Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1161/12.1GBLLE.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REQUISITOS
ELEMENTO SUBJECTIVO
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
Data do Acordão: 03/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A falta de descrição, no requerimento para abertura da instrução, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, constitui motivo de rejeição de tal requerimento para abertura da instrução.
II - A doutrina fixada pelo S.T.J., no seu Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015 (publicado no DR, I Série, de 27-01-2015), deve ser aplicada, por identidade de razão, aos requerimentos para abertura da instrução apresentados por assistentes.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


I. Relatório
No inquérito nº 1161/12.1GBLLE, que correu termos no MP junto da comarca de Loulé, pelo MP foi proferido despacho final determinando o respectivo arquivamento parcial, nos termos do art. 277º nº 2 do CPP.
Inconformados, AJCS e CMCRS, constituídos assistentes nos autos, requereram a abertura de instrução, tendo em vista a prolação de despacho de pronúncia de:
- RMBA, como autor de um crime de dano p. e p. pelos arts. 212º e 207º do CP.
Para o efeito da apreciação do pedido de abertura de instrução, foram os autos distribuídos ao 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Loulé, tendo o Exmº Juiz deste Juízo proferido, em 31/5/13, um despacho com o seguinte teor:
«Os assistentes AJCS e CMCRS, inconformado com o despacho do Ministério Público que se decidiu pelo arquivamento dos autos, vieram requerer a abertura da instrução, contra RMBA, visando a sua pronúncia pela prática de um crime de dano p. e p. pelo art. 212º, nº 1, do Cód. Penal.
Dá-se aqui por integralmente reproduzido o requerimento que apresentaram.
Recorde-se, ao assistente é facultada a abertura de instrução, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (art. 287º, nº 1, al. b), do Cód. P. Penal).
Nos casos em que é requerida pelo assistente, a fase de instrução tem por finalidade a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1, do Cód. P. Penal).
Quando formulado pelo assistente - por não se conformar com a decisão de arquivamento do inquérito - o requerimento para a abertura de instrução é que define e limita o objecto do processo, sendo certo que ao Tribunal está vedada a pronúncia por factos que importem uma alteração substancial dos que nele constem.
Nisto radica o princípio da vinculação temática do Tribunal ao objecto do processo tal como definido pelo assistente no requerimento para abertura de instrução.
Podemos, pois, afirmar que, nestes casos, o requerimento para abertura de instrução constitui, em suma, uma “acusação alternativa”, uma verdadeira acusação em sentido material, e, neste caso, o requerimento para abertura de instrução deve conter a narração de forma individualizada dos factos concretos imputados ao arguido ou visado com a instrução.
Trata-se de uma exigência que deriva da estrutura acusatória do processo penal (art. 32º da Constituição).
Com efeito, para além das razões de facto e de direito da discordância do assistente relativamente ao arquivamento, o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente deverá conter, entre o mais – e sem prejuízo de não estar sujeito a formalidades especiais -, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e, ainda, as disposições legais aplicáveis (art. 283º, nº 3, als. b) e c), ex vi do art. 287º, nº 2, do Cód. P. Penal).
Precisamente, impõe-se-lhe também que descreva os factos que integrem o ilícito criminal imputado ao(s) arguido(s) visado(s) com a instrução, o que, por um lado, se mostra imprescindível para o exercício do direito de defesa e do contraditório (já que, na verdade, desconhecendo o visado com a instrução os concretos factos que lhe são imputados, comprometida estaria a sua defesa), e, por outro lado, permite estabelecer os limites da investigação judicial, já que o juiz de instrução não poderá conhecer de factos que não constem do requerimento para instrução.
No caso, compulsando o requerimento para instrução apresentado pelos assistentes, verifica-se que ali se pretende a pronúncia do visado quanto à prática de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1, do Cód. Penal.
Ora, a verdade é que os factos narrados pelos assistentes revelam-se manifestamente insuficientes para que o Tribunal possa proferir uma decisão de pronúncia, por aquele crime, com base apenas nesse requerimento para instrução.
A mera consideração do que vem descrito no requerimento para abertura da instrução sempre seria insuficiente para servir de base a uma decisão de pronúncia.
Para que o Tribunal pudesse proferir uma decisão de pronúncia quanto à prática daquele crime sempre teria de averiguar e socorrer-se (o que lhe está vedado) de factos que não constam do requerimento para instrução – e que por isso não foram trazidos pelos assistentes –, e que o completassem, indispensáveis ao preenchimento dos elementos típicos do crime de dano a que os assistentes fazem apelo.
Tal requerimento omite a narração de algo indispensável para que uma conduta fosse capaz de conduzir à responsabilização criminal do seu agente pela prática do crime a que os assistentes fazem apelo.
Para bem compreendermos esta conclusão, basta pensar que a mera transposição para uma decisão de pronúncia, pelo Tribunal, do que vem referido no requerimento para abertura da instrução, seria insuficiente para suportar mais tarde uma decisão condenatória pela prática daquele crime.
Com efeito, ao nível da tipicidade subjectiva, o cometimento do crime de dano exige a verificação de um elemento (elemento subjectivo): o agente terá que representar o carácter alheio da coisa sobre a qual actua, em qualquer das modalidades previstas para o dolo, devendo ser assim conformada a sua vontade de actuar (cfr. ainda o art. 14º, do Cód. Penal).
A lei não prevê o cometimento deste crime sob a forma negligente (cfr. arts. 13º e 212º, do Cód. Penal).
Não obstante, o assistente omite por completo a narração de factos que preencham o elemento subjectivo do crime de dano.
E não se diga que essa omissão é indiferente para o efeito.
É que, precisamente, é a verificação ou não desses factos que distingue uma conduta inócua do ponto de vista da responsabilidade criminal, de uma conduta que não o é.
No sentido do imperativo da narração, no requerimento para abertura da instrução lavrado pelo assistente, dos factos suscetíveis de preencher o elemento subjecto, veja-se, a título exemplificativo, o Ac. da Relação de Évora de 21.06.2011, relatora Dr.ª Ana Bacelar Cruz (proc. 2384/10.3TAFAR), disponível in http://www.dgsi.pt:
“E assim se tem entendido porque a descrição dos factos que integram o tipo legal de crime imputado, quer o tipo objectivo, quer o tipo subjectivo, é fundamental dada a circunstância de vigorar entre nós, em pleno, o princípio da legalidade.
Portanto, quando o requerimento de abertura de instrução seja omisso em elementos essenciais a consequência será a de rejeição por inadmissibilidade legal.
Tenha-se presente que o Juiz não se pode substituir ao assistente e colocar, por sua própria iniciativa, os factos em falta, essenciais para a imputação de crime. Se assim procedesse não só violaria os princípios da igualdade, imparcialidade e independência, mas também extravasaria os seus poderes de cognição, limitados pelo conteúdo do requerimento de abertura de instrução[3].
E deve ter-se também presente que semelhante requerimento de abertura de instrução [que peque por défice enunciativo de factos susceptíveis de conduzir à pronúncia] não poderá, nunca, conduzir à pronúncia, por omissão de elementos essenciais à sua prolação, conduzindo a uma instrução ilegal, se for aberta, por incorporar actos inúteis. Por outro lado, a inclusão na pronúncia de factos não constantes do requerimento de abertura da instrução pode traduzir alteração substancial que conduz à nulidade prevista no artigo 309.º do Código de Processo Penal.
Pode, pois, concluir-se que o requerimento de abertura de instrução deve ter a estrutura de uma acusação, devendo ser dirigido contra uma identificada pessoa ou entidade, e conter os elementos objectivos e subjectivos face aos quais se possa concluir que o arguido cometeu um ilícito penal, sob pena de rejeição por inadmissibilidade legal, de harmonia com o disposto no artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.”.
Subscrevemos, do mesmo modo, a fundamentação do Ac. da Relação de Évora de 07.12.2012, relator Dr. Gilberto Cunha (proc. 156/11.7TAVVC), quando, a respeito da exigência apontada ao requerimento para abertura da instrução, refere:
“No que concerne ao elemento subjectivo – dolo - importa salientar que se trata de crimes dolosos, uma vez que se exige que o agente tenha actuado com conhecimento dos elementos da factualidade típica e determinado pela vontade, directa, necessária ou eventual de realização do tipo legal de crime.
Também não descortinamos que no requerimento de abertura da instrução tivesse sido alegado este elemento subjectivo.
É inquestionável que do requerimento de abertura da instrução não consta a alegação deste elemento, sendo que a alegação do dolo não é uma simples fórmula jurídica sem conteúdo útil, mas matéria de facto e, como se referiu, elemento constitutivo daqueles crimes.
Enquanto elemento constitutivo daqueles crimes, o dolo não se presume, devendo, isso sim, de constar expressamente daquele requerimento.
Tão pouco, a circunstância do dolo, pela sua própria natureza subjectiva, ser um fenómeno da vida interior do indivíduo, e por isso insusceptível de demonstração directa, não dispensa a sua concreta alegação.
É que uma coisa é a prova do dolo, outra bem diferente é a sua alegação em concreto.
Aliás, nos termos do disposto na al. b), do nº3, do art. 283º, do CPP, não há lugar à existência de factos implícitos.
Assim, também não se pode ter como implícita ou subentendida no requerimento de abertura da instrução aquele elemento – dolo.
Na verdade, é hoje indefensável no direito penal a ideia de «dolus in re ipsa», que sempre resultaria da simples materialidade da infracção.
Como salienta o prof. Figueiredo Dias, in RLJ, 105, pag. 142, como a autoridade que lhe é sobejamente reconhecida, a moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo.
Estas patologias, em qualquer caso, sempre comprometeriam a pronúncia pela prática de tais crimes.
Como atrás dissemos, o requerimento de abertura da instrução porque definidor e limitador do próprio processo, deve utilizar a veste de uma verdadeira acusação, enformando-a, perfilando-se e apresentando-se substancialmente como uma acusação alternativa, natural e consequentemente descrevendo e exarando factos concretos e objectivos, que sustentam e justificam uma eventual aplicação das sanções prevenidas nas normas que se imputam como violadas.”.
Reconhecendo também como fundamento de rejeição do requerimento para abertura da instrução, a falta de descrição d’“os factos relativos à determinação do elemento subjectivo do tipo”, veja-se ainda os Acórdãos da Relação de Évora de 21.05.2013, relator Dr. Sénio Alves (proc. 89/09.7GAGLG), de 03.12.2009, relator Dr. João Nunes (proc. 4913/08.3TDLSB), e de 20.03.2007, relator Dr. António Robalo (proc. 2912/06-1), todos disponíveis na mesma base de dados.
Conclui-se assim que os assistentes não procedem à descrição de factos essenciais para fundamentar a aplicação de uma pena àquele contra quem pretendem a abertura da instrução.
Assim, há que concluir pela inadmissibilidade da abertura da fase de instrução, que, por tais razões, sempre seria inútil, pois nunca poderia conduzir a uma decisão de pronúncia, sendo certo que, de acordo com a jurisprudência fixada no Ac. nº 7/2005 do STJ, não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287º, nº 2, do Cód. P. Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no art. 287º, nº 3, do Cód. P. Penal, rejeita-se o requerimento para abertura da instrução apresentado pelos assistentes AJCS e CMCRS.
Sem custas.
Notifique, o M. Público e o ilustre advogado dos assistentes».
Inconformados com o despacho proferido, os assistentes AJCS e CMCRS interpuseram dele recurso, devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:
a) Não se conformam os recorrentes com o douto despacho.
b) O requerimento para a abertura da instrução há-de definir o tema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação.
c) O Meretissimo Juiz ad quo não deveria rejeitar o requerimento de abertura da instrução quando neste são narrados os elementos objectivos do crime em presença e deles podem depreender-se os respectivos elementos subjectivos.
d) Os Recorrentes respeitaram o preceituado nos artigos 287.° e 283.°, n.º 3, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal.
e) O requerimento de abertura de instrução deduzido, contém: - a súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação do Arguido (vide artigos 17º a 27º do requerimento de abertura de instrução); a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo (rol de testemunhas a inquirir em sede de instrução); a indicação dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito (vide artigos 28º a 31° do requerimento de abertura de instrução), a indicação dos factos que através de uns e outros se pretende provar (vide artigos 31° a 32° do requerimento de abertura de instrução); a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança inclusive em termos de lugar e tempo da sua prática (vide artigos 8º a 20° do requerimento de abertura de instrução); a indicação das disposições legais aplicáveis (vide artigo 32º do requerimento de abertura de instrução).
f) O Recorrente imputa ao Arguido factos que consubstanciam a prática do crime de dano e crime p. e p. pelo artigo 212°. e 207° do Código Penal.
g) E ao narrar os factos da forma minuciosa e circunstanciada como o fez, designadamente, nos artigos 8° a 20.0 do requerimento de abertura de instrução, fez referência a todos os elementos quer do tipo objectivo quer do tipo subjectivo do crime de dano.
h) Nomeadamente ao descrever a forma como o arguido logrou destruir os ditos postes metálicos, com uma picareta, alegando ter instruções da GNR para tal.
i) A destruição dos ditos postes metálicos foi levada a cabo na presença de testemunhas.
j) Com todo o respeito dos factos constantes no requerimento para abertura de instrução podem inferir-se os elementos subjectivos do tipo.
k) Alegam os assistentes no artigo 18 do RAI que o arguido "(. .. ) logrou retirar 14 dos postes metálicos já colocados no local. "Sublinhado nosso.
l) Lograr de acordo como dicionário de língua portuguesa disponível em
http://www.priberam.pt!dlpo/Default.aspx?pal=lograr -significa:
1. Estar na posse de. = DESFRUTAR, FRUIR, GOZAR
V. tr. e pron.
2. Ter proveito ou satisfação. = APROVEITAR
v. tr.
3. Obter com êxito. = ALCANÇAR, CONSEGUIR i- FALHAR
4. Fazer cair em logro ou mentira. = ENGANAR, INTRUJAR
v. intr.
5. Ter o efeito esperado.
m) O arguido pretendeu e conseguiu destruir os postes metálicos a que nos referimos supra, bem como, no requerimento para abertura de instrução.
n) Fê-lo na presença de testemunhas.
o) O arguido agiu de tal modo porque pretendeu obter o efeito que almejava, i.e, a destruição dos postes metálicos.
p) O arguido não agiu coagido por ninguém, factos que podem sem demonstrados pelas testemunhas indicadas no requerimento para abertura de instrução.
q) Com todo o respeito, os elementos subjectivos do crime pertencem à vida íntima e interior do agente. Sendo possível captar a sua existência através e mediante a factualidade material de cada agente.
r) É dessa factualidade material que se pode inferir, os elementos subjectivos do tipo.
s) Ainda que tal, seja efectuado por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum.
t) O dolo é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão e só é possível captar a sua existência através de factos matérias comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção.
u) Podendo, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência.
v) Os autos contêm factos que permitem assacar ao arguido a prática do crime de dano. w) E não está o juiz de instrução dispensado de investigar, como bem decorre do que se estatui no art. 288.°, n.º 4, do C.P.P., aditando esse facto á decisão, caso se prove toda a factualidade que o suporta, tendo em conta o que se dispõe nos arts.303º, n.º 1 e 358.°, n.º 1, ambos do C.P.P.
x) O Meritíssimo Juiz de Instrução, com o fundamento invocado, não pode rejeitar o requerimento do assistente da forma como o fez.
y) O despacho ora posto em crise deve por isso ser revogado e substituído por outro que admita o requerimento de abertura de instrução, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
z) o douto despacho impugnado viola o disposto nos artigos 287º, nº 1,2 e 3 e 283º, nº 1 Código de Processo Penal, bem como, o artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa.
aa) Violação que determina a invalidade daquela decisão e a sua substituição por outra que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Recorrente e declare aberta a fase de instrução.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicável que, V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência deve o douto despacho de indeferimento do requerimento para abertura de instrução ser substituído por outro que declare aberta a instrução.
O recurso interposto foi admitido com subida imediata, em separado, e com efeito devolutivo.
O MP respondeu à motivação dos recorrentes, formulando, por sua vez, as seguintes conclusões:
1. De acordo com a remissão do artigo 287.º n.º 2 in fine para o artigo 283.º n.º 2 alínea b), ambos do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura de instrução deve conter a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena.
2. O requerimento para abertura de instrução deve ter a estrutura de uma acusação.
3. No requerimento de abertura de instrução o assistente tem de alegar todos os factos que permitam concluir pelo preenchimento do crime imputado, quer no que toca aos elementos do tipo objectivo, quer relativamente aos elementos do tipo subjectivo.
4. Os factos alegados pelo assistente no requerimento de abertura de instrução delimitam o thema probandum e fixam o objecto do processo.
5. O Juiz de Instrução não pode pronunciar o arguido por factos diversos daqueles que constam no requerimento de abertura de instrução.
6. Não há lugar a convite do assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura da instrução quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos, de acordo com o Acórdão de fixação de jurisprudência nº7/2005.
7. Os Assistentes no requerimento para abertura de instrução não descreveram todos os factos essenciais para fundamentar a aplicação de uma pena, pelo que importa concluir pela inadmissibilidade da abertura de instrução, que sempre seria inútil, pois nunca poderia conduzir a uma decisão de pronúncia.
Face ao exposto entendemos que não nos merece, qualquer crítica a douta decisão recorrida.
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, a decisão recorrida não é passível de censura e deverá ser mantida.
Pelo Digno Magistrado do MP em funções junto desta Relação foi emitido parecer sobre o mérito recurso, pugnando pela respectiva procedência.
O parecer emitido foi notificado aos recorrentes, a fim de se pronunciarem, não tendo eles feito uso desse direito.
Seguidamente, pelo Desembargador Relator foi proferido despacho, que determinou a descida dos autos à primeira instância para regularização do processado, em termos de possibilitar a RMBA contradizer o recurso interposto.
Na primeira instância, procedeu-se a constituição de RMBA na qualidade de arguido e à nomeação de defensor ao mesmo.
Foi ainda o arguido RMBA notificado na pessoa do seu ilustre defensor nomeado para responder à motivação dos recorrentes, mas não exerceu o seu direito de resposta.
Uma vez retornado o processo a esta Relação, foi o parecer do Digno Magistrado do MP notificado defesa do arguido, também para sobre ele se pronunciar, nada tendo dito.
Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.
II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.
A sindicância da decisão recorrida, que transparece das conclusões dos recorrentes, centra-se na reversão do indeferimento do requerimento sobre que recaiu o despacho impugnado, por entender não se encontrar verificada, ao arrepio do entendimento da Exmª Juiz «a quo», qualquer hipótese legal de inadmissibilidade legal da instrução.
Sobre os pressupostos de admissibilidade do pedido de abertura da instrução dispõem os nºs 2 e 3 do art. 287º do CPP:
2 – O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º. Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.
3 - O requerimento só pode se rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
O nº 3 art. 283º do CPP estabelece os requisitos formais da acusação, sendo as respectivas als. b) e c) do seguinte teor:
b) A narração, ainda que sucinta, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis.
O indeferimento do requerimento de abertura de instrução baseou-se, em síntese, na inadmissibilidade legal da pretensão formulada, decorrente do não preenchimento pela referida peça processual dos requisitos exigidos pelas disposições conjugadas do nº 2 do art. 287º e da al. b) do nº 3 do art. 283º do CPP, ao nível da descrição dos factos pelos quais os assistentes pretendem que o arguido seja pronunciado, em particular, os factos integradores do nexo de imputação subjectiva (dolo) do crime de dano, sendo certo que, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 7/2005 do Supremo Tribunal de Justiça (DR, I-A, nº 212, 4/11/05), não há lugar ao convite ao assistente a aperfeiçoar o seu requerimento de abertura de instrução, quando este for omisso sobre a descrição desses factos.
Do requerimento de abertura de instrução interessa reter, para o efeito que nos ocupa, o teor dos respectivos arts. 8º a 33º (transcrição com diferente tipo de letra):
8) Por douto despacho, o digníssimo Magistrado do Ministério Publico ordenou o arquivamento dos autos, devido a escassez de indícios da pratica do crime de alteração de marcos e do crime de dano.
9) Os queixosos discordam do arquivamento dos autos, na parte que respeita ao crime de dano, sendo que, consideram, com todo o respeito por opinião contrária, que é muito, que, tal despacho de arquivamento deve ser revogado e ordenada a Abertura de Instrução.
Dado que.
10) Os Ofendidos são donos e legítimos possuidores do prédio rústico, sito em Cabeceira de Apra, Freguesia de São Clemente, Concelho de Loulé e que se encontra inscrito na matriz predial rústica daquela citada freguesia, sob o artigo 6386, composto por courela de terra de cultura com 5 oliveiras, com a área de 600 m2, que confronta a Norte com herdeiros de (….), Sul e Nascente com (…..), Poente com Estrada Municipal, veja-se caderneta que se encontra junta aos autos como doc. 1, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
11) O prédio supra descrito foi adquirido a (….), (…..) e marido (……), (…..), todos herdeiros de (…..), conforme escritura de compra e venda que se encontra junta aos autos como doc. 2 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
12) No decorrer do mês de Setembro de 2011, os Ofendidos mandaram efectuar no prédio supra descrito levantamento topográfico que se encontra junto aos autos como doc. n.º 3 e respectivo recibo que se juntou como doc. 4 cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido.
13) Tal levantamento topográfico tinha como objectivo principal mandar vedar com rede e postes metálicos o prédio rústico supra citado, o qual já havia sido alvo da apanha de fruto c abate de algumas árvores, sem que os ofendidos conseguissem identificar o autor de tal abate.
14) O prédio rústico dos ofendidos sempre teve a área constante do levantamento topográfico, veja-se a declaração efectuada por anterior proprietário que se encontra junta aos autos como doc. 5 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
15) Assim, e após a entrega do dito levantamento topográfico por parte da técnica que elaborou o mesmo, SC, os ofendidos contrataram os serviços de construção civil de RGM para que se procedesse à abertura e enchimento de fundações para colocação de tubos metálicos para posterior colocação de vedação nos limites, Norte, Sul, Nascente e Poente do aludido prédio rústico.
16) Trabalhos que se iniciaram no princípio do mês de Outubro do corrente ano
Sucede porém que:
17) No dia 11 de Outubro de 2012, em hora não concretamente apurada, mas num período ocorrido entre as 14h30m e as 15 h, o ofendido marido deslocou-se ao local da dita obra e surpreendeu o arguido, RMBA, a destruir o trabalho já realizado. Isto é,
18) O arguido logrou retirar 14 dos postes metálicos já colocados no local.
19) Com efeito, os postes metálicos já se encontravam colocados, pelo que, estavam apenas a aguardar a secagem do cimento. Sendo que
20) Outros que já estariam secos foram arrancados com uma picareta pelo dito arguido.
21) A destruição levada a cabo pelo arguido foi presenciada pelo ofendido, bem como, pela testemunha CMRP.
22) Confrontado o arguido com tal situação foi por este dada como justificação ao ofendido para a prática de tal acto, o facto de a GNR lhe ter dado instruções para tal.
23) No referido dia 11 de Outubro de 2012, ofendido chamou as autoridades (GNR), sendo que apresentou queixa pelos danos provocados pelo arguido nesse mesmo dia.
24) À data encontravam-se presentes no local para além das autoridades, o primeiro arguido, CMRP e chegou posteriormente o senhor RGM mais dois dos seus trabalhadores que, horas antes, haviam terminado a colocação dos postes metálicos.
25) Da conduta do arguido resultou a quebra e inutilização dos postes metálicos, os quais já haviam sido totalmente pagos.
26) A abertura e enchimento de fundações para colocação de tubos importou aos ofendidos a quantia de € 578,10, conforme factura e recibo que se encontram juntos aos autos como doc. 5 e 6 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
27) Sendo que, a recolocação dos mesmos tem um custo acrescido para os ofendidos no montante de € 676,50 (seiscentos e setenta e seis euros e cinquenta cêntimos), conforme orçamento que se encontra junto aos autos como doc. 7 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
28) Com efeito, a testemunha ouvida nos autos e a que se refere o douto despacho de arquivamento, CMRP, aquando da sua inquirição apenas alegou desconhecer o arguido, contudo, não respondeu se presenciou os factos ou não.
29) Na verdade, esta testemunha presenciou os factos supra descritos
30) Com efeito, a testemunha apenas respondeu que não presenciou a alteração de marcos.
31) Assim sendo, a testemunha que infra se arrola como testemunha deste articulado L' dos factos aqui constantes deverá ser novamente ouvida quanto ao crime de dano.
32) Pretendendo os queixosos com tal inquirição provar os factos descritos de 8º a 22º deste articulado.
33) E bem assim, provar que com a sua conduta cometeu o arguido RMBA um crime de Dano P. e P. Pelo artigo 212º e 207º do Código Penal.
O Acórdão nº 7/2005 do Supremo Tribunal de Justiça (DR, I-A, nº 212, 4/11/05) veio fixar a seguinte jurisprudência:
Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.
Com eventual interesse para a decisão a proferir, importa ter presente o Acórdão nº 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 20/11/14 e publicado em DR, I série, de 27/1/15, o qual uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:
A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.
Acerca da eficácia dos Acórdãos do Pleno das Secções Criminais do STJ, proferidos no âmbito de recursos para fixação de jurisprudência, fora dos processos em que tem lugar a respectiva prolação, dispõe o nº 3 do art. 445º do CPP:
A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada.
O regime contido na disposição legal agora transcrita procura estabelecer um ponto de equilíbrio entre a desejável uniformidade, segurança e previsibilidade do direito e o princípio da independência dos Tribunais e da sua vinculação exclusiva à lei, estatuído pelo art. 203º da CRP.
Ao contrário do antigo instituto dos Assentos, que se caracterizava pela sua obrigatoriedade para a generalidade dos Tribunais e cuja compatibilidade com o postulado constitucional da vinculação exclusiva destes à lei era, por isso, problemática, os actuais Acórdãos de fixação de jurisprudência revestem uma força vinculativa tendencial, ou seja, os Tribunais podem divergir da orientação neles consagrada, mas, fazendo-o, ficam sujeitos a um especial dever de justificar a divergência.
Neste contexto, somos de entender que, sob pena de se esvaziar de conteúdo útil o propósito unificador da instituição dos Acórdãos a que nos vimos referindo, os Tribunais só devem afastar-se da doutrina acolhida por essas decisões perante razões ponderosas, como seja, por exemplo, a convicção de que orientação jurisprudencial preferida pelo STJ é manifestamente incompatível com algum princípio jurídico basilar, geralmente aceite, ou violadora de normas constitucionais expressas.
Temos entendido que não se vislumbra, relativamente ao Acórdão do STJ nº 7/2005, a verificação de qualquer razão ponderosa comparável às hipóteses evocadas, pelo que temos dirimido as questões que nos tem competido apreciar, com observância da doutrina consagrada nesse aresto, quando se mostre relevante para o efeito, como sucede no caso em apreço.
Quanto ao recente Acórdão nº 1/2015, cumpre verificar, num primeiro momento, que o mesmo tratou directamente de uma situação distinta daquela com que estamos confrontados nos presentes autos, pois reporta-se à acusação e à fase processual de julgamento, enquanto o despacho recorrido recaiu sobre um requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes.
Importa então ajuizar se a jurisprudência fixada no Acórdão nº 1/2015 deve ser considerada extensiva à peça processual de que o despacho sob recurso tratou.
Na fase processual de instrução, cuja abertura tenha sido peticionada pelo assistente na sequência de uma decisão de arquivamento do inquérito, o requerimento de abertura de instrução preenche as funções de uma «acusação alternativa» ou, melhor dizendo, da acusação que, no entender do assistente, o MP deveria ter deduzido, no termo do inquérito e não deduziu.
Atenta a sua homologia funcional com o libelo acusatório, o requerimento de abertura de instrução do assistente terá de conter muitas das menções exigidas para este pela lei processual, entre as quais a descrição factual a que se refere a al. b) do nº 3 do art. 283º do CPP:
A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Se entendermos que a orientação jurisprudencial consagrada no Acórdão nº 1/2015 é de aplicar aos requerimentos de abertura de instrução apresentados por assistentes, a peça, que não contiver a alegação dos factos integradores do nexo de imputação subjectiva ao arguido (dolo ou negligência, consoante o caso) da conduta objectiva que lhe for assacada, terá de ser rejeitada, como sucedeu ao requerimento sobre o qual o despacho recorrido recaiu.
O que se impõe averiguar é se, na fase processual de instrução, a deficiência figurada poderá ainda ser suprida pelo Juiz de Instrução, se dispuser de base indiciária para tanto, através do mecanismo da alteração de factos.
Em sede de instrução, a alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento, que dela faça as vezes, rege-se pelo art. 303º do CPP, cujo teor é:
1 - Se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário.
2 - Não tem aplicação o disposto no número anterior se a alteração verificada determinar a incompetência do juiz de instrução.
3 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
4 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
5 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o juiz alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou no requerimento para a abertura da instrução.
De acordo com a definição da al. f) do art. 1º do CPP considera-se substancial a alteração de factos que implique a imputação de crime diverso daquele por que vinha acusado ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Contudo, o princípio da vinculação temática do Tribunal à acusação ou à peça processual, que desempenhe a função por esta preenchida, coloca-se na fase de instrução com um poder vinculativo menos intenso do que em sede de julgamento.
Assim, o art. 379º nº 1 al. b) do CPP fere de nulidade a sentença que condene o arguido por factos diversos dos descritos na acusação, ou na pronúncia, se for esse o caso, sem observância dos procedimentos prescritos pelos arts. 358º e 359º do CPP.
Diferentemente, o nº 1 do art. 309º do CPP fulmina de nulidade apenas a decisão instrutória, que pronuncie o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação ou no requerimento de abertura de instrução, e mesmo essa nulidade ficará sanada se não for arguida no prazo de 8 dias fixado pelo nº 2 desse normativo.
A decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que importem alteração não substancial ou que altere a qualificação jurídica dos factos, sem ter dado cumprimento ao disposto no nº 1 do art. 303º do CPP, é meramente irregular.
A dúvida que se coloca é se, segundo o entendimento jurisprudencial sufragado pelo Acórdão nº 1 /2015, a distinção entre alteração substancial ou não substancial dos factos mantém alguma operacionalidade, em face da deficiência dos factos alegados na acusação ou no requerimento que dela faça as vezes.
A este propósito, interessará reproduzir aqui parte da fundamentação do Acórdão nº 1/2015 (transcrição com diferente tipo de letra):
Com efeito, a latitude do princípio do acusatório, na sua conjugação com o princípio da investigação da verdade material, ou, por outras palavras, a flexibilidade do objecto do processo, encontra como limite a alteração substancial dos factos.
Alteração substancial dos factos, na definição legal, é «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» (art. 1.º, alínea f) do CPP).
No caso, o acrescento dos elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito, compreendendo aqui também o tipo de culpa, corresponde a uma alteração fundamental, de tal forma que alguma da jurisprudência inventariada (supra, ponto 9.2.2.) considera que tal alteração equivale a transformar uma conduta atípica numa conduta típica e que essa operação configura uma alteração substancial dos factos. O mecanismo adequado a uma tal alteração não seria, pois, o do art. 358.º, mas o do art. 359.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, implicando o acordo entre o Ministério Público, o assistente e o arguido para o prosseguimento da audiência por esses factos, como única forma de evitar a anulação do princípio do acusatório, ou, na falta desse acordo, a comunicação ao Ministério Público para procedimento criminal pelos novos factos, se eles fossem autonomizáveis. Na circunstância, sendo o crime de natureza particular, não se imporia a comunicação ao M.º P.º e, por outro lado, não sendo os factos autonomizáveis, o procedimento criminal ficaria dependente do acordo referido e, principalmente, da boa vontade do arguido, o que seria grave se o crime fosse, por exemplo, um crime de homicídio.
Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art. 358.º do CPP, também não será caso de aplicação do art. 359.º, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais.
Por isso, ponderados estes factos, acabamos por concordar com o parecer contido nas alegações da Sra. Procuradora-Geral Adjunta: «A falta de indicação de factos integradores, seja do tipo objectivo de ilícito, seja do tipo subjectivo de ilícito, implicando assim o não preenchimento, a perfeição, do tipo de ilícito incriminador, deve, forçosamente, conduzir à absolvição do arguido, se verificada em audiência de julgamento.
»Ora, a consabida razão de ser do regime que decorre das normas dos artigos 1.º, alínea f), 358.º e 359.º situa-se num plano diverso, que tem como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontravam devidamente descritos os factos que integravam, quer todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, quer todos os elementos do tipo subjectivo de ilícito, respeitantes ao tipo de ilícito incriminador pelo qual o arguido fora sujeito a julgamento.
»Por isso, a ausência ou deficiência de descrição na acusação dos factos integradores do respectivo tipo de ilícito incriminador – no caso, descrição dos factos atinentes aos elementos do tipo subjectivo de ilícito – conduz, se conhecida em audiência, à absolvição do arguido.»
Como pode verificar-se do trecho agora transcrito, foi entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que a distinção entre alteração substancial e não substancial dos factos descritos na acusação tem como pressuposto que esta contenha a alegação da factualidade integradora de todos os elementos do tipo criminal por que o arguido venha acusado, incluindo a sua vertente subjectiva, pelo que qualquer «acrescento» de factos no sentido de suprir uma eventual deficiência a esse nível equivale a transformar uma conduta, que não é punível como crime, noutra que o é.
Uma vez assente pelo STJ a validade desse juízo na fase processual de julgamento, não vislumbramos que as finalidades próprias da fase de instrução e as características da sua tramitação imponham a sua invalidade nesta etapa do processo.
Consequentemente, teremos de concluir pela extensão da jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça aos requerimentos de abertura de instrução dos assistentes.
Cumpre, então, averiguar se é oponível à jurisprudência fixada pelo identificado Aresto alguma objecção (violação de princípio jurídico fundamental ou de norma constitucional), que possa justificar o seu não acatamento por este Tribunal, de acordo com o critério que vimos seguindo.
Na motivação do recurso, os assistentes alegam que o despacho recorrido, o qual assentou numa orientação interpretativa substancialmente coincidente com a consagrada pelo Acórdão nº 1/2015, violou o disposto no art. 20º da CRP, que reza:
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
Desde logo diremos que não vislumbramos que o entendimento interpretativo subjacente ao despacho recorrido, que é, em substância, o consagrado no Acórdão nº 1/2015, colida com algum dos comandos contidos no normativo da Lei Fundamental agora transcrito.
Assim, por exemplo, não é incompatível com o direito de acesso à Justiça e a uma tutela jurisdicional efectiva que a lei ordinária de processo imponha que as peças processuais a produzir pelos sujeitos processuais particulares em defesa dos seus direitos tenham de obedecer a determinados requisitos de forma e de substância, com vista a salvaguardar outros valores, que também possam ser merecedores de tutela constitucional.
Tal é o que sucede relativamente às acusações e aos requerimentos de abertura de instrução, que os assistentes tenham de formular, em ordem a assegurar também as garantias de defesa do arguido, a estrutura acusatória do processo penal e o direito ao contraditório, que o art. 32º nºs 1 e 5 da CRP consagra.
Nos termos do nº 1 do art. 70º do CPP, o assistente é obrigatoriamente representado por advogado, estando o aberto àqueles que, por insuficiência económica, não possam fazer face às despesas inerentes à constituição de mandatário, o benefício do apoio judiciário, na modalidade de nomeação de patrono e pagamento da respectiva retribuição, de acordo com o disposto no art. 16º nº 1 al. b) da Lei nº 34/04 de 29/7, com as alterações introduzidas pela Lei nº 47/07 de 28/8.
Nesta conformidade, inexiste razão para que não seja exigível às peças processuais provenientes dos assistentes o mesmo apuro técnico que é de esperar das peças produzidas pelo MP.
Tudo visto, impõe-se concluir que não descortinamos razão ponderosa para que a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão nº 1/2015 não seja acatada por este Tribunal da Relação, de acordo com o critério que vimos seguindo relativamente ao poder vinculativo desses Arestos.
Em decisões anteriores, nomeadamente os acórdãos proferidos nos processos nºs 1035/10.0TALLE-A.E1 e 113/10.0GFELV-A.E1 nas datas de 5/6/12 e 24/9/13, o Colectivo de Juízes que subscreve o presente acórdão decidiu no sentido de que não era obstáculo á abertura da instrução a deficiência dos factos alegados no requerimento apresentado pelo assistente, em ordem ao desencadeamento dessa fase processual, mesmo em aspectos relevantes para o preenchimento de elementos constitutivos do tipo criminal imputado, desde que o «acontecimento da vida real» pelo qual o assistente pretendia que o arguido seja criminalmente responsabilizado, se apresentasse devidamente concretizado, partindo do princípio que ao Juiz de Instrução seria lícito suprir tais falhas, por via da alteração não substancial de factos, pressuposto que dispusesse para o efeito da necessária base indiciária.
Em face da publicação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015 e não havendo razão justificativa, de acordo com o critério que vimos seguindo, da sua inobservância, iremos mudar posição assumida e decidir o recurso em apreço em conformidade com a jurisprudência firmada por esse Aresto.
Os assistentes requereram a abertura de instrução, tendo em vista a pronúncia do arguido RMBAcomo autor de um crime de dano.
Concretamente, imputam ao arguido o ter ele, no dia 11/10/12, entre as 14h30m e as 15h, retirado e inutilizado 14 tubos metálicos que os assistentes tinham andado implantar em cimento, com vista à colocação de uma vedação em rede à volta de um terreno propriedade dos ofendidos.
O tipo criminal do dano é definido pelo nº 1 do art. 212º do CP:
Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
De acordo com o princípio da culpa consagrado pelo art. 13º do CP, só é punido como crime o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos com negligência.
Não existe disposição legal que preveja a punição da conduta objectiva integradora do crime de dano a título negligente.
As várias modalidades do dolo encontram-se previstas no art. 14º do CP:
1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.
Aqui chegados, necessário será constatar o bem fundado da crítica dirigida pelo despacho recorrido à narração de factos constante do requerimento de abertura de instrução.
Como é sabido, o dolo é um conceito jurídico que tem de ser preenchido por factos.
A alegação do facto integrador do dolo de um eventual crime de dano preenchido pela conduta objectiva do arguido RMBAdescrita no requerimento de abertura de instrução teria pressuposto a menção de que o arguido sabia que os tubos metálicos, que inutilizou, não eram pertença sua ou, pelo menos, se representou tal possibilidade, tendo conformado a sua vontade de inutilizar tais objectos em conformidade com esse conhecimento ou representação.
Sobre essa matéria o requerimento de abertura de instrução é totalmente omisso.
Verificando-se, por um lado, que não é lícito ao Juiz de Instrução convidar os assistentes ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução e, por outro lado, que lhe não é permitido suprir as deficiências dessa peça por meio do mecanismo da alteração não substancial de factos, termos de concluir que o mesmo requerimento não satisfazia as exigências quanto à descrição dos factos pelos quais os assistentes entendiam que o arguido devia ser pronunciado.
Por conseguinte, não poderia o Exmº Juiz de Instrução deixar de decidir como decidiu, indeferindo o requerimento de abertura de instrução, pelo que se impõe a improcedência do recurso.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e confirmar o despacho recorrido.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.
Notifique.

Évora 17/3/15
(processado e revisto pelo relator)

Sérgio Bruno Póvoas Corvacho

João Manuel Monteiro Amaro