém, insistimos, o princípio da aquisição cum sua causa mas estoutro de que continuam a existir sobre a coisa todos os direitos cuja subsistência não seja incompatível com o conteúdo do direito adquirido por usucapião». E mais à frente, na mesma linha de raciocínio, convocando a lição de Durval Ferreira (Posse e Usucapião, Almedina, 2003, págs. 207/208), escreveu-se no aresto que vimos acompanhando: “E, mesmo para um terceiro possuidor, que empossa uma coisa (e, quer unilateralmente e usurpatóriamente; quer derivadamente), que antes estava sujeita a ónus, também tal possuidor só libertará a coisa dos ónus preexistentes, se na sua respectiva posse se consubstanciar uma oposição ao exercício de tais direitos; levada a cabo, com corpus e animus, nos modos referidos. Isto é, não bastará que possua a coisa, à imagem bastante do direito de propriedade e ainda que com animus, como sendo proprietário pleno (e sem encargos). Pois (...) o direito de propriedade e os direitos onerantes são compatíveis entre si, quanto à sua existência, e apenas se limitam quanto ao respectivo conteúdo exercitável. Então, o exercício da posse à mera imagem do direito de propriedade, e por certo tempo, conduzirá, por usucapião, sim, à aquisição do direito de propriedade: mas daí não se segue que não possam existir direitos de terceiro onerantes. (…) Consequentemente, se A. possui um imóvel, como sendo dono (à imagem do direito de propriedade), o que, por essa posse, só por si, pode adquirir é "o direito de propriedade" correspondente a essa posse (artigo 1287.º). Mas a aquisição desse direito apenas aniquila o direito de propriedade do titular não possuidor (artigo 1313.º). Ou seja, o adquirir-se, por tal posse e com origem nela, por usucapião, o "direito de propriedade", sobre tal coisa" – por si só não aniquila os direitos reais menores (usufruto, servidões, etc.) ou os direitos reais de garantia (hipoteca, penhor, penhora) a que a coisa, na ordem jurídica, concretamente estava submetida e que, segundo a ordem jurídica, sejam restrições, direitos, ónus ou encargos de per si oponíveis ao proprietário”. Tendo presentes tais considerandos, e de volta ao caso dos autos, resulta da matéria factual apurada que à data em que iniciou a posse que conduziu à aquisição do direito de propriedade por usucapião, o ora recorrente não podia desconhecer a existência da hipoteca que onerava os imóveis, não apenas porque assim o faz presumir, segundo autorizada presunção judiciária (cfr. artigos 349.º e 351.º do CC), a relação familiar que o unia à gerente da executada (…), Limited – é o próprio que na petição de embargos diz ser aquela (..), por sinal a anterior proprietária dos imóveis, como resulta das certidões registais juntas com o requerimento executivo, sua sogra – mas sobretudo porque subscreveu, como avalista, o contrato de mútuo firmado com a credora hipotecária, no qual vinha expressamente mencionado que o empréstimo seria garantido por hipoteca sobre os imóveis e avales do próprio e sua esposa. Acresce que, instaurada a execução no ano de 2004, a qual, até à data em que foi declarada a sua insolvência, correu também contra o apelante, nela foram penhorados logo em 2005 os prédios hipotecados, tendo o sr. AE promovido todos os atos em ordem à concretização da respetiva venda, a permitir concluir que a posse iniciada em 2003 sempre se encontrou limitada, quanto ao respetivo exercício, pela hipoteca constituída e penhora que se seguiu. Com a consequência de não se extinguir com o reconhecimento do direito de propriedade a favor do usucapiente. Mas por um outro e decisivo fundamento não poderá ser acolhida a tese do apelante. Conforme é sabido, o registo imobiliário não tem, entre nós, efeito constitutivo, com uma única exceção legal: como resulta do disposto nos artigos 687.º do CC e 4.º, n.º 2, do CRP, a hipoteca, antes de da realização do registo, não produz quaisquer efeitos, quer em relação a terceiros, quer em relação às próprias partes. Uma vez constituída a hipoteca, que é um direito real de garantia e, nessa medida, também ele oponível “erga omnes”, visando a sua extinção o possuidor usucapiente há de convencer o credor hipotecário em ação para tanto instaurada, sem o que prevalecerá o registo. Tal como, de resto, se verifica ter ocorrido, tendo a sentença proferida no âmbito do processo identificado no ponto 9 determinado tão somente o cancelamento dos “registos atuais a favor da ré” (a titular inscrita), deixando imperturbado o registo da hipoteca. Com efeito, tendo o ora apelante optado pela demanda solitária da (…), Limited, sabendo embora da existência de hipoteca a favor da apelante para garantia do crédito exequendo, a fácil condenação obtida por via da revelia operante da demandada não é oponível à exequente, que no processo não interveio. Neste mesmo sentido, e versando sobre caso em tudo idêntico, decidiu o STJ em acórdão de 11/9/2012 (processo n.º 4436/03.7TBALM.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt), citado na decisão recorrida: “É certo que, invocada a usucapião, os seus efeitos retroagem à data do início da posse – artigo 1288.º; todavia, a hipoteca é uma garantia especial das obrigações (e, simultaneamente, um direito real de aquisição, logo, oponível erga omnes) que a lei só considera validamente constituído após o registo nos livros da conservatória – artigo 687.º; a sua extinção, por consequência, não pode ser ordenada à inteira revelia do credor hipotecário, que necessariamente terá de ser convencido em acção contra ele (também) movida que à data da constituição da hipoteca o imóvel não pertencia ao seu devedor, mas a terceiro”. O mesmo entendimento foi perfilhado pelo TRL em acórdão de 5/2/2017 (processo n.º 1333/14.4TBALM.L1-7), ao decidir que “I. Não pode ser imposta a um terceiro titular de uma relação ou posição dependente da definida entre as partes, a eficácia, extensão e autoridade do caso julgado material formado por decisão proferida no âmbito de um processo, no qual aquele não esteve presente e no qual não pôde ser convencido dos factos ali fixados e que contendem com os seus direitos. II. Nestas situações, impõem-se a instauração de uma nova ação contra esse terceiro por forma poder ser convencido dos factos ali fixados e que contendam com os seus direitos”, e ainda no aresto do mesmo tribunal de 9/11/2025 (proc. n.º 18554/24.4T8SNT.L1-2), no qual se reiterou, também num caso em que estava em causa aquisição originária, na circunstância a acessão, que “A decisão judicial que declarou judicialmente a acessão não constitui título bastante para cancelar o registo de hipoteca inscrito em data anterior ao registo da ação onde a acessão foi declarada, se em tal ação não foi considerada a hipoteca, nem o credor hipotecário foi aí parte”[1]-[2]. Resultando do exposto a improcedência dos fundamentos invocados pelo apelante, resta confirmar a decisão recorrida. Sumário: (…) * III. Decisão Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida. Custas a cargo do apelante, que decaiu (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv.). * Évora, 30 de Outubro de 2025 Maria Domingas Alves Simões Ana Margarida Pinheiro Leite Mário João Canelas Brás __________________________________________________ [1] Pode ainda citar-se, na mesma linha de entendimento, o acórdão do STJ de 16/1/2024, acessível em www.dgsi.pt. Estando então em causa a declaração de nulidade do contrato de permuta do imóvel sobre o qual incidia hipoteca, decidiu o STJ que “II – Apresenta-se inoponível ao beneficiário da hipoteca constituída sobre imóvel para garantia de um contrato de mútuo, a sentença que julgou aquele parte ilegítima e declarou a nulidade do contrato de permuta do imóvel, circunscrevendo o respectivo âmbito ao referido negócio (de permuta), alheada do direito do beneficiário da hipoteca, uma vez que, nessa acção, as autoras apenas deduziram pedido de declaração de nulidade da permuta de imóvel, sem formulação de qualquer pretensão (ou alegação de factualidade relevante para o efeito) quanto à declaração de nulidade da hipoteca constituída sobre o mesmo imóvel, a favor de terceiro. III – Estando em causa a nulidade (e não ineficácia) do contrato de permuta por impossibilidade originária do negócio (cfr. artigos 280.º, n.º 1 e 401.º, n.º 1, ambos do Código Civil), não se encontra o beneficiário da hipoteca vinculado pela declaração de nulidade da permuta”. [2] Quanto à jurisprudência contrária indicada pelo apelante, não tendo este identificado a fonte, infelizmente não se mostrou possível localizá-la, quer pelo n.º do processo, quer pela data ou até pelo conteúdo transcrito, o que constituiu impedimento a que sobre a mesma aqui nos pronunciássemos. |