Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARGARIDA BACELAR | ||
Descritores: | CONTRAORDENAÇÕES ELEMENTO SUBJETIVO OMISSÃO DE FACTOS NULIDADE | ||
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Data do Acordão: | 06/28/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | A imputação subjetiva deve constar expressamente da decisão administrativa, não só porque não é indiferente o grau de culpa determinante da conduta, mas, acima de tudo, porque desse mesmo grau depende a determinação da própria coima aplicável, cuja variação, v. g. no caso das contraordenações ambientais, pode ser extremamente onerosa para o responsável. Com efeito, a natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjetivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência. No caso em apreço, da simples leitura da decisão administrativa impugnada resulta que a mesma não encerra em si e nos factos imputados ao arguido, nenhum facto de natureza subjetiva, comummente os chamados elementos subjetivos do tipo (nem a qualquer título de dolo nem de negligência- vide artigos 13º, 14º e 15º do Código Penal). A consequência atribuída à omissão de factos na decisão da autoridade administrativa (nomeadamente, de factos atinentes ao elemento subjetivo) não poderá deixar de se traduzir na nulidade dessa decisão. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes da secção criminal da Relação de Évora: A Arguida AA Ld.ª, foi condenada, por decisão do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP, pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 31º, nº 2º do DL 257/2007 de 16 de Julho, na coima no valor de 3060.00€ (três mil e sessenta euros), tendo impugnado judicialmente essa decisão. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo de Competência Genérica de … - Juiz …, foi a impugnação da arguida julgada integralmente procedente, em consequência do que ficou a impugnante absolvida da prática da mencionada contra-ordenação. De tal decisão interpôs o Ministério Público recurso, agora para este Relação, apresentando motivação que termina formulando as seguintes conclusões: “1) O IMT decidiu condenar a arguida na coima de € 3.060,00, pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 31.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16/07. 2) Esta decisão foi impugnada judicialmente pela arguida. 3) A Mmª Juiz a quo decidiu a impugnação por despacho, considerando que a decisão administrativa não cumpre os requisitos formais estipulados no artigo 58.º, do RGCO, designadamente no que respeita à indicação do elemento subjectivo e por não contemplar o tipo de conduta praticada pela arguida (excesso de carga) apesar de indicar a norma violada. 4) Perante o juízo que formulou, considerou que a “consequência atribuída à omissão de factos nessa decisão (nomeadamente, de factos atinentes ao elemento subjectivo) não poderá deixar de se traduzir na nulidade dessa decisão” e entendeu ainda que “a ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime (no presente caso, contraordenação), não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, impondo-se por isso o arquivamento dos autos por falta de objecto”. 5) No entanto, na sua fundamentação de facto e de direito, a autoridade administrativa descreve “a arguida deveria ter assegurando que o veículo transportasse apenas a carga permitida legalmente, atendendo ao seu peso bruto e, ao não tê-lo feito, agiu com violação do dever de circular dentro dos limites legais de carga, sabendo que tal conduta é proibida e, em consequência, punida por lei” afirmando perentoriamente que “a arguida agiu de forma consciente, representou o excesso de carga verificado como consequência possível da sua conduta e conformou-se com a realização desse resultado, pelo que a infração lhe é imputável a título de dolo”. 6) Efectivamente, a decisão da autoridade administrativa sob cogitação poderia, efetivamente, ter sido dotada de maior rigor. 7) Contudo, diante a descrição da transcrição antecede, é possível afirmar que a decisão administrativa do IMT tem conteúdo suficiente para demonstrar que está em causa uma atuação dolosa por parte da arguida, uma vez que descreve todos os elementos de facto e de direito exigidos pelo artigo 58.º, do RGCO. 8) Todos os elementos constitutivos do tipo de contraordenação imputada à arguida foram devidamente indicados na decisão condenatória, não existindo motivo ou justificação legal para que seja verificada qualquer nulidade e determinado o arquivamento dos autos. 9) E mesmo que se entendesse que se verificava a nulidade invocada, deveria o tribunal recorrido ter procedido ao reenvio do processo ao IMT, a fim de ser suprido tal vício pela autoridade administrativa. 10)Ao julgar que a decisão da autoridade administrativa se encontra ferida de nulidade e ao determinar o arquivamento dos autos, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 58.º, do RGCO e o artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal. 11)Numa interpretação conforme com o disposto nos artigos antecedentes e demais disposições legais aplicáveis, nomeadamente o disposto nos artigos 59.º, 60.º e 63.º, n.º 1, a contrario, do RGCO, consideramos que a decisão a proferir pelo tribunal recorrido apenas poderia ser a decisão de receber liminarmente o recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, interposto pela arguida, e designar data para realização de julgamento e, após a produção de prova, proferir sentença em conformidade com a prova produzida. 12)Por outro lado, e subsidiariamente, o tribunal, ao não proceder ao reenvio dos autos à autoridade administrativa, ordenando o suprimento da nulidade decorrente da inexistência de matéria de facto integradora do elemento subjetivo da infração praticada, violou o preceituado no artigo 122.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. 13)Numa interpretação conforme com o disposto nesta norma processual penal e demais disposições legais aplicáveis, consideramos que o tribunal a quo está obrigado a possibilitar a entidade administrativa a “reparar o seu erro”, determinando o reenvio dos autos à entidade administrativa para que seja proferida nova decisão condenatória, suprindo, assim, a lacuna que gerou a nulidade da decisão anteriormente proferida. 14)Deve, assim, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se, consequentemente, que seja proferida decisão que receba o recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, interposto pela arguida, e designe data para realização de julgamento, ou, caso assim não se entenda, que seja proferida decisão que determine a remessa dos autos à entidade administrativa para reparação da nulidade verificada. Vossas Exas, porém, decidirão como for de JUSTIÇA! A Arguida AA Ld.ª, não respondeu à motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público. Nesta instância, aquando da vista a que se refere o art.416º do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto. Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência prevista no art. 419º do C.P.P., cumpre agora apreciar e decidir. DECISÃO RECORRIDA “ Da nulidade da decisão administrativa - Da desconformidade do equipamento de pesagem Invoca o arguido/recorrente a nulidade da decisão administrativa porquanto o instrumento de pesagem usado para quantificação da carga se encontrava com a sua validade ultrapassada, pelo que a leitura do mesmo é nula. Cumpre apreciar. Conforme resulta dos autos – fls. 9 – o equipamento de pesagem nº 20214, tem 0 revisões e data de 16-07-2020. Nos termos do disposto no art.º 4º, nº2º do DL 291/90 de 20 de Setembro, “Os instrumentos de medição são dispensados de verificação periódica até 31 de Dezembro do ano seguinte ao da sua primeira verificação, salvo regulamentação específica em contrário.”. Ora, sendo o aparelho de 16-07-2020, o mesmo está certificado até 21 de Dezembro de 2021, pelo que à data da prática dos factos (24-98-2021) o seu funcionamento e resultados são prova válida e atendível. Face ao exposto improcede a nulidade invocada. - Dos elementos objectivos e subjectivos e descrição do tipo legal imputado A questão que importa agora apreciar e que é repetidamente invocada em sede de recursos de impugnação de decisão contraordenacional, consiste em saber se no âmbito da responsabilidade contraordenacional, a decisão administrativa que aplica a coima deve efetuar a imputação da contraordenação ao agente, quer na sua vertente objetiva, quer na vertente subjetiva e qual a consequência processual, caso a decisão seja omissa quanto ao elemento subjetivo da infração. O direito de mera ordenação social, ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, pretendeu construir um modelo em que a proteção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação justificaria reações que devam exprimir uma censura de natureza social, fosse levada a cabo através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa, com o "sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica", e desprovidas dos sinais ou cargas que caracterizam as sanções de natureza penal. Na realidade, estamos perante comportamentos humanos – igualmente contrários à lei - que angariam uma censura ética com menor ressonância que as condutas criminais. “Uma coisa será o direito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infrações correspondem reações de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente, se diferencia daquele, na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal”.( Cfr. Eduardo Correia, "Direito penal e direito de mera ordenação social", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp. 257-281.) Através da aplicação de medidas que devem constituir advertências de natureza social “a Administração limita-se a reagir contra a desobediência a certos imperativos visando, mediante o forte apelo em que se traduzem, tornar sensíveis as suas intenções». No fundo, o que está em causa, afinal, é «utilizar uma de entre as muitas medidas através das quais a Administração afirma a sua vontade relativamente ao cidadão desobediente, e cuja aplicação é, portanto, da sua estrita competência”.( Cfr. Eduardo Correia, "Direito penal e direito de mera ordenação social", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp. 257-281.). Assim, o DL n.º 433/82 de 27.10 estabeleceu o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contraordenações e às regras sobre o respetivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual), não estabelecendo, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal. Assim mesmo dispõe o artigo 32.º: «Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal». Também relativamente ao regime adjetivo, dispõe o artº 41º do mesmo diploma que "1. sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal. 2. No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma". Quanto à natureza das infrações em causa, dispõe o artº 1º do RGCC aprovado pelo Dec-Lei nº 433/82 de 27.10, com as alterações introduzidas pelo Dec-Lei nº 244/95 de 14.09, que "constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima". Por outro lado, o artº 8º nº 1 do mesmo diploma estabelece que "só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, como negligência". Pese embora, como acima referimos, a culpa no domínio das contraordenações não esteja baseada numa censura ética, como a jurídico-penal, ela não deixa de ser um elemento subjetivo indispensável à punição. E também aqui pode existir quer na modalidade de dolo, quer de mera negligência. Aliás, a necessidade desse elemento subjetivo resulta, desde logo, do citado artº 1º, que afasta a possibilidade de punição a título de contraordenação independentemente do carácter censurável do facto. Aliás, «o facto é o ponto de partida do juízo de subsunção e o postulado primeiro da subsunção jurídica. Mas, porque o facto, ou acontecimento, é sempre o fruto de uma ação humana e esta sempre consequência de uma decisão de agir ou omitir, isto significa que o agente ao atuar, racionalmente, empresta ao facto, enquanto acontecimento meramente objetivo, uma dimensão subjetiva, na qual se espelha a própria personalidade do sujeito. (…) Por isso o facto, enquanto base essencial da decisão, tem de ser apreciado na sua relação com o sujeito atuante. Só esta dupla dimensão em que o facto deve ser encarado respeita e é compatível com a ideia de um Direito Penal que puna pela culpa do agente (Frederico Isasca, in "Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português", Livraria Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 1995, pp. 240-242). Este mesmo raciocínio é extensível ao direito contraordenacional, atento o disposto no citado artº 1º do RGCC, que não dispensa o juízo de culpa do agente. O que faz todo o sentido, pois se assim não fosse estaria aberta a punição da conduta contra ordenacional a título de responsabilidade objetiva, pelo que não se pode de todo admitir que os elementos do dolo ou da negligência, quando não descritos na decisão que aplica a coima, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com «recurso á lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum» Tal equivaleria a conceptualizar o dolo como emanação da própria factualidade objetiva, ou como inerente a essa factualidade, um dolus in re ipsa, nos moldes das antigas “presunções do dolo”. Claro que isso não é impeditivo de «o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência» (Figueiredo Dias, "Ónus de alegar e de provar em processo penal", in Revista de Legislação e Jurisprudência nº 3474, pág. 142.). Contudo, no caso em apreço, não se trata de uma questão de prova, mas de efetiva alegação do elemento subjetivo da infração. É certo que situações haverá em que a descrição objetiva da conduta permite presumir o elemento subjetivo da conduta integradora da respetiva infração, nomeadamente na violação de regras de circulação rodoviária dependentes unicamente da habilitação para condução (a não paragem num STOP ou semáforo vermelho), presumindo-se, pois, que estando habilitado a conduzir agiu sem o cuidado necessário. Nas demais situações em que pela natureza ou complexidade do facto imputado não é admissível uma presunção tout court dos elementos é exigível um nexo de imputação subjetiva, seja através de uma conduta dolosa, seja através de uma conduta negligente. E essa imputação subjetiva deve constar expressamente da decisão administrativa, não só porque não é indiferente o grau de culpa determinante da conduta, mas, acima de tudo, porque desse mesmo grau depende a determinação da própria coima aplicável, cuja variação, v. g. no caso das contraordenações ambientais, pode ser extremamente onerosa para o responsável. Com efeito, a natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjetivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência. No caso em apreço, da simples leitura da decisão administrativa impugnada resulta que a mesma não encerra em si e nos factos imputados ao arguido, nenhum facto de natureza subjetiva, comummente os chamados elementos subjetivos do tipo (nem a qualquer título de dolo nem de negligência- vide artigos 13º, 14º e 15º do Código Penal). Aliás, a decisão administrativa, em termos de omissão vai mais longe, na medida em que apesar de indicar qual a norma violada com a conduta, nem sequer indica o tipo -“Excesso de Carga”. Impõe-se, assim, determinar qual a consequência jurídico-processual nos casos, como o presente, em que a administração omite pura e simplesmente, na descrição dos factos provados, os elementos subjetivos da infração. Dispõe o art.º 58.º do RGCO que a “decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: [b] descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas”, havendo de considerar-se tais exigências satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos. De facto, os ditos requisitos visam, precisamente, a salvaguarda da possibilidade de exercício efetivo dos direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão (MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 2.ª edição de Janeiro de 2003, Vislis Editores, p.334; assim como o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2007, processo n.º 06P3202, Henriques Gaspar). Deve conter também os elementos do tipo subjetivo do ilícito contraordenacional, pois, nos termos do art. 8.º do RGCO só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos previstos na lei, com negligência. No caso sub judice, a contraordenação é punível a título de dolo ou negligência pelo que teriam de constar dos factos (e não constam) também aquelas circunstâncias referidas à vontade de praticar o ato e à consciência da sua ilicitude, bem como ao seu carácter proibido, de modo a poder apreender-se se a arguida agiu com dolo em qualquer das suas modalidades. A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência do art. 58.º, n.º 1 do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contraordenacional, pois a própria Constituição estende a este tipo de processos essas garantias (art. 32.º, n.º 10). Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, como se refere no Acórdão do de 21/9/2006, Proc. n.º 3200-06, da 5.ª Secção, de que o presente relator foi um dos adjuntos, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem”. Na fase de recurso de impugnação, valendo a apresentação dos autos ao juiz pelo Ministério Público como acusação (art. 62.º, n.º 1 do RGCO), torna-se necessário, no que toca aos elementos imprescindíveis a que nos vimos reportando, o recurso ao art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo das contraordenações (art. 41.º, n.º 1 do mesmo diploma legal). E segundo este dispositivo, a acusação contém sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada. Como vimos, a decisão impugnada não contém esses elementos imprescindíveis, devidamente adaptados a este tipo de processo e que são tendentes a caracterizar uma ação ou omissão (uma narração objetiva, individualizada e concreta dos respectivos factos), e ainda uma caracterização daquelas circunstâncias que permitem estabelecer um nexo psicológico de ligação desses factos ao agente e uma sua imputação a título de dolo». Para determinarmos qual a consequência jurídico-processual para a omissão, na decisão administrativa que aplica uma coima, do elemento subjetivo da infração, importa que apreciemos, antes de mais, a natureza da referida decisão. Nos termos do artº 62º do RGCC "recebido o recurso, ... deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este ato como acusação". Porém, a circunstância de a lei fazer equivaler à acusação a apresentação ao juiz do recurso da autoridade administrativa, não significa, só por si, que deve ser aplicada a sanção prevista no artº 283º nº 3 do Código de Processo Penal à decisão da autoridade administrativa que não contenha os elementos indispensáveis a que alude o artº 58º do RGCC. A jurisprudência tem divergido quanto à verdadeira natureza da decisão administrativa proferida no processo de contraordenação. A decisão recorrida, apoiada na jurisprudência que cita, entendeu que "a equivalência da decisão administrativa, se judicialmente impugnada, à acusação transporta-nos para a disciplina do artigo 283º do CPP enquanto comina de nulidade a acusação que não contiver a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança; patologia esta que, respeitando à ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime, não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, não se vendo razão para que o mesmo não seja aplicável ao ilícito contraordenacional". Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 29.01.2007 entendeu que «embora de forma menos intensa, o conteúdo da decisão sancionatória da autoridade administrativa no processo de contraordenação aproxima-se da matriz da decisão condenatória em processo penal, nomeadamente no que respeita à enunciação dos factos provados, com indicação das provas obtidas. A função dos elementos da decisão no procedimento por contraordenação consiste, tal como na sentença penal, em permitir, tanto a apreensão externa dos fundamentos, como possibilitar, intraprocessualmente, o controlo da decisão por via de recurso. A fundamentação da decisão constitui um pressuposto essencial para verificação, simultaneamente, da pertinência e adequação do processo argumentativo e racional que esteve na base da decisão, e uma garantia fundamental dos respetivos destinatários. Por isso, a decisão que não contenha os elementos nos termos e pelo modo que a lei determina não é prestável para a função processual a que está vinculada - a definição do direito do caso, e consequentemente, é um ato que não suporta todos os elementos necessários à sua validade. A consequência, no âmbito do processo penal, vem cominada no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal (CPP): a nulidade da sentença que não contenha a enumeração dos factos provados e não provados, e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão. Dada a natureza (sancionatória) do processo por contraordenação, os fundamentos da decisão que aplica uma coima (ou outra sanção prevista na lei para uma contraordenação) aproximam-na de duma decisão condenatória, mais do que a uma decisão da Administração que contenha um ato administrativo. Por isso, a fundamentação deve participar das exigências da fundamentação de uma decisão penal - na especificação dos factos, na enunciação das provas que os suportam e na indicação precisa das normas violadas. A fundamentação da decisão deve exercer, também aqui, uma função de legitimação -interna, para permitir aos interessados conhecer, mais do que reconstituir, os motivos da decisão e o procedimento lógico que determinou a decisão em vista da formulação pelos interessados de um juízo sobre a oportunidade e a viabilidade e os motivos para uma eventual impugnação; e externa, para possibilitar o controlo, por quem nisso tiver interesse, sobre as razões da decisão. Elementos essenciais da fundamentação de uma decisão sancionatória - a um tempo base e pressuposto de toda a fundamentação e da possibilidade de controlo da própria decisão - são os factos que forem considerados provados e que constituem a base sine qua da aplicação das normas chamadas a intervir. A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58º, nº 1 do RGCOC constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem. A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão - sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material - tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41º do RGCOC sobre "direito subsidiário", que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.» Independentemente da qualificação jurídico-processual que se atribua à decisão da autoridade administrativa, quer por referência à acusação (artº 283º nº 3 do C.P.P.), quer por referência à sentença penal (artº 379º nº 1 al. a) do CPP), o certo é que a consequência atribuída à omissão de factos nessa decisão (nomeadamente, de factos atinentes ao elemento subjetivo) não poderá deixar de se traduzir na nulidade dessa decisão. No sentido da nulidade da acusação (por força da equivalência a que alude o artº 62º nº 1 do RGCC) pronunciaram-se, entre outros, o Ac. R. Guimarães de 19.05.2016 e o Ac. R. Coimbra de 11.11.2020. No sentido da nulidade da sentença (artº 379º do C.P.P.) decidiram os Acs. do STJ de 29.01.2007 e de 06.11.2008. No Ac. do STJ de 29.01.2007 concluiu-se que "a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima, e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374º, nº 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias". Por outro lado, no Ac. do STJ de 06.11.2008 concluiu-se que "a sanção para o incumprimento da alínea b) do n.º 1 do referido art. 58.º do RGCO é a nulidade da decisão impugnada, nos termos dos arts. 283.º, n.º 3, 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a) do CPP, aplicável subsidiariamente." Inexiste, assim, qualquer fundamento para a revogação da decisão recorrida. Face à apontada nulidade da decisão administrativa, a questão que ora se coloca consiste em saber se tal nulidade deve ser sanada pela autoridade administrativa ou se deverá determinar o arquivamento dos autos. Uma parte da jurisprudência sustenta que a nulidade resultante da violação da al. b) do Nº 1 do artº 58º do RGCC, enquanto não contém uma descrição completa dos factos imputados, deve ser suprida pela autoridade administrativa- cfr., v. g., o Ac. do STJ de 06.11.2008 (proc. n.º 08P2804), os Acs. do TRL de 28.04.2004 (proc. n.º 1947/2004-3), de 19.02.2013 (proc. n.º 854/11.5TAPDL.L1-5) e o Ac. do TRE de 25.09.2012 (proc. n.º 82/10.7TBORQ.E1). No mesmo sentido, escreve Pinto de Albuquerque: “O tribunal pode, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, ainda declarar a nulidade da decisão administrativa recorrida e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para a sanação do vício”. No sentido de que a referida nulidade determina a absolvição do arguido, pronunciaram-se o Ac. do STJ de 29.01.2007 (proc. nº 06P3202), Ac. do TRG de 19.05.2016 (proc. nº 4302/15.3T8VCT.G1 e Ac. do TRL de 31.10.2019 (proc. nº 344/19.8T9MFR.L1-9). O artigo 64º nº 3 do RGCC estatui que o "despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação", não prevendo a possibilidade de devolução dos autos à autoridade administrativa, para efeito de suprimento da nulidade da decisão proferida por manifestamente infundada. Por outro lado, ao nível das consequências da nulidade da decisão, a questão não pode ser encarada como se de um vício da decisão se tratasse, designadamente do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a determinar o "reenvio" para a entidade que a proferiu. Trata-se de problemática que se coloca muito antes do vicio da insuficiência, uma vez que tratando-se de uma absoluta ausência produzirá um efeito/consequência muito mais definitivo. Acresce que, permitir-se a sanação da nulidade, através do acrescento de elementos constitutivos do elemento subjetivo que inicialmente não constavam da decisão administrativa, corresponderia a uma alteração fundamental da decisão, equivalendo a transformar uma conduta atípica numa conduta típica. Entendemos, por isso, que a ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime (no presente caso, contraordenação), não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada", impondo-se por isso o arquivamento dos autos por falta de objeto (artº 64º nº 3 do RGCC). Face ao exposto declaro nula a decisão administrativa e determino o arquivamento dos autos. Atenta a declaração de nulidade de decisão e arquivamento dos autos o tribunal não procederá à análise das demais questões invocadas em sede de impugnação.” *** APRECIANDO: Sustenta o Recorrente que, a decisão administrativa do IMT tem conteúdo suficiente para demonstrar que está em causa uma atuação dolosa por parte da arguida, uma vez que descreve todos os elementos de facto e de direito exigidos pelo artigo 58.º, do RGCO. Ora, a decisão recorrida rebateu tal argumentação, nos termos seguintes: « … É certo que situações haverá em que a descrição objetiva da conduta permite presumir o elemento subjetivo da conduta integradora da respetiva infração, nomeadamente na violação de regras de circulação rodoviária dependentes unicamente da habilitação para condução (a não paragem num STOP ou semáforo vermelho), presumindo-se, pois, que estando habilitado a conduzir agiu sem o cuidado necessário. Nas demais situações em que pela natureza ou complexidade do facto imputado não é admissível uma presunção tout court dos elementos é exigível um nexo de imputação subjetiva, seja através de uma conduta dolosa, seja através de uma conduta negligente. E essa imputação subjetiva deve constar expressamente da decisão administrativa, não só porque não é indiferente o grau de culpa determinante da conduta, mas, acima de tudo, porque desse mesmo grau depende a determinação da própria coima aplicável, cuja variação, v. g. no caso das contraordenações ambientais, pode ser extremamente onerosa para o responsável. Com efeito, a natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjetivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência. No caso em apreço, da simples leitura da decisão administrativa impugnada resulta que a mesma não encerra em si e nos factos imputados ao arguido, nenhum facto de natureza subjetiva, comummente os chamados elementos subjetivos do tipo (nem a qualquer título de dolo nem de negligência- vide artigos 13º, 14º e 15º do Código Penal). Aliás, a decisão administrativa, em termos de omissão vai mais longe, na medida em que apesar de indicar qual a norma violada com a conduta, nem sequer indica o tipo “Excesso de Carga”. Impõe-se, assim, determinar qual a consequência jurídico-processual nos casos, como o presente, em que a administração omite pura e simplesmente, na descrição dos factos provados, os elementos subjetivos da infração. Dispõe o art.º 58.º do RGCO que a “decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: [b] descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas”, havendo de considerar-se tais exigências satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos. De facto, os ditos requisitos visam, precisamente, a salvaguarda da possibilidade de exercício efetivo dos direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão (MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 2.ª edição de Janeiro de 2003, Vislis Editores, p.334; assim como o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2007, processo n.º 06P3202, Henriques Gaspar). Deve conter também os elementos do tipo subjetivo do ilícito contraordenacional, pois, nos termos do art. 8.º do RGCO só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos previstos na lei, com negligência. No caso sub judice, a contraordenação é punível a titulo de dolo ou negligência pelo que teriam de constar dos factos (e não constam) também aquelas circunstâncias referidas à vontade de praticar o ato e à consciência da sua ilicitude, bem como ao seu carácter proibido, de modo a poder apreender-se se a arguida agiu com dolo em qualquer das suas modalidades. A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência do art. 58.º, n.º 1 do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contraordenacional, pois a própria Constituição estende a este tipo de processos essas garantias (art. 32.º, n.º 10). Pois bem, percorrida a factualidade constante da decisão admistritativa imediatamente se concluiu que esta é completamente omissa quanto à narração de factos integradores do tipo subjectivo da contra-ordenação imputada à arguida AA Ld.ª. Na verdade, e quanto a esta específica questão os argumentos aduzidos pelo Tribunal a quo não nos merece qualquer censura, não se mostrando sequer necessário aditar, em abono da solução perfilhada pela 1ª instância, quaisquer novos argumentos. Questão distinta é a que resulta de os factos demonstrativos de uma conduta censurável – dolosa ou negligente – não constarem nem como provados, nem como não provados e que, é nosso entendimento, nada tem a ver com a nulidade de omissão de pronúncia, prevista no art. 379º, nº 1, c), do C. Processo Penal, mas com uma outra nulidade. Explicando. O art. 7º, nº 2, do RGCOC estabelece a responsabilidade das pessoas colectivas ou equiparadas pelas Contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções, como mera consequência de a sua vontade só poder ser actuada por pessoas físicas. E nesta perspectiva, só as pessoas físicas são susceptíveis de actuações dolosas ou negligentes, donde a responsabilidade das pessoas colectivas ser sempre uma responsabilidade reflexa, pressupondo um substrato humano. Em qualquer caso, a conduta dolosa ou negligente deve sempre ter tradução em factos, não bastando para tanto, a utilização de meros conceitos ou fórmulas conclusivas. Ora, na decisão administrativa, se encontramos a identificação dos factos objectivamente considerados, já o mesmo não sucede quanto ao elemento subjectivo do tipo na medida em que nenhum facto o revela, limitando-se a decisão a socorrer-se de meros conceitos e conclusões no item da “Fundamentação da decisão de facto e de direito”. No entanto, a autoridade administrativa estava obrigada, nos termos do art. 58º, nº 1, b), do RGCOC, a fazer constar da respectiva decisão, os factos imputados, isto é, os factos preenchedores do tipo objectivo e subjectivo da contra-ordenação. Não o tendo feito, foi cometida a nulidade prevista nos arts. 374º, nº 2 e 379º, nº 1, a), do C. Processo Penal, ex vi, art. 41º, nº 1, do RGCOC, o que impunha que o Tribunal a quo a tivesse declarado e ordenado a remessa dos autos à autoridade administrativa a fim de ser sanado o vício. DECISÃO Com a procedência do recurso, revoga-se o despacho recorrido e determina-se a sua substituição por outro que, declarando nula a decisão administrativa, remeta os autos à autoridade que a proferiu, a fim de ser sanado o vício detectado. Sem tributação. Évora, 28/ 06 / 2023 |