Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3006/21.2T8FAR.E1
Relator: JAIME PESTANA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDATÁRIO
QUOTA IDEAL
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, deve ser interpretado no sentido de só atribuir ao arrendatário urbano o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de prédio ou fração autónoma dele, quando o arrendamento incida sobre a totalidade deste prédio ou fração autónoma dele, não contemplando os casos em que o arrendamento se confina a uma parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3006/21.2T8FAR.E1 – 2.ª secção

Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

Na presente ação declarativa constitutiva com forma de processo comum que (…) e (…), Lda. move contra (…) – Gestão de Imóveis, Lda. e (…) Inédito, Lda., a Autora pretende que se reconheça o seu direito de preferência sobre a venda da quota ideal do prédio urbano identificado nos autos, substituindo-se à 2.ª Ré na escritura de compra e venda e que seja ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que a 2.ª Ré, compradora, haja feito a seu favor em consequência da compra da quota parte da 1.ª R. no supra referido prédio, bem como os registos posteriores que esta efetuou com a compra ilegal das restantes quotas parte do imóvel aos restantes comproprietários, sempre com todas as demais consequências que ao caso couberem. Fundamenta a sua pretensão na circunstância de não lhe ter sido dada a possibilidade de exercer o seu direito de preferência sobre a venda supra referida, na qualidade de arrendatária de parte do imóvel em causa nos autos.

Apenas a Ré (…) Inédito, Lda. deduziu contestação, invocando a inexistência do direito de preferência invocado pela Autora, não havendo lugar ao mesmo quando está em causa arrendamento para outros fins de apenas parte do prédio objeto da venda, não constituído em propriedade horizontal.

Notificada a Autora para se pronunciar acerca das exceções de direito material deduzidas na contestação da Ré (…) Inédito, Lda., a mesma nada disse.

As partes foram notificadas de que o Tribunal ponderava proferir saneador-sentença nos autos, sem necessidade de produção de prova, por entender que não há uma situação de direito de preferência, pretendendo usar como fundamentos, para além de alguns já discutidos nos autos o facto de o que foi vendido foi uma quota ideal de um imóvel, o que não terminaria com o contrato de arrendamento que é o objetivo visado com o direito de preferência.

A Autora pronunciou-se no sentido do perseguimento dos autos, em virtude de ter direito de preferência sobre a venda da quota ideal do imóvel de que é arrendatária, sendo aplicável à situação dos autos o disposto no n.º 9 do artigo 1091.º do Código Civil, para além de que a venda de uma quota ideal do prédio não determinaria a cessação do contrato de arrendamento, mas determinaria a sua alteração, uma vez que a Autora passaria a deter uma quota ideal do prédio, adquirindo a qualidade de comproprietária, ou seja, passaria a deter uma dupla qualidade sobre o imóvel, a de arrendatária e comproprietária, o que não suscitaria qualquer incompatibilidade e determinaria o fim do arrendamento nos termos e condições anteriormente vigentes, para além de que, atento o disposto no artigo 1409.º do Código Civil, poderá exercer preferência sobre quota ideal do prédio.

A Ré (…) Inédito, Lda. pronunciou-se no sentido de que não há direito de preferência na situação dos autos dado que está em causa, como alegado pela Autora, um arrendamento Comercial de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal e, nos termos do disposto no artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na redação introduzida pela Lei 64/2018, de 29 de outubro, apenas será de atribuir ao arrendatário urbano o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de prédio ou fração autónoma dele, quando o arrendamento incida sobre a totalidade deste prédio ou fração autónoma dele, não contemplando os casos em que o arrendamento se confina a uma parte de prédio não constituído em propriedade horizontal Os argumentos que defendem esta interpretação são vastos e unânimes, e embora se refiram ao artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil na redação da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro e a citada disposição legal tenha sido alterada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, a alteração introduzida não tem relevância para o caso em apreço, apenas reforça a interpretação que se defende, uma vez que manteve a expressão “local arrendado”.

Proferido saneador/sentença foi a acção julgada improcedente, por não provada e, em consequência, absolvidas as Rés (…) – Gestão de Imóveis, Lda. e (…) Inédito, Lda. dos pedidos contra si deduzidos pela Autora (…) e (…), Lda..

Inconformada, recorreu a Autora tendo concluído nos seguintes termos:

1. O recurso ora interposto pretende revogar o Douto Despacho-Sentença proferida pelo Tribunal a quo ao ter decidido julgar improcedente, por não provada, a presente ação e, em consequência, absolver as Rés (…) – Gestão de Imóveis, Lda. e (…) Inédito, Lda. dos pedidos contra si deduzidos pela Autora (…) e (…), Lda..

2. Os pedidos deduzidos pela A., ora Recorrente traduzem-se no reconhecimento à A. o direito de preferência sobre o prédio urbano identificado no artigo 1º da P.I., substituindo-se à 2.ª R. na escritura de compra e venda e que seja ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que a 2.ª R., compradora, haja feito a seu favor em consequência da compra da quota parte da 1.ª R. no supra referido prédio, bem como os registos posteriores que esta efetuou com a compra ilegal das restantes quotas parte do imóvel aos restantes comproprietários, sempre com todas as demais consequências que ao caso couberem.

3. O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

a) A Autora (…) e (…), Lda. é arrendatária desde 1976 do rés do chão do prédio urbano, não constituído em propriedade horizontal, sito na Rua (…), n.os 60 a 66, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrita na Conservatória do Registo Civil de Faro sob o n.º (…), destinando o local arrendado à exploração de centros de venda.

b) A Ré (…) – Gestão de Imóveis, Lda. era proprietária de uma quota ideal equivalente a 1/3 da propriedade plena do prédio referido em 1), pertencendo as restantes quotas a terceiros, tal como resulta de fls. 43 a 49, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

c) Em 15 de abril de 2021, por escritora pública outorgada no Cartório Notarial de (…), em Faro, a Ré (…) – Gestão de Imóveis, Lda. vendeu à Ré (…) Inédito, Lda., pelo preço global de € 190.000,00, o direito a um terço do prédio urbano composto por edifício de 2 pavimentos, destinado a comércio e serviços com quintal sito na Rua (…), n.os 60 a 68, em Faro, inscrito na respetiva matriz sob o artigo (…), da União das Freguesias de Faro (Sé e São Pedro) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…), pelo preço de € 85.000,00 e o direito a um terço do prédio urbano sito na Rua (…), n.º 70, em Faro, inscrito na respetiva matriz sob o artigo (…), da União das Freguesias de Faro (Sé e São Pedro) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…), pelo preço de € 105.000,00, tal como resulta de fls. 16 a 21, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. A decisão do Tribunal de julgar improcedente a ação e absolver as RR dos pedidos formulados pela A., funda-se na conclusão de que a mesma não beneficia de direito de preferência na situação dos autos, dado que não era arrendatária da totalidade do prédio relativamente ao qual foi vendida uma quota indivisa, bem como no entendimento de que o objetivo do direito legal de preferência é reunir num só arrendatário e senhorio, o que não se verifica em caso de venda de quota ideal, não sendo aplicável à situação dos autos a situação prevista no artigo 1409.º do Código Civil, dado que nessa norma, ao permitir a preferência da venda de quota, tem apenas o objetivo de unificar numa só pessoa ou entidade a propriedade de um imóvel, o que nãos e verificaria com a venda da quota dos autos à Autora que não é comproprietária do imóvel.

5. Sucede que a Autora, não sendo arrendatária da totalidade do prédio, pretende adquirir a totalidade da quota ideal vendida pela 1.ª Ré.

6. E deu conta dessa sua pretensão ao Tribunal a quo, bem como procedeu ao depósito do preço correspondente a essa totalidade, ou seja, do montante de € 85.000,00 (oitenta e cinco mil euros), o mesmo valor pelo qual a 1.ª R. vendeu a sua quota à 2.ª R.

7. A 2.ª R. não era comproprietária do prédio, nem detinha qualquer qualidade que lhe conferisse a preferência sobre a venda da quota parte da 1.ª R.

8. Entende a Recorrente que tem aqui aplicação o artigo 1091.º do Código Civil, o qual se aplica também aos arrendamentos para fins não habitacionais, como é o caso dos autos, com exceção do agora revogado n.º 8, o qual apenas teria aplicação aos arrendamentos habitacionais.

9. A Autora, ora Recorrente, para sustentar a sua pretensão, invocou o n.º 9 do artigo 1091.º do Código Civil.

10. Determina a referida disposição legal que “Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade”.

11. O Tribunal a quo fez uma incorreta interpretação dos fundamentos do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, de 18 de setembro, o qual declarou inconstitucional o n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, ao entender que, face à declaração de inconstitucionalidade do referido preceito legal, o n.º 9 também não deveria considerar-se em vigor atualmente, uma vez que é a concretização do n.º 8.

12. A Recorrente está em manifesto desacordo com este entendimento da Mm.ª Juiz a quo.

13. Já que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, de 18 de setembro, declarou inconstitucional o n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, mantendo inalterado o n.º 9 da supra citada norma legal.

14. Bem se compreende a decisão do Tribunal Constitucional de manter em vigor o n.º 9 do artigo 1091.º do Código Civil.

15. Efetivamente, um dos principais fundamentos que sustentam a decisão do TC de declarar a inconstitucionalidade do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, tem a ver a imparidade de condições entre a venda ao arrendatário de parte do locado e a venda da totalidade do locado a um terceiro.

16. Sendo que tal solução representaria para o proprietário um prejuízo considerável.

17. Pois venderia apenas parte do prédio por um valor mais baixo do que obteria com a venda da totalidade do prédio.

18. Mas esse problema não se coloca caso o arrendatário (ou arrendatários) adquiram a totalidade do prédio.

19. Uma vez que o proprietário recebe o mesmo preço que receberia caso vendesse a sua quota parte a um terceiro.

20. Como é o caso dos autos.

21. No caso dos autos, a A. pretende adquirir a totalidade da quota de que a 1.ª R. é proprietária, e não apenas a correspondente à parte que ocupa.

22. Porém, a 1.ª R. é proprietária apenas de uma quota ideal correspondente a 1/3 do prédio, logo, é comproprietária do mesmo.

23. Pelo que deveria a Mm.ª Juiz a quo ter aplicado o n.º 1 do artigo 1409.º do Código Civil, o qual versa sobre o direito de preferência em caso de compropriedade.

24. Dispõe o n.º 1 do artigo 1409.º do Código Civil que, passa a citar, “O comproprietário goza do direito de preferência e tem o primeiro lugar entre os preferentes legais no caso de venda, ou dação em cumprimento, a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes”.

25. No caso dos autos, os demais comproprietários não manifestaram interesse em adquirir a quota ideal de 1/3 de que a 1.ª R. é proprietária.

26. Assim, havendo outros preferentes legais, como é o caso da Recorrente na qualidade de arrendatária, goza esta do direito de preferência na compra do prédio.

27. Mas, também a este respeito, a Mm.ª Juiz a quo entendeu não ser aplicável à situação dos autos a situação prevista no artigo 1409.º do Código Civil – que a ora Recorrente invocou na p.i. –, ao entender que não ser aplicável à situação dos autos a situação prevista no artigo 1409.º do Código Civil, dado que essa norma, ao permitir a preferência da venda de quota, tem apenas o objetivo de unificar numa só pessoa ou entidade a propriedade de um imóvel.

28. Também aqui a Recorrente entende que não foi feita uma correta interpretação da referida norma jurídica pela Mm.ª Juiz a quo.

29. Efetivamente, havendo vários comproprietários, como é o caso dos autos, a venda da quota ideal da 1.ª R. a um deles não representaria a unificação da propriedade de um prédio numa só pessoa ou entidade.

30. E nem a venda de quota parte em compropriedade a um terceiro representaria, na maioria dos casos, essa unificação.

31. Exemplo é o caso dos autos, em que a venda da quota ideal na compropriedade pela 1.ª à 2.ª Ré, não resultou na unificação da propriedade do prédio numa só pessoa ou entidade, pois existiam mais comproprietários.

32. Pelo que, quanto a este argumento, também não assiste razão à Mma. Juiz a quo.

33. Pelo exposto, dúvidas não devem restar que a fundamentação apresentada pela Mm.ª Juiz a quo no despacho saneador sentença, padece de erro na interpretação das normas que constituem fundamento jurídico da decisão.

A R. (…) Inédito, Lda. apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso e subsidiariamente requereu a ampliação do objecto do recurso, concluindo quanto a este segmento que o ponto 1 da matéria de facto julgada provada deveria ter sido julgada não provada.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

O Tribunal recorrido julgou provada a seguinte matéria de facto:

1) A Autora (…) e (…), Lda. é arrendatária desde 1976 do rés-do-chão do prédio urbano, não constituído em propriedade horizontal, sito na Rua (…), n.ºs 60 a 66, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrita na Conservatória do Registo Civil de Faro sob o n.º (…), destinando o local arrendado à exploração de centros de venda.

2) A Ré (…) – Gestão de Imóveis, Lda. era proprietária de uma quota ideal equivalente a 1/3 da propriedade plena do prédio referido em 1), pertencendo as restantes quotas a terceiros, tal como resulta de fls. 43 a 49, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3) Em 15 de abril de 2021, por escritora pública outorgada no Cartório Notarial de (…), em Faro, a Ré (…) – Gestão de Imóveis, Lda. vendeu à Ré (…) Inédito, Lda., pelo preço global de € 190.000,00, o direito a um terço do prédio urbano composto por edifício de 2 pavimentos, destinado a comércio e serviços com quintal sito na Rua (…), n.ºs 60 a 68, em Faro, inscrito na respetiva matriz sob o artigo (…), da União das Freguesias de Faro (Sé e São Pedro) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…), pelo preço de € 85.000,00 e o direito a um terço do prédio urbano sito na Rua (…), n.º 70, em Faro, inscrito na respetiva matriz sob o artigo (…), da União das Freguesias de Faro (Sé e São Pedro) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…), pelo preço de € 105.000,00, tal como resulta de fls. 16 a 21, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, salvo questões de conhecimento oficioso (artigo 639.º do Código de Processo Civil).

Discute-se, nuclearmente, a questão de saber se a A., enquanto arrendatária de parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal goza de direito de preferência na venda de parte indivisa desse prédio.

Como se sabe o direito de preferência é um direito que certa pessoa tem de preferir a qualquer outra na compra de certo bem ou na realização de outro contrato compatível com a compra e venda, desde que se disponha a celebrar o contrato em igualdade de condições com terceiro. Este direito pode provir de contrato ou da lei. Isto é, o pacto de preferência, no primeiro caso, e o direito legal de preferência, no segundo caso.

No caso dos autos, tendo os factos alegados pela A. para fundamentar o alegado direito de preferência, estamos perante a figura da preferência legal.

Dispõe o artigo 1091.º do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 64/2018, de 29 de Outubro, para além do mais, que:

1 - O arrendatário tem direito de preferência:

a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos.

8 - No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições:

a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão;

b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;

c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.

9 - Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade.”

É certo que a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil supra referido (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, de 18 de Setembro), não tem aplicação ao caso dos autos, na medida em que se refere ao arrendamento para habitação.

Todavia, como refere a decisão recorrida, a argumentação ali expendida aplica-se aos arrendamentos não habitacionais, sendo o n.º 9 do artigo 1091.º uma concretização do seu n.º 8.

Como refere o mencionado acórdão do Tribunal Constitucional e “a opção pela aquisição da quota-parte do prédio, correspondente ao locado, prevista no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, não salvaguarda o equilíbrio de interesses entre proprietário e arrendatário, entre sujeito passivo e sujeito ativo da relação de preferência. O interesse do proprietário é alienar o prédio em igualdade de condições ajustadas com terceiro; o interesse do arrendatário é adquirir a propriedade do local arrendado, com prioridade sobre terceiro. Só que, nos termos em que a preferência foi estabelecida naquele artigo, o interesse do preferente não pode ser prosseguido sem detrimento do interesse do proprietário, já que a prioridade do preferente não é exercida em rigorosa paridade com as condições negociadas com terceiro, e por isso mesmo o sacrifício que é imposto ao proprietário vai muito além da limitação da liberdade de escolha do contraente. Não pode, na verdade, deixar de concluir-se que o regime especial de preferência contido no n.º 8 do artigo 1091.º sacrifica excessivamente o direito à livre transmissibilidade do prédio, sem satisfazer o objetivo da estabilidade habitacional. Como vimos, para o proprietário-senhorio, o exercício do direito de preferência traduz-se num duplo limite à livre disponibilidade do bem: está impedido de alienar a totalidade do prédio e, se o arrendatário declarar preferir, está obrigado a vender uma quota ideal do mesmo; e para os demais consortes, tem o efeito de impedir o uso de parte da coisa comum, enquanto não se proceder à divisão ou venda do prédio. Por sua vez, o arrendatário converte-se em comproprietário, sem ter a certeza sobre a possibilidade da coisa comum se dividir em substância, por se verificarem os requisitos da propriedade horizontal, e sem ter quaisquer garantias de que não ação de divisão de coisa comum o local arrendado lhe poderá ser adjudicado. Significa isto que o resultado obtido não é proporcional à carga coativa que a norma comporta. A preferência causa prejuízos consideráveis ao proprietário e posteriormente aos consortes: não é concedida em condições de igualdade com outrem; sujeita o proprietário a alienar parte alíquota do prédio contra a sua vontade; priva os demais consortes da utilização direta ou aproveitamento imediato de parte da coisa comum. Ou seja, a preferência prevista no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil acaba por desvalorizar a propriedade a que está ligada muito para além do que normalmente ocorre nas demais preferências legais, que apenas limitam a liberdade de escolha do contraente, e por diminuir o uso ou aproveitamento que os demais consortes poderiam ter e retirar da propriedade comum. Ora, estes entraves colocados ao proprietário e aos comproprietários no interesse do arrendatário são excessivos, desrazoáveis e gravosos, na medida em que também se constata que a preferência não permite alcançar os objetivos que estão na base da mesma. Com efeito, o exercício desse direito não permite o acesso imediato à propriedade plena do local arrendado, nem a compropriedade garante a estabilidade na habitação. Trata-se, pois, de uma intervenção legislativa que, nos seus efeitos restritivos ou lesivos, não se encontra numa relação proporcional ou razoável – de justa medida – com os fins prosseguidos. A ponderação entre a intensidade da intervenção e o peso da sua justificação, o interesse da estabilidade na habitação, tem como resultado que a preferência numa quota-parte do prédio, correspondente ao locado, ultrapassa os limites impostos pela proporcionalidade à determinação do conteúdo e limites do direito de propriedade. Assim, a intervenção na propriedade excede a medida constitucionalmente adequada da vinculação social. Por tudo o que se conclui que a norma sub juditio, ao limitar desproporcionalmente o direito de propriedade privada do senhorio, viola o disposto no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição”.

Acresce que (como bem salienta decisão recorrida) que sendo aplicável à situação dos autos, o disposto no artigo 1091º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, seja na redação de 2018, os argumentos expendidos na jurisprudência na redação de 2006 mantêm-se em vigor dado que a alteração na redação da norma apenas diz respeito ao tempo de duração do contrato de arrendamento para o arrendatário beneficiar de direito de preferência.

Assim sendo, “sufragando-se o entendimento de que o artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, deve ser interpretado no sentido de só atribuir ao arrendatário urbano o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de prédio ou fração autónoma dele, quando o arrendamento incida sobre a totalidade deste prédio ou fração autónoma dele, não contemplando os casos, como o dos autos, em que o arrendamento se confina a uma parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal, seja de concluir não ter a autora o direito de preferência nem sobre a parte arrendada nem sobre a parte objeto da venda (…)” – (ac. do STJ, de 25-3-2021, proc. n.º 10307/16.0T8PRT.P2.S1).

Devendo improceder o recurso de apelação interposto pela A., fica prejudicado o conhecimento do objecto da ampliação do recurso requerido pela recorrida.

Por todo o exposto acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Évora, 27 de Outubro de 2022

Jaime de Castro Pestana

Maria Rosa Barroso

Francisco de Matos