Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
426/07-1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: CRIME DE AMEAÇAS
CRIME DE PERIGO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PARA A DECISÃO
Data do Acordão: 06/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I. O vício de insuficiência da matéria de facto - artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP - verifica-se quando o tribunal a quo deixou de apurar factos que, revelando interesse para a decisão da questão da culpabilidade ou da determinação da sanção, tenham sido alegados pela acusação ou pela defesa, ou tenha resultado da discussão da causa em termos tais que, por via do princípio da investigação ou da verdade material, se impõe ao tribunal conhecer dos mesmos, impondo-se ampliar a base de facto da decisão.
II. Não faz parte do tipo de crime de ameaça p. e p. pelo art. 153º do C. Penal a efectiva lesão do bem jurídico protegido (por isso não é um crime de dano), nem a efectiva colocação em perigo do bem jurídico protegido (por isso não será um crime de perigo concreto ), mas também não basta a ameaça com a prática de algum dos crimes a que se reporta o nº1 do art. 153º do C. Penal, para o preenchimento do tipo. Exige-se a comprovação no caso concreto, da aptidão genérica das ameaças contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual, para provocar medo ou inquietação ou prejudicar a liberdade de determinação de pessoa determinada.
III. Assim, atendendo à classificação dogmática dos crimes de perigo em crimes de perigo abstracto, de perigo abstracto-concreto e de perigo concreto, o crime de ameaça é um crime de perigo abstracto-concreto, que também pode ser designado pelas noções próximas de crime de aptidão ou de perigo hipotético.
IV. São elementos ou pressupostos do crime continuado: - realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico; - homogeneidade das condutas; -solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa.
V. Não é decisivo que a situação exterior que diminua consideravelmente a culpa surja apenas na sequência da primeira actividade criminosa., ou simultaneamente com ela. Se em vez da repetição (em sentido estrito) de uma dada situação exterior, tivermos a persistência da mesma situação que inicialmente arrastou o arguido para a prática do crime, como sucede in casu, nada se altera no que respeita à existência de crime continuado.
VI. Essencial é que “…a atenuação da culpa, que resulta de uma conformação especial do momento exterior da conduta, esteja sempre condicionada pela circunstância de esta ter efectivamente concorrido para determinar o agente à resolução de renovar a prática do mesmo crime”, de modo a afastar do âmbito do crime continuado aquelas situações em que sejam total ou predominantemente razões endógenas ao agente (designadamente as suas tendências pessoais) a conduzir à repetição do facto.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, após audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I. Relatório
1. - No Tribunal Judicial da Comarca da …, foi julgado em processo comum com intervenção do tribunal singular A. …, a quem os Assistentes, B. … e C. …, imputaram a prática de 3 crimes de ameaça p. e p. pleo art. 153º do C.Penal e 3 crimes de injúrias p. e p. pelo art. 181º do C. Penal, imputando-lhe o MP a pratica de um crime de difamação p. e p. pelo art. 180º do C. Penal, quatro crimes de ameaças p. e p. pelo art. 153º nºs 1 e 2 do C. Penal (dois na pessoa do assistente e dois na pessoa da assistente) e um crime de injúrias p. e p. pelo art. 181º do C. Penal.
Os assistentes deduziram ainda pedido cível contra o arguido, pedindo a condenação destes a pagar a cada um deles a quantia de 2 500 euros, a título de indemnização por danos morais.
2. - Realizada a Audiência de discussão e julgamento foi o arguido condenado:
- pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de dois crimes de ameaça, ambos na forma continuada, p. e p. pelos arts 153º nº 2 e 79º do C.Penal, nas penas parcelares de 150 dias de multa por cada um;
- em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de difamação p. e p. pelo art. 180º nº1 do C.Penal, na pena parcelar de 140 dias de multa;
- em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de injúria p. e p. pelo art. 181º nº1 do C. Penal, na pena parcelar de 75 dias de multa.
Em cúmulo jurídico destas penas foi o arguido condenado na pena única de 250 dias de multa taxa diária de 10 euros.
O arguido foi ainda condenado a pagar a cada um dos assistentes a quantia de 750 euros, a título de indemnização pelos prejuízos causados.
3. –Inconformado, recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões que se transcrevem:
«Conclusões
A - Dão-se por reproduzidos os factos considerados provados na douta sentença;
B – Entendeu o Meritíssimo Juiz a quo, face aos factos considerados provados, condenar o arguido pela prática em autoria material de dois crimes de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º nº 1 e 2, um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º nº 1 do CP e um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º nº1 do CP;
C - São elementos objectivos do crime de ameaça, p. e p. no artigo 153º n." 1 do CP, a existência de uma ameaça de um mal futuro cuja ocorrência dependa da vontade do agente, o conhecimento dessa ameaça pelo sujeito passivo da mesma e a adequação da ameaça a provocar medo, inquietação ou interferência com a liberdade de determinação do sujeito passivo;
D - A ameaça e a dependência da sua concretização da vontade do agente, e tal como refere a Douta Sentença recorrida, o critério para aferir dessa dependência deve ser avaliado segundo a perspectiva de um homem comum, devendo ainda ser tidas em conta as características próprias da sujeito passivo da ameaça;
E - No caso concreto, e dadas as características físicas e idade avançada do arguido bem como as características físicas dos ameaçados, aliadas aos laços estreitos existentes entre os sujeitos, o arguido é pai e sogro dos assistentes, entendeu a Douta Sentença recorrida que dificilmente seria verdadeira intenção do arguido concretizar as ameaças, o que, as torna menos gravosas;
F - No que respeita ao conhecimento da ameaça por parte do sujeito passivo, considerou a Douta Sentença tal elemento como verificado;
G - Relativamente ao terceiro elemento objectivo do tipo, de acordo com critérios de experiência comum e de razoabilidade, deverão as mesmas ser aptas a provocar medo ou inquietação ao destinatário, tendo em conta as suas características próprias;
H - Considerou a Douta Sentença recorrida que, " ... o próprio teor objectivo das expressões bem como a insistência com que foram proferidas tornam-nas adequadas a afectar a tranquilidade e sentimento de segurança de uma pessoa média.";
I - Mais considerou a Douta Sentença recorrida como provado que, "O arguido agiu com o propósito de atingir os Assistentes na sua honra, consideração e dignidade pessoais e sociais, bem sabendo que as expressões que proferiu eram aptas a atingir tal objectivo
J - Bem como que" Previu ainda e quis agir do modo descrito, com o propósito de amedrontar e assustar os assistentes e que estes se sentissem receosos pela sua vida e integridade física ";
L - Ficou ainda provado, que "Actuou do modo descrito porquanto considerava ter sido enganado pelos Assistentes num negócio de compra e venda da propriedade sita no Casal do Moinho de Vale Flor, Parreira, concelho da Chamusca, objecto de litígio judicial. ";
M - Considerou, no entanto, a Douta Sentença recorrida como não provado que "0s Assistentes e demandantes ficaram com medo o arguido os matasse”, bem como que "0s Assistentes e demandantes evitam circular pelos locais frequentados pelo arguido. ";
N - Ou seja, não ficou provado que as ameaças, expressões proferidas pelo arguido tivessem sido aptas a intimidar os assistentes, quer na sua vida, integridade física ou liberdade pessoal;
O - Contrariamente, ficou sim provado que os assistentes não ficaram com receio que o arguido concretizasse as ameaças, bem como que os assistentes em momento algum evitaram frequentar os mesmos locais que o arguido;
P - É ainda de referir que, e tal como resultou como provado, todos os acontecimentos aqui em causa ocorreram numa situação de litígio pré-existente entre o arguido e os assistentes, a qual, foi móbil de toda a actuação do arguido;
Q - De todo o acima exposto, se demonstra uma clara insuficiência da matéria de facto provada para permitir a condenação do arguido em dois crimes de ameaça qualificados, p. e p. no artigo 153" n." 2 do CP;
R - Existindo uma clara violação do disposto no artigo 410" n." 2 alínea a) do Código de Processo Penal, pelo que, deverá a Sentença recorrida ser tida como nula, e o processo reenviado para novo julgamento;
S - A determinação da medida da pena deve ser feita de acordo com os critérios enumerados no artigo 71" e tendo presente o disposto no artigo 47", ambos do CP;
T - O Tribunal a quo ao interpretar aqueles artigos teve em atenção a culpa do arguido e as exigências de prevenção;
U - No doseamento da medida concreta da pena o Tribunal a quo ponderou que: " ... todos os crimes foram cometidos em circunstâncias temporais próximas, de alguma tensão emocional, o que de certo modo atenua a culpa do arguido. O facto de o arguido não ter antecedentes criminais.” …” Especificamente quanto aos crimes de ameaças, na forma continuada, ressalta o facto de o arguido ter actuado com dolo directo e de a ilicitude ser mediana, …”
V - O Meritíssimo Juiz a quo entendeu fixar, relativamente aos crimes de ameaças, a moldura de prevenção no terço superior da moldura abstracta, aplicando pena de multa de 150 dias por cada um dos assistentes e relativamente aos crimes de difamação e ameaça, apontou para uma pena a fixar na metade superior da moldura abstracta, tendo entendido aplicar pena de multa de 140 e 75 dias, respectivamente;
X - Penas essas que, e nos termos do disposto no artigo 77" do CP, se traduziram na aplicação de pena única de 250 dias de multa a que nos termos do artigo 49" n." 1 do CP, correspondem 166 dias de prisão subsidiária, tendo fixado o seu quantitativo diário em 10,00 €;
Z - O arguido vive apenas da sua pensão de reforma, com a qual tem de fazer face a todas as despesas, ordinárias e extraordinárias;
AA - O arguido tem outras despesas extraordinárias para além das despesas com medicamentos da sua esposa, entre as quais deslocações semanais a Lisboa com a sua esposa para tratamento médico, com todas as despesas daí decorrentes, bem como prestação mensal relativa a crédito para aquisição de viatura automóvel;
BB - Atendendo ainda, a que, e tal como por mais de uma ocasião se refere na Douta Sentença recorrida, o arguido apenas agiu da forma descrita por considerar ter sido enganado pelos assistentes, tendo agido num momento de clara tensão emocional, considerando-se ser a sua culpa diminuta e consequentemente as exigências de prevenção especial relativamente baixas;
CC - A pena de multa ora aplicada, 250 dias à taxa diária de 10,00 €, no montante global de 2.500,00 €, tem-se por manifestamente excessiva face às condições pessoais e económicas do arguido;
DD - Facto que se acentua com a condenação na quantia de 750,00 C a título de indemnização cível a cada um dos assistentes, e ainda condenação em custas criminais, custas cíveis, taxa de justiça e procuradoria;
EE - O que consubstancia uma clara violação do disposto no artigo 47" n." 1 e n." 2 e artigo 71 ", ambos do CP. »

4. – Recorreu igualmente o MP, que da sua motivação extrai as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1. Pressuposto de verificação de um crime continuado previsto no artigo 30, n° 2 do Código Penal, é para além do mais: "persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente.”.
2. – Quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa, ele deve ir encontrar-se, como pela primeira vez claramente o formulou Kraushaar, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto, pelo que, pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.”. – Eduardo Correia, Direito Penal II, pp 209 e 210.
3. Exemplificativas de situações exteriores que poderão diminuir consideravelmente a culpa do agente e estar na base de uma continuação criminosa, são segundo aquele autor:
a) ter-se criado, através da primeira actividade criminosa um certo acordo entre os sujeitos;
b) voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa;
c) perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa;
d) a circunstância de o agente, depois de executar a resolução criminosa, verificar haver possibilidades de alargar o âmbito da sua actividade.
4. Do ponto 9 da matéria dada como provada resulta apenas que “ Actuou do modo descrito porquanto considerava ter sido enganado pelos assistentes num negócio de compra e venda da propriedade sita no Casal do Moinho de Vale Flor, Parreira, Concelho da Chamusca, objecto de litígio judicial”.
5. Não se retira dos factos dados como provados, que o móbil considerado pela sentença ora recorrida para fundamentar o enquadramento jurídico dos dois crimes de ameaça praticados pelo arguido na pessoa dos ofendidos, foi de tal modo uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
6. Na verdade, não nos encontramos no caso em apreço nos autos, por um lado, perante uma circunstância exógena, mas sim perante a motivação do arguido para o cometimento do tipo legal de crime em apreço por quatro vezes (tantas quanto os ofendidos, pese embora nos encontremos perante duas situações espacio temporais diferenciadas), a qual poderá apenas servir para lhe ser atenuada a culpa, mas não, para justificar uma continuação criminosa. Por outro lado, o referido móbil, é anterior ao cometimento do primeiro crime e não contemporâneo a este ou consequentemente anterior ao segundo.
7. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 30°, nº. 2 do CP .. .Assim, deverá o Tribunal de Recurso substituir a decisão recorrida por outra que determine a revogação daquela, nesta parte e condene o arguido por quatro crimes de ameaça, conforme vinha acusado na acusação pública e na consequente dosimetria da pena que os Venerandos Desembargadores entendam adequada, pena que atenta a matéria de facto dada como provada se considera dever ser de multa.

5. – Notificado para o efeito, o MP junto do tribunal a quo apresentou a sua resposta ao recurso interposto pelo arguido, em que conclui pela total improcedência do recurso.

6. – O arguido não respondeu ao recurso interposto pelo MP.

7.- Nesta Relação, o senhor magistrado do MP apresentou o seu parecer de fls 548 a 552, onde conclui pela total improcedência de ambos os recursos.

8. – Notificados da junção daquele parecer, os restantes sujeitos processuais nada acrescentaram.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto dos recursos.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios elencados no n.º 2, do art. 410°, do Código de Processo Penal ( cfr Acórdão do STJ, para Fixação de Jurisprudência, de 19/1 0/95, in D.R., I-A de 28/12/95).
Tendo sido gravadas as declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento, pode este tribunal ad quem conhecer de facto e de direito (art. 363º e 428º, do CPP).
Os recorrentes, porém, apenas suscitam questões de direito.
a) No seu recurso, vem o arguido invocar insuficiência da matéria de facto provada para permitir a condenação do arguido em dois crimes de ameaça qualificados p. e p. pelo art. 153º nº2 do C. Penal, existindo uma clara violação do disposto no art. 410º nº 2 a) do CPP. Dados os termos do recurso, para além do referido vício da decisão, há ainda que decidir se o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, ao considerar preenchidos os elementos constitutivos dos crimes de ameaça pelos quais foi condenado.
Invoca ainda o arguido ser excessiva a pena única de 250 dias de multa à razão de 10 euros diários, que lhe foi aplicada, pelo que se impõe apreciar da pretensa ilegalidade, em sede de determinação concreta daquela mesma pena única.
b) A questão suscitada no recurso do MP é a de saber se estão verificados todos os requisitos de que o art. 30º nº2 do C. Penal faz depender a existência de um só crime continuado, no que respeita aos crimes de ameaça imputados ao arguido, por entender o recorrente que a realização plúrima do mesmo tipo de crime não teve lugar no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa.

3. – A decisão recorrida.
«(…)
Factos provados
Com Interesse para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 21 de Abril de 2004, pelas 18 horas, no Parque … em …, o arguido encontrou-se com M. … e com U. …e, em conversa com estes, afirmou-lhes que «a C. .. é uma puta, uma vaca, uma ordinária, suja e ladra», referindo-se à Assistente.
2. Na mesma conversa, o arguido afirmou ainda, perante aquele casal, que haveria de matar os dois Assistentes e que estes não criariam o seu filho, pois que antes os mataria aos dois, Já que tinha 70 anos de idade e não tinha nada a perder, referindo-se sempre a ambos os Assistentes.
3. Do teor desta conversa, designadamente dos excertos supra descritos, deram M. … e U. … conhecimento nesse mesmo dia aos Assistentes.
4. Em alguns dias anteriores e posteriores a 21 de Abril de 2004, por diversas vezes o arguido afirmou perante terceiros, designadamente junto de alguns pedreiros que se encontravam a restaurar uma casa por conta dos Assistentes, sita em …, concelho da …, que haveria de os matar, referindo-se a ambos os Assistentes.
5 No dia 22 de Abril de 2004, cerca das 9 horas e 45 minutos, junto a uma casa sita no …, o arguido, dirigindo-se ao Assistente B. .., proferiu as seguintes expressões: «meu vigarista, meu sujo, gatuno; ainda um dia mato, a ti e à tua mulher, meu porco»
6. O arguido agiu com o propósito de atingir os Assistentes na sua honra, consideração e dignidade pessoais e sociais, bem sabendo que as expressões que proferiu eram aptas a adequadas a atingir tal objectivo.
7. Previu ainda e quis agir do modo descrito, com o propósito de amedrontar e assustar os Assistentes e que estes se sentissem receosos pela sua vida e Integridade física..
8. Agiu sempre deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que tais condutas lhe estavam vedadas por lei e eram por esta punidas.
9. Actuou do modo descrito porquanto considerava ter sido enganado pelos Assistentes num negócio de compra e venda da propriedade sita no … objecto de litígio judicial.
10. O arguido é pai e sogro dos Assistentes.
11. O arguido encontra-se reformado, recebendo uma pensão mensal de cerca de 1000 euros.
12. Vive com a sua mulher, também reformada, a qual recebe pensão de cerca de 500 euros.
13. Gastam mensalmente cerca de 200 euros em medicamentos.
14. O arguido tem a 4a classe e um curso profissional.
15. O arguido não tem antecedentes criminais.
Mais se provou, quanto ao pedido de indemnização civil:
16. Com os factos infra descritos, os Assistentes e demandantes sentiram-se atingidos na sua honra e consideração pessoais e sociais.
17. As expressões proferidas pelo arguido supra descritas chegaram ao conhecimento de diversos familiares e amigos dos Assistentes e demandantes, o que levou a que estes se sentissem angustiados e melindrados com tal situação.
18. Com as expressões proferidas pelo arguido, sentiram-se ainda os Assistentes e demandantes receosos pela sua integridade física, sentindo algum medo e inquietação.
Factos não provados
No dia 21 de Abril de 2004, pelas 12 horas e 45 minutos, na propriedade de …, a Assistente deparou-se com o arguido quando ia a passar pela porta da casa deste, tendo este proferido as seguintes expressões: «sua vaca de merda; sua puta, ainda te mato.
1. Os Assistentes e demandantes ficaram com medo que o arguido os matasse.
2. Os Assistentes e demandantes evitam circular pelos locais frequentados pelo arguido.
Nada mais se provou, nomeadamente quaisquer factos com os ora dados como provados.
Motivação
(…)»
4. Decidindo.
4.1. – Do recurso do arguido
4.1.1.- Da insuficiência da matéria de facto provada.
Como nas restantes situações a que se reporta o nº2 do art. 410º do CPP, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto há-de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que tais vícios são apenas os intrínsecos à própria decisão, considerada como peça processual autónoma.
Este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), verifica-se quando o tribunal a quo tenha deixado de apurar factos que, revelando interesse para a decisão da questão da culpabilidade ou da determinação da sanção, tenham sido alegados pela acusação ou pela defesa, ou tenha resultado da discussão da causa em termos tais que, por via do princípio da investigação ou da verdade material, se impõe ao tribunal conhecer dos mesmos, pelo que a sua ocorrência acarreta a necessidade de ampliar a base de facto da decisão. [1]
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, « (…). Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida.» [2] . Do mesmo modo nada tem a ver com o erro de julgamento, resultante de a factualidade provada não preencher todos os elementos objectivos e subjectivos do ilícito típico em causa.
No caso sub júdice, não se verifica o vício a que se reporta a al. a) do nº2 do art. 410º do CPP pois o arguido não invoca sequer falta de apuramento de qualquer facto essencial para a decisão da causa, nem qualquer outro dos vícios previstos no citado nº 2 do art. 410º do CPP, de que cumpre conhecer oficiosamente. [3]
Decorre suficientemente do nº 22 do texto da sua motivação de recurso e al. N) das respectivas conclusões), que o arguido insurge-se, antes, contra o enquadramento fáctico-jurídico relativamente ao crime de ameaça ( nº9 do texto da sua motivação), por entender que “… não resultou provado que as ameaças, expressões proferidas pelo arguido tivessem sido aptas a intimidar os assistentes, quer na sua vida, integridade física ou liberdade pessoal.”.
Neste contexto, o uso da locução, “não ficou provado”, não se reporta ao juízo sobre a matéria de facto, mas antes ao juízo inerente à verificação – ou não - do elemento objectivo do tipo, de cariz normativo [4] e não descritivo-naturalístico, em que se traduz o perigo típico, ou seja, a adequação da ameaça a provocar, no ameaçado, medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Isto é, o juízo sobre a adequação da ameaça não respeita à reconstrução do facto histórico, à apreciação e valoração da prova, mas antes ao momento da subsunção do facto à norma, que se segue à individualização da norma penal. [5]
4.1.2. – Da qualificação jurídico-penal dos factos como crimes de ameaça p. e p. pelo art. 153º do C.Penal.
Como aludido, o arguido discorda que as expressões por si proferidas tenham sido adequadas a intimidar os assistentes, quer na sua vida, integridade física ou liberdade pessoal. Entende mesmo que resultou precisamente o contrário; os assistentes não ficaram com receio que o arguido concretizasse as ameaças (cfr. al. O) das conclusões e nº23 do texto da motivação de recurso). Daí conclui que não praticou os crimes de ameaça pelo que não deve ser condenado a tal título.
Vejamos
a) Como observou o Prof. F. Dias na comissão de revisão do C.Penal, “… o que se exige para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas circunstâncias, não sendo necessário que em concreto se chegue a provocar o medo ou inquietação.
Por exemplo: preenche o tipo, o indivíduo que ameaça outro com uma arma, embora este esteja no interior de uma casa perfeitamente defendido da acção, pois tal acção é normalmente adequada quer do ponto de vista do agente quer do que é geralmente reconhecido”. [6]
Isto é, como salienta Taipa de Carvalho, após a revisão de 1995 o tipo penal de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano, como sucedia na versão originária do de 1982, para passar a ser um crime de mera actividade e de perigo. Conforme refere, “… não se exige, hoje, a ocorrência do dano (efectiva perturbação da liberdade do ameaçado), mas também não basta (diferentemente do código alemão) a simples ameaça da pratica do crime, exigindo-se, ainda, que esta ameaça seja, na situação concreta, adequada a provocar medo ou inquietação. “
Atendendo à classificação dogmática dos crimes de perigo em crimes de perigo abstracto, de perigo abstracto-concreto e concreto, afigura-se-nos estarmos perante um crime de perigo abstracto-concreto, [7] que também pode ser designado pelas noções próximas de crimes de aptidão ou de perigo hipotético, pois o tipo, “… não se limita a descrever uma conduta genericamente perigosa, de acordo com dados estatísticos ou regras de experiência da vida quotidiana, como sucede nos crimes de perigo abstracto, nem exige a comprovação de uma situação concreta de perigo para um ou vários bens jurídicos, desligada mas objectivamente imputável á acção, como acontece nos crimes de perigo concreto.”. [8]
Ou seja, não faz parte do tipo a efectiva lesão do bem jurídico protegido (por isso não é um crime de dano), nem a efectiva colocação em perigo do bem jurídico protegido (por isso não será um crime de perigo concreto ), mas também não basta a ameaça com a prática de algum dos crimes a que se reporta o nº1 do art. 153º do C. Penal, para o preenchimento do tipo.
O legislador não se limitou a escrever no tipo uma conduta genericamente perigosa, de acordo com dados ou regras da vida da experiência quotidiana, como sucede nos crimes de perigo abstracto; exige ainda ao intérprete e aplicador do direito, – como é próprio dos tipos em que o legislador usa expressões do género ”idóneo para lesar”, “susceptível de prejudicar”, “apto a casuar dano” – a comprovação no caso concreto de uma aptidão da acção para atingir aqueles bens jurídicos. “Produz-se desta forma uma combinação na acção de elementos abstractos e concretos de perigo, concentrados na acção, de tal sorte que o perigo nem está abstractamente contido na “ratio legis”[como nos crimes de perigo abstracto], nem surge tipicamente exposto como evento [como sucede nos crimes de perigo concreto], mas apresenta-se como uma qualidade intrínseca à acção.”
Os crimes de abstracto-concreto admitem a possibilidade de a perigosidade da conduta ser objecto de um juízo negativo, que exclua a tipicidade da conduta. [9]
b) No que respeita ao tipo do art. 153º do C.Penal, exige-se a comprovação no caso concreto, da aptidão genérica das ameaças contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual, para provocar medo ou inquietação ou prejudicar a liberdade de determinação de pessoa determinada.
A comprovação desta aptidão genérica no caso concreto, corresponde ao juízo de adequação de que fala o tipo legal, o qual deve aferir-se de acordo com um critério objectivo-individual, usando a terminologia do Prof. Taipa de Carvalho, mas atribuindo-lhe um significado não totalmente coincidente. [10] .
Objectivo, na medida em que a adequação da ameaça, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, deve ser aferida pelo critério do homem comum, da generalidade das pessoas, e não de acordo com um critério subjectivo, ou seja, segundo as convicções ou valores do agente, [11] que se impusesse averiguar caso a caso.
Individual, porque a adequação da ameaça há-de ser aferida face às características psíquicas e mentais do ameaçado e não da generalidade das pessoas ou de determinadas categorias de pessoas. Isto é, dado o carácter individual do bem jurídico tutelado pelo tipo do art. 153º (liberdade de decisão e de acção), o que está em causa é a perigosidade particular da acção e não a sua perigosidade geral, contrariamente ao que sucede relativamente aos bens jurídicos supra-individuais. [12] .
Daí que possa concluir-se com Taipa de Carvalho que, “… a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado).”
c) Por outro lado, a adequação da ameaça, de que depende a verificação do perigo típico, é um conceito normativo e não naturalístico, como referido supra, visto que o juízo de perigo é perspectivado, não como um juízo sobre um curso causal real, «mas sobre uma relação causal possível (provável)», pois o perigo significa «a probabilidade cognitiva de produção de um determinado acontecimento danoso», «um juízo fundado na experiência geral, no conhecimento objectivo das leis que regulam os acontecimentos, que exprime o receio fundado da lesão de um bem jurídico» [13] .
À conclusão sobre a probabilidade de produção do acontecimento danoso, isto é, à conclusão sobre a verificação do perigo, há-de chegar-se, como refere A. Silva Dias, [14] através de uma prognose póstuma, ou seja, de um juízo de idoneidade realizado posteriormente, mas reportado ao momento da acção e não, – como sempre terá de ser num crime de perigo concreto – a partir da análise de uma situação real de perigo, conceptualmente distinta da situação de lesão do bem jurídico.
Parafraseando Silva Dias, (referindo-se ao originário art. 273º do C.Penal de 1982 ), [15] podemos dizer que as ameaças a que se reporta o art. 153º do C. Penal são adequadas, quando o juiz, colocando-se no momento da acção e fazendo apelo às regras da experiência comum e aos conhecimentos de que dispõe, sobre a pessoa do ameaçado e demais circunstancialismo relevante (com base no conjunto da factualidade provada), puder concluir que aquelas ameaças são concretamente idóneas para provocar, na pessoa ameaçada, medo ou inquietação ou prejudicar a sua liberdade de determinação.
Assim, cabe ao juiz verificar da existência do perigo, de comprovar positivamente a presença de uma possibilidade séria de lesão, que no caso se traduz na adequação da acção para lesar o bem jurídico ( a liberdade de decisão e de acção), como aludido, dispensando-se a demonstração da efectiva colocação em perigo, contrariamente ao que sucedia no art. 155º da versão originária do C.Penal de 1982, sem prejuízo da possibilidade de a perigosidade da conduta ser objecto de um juízo negativo, que exclua a tipicidade da conduta, como referido supra.
d) In casu , a sentença recorrida não se afasta, no essencial, desta concepção do tipo legal, pois conforme aí se refere “… imprescindível é que a ameaça, de acordo com a experiência comum e critérios de razoabilidade, seja susceptível de ser tomada como séria pelo destinatário, tendo em conta as suas características próprias. (…) as características individuais do ameaçado, isto é, a sua maior ou menor susceptibilidade de, em conformidade com os aspectos psicológicos ou capacidades que o caracterizem (idade, etc), sentir-se ou não intimidado”.
Daí que, tendo em conta o teor objectivo das expressões descritas sob os nºs 2, 4, 5, a insistência com que foram proferidas, bem como a situação de ruptura familiar verificada, que emerge da factualidade provada com razoável profundidade, deva considera-se que as ameaças proferidas pelo arguido são de molde a ser consideradas pela generalidade das pessoas, pelo “homem comum”, como adequadas a provocar nos assistentes, medo ou inquietação pela sua vida e integridade física.
Tal como se diz na sentença recorrida, pese embora as características físicas do arguido, nomeadamente a sua idade já avançada, tal não surge como factor suficiente para neutralizar o potencial intimidatório das expressões proferidas, tanto mais que o próprio arguido invoca a sua idade (cerca de 70 anos) para emprestar maior seriedade às ameaças, conforme claramente decorre da factualidade descrita sob o nº2.
Dado o conflito familiar subjacente à factualidade típica, também a circunstância de o arguido ser pai do assistente e sogro da assistente, não neutraliza ou impede a verificação do perigo típico, pois no contexto concretamente apurado não pode invocar-se regra da experiência nesse sentido, nem tal impedimento ou neutralização resulta da factualidade concretamente provada.
Quando muito poderá dizer-se, como se faz na sentença sob recurso, que em atenção aos laços familiares existentes, dificilmente estaria no horizonte do arguido concretizar as intenções anunciadas na ameaça, mas estes considerandos são irrelevantes do ponto de vista do preenchimento do tipo, desde logo porque, conforme é pacificamente entendido, a intenção de o agente concretizar as ameaças proferidas não faz parte do tipo. Por outro lado, as considerações em causa não excluem, in casu, a intenção do agente, antes apelam a uma menor probabilidade de o mesmo pretender concretizá-las, numa perspectiva gradativa da ilicitude pertinente à questão da escolha e determinação da pena, mas não do preenchimento do tipo, não cabendo falar aqui de um juízo negativo sobre a perigosidade da conduta, em concreto, que excluísse a tipicidade da conduta.
Concluímos, pois, que também do ponto de vista da qualificação jurídica dos factos, não se verifica erro de julgamento a censurar ao tribunal a quo.

4.1.3. – Da medida da pena única, de multa, aplicada ao arguido
Conforme decorre do texto e conclusões da sua motivação de recurso, o arguido insurge-se contra a pena única de 250 dias de multa à razão diária de 10 euros, que lhe foi aplicada, quer no que respeita à sua medida, quer no que respeita ao quantitativo diário fixado.
a) Quanto à medida da pena única, invoca o arguido que apenas agiu da forma descrita por considerar ter sido enganado pelos assistentes, tendo agido num momento de clara tensão emocional, considerando-se ser a sua culpa diminuta e consequentemente as exigências de prevenção especial relativamente baixas.
Vejamos.
a.1. - Nos termos do art. 77º nº 2 do C. Penal, a moldura abstracta do concurso de penas tem como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares aplicada e como limite máximo a soma de todas elas. Dentro desta moldura, a medida concreta da pena única a aplicar deve ser fixada considerando, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, em função das exigências gerais de culpa e de prevenção
Pretende-se que a pena única reflicta a personalidade do autor e os factos atinentes a cada um dos crimes , do ponto de vista da sua conexão e frequência. Por isso, na valoração da personalidade do autor deve atender-se, antes de mais, se os factos são expressão de uma inclinação criminal ou se apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si. De grande relevo será também o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente, isto é, exigências de prevenção especial positiva ou de socialização [16] .
a.2. - No caso sub júdice, foi o arguido condenado nas seguintes penas parcelares:
- 150 dias de multa por cada um de dois crimes de ameaça, p. e p. pelos arts 153º nº 2 e 79º do C.Penal, ambos na forma continuada, em autoria material e sob a forma consumada;
- 140 dias de multa, pela autoria material e sob a forma consumada, de um crime de difamação p. e p. pelo art. 180º nº1 do C.Penal;
- 75 dias de multa, pela autoria material e sob a forma consumada, de um crime de injúria p. e p. pelo art. 181º nº1 do C. Penal.
Em cúmulo jurídico destas penas foi o arguido condenado na pena única de 250 dias de multa à taxa diária de 10 euros.
Assim, o limite mínimo da moldura do concurso é de 150 dias de multa e o limite máximo é de 515 dias de multa..
Todos os crimes, julgados nos presentes autos, foram praticados em apenas dois dias ( 21 e 22 de Abril de 2004), “num contexto espacio-tempral específico, sempre fundados numa mesma espiral que levou o arguido a agir”, como se diz na sentença recorrida, na qual se refere igualmente que o arguido nunca revelou uma postura de autocrítica, assumindo-se como vítima e não como ofensor, apesar de se tratar de crimes praticados contra familiares próximos, o que não constituiu factor de inibição para o arguido.
Deste modo, a conexão dos factos entre si, a motivação para os mesmos e a atitude assumida, são de molde a concluir pela presença de vincadas necessidades de prevenção especial, que não permitem a aplicação de pena única inferior à aplicada pelo tribunal a quo, a qual corresponde, aliás, a medida inferior a metade do limite máximo da moldura penal do concurso.
b) Quanto ao quantitativo diário, o qual deve ser fixado em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, entre o mínimo de 1 euro e o máximo de 498,80 euros (art. 47º C.Penal), há a considerar que o arguido recebe uma pensão de reforma bastante razoável (cerca de 1 000 euros), a sua mulher, com quem vive, recebe também uma pensão de reforma de 500 euros - pelo que não vive a expensas do arguido -, e entre os dois apurou-se de despesas certas apenas 200 euros mensais para medicamentos, para além do necessário para alimentação e outros gastos notórios, sendo pouco significativos – e, em todo o caso irrelevantes - outras despesas, que invoca apenas em sede recurso.
Também no que respeita ao quantitativo diário fixado, nada há, pois, a censurar à sentença recorrida.
4.2. – Do recurso do MP
Como referido supra, o recurso interposto pelo MP suscita a questão de saber se a realização plúrima do mesmo tipo de crime, não ocorreu no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior, que diminua consideravelmente a culpa, no que respeita aos crimes de ameaça imputados ao arguido. Pretende o MP recorrente, que o arguido deve ser condenado pela prática de quatro crimes de ameaça e não por dois crimes sob a forma continuada.
Se bem compreendemos, a discordância do recorrente assenta sobretudo em duas ordens de razões:
- “… não nos encontramos no caso em apreço nos autos …perante uma circunstância exógena, mas sim perante a motivação do arguido para o cometimento do tipo legal de crime…” (conclusão 6ª);
- “ Por outro lado, o referido móbil, é anterior ao cometimento do primeiro crime e não contemporâneo a este ou consequentemente anterior ao segundo” (idem).
Vejamos.
a) Como é pacificamente entendido a partir do art. 30º nº2 do C.Penal, são elementos ou pressupostos do crime a continuado:
- realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico;
- homogeneidade das condutas;
-solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa.
A propósito da situação exterior que diminua consideravelemnte a culpa, em discussão no presente recurso, diz o Prof. Cavaleiro de Ferreira que a diminuição da culpa relevante é a que resulta da solicitação de uma mesma situação exterior que, assim, “… é tomada como a origem da motivação do agente. O que a lei pretende, portanto, é dar a razão da diminuição da culpa, indo buscar o seu fundamento substancial na motivação da decisão voluntária, motivação que se objectiva na «situação de facto» que a provoca. Por isso Eduardo Correia afirma que “A diminuição da culpa do agente em certos casos de reiteração de condutas criminosas, foi a ideia à luz da qual procurámos delimitar o âmbito do crime continuado (…)” [17] .
Diz Eduardo Correia [18] com interesse para esta questão: “Não há dúvida que no crime continuado às diversas condutas correspondem diversas resoluções. Simplesmente, estas resoluções não são entre si autónomas, mas, pelo contrário, estão numa dependência tal que nunca se pode considerar uma delas sem necessariamente ter de se tomar em conta a anterior. Sendo assim, o juízo de censura em que se estrutura a culpa não poderá nunca recair autonomamente, no caso do crime continuado, sobre cada uma das resoluções que presidem às diversas actividades através das quais ele se realiza, mas tem antes de incidir unitariamente sobre todas, já que a formação de cada uma delas se não pode justamente compreender sem a prévia formação da outra.
Pode concluir-se, pois, que o essencial é que, “… apesar de diversas resoluções terem tido lugar, só é verdadeiramente possível formular-se um juízo de censura e de culpa unitário….”
Como resulta de ambos os textos e de forma particularmente incisiva do trecho do Prof Cavaleiro de Ferreira, a relação de causalidade entre a situação exterior e a motivação do arguido não só não constitui qualquer óbice à verificação do crime continuado, como é mesmo seu pressuposto, pois o art. 30º nº2 do C.Penal pressupõe que a situação exterior constitua a motivação do arguido para a reiteração criminosa, na medida em que é ela que há-de estar na origem de um juízo de censura e de culpa unitário, de que resulte a sua diminuição considerável.
No caso dos autos, a origem da motivação do arguido para a prática dos crimes de ameaça encontra-se no litígio existente entre o arguido e os assistentes, no âmbito do qual o agente está convencido de que foi enganado por estes no negócio a que se refere o nº9 da factualidade provada. Foi esta situação exterior que o arrastou paro o facto, diminuindo consideravelmente a censurabilidade da conduta do arguido, dada a afectação da sua liberdade de acção provocada por aquela mesma situação exterior, o que nos afasta de um quadro de tendência do agente para o crime, incompatível com a figura do crime continuado. Como diz Eduardo Correia, [19] “ … sempre que se prove que a reiteração … é devida a uma certa tendência da personalidade do criminoso, não poderá falar-se em atenuação da culpa e fica, portanto, excluída a possibilidade de existir um crime continuado.”
b) Por outro lado, não é decisivo, do ponto de vista da existência de continuação criminosa, que a situação exterior seja anterior e esteja na origem de todas as resoluções criminosas, ou que a mesma surja apenas na sequência da primeira actividade criminosa., ou simultaneamente com ela. Conforme a exemplificação do Prof. Eduardo Correia, uma das situações exteriores típicas que, preparando as coisas para a repetição da actividade criminosa, diminuem consideravelmente o grau de culpa do agente, é a “b) circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa.
Ora, se em vez da repetição (em sentido estrito) de uma dada situação exterior, tivermos a persistência da mesma situação que inicialmente arrastou o arguido para a prática do crime, como sucede in casu, nada se altera no que respeita à existência de crime continuado, tanto mais que sempre a reiteração da conduta típica, encontra igualmente alento na experiência da primeira das condutas.
Essencial é que “…a atenuação da culpa, que resulta de uma conformação especial do momento exterior da conduta, deve estar sempre condicionada pela circunstância de esta ter efectivamente concorrido para determinar o agente à resolução de renovar a prática do mesmo crime” [20] , de modo a afastar do âmbito do crime continuado aquelas situações em que sejam total ou predominantemente razões endógenas ao agente (designadamente as suas tendências pessoais) a conduzir à repetição do facto.
Concluímos, pois, com o MP nesta Relação, que a sentença recorrida também neste caso não merece censura, pelo que se confirma integralmente a mesma.

III. Dispositivo
Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em negar totalmente provimento aos recursos interpostos, quer pelo arguido, quer pelo MP, mantendo integralmente a sentença recorrida.
Custas pelo arguido, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida. – art.s 513º e 514º, do CPP e 87 nº1 b) do CCJ.


Évora, 19.06.2007
(Processado em computador. Revisto pelo relator.)
António João Latas
Maria Guilhermina Vaz Pereira Santos de Freitas
Carlos Jorge Viana Berguete Coelho




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[1] Vd, por todos, o Ac STJ de 4.10.06, em cujo sumário pode ler-se: “ É um dado adquirido em termos dogmáticos que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, visto a sua importância para a decisão, por exemplo para a escolha ou determinação da pena.»- acessível em www.stj.pt(sumários).
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., Editorial Verbo 2000, pp. 339-40
[3] conforme é pacificamente entendido desde o Acórdão do STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/1 0/95 (D.R., I-A de 28/12/959).
[4] Para Augusto Silva Dias, o perigo – em qualquer das suas formas – é um conceito normativo, o que (para além de outras dimensões que indica) significa que o “… perigo, como momento anterior à lesão que representa, de diversas maneiras, a probabilidade da sua ocorrência, consubstancia-se num juízo valorativo que opera sobre uma determinada base fáctica. Como diz GIUSINO [continua Silva Dias], o perigo é fruto de uma abstracção metodológica, porque se o juiz devesse ter em conta todas as circunstâncias cujo conhecimento está disponível no momento do juízo, não sobraria espaço para a existência do perigo, pois toda a análise se resumiria a constatar se uma lesão ocorreu ou não.(…) O grau de abstracção metodológica varia, naturalmente, com a espécie de perigo, sendo maior no perigo abstracto e menor no perigo concreto, onde, pela natureza das coisas, um maior número de circunstâncias é tido em consideração.”. – cfr Cfr Augusto Silva Dias, Entre «Comes E Bebes» : Debate De Algumas Questões Polémicas No Âmbito Da Protecção Jurídico-Penal Do Consumidor in RPCC A. 8/4º pp 524 e 563.
[5] Referindo-se à sentença como silogismo judiciário, Paolo Tonini distingue entre a descoberta ou reconstrução do facto histórico, a individualização da norma penal e o juízo de conformidade dizendo, em síntese, que, “ O juiz, prima facie, verifica a ocorrência do fato histórico atribuído ao acusado e sua responsabilidade, em momento posterior interpreta a norma penal com o escopo de extrair o fato típico e, finalmente, valora a subsunção do fato histórico ao fato típico previsto pela lei”. – cfr A Prova no Processo Penal Italiano, tradução par português do Brasil, editora Revista dos Tribunais, S. Paulo-2002 p. 46, com desenvolvimentos nas seguintes.
[6] Cfr Código Penal - Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça-1993, Rei dos Livros, p. 500.
[7] Taipa de Carvalho classifica-o como crime de perigo concreto e de mera actividade (cfr Comentário I, pp 348 e 349), o que para os autores que defendem a concepção tripartida do perigo, sempre coloca o problemas da compatibilização de ambas aquelas características, pois os crimes de perigo são considerados crimes de resultado, na medida em que, neles, o perigo surge como elemento típico separado da acção. Assim Rui Pereira, que depois de afirmar que nos crimes de perigo concreto o perigo surge como evento típico, destacado da própria acção perigosa, conclui que: “ No domínio dos crimes de perigo – e seguindo a concepção dominante -, poderemos afirmar que as incriminações de perigo abstracto-concreto são formais, ao passo que as de perigo concreto são materiais “- cfr O Dolo de Perigo, versão policopiada, Lisboa-1986 pp. 20-22.
[8] Cfr Augusto Silva Dias est. cit. pp 520-1. F. Dias refere ainda a designação, que lhe é dada por um autor alemão, de “conduta concretamente perigosa”.-cfr Direito Penal. Parte Geral I, Coimbra Editora-2004 p. 293.
[9] Assim, F. Dias, ob. cit. p. 293 e Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense II, p. 1114.
[10] Escreve Taipa de Carvalho a este propósito: “ O critério da adequação… é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida ea personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranqulizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das sub-capacidades do ameaçado). Assim, uma determinada ameaça pode, relativamente a um adulto normal, não ser considerada adequada (não adequação segundo um crit+erio exclusivamente objectivo, mas já o ser quando o ameaçado é uma criança ou uma pessoa com perturbações psíquicas…”.
[11] Não nos parece, porém, que apenas seja típica a ameaça que para além de ser susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa( “o Homem comum”), seja ainda susceptível de intimidar a pessoa concretamente ameaçada, como parece decorrer da formulação de Taipa de Carvalho, transcrita na nota anterior. Formulação que, no entanto, parece não se ajustar ao exemplo igualmente transcrito do mesmo autor, o qual , se bem compreendemos, ilustra antes a desnecessidade de demonstrar em concreto a susceptibilidade de intimidar qualquer pessoa, pois o autor conclui e, parece-nos que bem, que mesmo que a ameaça seja inadequada para intimidar um adulto não deixa de ser típica se for adequada para intimidar uma criança ou pessoa sub-capacitada, concretamente ameaçadas.
[12] A. Silva Dias (est. cit. pp. 525-6), cita Schröder que, a propósito de um preceito que proíbe a confecção de produtos alimentares «cujo consumo é idóneo para lesar a saúde humana», adverte que essa fórmula não impõe ao juiz que aprecie as características das pessoas que adquirem um determinado alimento e os efeitos que este pode produzir neles, mas tão só se ele, pelo modo como é produzido, é genericamente adeqaudo a lesar a saúde dos consumidores. Esta perigosidade geral da acção decorre, segundo o autor, da natureza supra-individual do bem jurídico protegido – a saúde humana – e será apreciada ex ante, ou seja, precisamente no momento da realização da acção, ponderando todas as circunstâncias relevantes, conhecidas e cognoscíveis na ocasião e posteriormente.”.
[13] Cfr A. Silva Dias, est. cit. pp. 539 e 538, citando Mezger.
[14] Cfr est. cit. pp. 540
[15] Idem
[16] Vd F. Dias, Direito Penal Português. As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas. Editorial Notícias, 1993, p. 290-02 e Yescheck, Tratado de Derecho penal. Parte General, ed. Comares-Granada1993, p. 668.
[17] Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal I, Editorial Verbo-1992 p. 552
[18] Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal. I- Unidade e Pluralidade de Infracções. II – Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Almedina-1983, p. 277-8
[19] Eduardo Correia, ob. cit. p. 251.
[20] Idem.