Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1050/20.7T8OLH.E1
Relator: RICARDO MIRANDA PEIXOTO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
INCERTOS
LEGITIMIDADE PASSIVA
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 10/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: SUMÁRIO (art.º 663º, n.º 7, do CPC):

I. Quando o autor desconheça a identidade do condutor e a matrícula do veículo causador do acidente de viação, a acção de condenação no pagamento de indemnização fundada em responsabilidade civil por danos sofridos tem, obrigatoriamente, sob pena de ilegitimidade passiva, de ser proposta contra o Fundo de Garantia Automóvel.


II. Proposta exclusivamente contra “Incertos” com fundamento no supramencionado desconhecimento, estes devem ser absolvidos da instância com fundamento na sua ilegitimidade singular passiva, já que se mostra “ab initio” afastada a sua responsabilidade.


III. Estamos perante uma excepção dilatória insanável que sustenta a prolação de despacho de indeferimento liminar da p.i. e não é passível de superação por via do incidente de intervenção principal (artigo 316º do CPC) pois:


- por um lado, não estamos perante a ausência de um litisconsorte necessário ou voluntário dos “Incertos”; e


- por outro, não admite a formulação de pedido subsidiário contra terceiros (n.º 1 do artigo 39º do CPC), já que a factualidade alegada pelo autor não permite equacionar a responsabilidade daqueles réus, ainda que tenha dúvidas quanto à possibilidade de serem outros os verdadeiros responsáveis.


IV. Em tal contexto, o juiz não deve ordenar, oficiosamente ou a pedido das partes, a realização de diligências com vista a determinar a identidade do condutor ou a matrícula do veículo causador do acidente.

Decisão Texto Integral: Apelação 1050/20.7T8OLH.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Olhão – Juiz 2


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Acordam os Juízes na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo


Relator: Ricardo Miranda Peixoto;


1º Adjunto: Ana Pessoa; e


2ª Adjunto: Francisco Xavier.


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I. RELATÓRIO


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A.


Na presente acção de condenação sob a forma de processo comum proposta contra Incertos, veio AA pedir a condenação dos Réus no pagamento das quantias de 45.200,00 € (quarenta e cinco mil e duzentos euros), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, e da que se vier a determinar em execução de sentença nos termos do disposto nos artigos 564.º, n.º 2.º e 569.º do Código Civil, e 556.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 e 358.º do Código de Processo Civil, devido a tratamentos, instrumentos, acompanhamento médico e medicamentos que o A. irá, eventualmente, no futuro, precisar, incluindo intervenções cirúrgicas, bem como todo o tipo de encargos da mesma natureza, como fisioterapia, por exemplo, em virtude de esses danos não poderem ser determinados ou quantificados nesta data.


Alegou para o efeito que os montantes peticionados correspondem à indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes das lesões sofridas em acidente de viação que consistiu no embate de um comboio na parte traseira do veículo automóvel em que o Autor era transportado como passageiro no banco de trás quando, em Dezembro de 2023, este procedia ao atravessamento de uma passagem de nível que se encontrava com a barreira fechada.


O Autor não consegue identificar o condutor ou a matrícula do veículo automóvel no qual era transportado no momento do embate, estando o respectivo auto de notícia na posse dos serviços da GNR de Local 1 que não o encontram. Estando a ser negado o direito de acção do A., nos termos do disposto nos números 4 e 5 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, requereu que o tribunal oficie os referidos serviços para procederem à busca dos dados solicitados e, de seguida, informarem os presentes autos por forma a que se possa instruir devidamente o presente processo, identificando-se como 1.º R. a companhia seguradora do veículo automóvel que provocou o acidente.


B.


Com data de 20.01.2025 foi proferida decisão de indeferimento liminar da p.i., fundada no entendimento de que propositura da presente acção contra Incertos consubstancia uma situação de ilegitimidade passiva insusceptível de ser sanada através do incidente de intervenção principal por implicar a substituição dos Réus da acção.


C.


Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação, concluindo as suas alegações nos seguintes termos (transcrição sem negrito e sublinhado da origem):


“1. O Recorrente interpôs a presente ação contra incertos, porquanto teve um acidente no mês de Dezembro de 2023.


2. A GNR de Local 1 esteve no local, e elaborou o respetivo auto.


3. Os serviços da GNR de Local 1 negaram fornecer a solicitada informação.


4. A sentença parte do pressuposto de que existe uma exceção dilatória insuprível.


5. Formalmente, o A. qualificou os R.R. como incertos, mas na verdade não são incertos – os serviços da GNR é que se negaram a fornecer a informação – os dados em falta são perfeitamente possíveis de fácil de obtenção por parte do Tribunal.


6. O Tribunal deve efetuar e ordenar, mesmo por sua própria iniciativa, todas as diligências com vista a atingir o apuramento da verdade e a justa composição do litígio. O Juiz tem a possibilidade ampla de averiguar factos com vista à busca da verdade material (Principio do Inquisitório), não sendo um mero expectador do litígio, devendo intervir no sentido de remover os obstáculos à realização da Justiça.


7. Este despacho é ilegal e inconstitucional, violando os números 2, 4 e 5 do art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa (Acesso ao Direito), bem como o princípio da Proporcionalidade (art.º 18 n.º 2 do mesmo diploma Legal).


8. Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade material (art.º 417.º do Cód. de Proc. Civil) – é por isso que se pode requerer à parte contrária a entrega de documentos que estejam em sua posse (Art.º 429, n.º 2 Cód. Proc. Civil).


9. O Tribunal tem um poder – dever, um dever funcional, que se destina a incrementar a eficiência de um processo, a assegurar a igualdade de oportunidade das partes, a descobrir a verdade e a garantir um processo equitativo.


10. O tribunal deve dialogar com as partes e participar da aquisição e da discussão da matéria de facto e de direito relevante para o provimento da decisão.


11. Incumbe ao tribunal suscitar questões que se relacionam com algo que a parte, de forma deficiente ou incompleta, tenha exposto ou pedido; a cooperação do tribunal situa-se no plano processual, cuidando das insuficiências processuais.


12. O tribunal tem o dever de auxiliar as partes na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento dos seus ónus ou deveres processuais (art.º 7.º, n.º 4).


13. Encontra-se uma concretização deste dever de auxílio no art.º 418.º, n.º 1, quanto à obtenção de informações na posse de serviços administrativos.


14. O tribunal tem o dever de exercer esses poderes para cumprir a sua função assistencial perante as partes.


15. A omissão dos deveres inerentes ao dever de cooperação traduz-se até numa nulidade processual porque o tribunal deixa de praticar um ato que não pode omitir (art.º 195.º, n.º 1)


16. Este despacho viola também o Princípio da Gestão processual, que refere que o Juiz tem o dever de dirigir ativamente o processo e de providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias, ao normal prosseguimento da ação, adotando, depois de ouvir as partes, mecanismos demsimplificação e agilização processual que garantam a justa composição de litígio em prazo razoável (art.º 6.º, n.º 1).


17. A gestão processual visa diminuir os custos, o tempo e a complexidade do procedimento e traduz-se num aspeto substancial – a condução do processo – e num aspeto instrumental – a adequação formal (art.º 547.º).


18. O Juiz deve:


A) Promover as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação;


B) Providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância – trata-se da concessão de um poder de sanação da inadmissibilidade do processo.


19. Por fim, viola o princípio da Economia processual, que é aquele princípio segundo o qual o processo não deve implicar custos desnecessários e não proporcionais à prossecução da sua finalidade.


20. Os meios disponíveis devem ser utilizados de molde a otimizar o fim do processo, evitando a perda de tempo e os custos escusáveis.


21. De maneira que se entende que o tribunal não decidiu de forma correta ao negar fazer as diligências que entendesse necessárias para obter os elementos que solicitou, uma vez tendo ficado provado de que o A. não os consegue obter através das formas legais.


22. Deve assim o despacho em causa ser revogado e deve o tribunal providenciar pelas diligências que entenda necessárias para obter os elementos que o A. não consegue obter, e a ação seguir os seus termos normais até final. (…)”.


D.


Admitido o recurso, colheram-se os vistos dos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.


E.


Questões a decidir


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, sem prejuízo da sua ampliação a requerimento dos recorridos (art.ºs 635º, n.º 4, 636º e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC).


Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art.º 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).


Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.


Deste modo, são as seguintes as questões, exclusivamente jurídicas, em apreciação no presente recurso:


1. Se os Réus “Incertos” são parte legítima passiva da presente acção;


2. Se, em caso de resposta negativa à questão precedente, podia a petição inicial ser liminarmente indeferida;


3. Se, em caso de resposta negativa à primeira questão, foi cometida nulidade processual porque o tribunal de 1ª instância omitiu a realização de averiguações que podiam permitir a identificação dos responsáveis pelo acidente; e


4. Se a prolação do despacho de indeferimento liminar fundado na ilegitimidade dos Réus viola o direito de acesso à justiça do Autor ou o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente consagrados.


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II. FUNDAMENTAÇÃO


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A. De facto


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O recurso é exclusivamente de direito e os elementos relevantes para a decisão constam do relatório antecedente.


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B. De direito


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Da legitimidade passiva na acção de indemnização fundada em responsabilidade civil por acidente de viação


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Na presente acção de indemnização fundada em responsabilidade civil extracontratual decorrente de acidente de viação de que foi vítima, o Autor demanda apenas “Incertos”.


Como fundamento da demanda de “Incertos” na presente lide, o Autor alegou que os danos por si sofridos ocorreram em virtude do embate de um comboio no veículo automóvel em que era transportado como passageiro, ocorrido com culpa do condutor do automóvel, desconhecendo a identidade daquele e a matrícula deste. Mais alega que o auto de notícia do acidente está na posse dos serviços da GNR de Local 1 que não o encontram e que é seu objectivo demandar a companhia de seguros do veículo automóvel, assim que resultar apurado o respectivo contrato de seguro.


De acordo com o disposto no art.º 49º, n.º 1, na redacção originária do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21.08 (Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), aplicável à data da propositura da presente acção, o Fundo de Garantia Automóvel garante, até ao limite do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a satisfação das indemnizações por:


- danos corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz, ou for declarada a insolvência da empresa de seguros (al.ª a));


- danos materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz (al.ª b));


- danos materiais, quando, sendo o responsável desconhecido, deva o Fundo satisfazer uma indemnização por danos corporais significativos, ou tenha o veículo causador do acidente sido abandonado no local do acidente, não beneficiando de seguro válido e eficaz, e a autoridade policial haja efectuado o respectivo auto de notícia, confirmando a presença do veículo no local do acidente (al.ª c)).


O artigo 62º do mesmo diploma legal, regula em norma especial a legitimidade passiva nas acções em apreço, impondo, sob cominação de ilegitimidade passiva, que estas sejam obrigatoriamente propostas pelo lesado contra:


- o Fundo de Garantia Automóvel quando o responsável seja desconhecido (cfr. n.º 2 do artigo 62º); e


- o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz (cfr. n.º 1 do artigo 62º).


Como bem nota a decisão proferida em 1ª instância, em decorrência do especial regime do DL n.º 291/2007, só são possíveis os seguintes cenários de legitimidade passiva neste tipo de acções:


- ou o responsável pelo acidente que constitui a causa de pedir nestes autos é desconhecido e a acção deve ser proposta contra o Fundo de Garantia Automóvel;


- ou o responsável é conhecido, mas não dispõe de seguro válido e eficaz, e a acção deve ser proposta contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil;


- ou o responsável é conhecido, dispõe de seguro válido e eficaz, mas, por razão não imputável ao lesado, não lhe foi possível determinar qual a empresa de seguros, caso em que a acção pode ser proposta directamente contra o civilmente responsável, impendendo sobre o tribunal o dever de notificar oficiosamente este último para indicar ou apresentar documento que identifique a empresa de seguros do veículo interveniente no acidente;


- ou o responsável civil é conhecido e dispõe de seguro válido e eficaz e a acção deve ser proposta só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório, ou contra a empresa de seguros e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar tal limite.


No caso vertente, o Autor desconhece, quer a identidade do condutor da viatura alegadamente culpado pela ocorrência do acidente, quer a matrícula da mesma viatura. Apesar das diligências que terá realizado com vista a obter tais elementos, a verdade é que, como o próprio admite, não logrou atingir esse seu desiderato.


Sendo o pressuposto processual da legitimidade – activa ou passiva – aferido pela causa de pedir e respetivo pedido, tal como formulados pelo Autor, e encontrando-se este em declarado desconhecimento da identidade dos responsáveis civis, impõe-se que a acção de responsabilidade civil com vista ao exercício do seu direito indemnizatório pelos danos sofridos com o acidente de viação descrito na p.i., seja proposta contra o Fundo de Garantia Automóvel ao abrigo das supracitadas normas dos artigos 49º e 62º do DL n.º 291/2007.


É que, como vimos, quando não sejam conhecidas as pessoas dos responsáveis civis a parte legítima passiva é, necessariamente, o Fundo de Garantia Automóvel.


Deste modo, ocorre o vício da ilegitimidade passiva dos Réus “Incertos” contra quem o Autor dirige a presente demanda.


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Questão distinta é a eventualidade de, no decurso da acção, poder vir a resultar apurada a identidade do condutor e / ou a matrícula da viatura automóvel na qual o Autor seguia com passageiro no momento do sinistro.


Sobre tal possibilidade dir-se-á, em primeiro lugar que é ónus do Fundo de Garantia Automóvel, em acção contra si intentada, demonstrar quer a identidade do condutor responsável pelo acidente de viação quer que a viatura por este conduzida dispunha de contrato de seguro válido e eficaz na ocasião do acidente, por serem factos que afastam a sua responsabilidade pela reparação dos danos emergentes do acidente de viação (cfr. artigo 342º, n.º 2 do CC). Não é sobre o demandante, em estado de desconhecimento da pessoa e da viatura do responsável civil, que impende esse ónus de alegação e de prova.


Em segundo lugar, o tribunal não pode fundar a análise da verificação do pressuposto processual da legitimidade naquela que é expectativa da parte quanto a factos desconhecidos e incertos (a determinação da pessoa do condutor ou da matrícula da viatura), mas apenas na factualidade conhecida pelo demandante e narrada na petição inicial. De acordo com o próprio Autor, os serviços da GNR de Local 1 responderam-lhe que não possuem informação referente ao auto de notícia do acidente, não havendo certeza de que, mesmo se houvessem tomado conta da ocorrência, tivessem apurado quem era o condutor da viatura, assim como a respectiva matrícula e a existência de contrato de seguro válido e eficaz. Tanto quanto da informação da GNR decorre, podemos assumir que não. Quanto à conduta processual do Autor, salvo se estiver a ocultar algum outro facto que seja do seu conhecimento, terá agido com a diligência que lhe é exigível, solicitando à autoridade competente a informação que lhe permitiria vencer o seu estado de desconhecimento quanto aos elementos necessários para poder demandar a hipotética seguradora da viatura e / ou o seu condutor. Deste modo, a factualidade que o Autor alega na p.i. não permite sustentar a legitimidade passiva de outras pessoas para além do F.G.A..


Em terceiro e último lugar, a nossa lei adjectiva prevê instrumento para dar resposta ao eventual apuramento, no decurso da acção proposta contra o F.G.A., da pessoa do condutor responsável e da eventual existência de contrato de seguro válido e eficaz do veículo no seguimento da defesa que este venha a apresentar, facultando ao Autor que, através do incidente de intervenção principal preventiva provocada ao abrigo da previsão da 2ª parte do n.º 2 do artigo 316º do Código de Processo Civil, dirija pedido subsidiário contra terceiros, alegando e demonstrando a ocorrência de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida, passível de enquadramento no artigo 39º, n.º 1 do CPC. Segundo ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, o recurso a este incidente previne “…a eventual declaração de ilegitimidade passiva singular, depende da iniciativa do autor ou da resposta a um despacho de convite formulado pelo juiz, mas apenas pode ser ativado antes de ser declarada a absolvição de instância.” 1


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Do indeferimento liminar da p.i.


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Nos termos previstos pelo artigo 590º, n.º 1, do CPC, a ocorrência de excepção dilatória insuprível é motivo de indeferimento liminar da p.i..


Como referem os supracitados autores, é exemplo de excepção dilatória de conhecimento oficioso que não pode ser suprida por convite ou iniciativa do juiz ou por actuação do autor, a ilegitimidade singular (cfr. al.ª e) do artigo 577º do CPC) caracterizada por não estar relacionada com a falta da presença cumulativa de uma outra pessoa para assegurar a legitimidade da pessoa demandada, nisto se distinguindo das situações de litisconsórcio necessário. 2


No caso, a excepção dilatória em apreço – de ilegitimidade singular – não é passível de sanação porque, de acordo com a lei aplicável à versão dos factos apresentada pelo Autor na p.i., não são os Réus “Incertos”, mas o FGA, quem deve responder pelo pagamento da indemnização.


Não se trata de uma situação de ilegitimidade por preterição de outrem que também devesse estar em juízo como ocorre nos casos de litisconsórcio necessário passivo ou activo, nem de alguém que responda por parte da indemnização cumulativamente com os Réus e pudesse ser litisconsorte voluntário, mas de um caso em que, simplesmente, os “Incertos” não são os titulares do interesse passivo em defender-se, de acordo com a lei aplicável aos factos alegados pelo Autor, pelo que não podem constar como parte nos presentes autos.


Consequentemente, não há interesse que justifique o aproveitamento da tramitação de uma acção dirigida apenas contra quem nela não deveria, desde o momento inicial, figurar como sujeito.


Termos em que se há fundamento jurídico-processual para a prolação do despacho de indeferimento liminar da p.i..


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Da nulidade processual por omissão da prática de acto pelo tribunal


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Sustenta o Recorrente que o tribunal omitiu a prática de actos que estava obrigado a praticar, cometendo nulidade processual (cfr. n.º 1 do artigo 195º do CPC).


Em causa está a circunstância do despacho de indeferimento liminar da p.i. ter sido proferido sem que o tribunal tivesse determinado à GNR de Local 1 que esta procedesse à busca dos dados referentes à identidade do condutor e à matrícula da viatura, por forma a que o Autor pudesse instruir devidamente o processo.


Alega para tanto que o tribunal tem um poder-dever funcional, ao abrigo do princípio do inquisitório, de efectuar e ordenar por sua própria iniciativa todas as diligências com vista a atingir o apuramento da verdade e a justa composição do litígio.


Ao abrigo dos seus deveres de cooperação com as partes e de gestão processual, deve o tribunal dialogar com as partes e participar da aquisição e da discussão da matéria de facto e de direito relevante para o provimento da decisão, devendo auxiliá-las na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento dos seus ónus ou deveres processuais (art.º 7.º, n.º 4), nomeadamente, obtendo informações na posse de serviços administrativos (art.º 418.º, n.º 1).


Quanto aos argumentos apresentados, convém, antes do mais, fazer uma breve introdução sobre a dialética entre os princípios do dispositivo e do inquisitório no nosso processo civil.


É sabido que o processo civil tem como estruturante o princípio do dispositivo pelo qual “[à]s partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.” (cfr. artigo 5º, n.º 1 do CPC).


Com José Lebre de Freitas (in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 465) o princípio dispositivo impõe que às partes caiba “…a formação da matéria de facto da causa, mediante a alegação nos articulados, dos factos principais, isto é, dos que integram a causa de pedir, fundando o pedido, e daqueles em que se baseiam as excepções peremptórias. Sem prejuízo de os factos da causa poderem ser alegados por qualquer das partes, cada uma tem o ónus da alegação daqueles que têm um efeito que lhe é favorável (…) cuja inobservância dá lugar, consoante o caso, à improcedência da acção ou à improcedência da excepção…”.


O ónus de alegação, projecta-se, por seu turno, no ónus da prova dos factos constitutivos do direito arrogado por aquele que invocar o direito em juízo, assim como dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado por aquele contra quem a invocação é feita (cfr. artigo 342º do Código Civil).


Não obstante, ainda na vigência da versão do Código de Processo Civil anterior à reforma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro, a nossa lei processual previa elementos do princípio do inquisitório, que as reformas de 1996 e de 2013 acentuaram, conferindo-lhe expressa referência no artigo 265º (em parte correspondente ao artigo 411º do actual CPC) e, ao juiz do processo, os poderes-deveres:


- de regularização formal do processo, como a promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção ou a sanação da falta de pressupostos processuais (n.ºs 1 e 2 do artigo 265º do anterior CPC, em parte correspondente ao artigo 6º do actual);


- nos planos material e probatório, com a possibilidade expressa de o juiz fundar a decisão não apenas nos factos alegados pelas partes mas também nos factos instrumentais que, mesmo por indagação oficiosa, resultem da instrução e discussão da causa, assim como os factos essenciais que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam alegado e resultem da instrução ou discussão da causa, oficiosamente conquanto as partes tenham tido oportunidade de se pronunciar sobre eles (n.º 2 do actual artigo 5º), incumbindo-lhe realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (n.º 3 do artigo 265º do anterior CPC, correspondente ao artigo 411º do actual).


Podemos, assim, concluir que, embora regido pelo princípio do dispositivo - na medida em que compete às partes definir a causa de pedir alegando os factos essenciais que a constituem e aqueles em que se baseiam as excepções (n.º 1 do artigo 5º do CPC), sendo também sobre estas que impende o ónus da prova dos mesmos factos -, o apuramento da verdade material e o aproveitamento do processo para realizar uma justa composição do litígio, muito presentes no espírito do legislador, proporcionam ao juiz um conjunto relevante de poderes-deveres inquisitórios.


A questão colocada pelo presente recurso é de índole processual pois incide sobre um despacho de indeferimento liminar que tem como fundamento a apreciação do pressuposto da legitimidade passiva da parte “Incertos” contra quem vem proposta a acção.


Estamos num momento processual prévio à aquisição e à prova da matéria de facto relevante para a decisão a causa, mostrando-se deslocada a invocação do princípio do inquisitório nos planos material e probatório, em socorro da pretensão recursiva, já que o exercício destes poderes apenas se coloca quando haja necessidade de factos ou de provas imprescindíveis para a prolação de uma decisão sobre o mérito da causa, o que não ocorre no caso vertente.


Atentemos, por isso, na parte dos poderes regularização formal do processo conferidos ao juiz, dos quais consta expressamente o suprimento oficioso “…da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-los.” (n.º 2 do artigo 6º do CPC).


Trata-se de um poder-dever que, como a norma em análise enfatiza, respeita aos pressupostos processuais susceptíveis de sanação pelo juiz ou pelas partes.


Como vimos, no entanto, a ilegitimidade singular dos Réus “Incertos” não é, no caso vertente, susceptível de sanação porque de acordo com os factos alegados pelo Autor aqueles não têm, nunca tiveram, nem podem vir a ter, interesse em defender-se (só ao FGA compete fazê-lo).


Distintamente das situações em que a factualidade alegada pelo autor permita equacionar a responsabilidade do réu, ainda que com dúvidas quanto à possibilidade de serem outros os verdadeiros responsáveis (caso em que é permitida a dedução do supramencionado pedido subsidiário contra terceiros ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 39º do CPC), no caso vertente, a responsabilidade dos “Incertos” está “ab initio” afastada.


Por outro lado, como também se expôs, a ilegitimidade não está relacionada com a falta da presença cumulativa de uma outra pessoa para assegurar a legitimidade da pessoa demandada.


Não há, por isso, sanação possível da falta do pressuposto processual da legitimidade singular dos Réus “Incertos” que permita o aproveitamento da tramitação dos presentes autos, razão pela qual nenhum benefício havia em ordenar a realização das averiguações solicitadas pelo Autor num processo que, em qualquer caso, estava condenado a uma absolvição dos Réus da instância por ilegitimidade passiva.


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Da inconstitucionalidade do despacho recorrido


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Argumenta ainda o Recorrente no sentido da inconstitucionalidade da decisão recorrida, por violar os n.ºs 2, 4 e 5 do art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa (Acesso ao Direito), bem como o n.º 2 do artigo 18º do mesmo diploma (Princípio da Proporcionalidade).


Crê-se que sem razão.


O direito de acesso dos cidadãos à justiça e à tutela efectiva dos tribunais para defesa dos seus direitos, constitucionalmente previsto no artigo 20º da C.R.P., impõe a existência de um processo justo e equitativo para o exercício dos direitos dos cidadãos, com a finalidade a obtenção de uma decisão em prazo razoável.


Por tudo quanto decorre da precedente exposição, é evidente que esse meio existe ao dispor do Autor sob a forma de um processo regulado por lei, sujeito a regras, nomeadamente quanto à pessoa contra quem deve ser pretensão indemnizatória se, como alega na p.i., desconhece a identidade do causador do acidente.


Não está, por isso, o Autor desvalido de tutela jurisdicional efectiva, muito pelo contrário, já que a lei instituiu uma entidade que assegura a indemnização dos seus danos mesmo no caso de se não apurar a identidade do culpado causador do sinistro.


No que respeita à violação do princípio da proporcionalidade, que o Recorrente atribui a uma “…desproporção total entre as circunstâncias e a decisão…” de indeferimento liminar, assim como à violação das “…mais elementares regras do bom senso…”, ficamos, à míngua de outro desenvolvimento das suas razões, pela constatação de que o n.º 2 do artigo 18º da C.R.P. alude à proporcionalidade na restrição de direitos, liberdades e garantias conflituantes entre si.


No caso, a única hipotética “restrição” do direito de acesso do Autor à justiça, consiste na necessidade de apresentar a demanda contra quem pode, efectivamente, responder pelo pagamento da indemnização dos seus danos em caso de desconhecimento da pessoa do responsável. É todavia, uma obrigação que se traduz num benefício para o próprio Autor, não apenas por ser uma garantia de recebimento da reparação dos danos mesmo que não se apure a pessoa responsável, mas ainda porque evita a perda de tempo que a tramitação de uma acção contra “Incertos” constitua quando não chegue a apurar-se a sua identidade, sem que, do superveniente apuramento dessa identidade advenha a impossibilidade de fazer valer o seu direito contra estes.


Não se verifica, deste modo, violação dos supramencionados direito e princípio constitucionais.


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Fenecem, assim, os argumentos apresentados pelo Recorrente contra o despacho recorrido que deve manter-se inalterado.


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Custas


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Não havendo norma que preveja isenção (art. 4º, n.º 2 do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (art.º 607º, n.º 6, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do CPC).


No critério definido pelos artigos 527º, n.ºs 1 e 2 e 607º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no vencimento ou decaimento na causa ou, não havendo vencimento, no proveito.


No caso vertente, o Recorrente foi vencido, pelo que deverá suportar as custas do recurso.


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III. DECISÃO


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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em:


Julgar improcedente a presente apelação, confirmando a decisão recorrida.


Condenar o Recorrente no pagamento das custas do presente recurso.


Notifique.


*


***


Évora, d.c.s.


Os Juízes Desembargadores:


Ricardo Miranda Peixoto;


Ana Pessoa; e


Francisco Xavier.

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1. In “Código de Processo Civil Anotado”, volume I, Almedina, 3ª edição, pág. 329, anotação 4 ao artigo 261º.↩︎

2. In “Op. Cit”, volume I, Almedina, 3ª edição, pág. 726º, anotação 5 ao artigo 590º.↩︎