Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
750/08-3
Relator: MANUEL MARQUES
Descritores: JANELA
FRESTA
SERVIDÃO PREDIAL
Data do Acordão: 09/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário:
I - O conceito de janela estabelecido no n.º 1, do art. 1360º adequa-se à dupla finalidade da restrição: evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto de indiscrição de estranhos e impedir que ele seja facilmente devassado com o arremesso de objectos.
II - Assim, as janelas são apenas as aberturas que permitem não só a entrada de luz e ar, mas ainda a devassa do prédio vizinho, por permitirem o debruçar sobre o prédio alheio, olhando quer em frente, quer para os lados, ou para cima e para baixo.
III – A abertura existente na parede dum edifício, situada a mais de 1m e 50cm do piso e com uma largura de 80cm e 50cm de altura, não é uma janela mas sim uma fresta irregular, já que, por um lado, foi sempre usada apenas para arejamento e entrada de luz e por outro, sendo a sua implantação muito superior à cintura humana, a mesma não permite, em termos de uso normal, que se projecte a parte superior do corpo humano sobre o prédio confinante, nem que as pessoas se possam apoiar em tal abertura para descansar ou falar com alguém que possa estar do lado de fora ou para desfrutar as vistas ou seja, não permite o devassamento do prédio vizinho através da referida abertura.
IV – Tendo tal fresta perdurado durante, pelo menos, 25 anos e tendo sido utilizada pela ré e os anteriores proprietários do imóvel antigo, continuadamente, para arejamento e iluminação do interior do quarto, com o conhecimento e à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, constituiu-se, por via possessória, uma servidão predial (que não de vistas) por usucapião, que confere ao seu titular (réu) o direito de manter tal abertura em condições irregulares, deixando o proprietário do prédio vizinho (autor), sobre o qual recai o encargo, de poder exigir, através de uma acção negatória, que a fresta irregular seja modificada e harmonizada com a lei – cfr. arts. 1251º, 1254º, 1256º, 1261º, 1262º, 1287º, 1288º, 1296º, 1543º, 1544º e 1547º do C. Civil.
V – Do mesmo modo pode o dono do prédio onde se localiza a fresta, em caso de demolição, reconstruir a parede e nela abrir de novo a fresta, mantendo-se a servidão, desde que a abertura mantenha a mesma localização e dimensões anteriores.
VI – A existência da fresta irregular não dar lugar à constituição de uma servidão de vistas, e por isso o vizinho, dono do prédio confinante, mantém o direito de, a todo o tempo, construir no seu prédio, ainda que vede tal abertura.
Decisão Texto Integral:
Proc. N.º 750/08-3
Apelação em processo sumário
Tribunal Judicial de Lagos (1º Juízo) - Proc. N.º 652/06.8TBLGS



Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

I. Pedro ................., intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra Dina ................ e marido, Victor ...................., peticionando a condenação destes a taparem a janela que abriram na parede perpendicular do seu prédio, contígua ao prédio do autor, a que corresponde a parede da empena, porque construída com infracção ao disposto nos arts. 1344.º n.º 1 e 1360.º n.º 1 do Código Civil.
Alegou, em resumo, que é legítimo proprietário e possuidor do prédio urbano sito na Travessa............... em Lagos; que os réus são proprietários de um prédio situado na mesma Travessa ................, a norte do prédio do autor, embora com ele confinante, pela empena a sul, sendo este mais alto que aquele; que os réus decidiram fazer obras de conservação, no seu prédio, em Setembro de 2005, tendo aberto uma janela no dito alçado lateral sul, a qual deita directamente para o telhado do prédio do autor; e que a dita janela foi construída em desrespeito pela lei e levará a que seja constituída uma servidão de vistas sobre o prédio do Autor, ficando este, no futuro, impedido de aumentar a altura do seu prédio.
Posteriormente o autor desistiu do pedido formulado contra o réu, tendo tal desistência sido homologada por sentença.
Citada a ré, veio esta defender-se por impugnação e por excepção, tendo ainda deduzido reconvenção.
Alegou, em suma, que é viúva; que é dona de um prédio sito na Travessa .............., em Lagos, que adquiriu em 1996, o qual era constituído por rés-do-chão e sótão; que esse prédio foi demolido e reconstruído; que o edifício que actualmente existe foi construído em finais de 2004, princípios de 2005; que a janela em causa nos autos já existia antes da construção do edifício novo, tendo a ré reconstruído, totalmente o imóvel, com a janela anteriormente existente; e que essa janela existia há mais de 15, 20 e 25 anos, tendo esta sido sempre utilizada pela ré e pelos antepossuidores do prédio, de forma contínua, dela retirando todas as utilidades, sem oposição fosse de quem fosse, com conhecimento e à vista de toda a gente e de boa fé.
Em reconvenção peticionou a condenação do autor em reconhecer que a ré é dona do imóvel em questão, assim como em reconhecer que, onerando o seu prédio, e a favor do prédio da ré, se encontra constituída uma servidão de vistas, relativamente à janela existente.
O autor replicou, tendo impugnado a factualidade atinente à constituição da servidão de vistas e alegado que a mesma, a ter existido, extinguiu-se com a demolição do prédio anteriormente existente.
Pelo despacho de fls. 108 e 109 foi admitida a reconvenção.
Após foi proferido despacho saneador, fixados os factos assentes e elaborada a base instrutória, a qual foi alvo de reclamação, que foi desatendida.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu:
- Absolver a Ré do pedido de condenação da mesma em tapar a janela que abriu na parede perpendicular do seu prédio, contígua ao prédio do Autor, a que corresponde a parede da empena;
- Condenar o Autor a reconhecer que a Ré é dona do imóvel indicado em b) da matéria assente supra, sendo que o lado sul do imóvel da Ré confronta com o lado Norte do prédio do Autor, por uma das fachadas de tal imóvel, com confina com o pátio ou logradouro do prédio do Autor;
- Condenar o Autor a reconhecer que, onerando o seu prédio identificado em a) da matéria assente supra, e a favor do prédio da Ré, identificado em b) da matéria assente supra, se encontra constituída uma servidão de vistas, relativamente à janela existente e colocada na fachada sul do edifício da Ré.
Inconformado, veio o autor interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação de 102 conclusões.
A apelada apresentou contra-alegações, propugnando pela manutenção do julgado.
Posteriormente, após convite para sintetizar as conclusões apresentadas, o apelante formulou as seguintes:
I- Ao referir-se, em sede de “fundamentação de facto” da sentença, a toda a matéria dada por provada, a Senhora Juiz da 1ª Instância, disse de relevante o seguinte (vamos seguir, apenas por nos ser mais cómodo, as alíneas postas pela Senhora Juiz da 1ª Instância na “fundamentação de facto” e não as das respostas aos quesitos e da “matéria assente”, embora sejam as mesmas):
- Als. B), D), E), I), e K)-último segmento : que a Ré/ora apelada, adquiriu, em 1996, um prédio sito algures na cidade de Lagos, registado sob o nº 02187/181196 e com determinado número de divisões, que demoliu em Outubro de 2004, sendo que, em Setembro de 2005 o novo prédio já estava construído;
- Als. F) e G) : que no alçado lateral sul do novo prédio, existe uma abertura de forma rectangular, com 60 cm de altura e 80 de largura, colocada a cerca de 1,50/1,60 metros de altura, contados no nível do piso do 1º andar (?);
- Als. J), K) e L): que, esta abertura já existia, no mesmo sítio e com as mesmas dimensões e configuração, no prédio demolido; e existia ali há, pelo menos, 25 anos, quando se deu a demolição, em Outubro de 2004, uma vez que, quer a Ré, quer os proprietários que a precederam, e os que antecederam estes, dela retiraram, continuamente, os frutos e utilidades que a mesma proporcionava;
- Al. M) : a dita abertura existiu, em ambos os prédios, sem oposição, com conhecimento e à vista, de toda a gente;
- Al. H) : a abertura em causa, era utilizada para arejamento e iluminação do interior do quarto, que não dispões de qualquer forma de arejamento e iluminação natural, e era provida de caixilhos de madeira e vidro, que abria para dentro e era desprovida de grades.
II- COMENTÁRIOS:
a) A Ré, embora possuidora causal, decidiu louvar-se, em sede desta acção, na usucapião (de uma servidão de vistas em benefício do seu prédio).
O recurso, num caso destes, à figura da usucapião é legítima, como ensina Oliveira Ascensão (in Reais, 5ª Edição, fls. 103/104), quando diz:

“Como se compreende que se diga que a usucapião é um efeito da posse causal? Se esta é a que se baseia numa titularidade substantiva, que sentido tem atribuir-lhe também o efeito usucapião?
Pensamos, porém, que não haverá contradição se alguém invocar em seu favor a titularidade substantiva e simultaneamente alegar usucapião.
É que o possuidor deve poder sempre escolher a razão de direito a que recorre – mesmo que seja o possuidor causal. (…), assim como pode bastar-se sempre com a solidez da presunção da titularidade que dá a posse, também pode beneficiar da maior solidez que a usucapião empresta aos direitos reais, sem embargo de continuar a protestar uma anterior válida causa de aquisição do direito. Isto resulta do carácter abstracto da posse.
A posição contrária é que teria consequências inadmissíveis. Não se compreenderia que o possuidor formal pudesse sair vitorioso com a alegação da posse, boa para usucapião, e o possuidor causal, que deve ter sempre uma posição mais protegida, não o pudesse fazer, apenas porque beneficia simultaneamente de outra anterior causa de aquisição”.
b) Nunca a Ré invocou, em seu favor, como lhe competia se disso se pretendesse prevalecer, a acessão de posses (o que é facultativo, á luz do art. 1256º/1 do CC.) E, como não o fez, tal instituto não foi versado, de todo, nesta acção, pese embora a mesma Ré haver alegado, e o Tribunal a quo ter dado por provado, naquela al. M), que quer os anteriores proprietários, quer os que os precederam, fizeram uso da abertura em causa. Afirmação em si inócua, por nos não dizer de que tipo de abertura se trata (maxime, que era uma janela, único caso relevante, quer à luz do Código de Seabra quer do actual), nem disso retirar qualquer efeito para a resolução deste caso.
c) Na al. H) da “fundamentação de facto” da sentença aprecianda, deu-se por provado, como acima dissemos, que a abertura em causa era utilizada para arejamento e iluminação do interior do respectivo quarto.
Mas, sendo este um aspecto determinante da causa, o certo é que, esta afirmação, é a todos títulos insuficiente, deixando por esclarecer se, aquela abertura, seria uma janela ou, antes, uma fresta ou quiçá, seteira.
Daí que, embora de forma pouco aprofundada, a Senhora Juiz do Tribunal a quo tenha tentado solucionar o problema em sede do ponto V.II da “fundamentação de facto”.
Disse, então, a Mma. Juiz, para fundamentar a sua conclusão de que a abertura aqui em causa era uma verdadeira e própria janela:
“Assim, toda a abertura que não obedeça, quer pelas suas dimensões quer pela respectiva localização, aos requisitos indicados neste preceito (art.1363º/2 do CC) não pode ser qualificada como abertura de tolerância, ao invés de uma janela (vide Antunes Varela-Pires de Lima in ob. cit. pág. 223)”
Repetiu, no fundo, e como os próprios Pires de Lima e Antunes Varela reconheceram no local vindo de citar, o sumário do Ac. do STJ de 15/1/71 (in BMJ203/169).
Ocorre no entanto que, hoje, o Supremo Tribunal de Justiça já não tem a mesma visão espartana e até incompleta, do assunto.
Basta, para a esta conclusão chegar, ler, entre outros, os sumários (e os textos) dos Acs. do mesmo Venerando Tribunal, de 22/4/2004 in www.dgsi.pt/jstj04B652) e de 1/4/2008 (in www.dgsi.pt/jstj07A3114).
Tomemos como exemplo este último e recentíssimo Acórdão. Aí se diz, em síntese, que não basta que a abertura constitua excepção ao disposto no no nº 2 do art. 1363º do CC. para ser logo considerada janela, e permitir, por isso, a constituição de uma servidão de vistas, decorrido que seja o tempo legalmente estabelecido para o efeito.
É que - enfatiza-se na súmula II – “a diferença entre janelas e frestas está, além de nas suas dimensões, NA FINALIDADE DE UMAS E OUTRAS”.
E, acrescenta-se logo na súmula III: “assim, as janelas além de terem maiores dimensões, devem, em princípio, permitir, através delas, a projecção da parte superior do corpo humano e ser dotadas de parapeito onde as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se para descansar, conversar com alguém que esteja do lado de fora ou para desfrutar as vistas, olhando quer em frente, quer para os lados, ou para cima e para baixo”.
E, depois, e na súmula V:”a existência de aberturas que não respeitando so limites previstos para as frestas no art. 1363º, nº2 do Cód. Civil, mas que não permitem a referida projecção das pessoas sobre o prédio vizinho, apenas permitindo a entrada de ar e luz, pode levar à constituição de uma servidão predial, mas não de servidão de vistas impeditiva de o proprietário do prédio vizinho levantar construção que tape aquelas aberturas”.
De facto, e se bem se atentar, só esta interpretação da lei permite harmonizar o que se diz nos arts. 1363º e 1362º/1, do CC (“a existência de janelas (…) em contravenção do disposto na lei, pode importar (…)”).
Ora, o que é que se deu por provado na supra citada alínea H) da “fundamentação de facto”?
Justamente isto e só isto: que a abertura em causa era utilizada para arejamento e iluminação do interior do quarto.
Que concluir: que a abertura em causa nunca poderia levar, como não levou, à constituição de uma servidão de vistas, ainda que se achassem reunidos os demais pressupostos da lei para o efeito (que, como veremos, não se acham)!
E que, portanto, o A. estava com a razão quando aforou esta acção negatória de servidão e pediu que, a Ré, tapasse a abertura em causa, sendo-lhe mesmo permitido levantar, a todo o tempo, ou a sua casa ou contramuro, com vista a vedar a dita abertura.
Aliás, outro tanto já havíamos concluído quando acima sindicámos os depoimentos – autorizados, porque se tratava das anteriores proprietárias do primitivo prédio da Ré – das testemunhas arroladas pela Ré e estudámos o Código de Seabra e a doutrina e jurisprudência coevas (tudo matéria que agora se pede vénia para aqui dar por reproduzida para todos os legais efeitos).
Quando ouvidas em audiência, as testemunhas da Ré haviam em uníssono afirmado que, na abertura existente no prédio entretanto demolido pela Ré, não cabia uma cabeça humana; que a mesma só era usada para entrada de ar e luz, e que até só permitia ver o céu.
Portanto: nem antes da aquisição do prédio primitivo pela Ré, nem depois, se constituiu qualquer servidão de vistas em favor do mesmo (quando muito, ter-se-ia constituído, antes da venda do prédio primitivo à Ré, uma servidão de luz e ar que, quer na vigência do Código de Seabra, quer na do actual, não são impeditivas do tapamento da abertura).
E, como se deu por provado, nas als. F), J), K) e L) da “fundamentação de facto”, que a abertura rasgada na parede lateral sul do novo prédio da Ré é uma cópia da que existia no prédio demolido, temos que concluir que, pelas mesmas razões acima aduzidas, tão pouco aqui se constituiu uma qualquer servidão de vistas a favor deste prédio.
Errou, portanto, a Senhora Juiz da 1ª Instância, nos comentários e nas conclusões que retirou a propósito, e plasmou nos pontos V.II, V.III (o 1º) e V.III (o 2º) da “fundamentação de facto” da sentença.
d) Na al. L) da “fundamentação de facto” acham-se plasmados conceitos de direito, como sejam: “antepossuidores”, “donos”, “possuidores”, “continuamente”, “frutos” e “utilidades”.
Na sua génese esteve o quesito nº4 (depois nº 3), em que se perguntava : “a Ré e seus antepossuidores e donos sempre utilizaram a abertura, tal como seus anteriores proprietários e possuidores continuamente, dela retirando os seus frutos e utilidades pela mesma proporcionada?”
Ora, por força do estabelecido no nº 4 do art. 646º do CPC, tem que dar-se por não escrita aquela resposta a este quesito.
e) Com a resposta dada, na al. M) da “fundamentação de facto”, ao quesito nº 5 (depois alterado para nº 4) - “a abertura nestas circunstâncias existiu com conhecimento e á vista de toda a gente, sem oposição?” – a Senhora Juiz do Tribunal da !ª Instância concluiu que se havia verificado o requisito: publicidade (cfr. os comentários feitos por esta, a propósito, em sede do ponto V.III (2) da “fundamentação de facto”).
Claudicou, manifestamente na ilação que tirou, como se verá já de seguida.
A resposta ao quesito até poderia estar correctamente dada - que não está, bastando, para a essa conclusão chegar, ter em conta os depoimentos que acima pusemos em evidência das testemunhas arroladas pela Ré, matéria que pedimos mais uma vez vénia para aqui dar por reproduzida -, que era, para o caso, de todo irrelevante.
É que, a “posse pública” de que se fala no art. 1262º do CC. é a que se exerce de modo a “poder ser conhecida ou cognoscível”, não por toda a gente, mas sim “pelos interessados”, no caso, o A..
Ora, “a posse é cognoscível se um interessado (medianamente diligente e sagaz) colocado na posição do real interessado, dela tivesse percepção” (Orlando de Carvalho, RLJ, 3792, pág. 73).
Como diz Henrique de Mesquita (in Direitos Reais, sumários das lições ao curso de 1966/1967, pág. 97: “a justificação deste requisito (a publicidade) é fácil de intuir: os actos possessórios clandestinos não merecem protecção, uma vez que os interessados em contrariar a posse não têm dela conhecimento”.
Ademais - acrescentamos nós – se a posse for oculta, os prazos para a usucapião só começam a contar-se, desde que a posse se torne pública (art. 1297º do CC).
Ocorre que, a publicidade da posse da Ré não foi, de todo, demonstrada, até porque o quesito 4º (anterior 5ª) é meramente conclusivo, não contendo um único facto que permita ali encontrar, um resquício que seja, da intenção de ter em devida conta, no caso, a teoria da impressão do declaratário do art. 236º do CC, de que fala Orlando de Carvalho.
De notar ainda que, como também ensina Orlando de Carvalho (in ob. e loc. cit.), “o registo da posse (artigo 1295º, nº2) ou o registo do título aquisitivo do direito (a cuja imagem se possui), também não são equivalentes à cognoscibilidade da posse; não constituindo o registo nenhuma presunção nesse sentido”.
Se bem se atentar, o quesito aqui em causa contém, apenas e só, uma conclusão, pelo que, a resposta que lhe foi dada, mais não é que uma conclusão de uma conclusão!
Em resumo: a resposta ao quesito 4º deve ser levada a crédito das pretensões do A. e não da Ré/reconvinte, como erradamente considerou a Senhora Juiz da 1ª Instância.
E uma vez que, como ensina Henrique de Mesquita (in Direitos reais, 1967, pág. 112), “para conduzir à usucapião a posse tem de revestir sempre duas características: pública e pacífica (…)”, a ausência, in casu da prova da publicidade só pode levar à conclusão de que, o A., tem que ser absolvido do pedido reconvencional da Ré, visto, justamente, não se haver provado a aquisição, por usucapião, da servidão de vistas.
f) Diz Oliveira Ascensão, a fls. 94/95 do seu “Direito Civil/Reais”, 5ª Ed., Coimbra Editora, 1993:
“O possuidor causal também se pode socorrer da protecção possessória sem ser em nada prejudicado pelo facto de ter a titularidade definitiva, logo a posse causal incorre em geral nestas classificações. Assim, quando o titular verdadeiro se apresenta meramente como possuidor, abstrai-se da titularidade definitiva e deverá perguntar-se se ele tem um título, abstractamente idóneo para a aquisição do direito, etc.”
Sem entrarmos em explicações desnecessárias, por V. Exas., Mmos. Juízes, bem conhecerem o tema, diremos apenas que, no caso da Ré, o título abstracto coincide com o título definitivo (contrato de compra e venda e respectivo registo de aquisição, no caso do prédio demolido, e as licenças respectivas – de construção e de utilização – e o registo, no caso do prédio novo).
Ora, se bem se atentar, a Ré nunca apresentou – veremos adiante a nossa explicação para o caso - a “titularidade definitiva” dos dois prédios de que se arroga, nestes autos, a propriedade.
De acordo com quanto disposto se acha nos arts. 342º, 363º/1 e 2 e 364º/1, do CC., à Ré competia fazer a prova desses títulos e, consequentemente, a acção nem deveria ter sido julgada sem que os mesmos se achassem juntos aos autos.
Ora, como a dita prova não foi feita, temos que, de acordo com quanto previsto se acha no nº 4 do art. 646º do CPC, tem que ter-se por não escrito o que exarado se acha nas als. B), D) e I) da “fundamentação de facto”.
Errou, portanto, a Senhora Juiz da 1ª Instância quando, a propósito daquelas alíneas disse, no ponto V.I da “fundamentação de facto”, achar-se cabalmente provada a titularidade da Ré.
PARA TERMINARMOS ESTAS CONCLUSÕES:
III- Vamos, por mera hipótese académica, admitir que, aquando do aforamento desta acção, pelo A./apelante, corria prazo para aquisição, a favor do prédio da Ré/apelada, de uma servidão de vistas.
IV- Perguntar-se-á: já se havia, nessa data, constituído ou não, a dita servidão?
V- Quer se defenda a aplicabilidade, ao caso vertente, do disposto no art. 1545º - existência de duas posses distintas, uma sobre o prédio demolido e outra sobre o novo – quer não, e fazendo agora, como se disse, tábua rasa do facto de inexistirem, aqui, os pressupostos reclamados por lei para o efeito, a resposta, uma vez que não houve acessão de posses, é só uma: NÃO!
VI- Vejamos como se chega a esta resposta.
VII- Sabemos, pese embora a Ré não no-lo haver dito, que a data da outorga da escritura de compra e venda do prédio primitivo foi 30/11/1996 (a Ré, seguramente para evitar que o Tribunal, cotejando as datas, chegasse á conclusão de que ainda não havia decorrido o prazo para usucapião, nunca patenteou, como lhe competia por força do estabelecido nos arts. 364º/1 e 363º/1 e 2, do CC., a escritura de compra e venda do prédio primitivo, que depois demoliu, preferindo refugiar-se numa vaga e atrabiliária q.b. referência ao ano de 1996, no quesito 14 da Contestação (coisa que, como vimos, bastou para a Senhora Juiz da 1ª Instância dar – mal ! - como assente que a dita data era … 1996). Mas, da certidão de registo do prédio, resulta que o mesmo foi registado, pela 1ª vez, em 18/11/96 – justamente para permitir que se fizesse a escritura de compra e venda -, e por isso recebeu o nº 02187/181196. Em todo o caso, mister é dizer que, se sabemos a data da outorga da escritura foi porque dela nos informámos junto da Conservatória do Registo Predial de Lagos. De enfatizar por último que, a data do registo do prédio também se retirava, de forma escorreita, da leitura do artigo 13 da Contestação, onde justamente é mencionado o número do artigo matricial: 02187/181196. Enfim, caso se não queira aceitar a data de 30/11/96, por dela também não termos feito prova cabal, assente-se ao menos nisto: se o prédio, hoje demolido, recebeu este artigo matricial, é porque, a escritura de compra e venda da Ré, que nunca se poderia ter feito sem o prévio registo do dito prédio, foi efectuada em data posterior, e, portanto, algures depois de 18/11/96 ).
VIII- Ora, como a Ré foi citada para esta acção depois de 7/6/2006 (data do aforamento da PI) e antes de 4/7/2006 (data de apresentação da Contestação na Secretaria do tribunal a quo), é seguro podermos dizer que, pelo menos em 4/7/2006 já o decurso do prazo de usucapião que eventualmente estivesse na ocasião a correr se interrompera, por força da mesma citação, de acordo com o disposto nos arts. 1292º e 323º/1, ambos do CC. (cfr. a súmula I do Ac. STJ de 2/11/2005, in proc. 05S1920.dgsi.Net e Ac. RC, de 22/10/85, in CJ, 1985, 4º-76) .
IX- Temos assim que, de 30/11/96 (data que sabemos ter sido a da outorga da escritura de compra e venda) até 4/7/2006 (data da Contestação da mesma Ré), haviam decorrido 9 anos, 7 meses e 4 dias (se fizermos tábua rasa daquela data, e optarmos pela do registo da casa primitiva, então a conclusão é a de que, haviam passado mais 12 dias, ou seja, a “idade” da posse ad usucapionem era de 9 anos, 7 meses e 16 dias).
X- Em qualquer das hipóteses, tempo insuficiente para se dar a aquisição por usucapião da pretendida servidão de vistas, uma vez que o menor prazo possível para o efeito previsto na lei é de 10 anos, de acordo com o estabelecido na al. a) do art. 1294º do CC..
XI- Eis porque, no fim das contas, acaba por ser despiciendo aquilatar da existência ou não de uma posse ad usucapionem (de que a Ré não fez – repete-se - prova), da publicidade ou clandestinidade da mesma (publicidade que, como se viu á saciedade, tão pouco provou), ou da boa ou má fé do seu exercício (de má fé já que, como também claramente expusemos, não patenteou, como lhe competia, os respectivos “justos títulos”, que permitem presumir a boa fé. Boa fé que não foi provada de nenhuma outra forma), ou sequer da existência ou inexistência de títulos, registos e licenças de demolição, construção e utilização (que não apresentou).
XII- Qualquer que seja o caso, a conclusão é só uma: se algum prazo para aquisição de uma servidão de vistas a favor do prédio (ou prédios) da Ré/recorrida estivesse a correr, ele foi interrompido pela citação para esta acção, antes que se consumasse a usucapião (arts. 1292º e 323º/1, do CC).
POR FIM,
XIII- E porque a questão da inseparabilidade das servidões (art. 1545º do CC) foi chamada à colação, pelo A./reconvindo, em sede de contestação do pedido reconvencional, e não foi sequer aflorada pela Senhora Juiz da 1ª Instância em sede de sentença, como lhe competia, outra coisa se não pode fazer agora que não seja pôr aqui em evidência a nulidade da mesma sentença, por omissão de pronúncia (art. 668º/1-d)-1ª parte do CPC.
XIV- Face ao vindo de expor devem, V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, deferir o pedido formulado pelo A. de tapamento da abertura rasgada, sem respeito pelo interstício legal, na parede lateral sul do novo edifício da Ré, ou, assim não entendendo, e na perspectiva de atribuírem ganho de causa ao pedido reconvencional da Ré – o que só por mera hipótese académica se admite -, devem, então, declara a nulidade da sentença sub-judicio, por omissão de pronúncia.

Notificada dessas novas conclusões, a apelada peticionou o desentranhamento das mesmas por o apelante ter encaixado nas conclusões matéria nova.
Posteriormente, por despacho do relator, foram rejeitadas as novas alegações, no segmento referente à falta de invocação pela ré da acessão de posses; ao alegado carácter conclusivo do quesito 4º; à circunstância dos factos provados descritos na sentença sob as alíneas b), d) e i) deverem considerar-se não escritos e à arguida nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual:
a) O Autor é legitimo proprietário e possuidor do prédio urbano sito na Travessa ............, que é composto de casas térreas com 2 vãos e 4 divisões, com a área coberta de 46 m2 e quintal com a área descoberta de 6 m2, inscrito na matriz predial da freguesia de Santa Maria, concelho de Lagos sob o n.º 423e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º 02063/230695;
b) A Ré é legítima proprietária e possuidora do prédio urbano sito na Travessa ................, que confina a sul com o do Autor, inscrito na matriz predial da Freguesia de Santa Maria, concelho de Lagos sob o n.º 1235 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º 02187/181196, adquirido por escritura pública de compra e venda em 1996;
c) O imóvel referido em A) foi comprado pelo Autor a José ................., por escritura pública datada de 27 de Julho de 1995;
d) A Ré realizou obras de reconstrução do seu prédio, terminadas em Setembro de 2005;
e) No prédio da Ré existia um edifício destinado a habitação composto de r/c e sótão, tendo no r/c 4 compartimentos e cozinha e no sótão 2 compartimentos e anexo ao quintal com um compartimento que servia de casa de banho;
f) No alçado lateral sul do prédio da Ré existe uma abertura que deita directamente para o telhado do Autor, por se achar na perpendicular e por cima deste, uma vez que o prédio da Ré é mais alto do que o prédio do Autor;
g) A abertura tem a forma de um rectângulo de 60 cm de altura e 80 cm de largura, e estava colocada a cerca de 1,50/1,60 cm de altura contada do nível do piso do 1.º andar;
h) A abertura era utilizada para arejamento e iluminação do interior do quarto, que não dispõe de qualquer outra forma de arejamento e iluminação natural e era provida de caixilhos de madeira e vidros, que abria para dentro e era desprovida de grades;
i) A Ré procedeu a obras para demolição e reconstrução do edifício referido em D);
j) A abertura no alçado sul referida em F) já existia no edifício referido em E), no mesmo sitio e com as mesmas dimensões e configuração;
k) A abertura no alçado sul referida em F) existia há 25 anos desde Outubro de 2004;
l) A Ré e os seus antepossuidores e donos utilizaram a abertura, tal como os seus anteriores proprietários e possuidores continuamente, dela retirando os seus frutos e utilidades pela mesma proporcionada;
m) A abertura nestas circunstâncias existiu com o conhecimento e à vista de toda a gente, sem oposição.
***
III. Nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3, e 690º, n.º 1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 660º do mesmo Código.
As questões a decidir resumem-se a saber:
- se é caso de alterar a matéria de facto considerada assente e as respostas aos quesitos 3º e 4º;
- se é caso de rectificar a resposta ao quesito 2º;
- se é de qualificar como janela ou como fresta irregular a abertura em causa nos autos;
- se se encontra constituída uma servidão de vistas ou qualquer outra servidão, por usucapião, e se a mesma se mantém após a demolição do edifício antigo.

*

IV. Das alíneas F), G) e H) dos factos assentes e da consideração de outros factos assentes:

1) Nos autos foram alegados factos – que não foram considerados assentes, nem alvo de quesitação em 1ª instância - e que, por acordo das partes e por documento, se encontram assentes – e como tal se considerarão -, a saber:
a. O imóvel descrito em B) encontra-se inscrito na CRP de Lagos a favor da ré pela Ap. 06/181196, por compra a Maria............... c.c. António .................; Maria do Amparo........... c.c. Maria Lopes.............; e Maria Júlia .............. c.c. José ......................
b. O edifício referido em E) foi demolido, tendo as obras de demolição tido início em final de Outubro de 2004.
c. As obras de reconstrução tiveram início em princípios de Novembro de 2004.
d. Em Junho de 2005 as obras já se encontravam terminadas na sua estrutura, apenas restando alguns acabamentos interiores.
*
2) É a seguinte a redacção dada às alíneas F), G) e H) dos factos assentes:
F) No alçado lateral sul do prédio da Ré existe uma abertura que deita directamente para o telhado do Autor, por se achar na perpendicular e por cima deste, uma vez que o prédio da Ré é mais alto do que o prédio do Autor;
G) A abertura tem a forma de um rectângulo de 60 cm de altura e 80cm de largura, e estava colocada a cerca de 1,50/1,60 cm de altura contado do nível do piso do 1ª andar.
H) A abertura era utilizada para arejamento e iluminação do interior do quarto, que não dispõe de qualquer outra forma de arejamento e iluminação natural e era provida de caixilhos de madeira e vidro, que abria para dentro e era desprovida de grades.
A matéria de facto levada a tais alíneas sofre de deficiências e foi, em parte, impugnada pelo autor na resposta à contestação.
Efectivamente, a forma verbal empregue na al. F) (“existe”) indica que a mesma se reporta ao prédio reconstruído (construído no local onde se encontrava implantado o antigo), enquanto na al. G), a qual se reporta à abertura referida em F), a forma verbal empregue (“estava”) inculca a ideia de que se reporta ao prédio antigo que foi demolido.
De sua vez na alínea H), a forma verbal empregue (“dispõe”) está igualmente incorrectamente utilizada, pois que na mesma alude-se à abertura antiga, a qual foi demolida.
Por outro lado, na al. G) consta que a abertura estava colocada a cerca de 1,50/1,60 cm de altura, sendo que, como se infere da fotografia junta aos autos pela ré, a referência a centímetros deve-se a manifesto lapso de escrita, tudo apontando no sentido de se pretender referir metros, o que é confirmado pelo próprio relatório “pericial” junto pelo autor.
Importa, pois, rectificar esse lapso.
Ademais, o autor, embora admita que no prédio antigo da ré existia uma abertura na parede sul, negou a constituição de uma servidão de vistas, tendo contestado as dimensões e características dessa abertura. O que o autor não impugnou foram as dimensões da abertura actualmente existente.
Por outro lado, o autor alegou que a abertura deita para o telhado do seu edifício, enquanto a ré alegou que deita directamente para um terraço (quintal).
Por este conjunto de razões altera-se a redacção das alíneas F) ,G) e H) e consideram-se assentes outros factos, a saber:
e. Antes da demolição existia na parede do edifício antigo, fachada virada a sul, uma abertura respeitante a um quarto (dormitório).
f. Essa parede confinava com o prédio do autor.
g. A referida abertura era utilizada para arejamento e iluminação do interior do quarto, que não dispunha de qualquer outra forma de arejamento e iluminação natural.
h. A abertura era provida de caixilhos de madeira e vidros, que abria para dentro e era desprovida de grades.
i. No edifício que foi construído no local onde se encontrava implantado o que foi demolido, existe igualmente no alçado sul, confinante com o prédio do autor, uma abertura, a qual se situa mais alto em relação ao edifício implantado nesse prédio.
j. Essa abertura está colocada a cerca de 1,50/1,60 m de altura, contado do nível do piso do 1º andar, e com a forma de um rectângulo, tendo 60 cm de altura e 80 cm de largura.
l. Tal abertura está provida de caixilhos de alumínio e vidros que permitem abrir a janela por dentro e permite a entrada de luz e ar.
*

V. Quanto à impugnação da matéria de facto fixada na 1ª instância:
O apelante impugnou as respostas aos quesitos 3º e 4º, considerados provados, propugnando que no quesito 3º e respectiva resposta estão plasmados conceitos de direito (“antepossuidores”, “donos”, “possuidores”, “continuamente”, “frutos” e “utilidades”), pelo que tem de se dar por não escrita aquela resposta, e que a resposta ao quesito 4º não está correctamente dada, atentos os depoimentos das testemunhas arroladas pela ré.

Tais quesitos tinham a formulação que se segue:
Quesito 3º - A R. e seus antepossuidores e donos sempre utilizaram a abertura, tal como os seus anteriores proprietários e possuidores continuadamente, dela retirando os seus frutos e utilidades pela mesma proporcionada?
Quesito 4º - A abertura nestas circunstâncias existiu com conhecimento e à vista de toda a gente, sem oposição?

Quanto ao quesito 3º:
Os factos, no domínio processual, abrangem as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas e das coisas, directamente captáveis pelas percepções do homem
Ora, no caso em análise a matéria da posse constitui uma das questões fundamentais em discussão nos autos, pelo que os vocábulos “antepossuidores” e “possuidores” integram matéria de direito.

Diferentemente se passam as coisas relativamente aos vocábulos “donos” e “proprietários”.
Não obstantes se tratarem de vocábulos que traduzem um conceito técnico-jurídico, a verdade é que no caso em análise não há verdadeira disputa sobre a problemática da titularidade do direito de propriedade, pelo que tal questão, no contexto dos autos, tem um significado de uso corrente, podendo considerar-se como um facto.

No que toca à expressão “continuadamente”, a mesma constitui um vocábulo utilizados na linguagem corrente, apreensível pelo cidadão comum, tendo por significado o que não foi interrompido, se prolongou, o que durou sem paragem ou interrupção.
Situa-se, por isso, no puro domínio dos factos.

Quanto ao vocábulo “frutos”, na linguagem corrente tem por significado o que a terra produz, produção vegetal.
Ora, manifestamente não foi com esse sentido que o facto foi alegado nos autos.
Assim, tal alegação não pode deixar de ser considerada conclusiva e consubstanciar um conceito de direito.

No que concerne ao vocábulo “utilidades”, na linguagem comum, o mesmo significa serventia, proveito, benefício que a coisa proporciona.
Ora, o alegado pela ré foi no sentido de que esta e os anteriores proprietários sempre utilizaram a abertura para a entrada de luz e ar.
Com esse sentido, o vocábulo “utilidades” situa-se no puro domínio dos factos.

Por outro lado, dos depoimentos das testemunhas Maria Virgínia, Maria Júlia, (anteriores proprietárias do prédio da ré, em causa nos autos, onde residiram) e José Francisco (marido desta), decorreu, com toda a clareza, que a abertura era utilizada para a entrada de luz e ar.

Deste modo, altera-se a resposta ao quesito 3º, dando-se por provado que a ré e os anteriores proprietários do imóvel antigo referido em E) utilizaram a abertura, continuadamente, para arejamento e iluminação do interior do quarto, conforme al. g) dos factos por nós considerados assentes.

Quanto ao quesito 4º:
Nesta matéria importa liminarmente frisar que tal quesito não configura a alegação de matéria de direito, mas de meros factos apreensíveis pelo homem, e que dos depoimentos das 3 testemunhas acima referenciadas, conjugados com as regras de experiência comum, deriva que a abertura referida na resposta ao quesito 3º sempre existiu com conhecimento e à vista de toda a gente, sem oposição. Esta oposição do autor só ocorreu relativamente à abertura existente após a reconstrução do edifício e relativamente à “nova” abertura, sendo que na contestação a ré reconheceu que o autor se opôs a essa abertura.
Efectivamente, flui com clareza dos citados três depoimentos que a abertura em apreço era avistável do edifício do autor, situando-se essas divergências apenas quanto ao local exacto da casa deste em que tal ocorria (a testemunha Maria Júlia referiu que a janela era avistável de um certo sítio da rua e do quintal do prédio do autor; a testemunha José Francisco, referiu que do quintal se via a abertura; a testemunha Maria Virgínia, declarou que a abertura se via de umas escadas existentes no prédio do autor, mas não da rua).
Seja como for, situando-se a abertura num ponto mais elevado em relação à casa do autor, a mesma era necessariamente avistável, mais não fosse do telhado da casa deste.
Concorda-se, por isso, com o juízo de valoração da prova efectuado em 1ª instância, considerando-se provado tal facto.

Quanto ao quesito 2º:
Na resposta ao referido quesito deu-se por provado que a primitiva abertura existia há 25 anos desde Outubro de 2004.
Este quesito e respectiva resposta, por incorrecta redacção, enfermam de falta de clareza, pois que, como é bom de ver, desde Outubro de 2004 não decorreram 25 anos.
O que, manifestamente, se quis dar como provado, e foi alegado, foi que a dita abertura existia desde há 25 anos, por referência a Outubro de 2004 (data da demolição do edifício).
Rectifica-se, por isso, a aludida resposta no sentido apontado.

VI. Em função das alterações supra referenciadas, são os seguintes os factos provados:
1. O Autor é legitimo proprietário e possuidor do prédio urbano sito na Travessa ..................., que é composto de casas térreas com 2 vãos e 4 divisões, com a área coberta de 46 m2 e quintal com a área descoberta de 6 m2, inscrito na matriz predial da freguesia de Santa Maria, concelho de Lagos sob o n.º 423e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º 02063/230695 – Al. A) dos factos assentes;
2. A Ré é legítima proprietária e possuidora do prédio urbano sito na Travessa ........................... que confina a sul com o do Autor, inscrito na matriz predial da Freguesia de Santa Maria, concelho de Lagos sob o n.º 1235 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º 02187/181196, adquirido por escritura pública de compra e venda em 1996 – Al. B) dos factos assentes;
3. O imóvel referido em A) foi comprado pelo Autor a José .................., por escritura pública datada de 27 de Julho de 1995 – Al. C) dos factos assentes;
4. O imóvel descrito em B) encontra-se inscrito na CRP de Lagos a favor da ré pela Ap. 06/181196, por compra a Maria Virgínia .............. c.c. António ................; Maria do Amparo ................. c.c. Maria Lopes .............; e Maria Júlia ................. c.c. José ......................
5. No prédio da Ré existia um edifício destinado a habitação composto de r/c e sótão, tendo no r/c 4 compartimentos e cozinha e no sótão 2 compartimentos e anexo ao quintal com um compartimento que servia de casa de banho – Al. E) dos factos assentes;
6. A Ré procedeu a obras para demolição e reconstrução do edifício referido em D) – Al I) dos factos assentes;
7. O edifício referido em E) foi demolido, tendo as obras de demolição tido início em final de Outubro de 2004.
8. As obras de reconstrução tiveram início em princípios de Novembro de 2004.
9. A Ré realizou obras de reconstrução do seu prédio, terminadas em Setembro de 2005 – Al. D) dos factos assentes;
10. Em Junho de 2005 as obras já se encontravam terminadas na sua estrutura, apenas restando alguns acabamentos interiores.
11. Antes da demolição existia na parede do edifício antigo, fachada virada a sul, uma abertura respeitante a um quarto (dormitório).
12. Essa parede confinava com o prédio do autor.
13. A referida abertura era utilizada para arejamento e iluminação do interior do quarto, que não dispunha de qualquer outra forma de arejamento e iluminação natural.
14. A abertura era provida de caixilhos de madeira e vidros, que abria para dentro e era desprovida de grades.
15. No edifício que foi construído no local onde se encontrava implantado o que foi demolido, existe igualmente no alçado sul, confinante com o prédio do autor, uma abertura, a qual se situa mais alto em relação ao edifício implantado nesse prédio.
16. Essa abertura está colocada a cerca de 1,50/1,60 m de altura, contado do nível do piso do 1º andar, e com a forma de um rectângulo, tendo 60 cm de altura e 80 cm de largura.
17. Tal abertura está provida de caixilhos de alumínio e vidros que permitem abrir a janela por dentro e permite a entrada de luz e ar.
18. A abertura no alçado sul referida em 11) já existia no edifício referido em E), no mesmo sitio e com as mesmas dimensões e configuração;
19. Essa abertura existia há 25 anos, por referência a Outubro de 2004 – resposta ao quesito 2º;
20. A ré e os anteriores proprietários do imóvel antigo referido em E) utilizaram a referida abertura, continuadamente, para arejamento e iluminação do interior do quarto – resposta ao quesito 3º;
21. A abertura nestas circunstâncias existiu com o conhecimento e à vista de toda a gente, sem oposição – resposta ao quesito 4º.
***

VII. Da questão de mérito:
A questão que desde logo se coloca é a da classificação da abertura que existia, antes da sua demolição, na parede sul do edifício implantado no prédio de que a ré é proprietária (esta beneficia da presunção do registo, nos termos do art. 7º do CRP), que confinava com o do autor, que aquela defende tratar-se de uma janela e que este sustenta dever considerar-se uma fresta.
Com efeito, o que está em causa é apurar se antes daquela demolição se constituiu ou não a servidão de vistas, pois que após tal demolição e construção de novo edifício o autor opôs-se à manutenção da “nova” abertura, como a própria ré reconhece na contestação.

A lei não define o que sejam janelas, nem o que sejam frestas, mas estabelece regimes diferentes relativamente às janelas, por um lado, e às frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, por outro, como flui do disposto nos artigos 1360º, n.º 1, 1362º, n.ºs 1 e 2 e 1363º do Código Civil.
Assim, preceitua o n.º 1, do art. 1360º, do C.C.:
“O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio”.
E o art. 1362º:
“1. A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição de uma servidão de vistas por usucapião.
2. Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no n.º 1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras”.
E o art. 1363º:
“1. Não se consideram abrangidos pelas restrições da lei as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas.
2. As frestas, seteiras ou óculos para luz e ar devem, todavia, situar-se pelo menos a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não devem ter, numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros; a altura de um metro e oitenta centímetros respeita a ambos os lados da parede ou muro onde essas aberturas se encontram”.
Como a abertura em causa se situava a uma altura inferior a 1,80m e tinha dimensões superiores a 15 centímetros, é manifesto que está fora de causa a qualificação da mesma como fresta regular.
A questão está, porém, em saber se se tratava de uma janela ou de uma fresta irregular.

Ensina o Prof. Henrique Mesquita (in RLJ 128 pag. 149 e segs.) que as “janelas e as frestas são aberturas feitas nas paredes dos edifícios, mas que se distinguem não só pelas respectivas dimensões, como pelo fim a que se destinam.
As frestas são aberturas estreitas, que têm apenas por função a entrada de luz e ar.
As janelas, além de serem mais amplas do que as frestas, dispõem, de um parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e desfrutar comodamente as vistas que tais aberturas proporcionam, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo.
No nosso direito antigo (…) considerava-se janela toda a abertura, deixada na parede de um edifício, por onde coubesse uma cabeça humana.
Mas este critério, que foi formulado para edificações que apresentavam com frequência, em virtude das técnicas de construção ou dos materiais utilizados, aberturas (janelas) de dimensões muito exíguas, não parece hoje o mais adequado”.
O conceito de janela estabelecido no n.º 1, do art. 1360º adequa-se à dupla finalidade da restrição: evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto de indiscrição de estranhos e impedir que ele seja facilmente devassado com o arremesso de objectos.
Assim, as janelas são apenas as aberturas que permitem não só a entrada de luz e ar, mas ainda a devassa do prédio vizinho, por permitirem o debruçar sobre o prédio alheio, olhando quer em frente, quer para os lados, ou para cima e para baixo - Ac STJ 1-04-2008, relatado pelo Cons. João Camilo.
Com efeito, o objecto da restrição legal não é propriamente a vista sobre o prédio vizinho, pois que a distância de metro e meio também não impede as vistas e do solo o proprietário também pode olhar para o prédio vizinho.
As razões são outras. O que a lei pretende impedir é que o prédio possa ser devassado e tal ocorrerá sempre que sobre ele se puderem debruçar os vizinhos.
Daí que sustente Henrique Mesquita que no “conceito de janela devem incluir-se apenas as aberturas através das quais possa projectar-se a parte superior do corpo humano e em cujo parapeito as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se, para descansar, para conversar com alguém que esteja do lado de fora ou para disfrutar as vistas” (sublinhado nosso) – vide estudo citado, pag. 152.

Por outro lado, só as janelas e não as frestas irregulares permitem a constituição, por usucapião, da servidão de vistas.
A não ser assim, os proprietários confinantes sentiriam a necessidade de reagir imediatamente contra toda a violação do regime legal, por mais insignificante que ela fosse. Fomentar-se-ia, assim, um espírito de intolerância, que, além de originar outros inconvenientes, acabaria por redundar em prejuízo dos proprietários das construções, que deixariam de poder contar, relativamente às medidas e à localização das aberturas de tolerância, com a complacência dos vizinhos e teriam de corrigir qualquer pequeno desvio em que, mesmo de boa fé e sem intenção de violar a lei, porventura incorressem.
As frestas irregulares podem originar a aquisição, por via possessória, de uma servidão predial, que confere ao respectivo titular o direito de manter tais aberturas em condições irregulares, sem que o vizinho o possa compelir a torná-las com as dimensões legais, mas não adquire o direito de servidão de vistas que impeça o vizinho de as tapar com a construção que leve a cabo no seu prédio – cfr. Henrique Mesquita, in estudo citado, pag. 151 e segs..

Enunciadas estas noções, e retomando ao caso em apreciação, temos que a abertura que existia no edifício da ré que foi demolido será de qualificar como uma janela se se concluir que a mesma permitia disfrutar de vistas e o devassamento do prédio do autor.
Nesta matéria apurou-se que a abertura se situava a uma altura entre 1,50 e 1,60m do nível do piso do 1º andar.
Sendo assim, situando-se a abertura a altura superior à cintura humana, a mesma não permitia (potencialmente, entenda-se) que se projectasse a parte superior do corpo humano sobre o prédio do autor, nem que as pessoas pudessem apoiar-se em tal abertura para descansar falar com alguém que estivesse do lado de fora ou para disfrutar as vistas ou seja, não permitia o devassamento deste prédio através da referida abertura.
Que assim é deriva do facto da lei, no caso das varandas, terraços, eirados e obras semelhantes, apenas mandar atender aos prejuízos para o prédio vizinho se existir um parapeito de altura inferior a metro e meio, porque neste caso, tal como na janela, a pessoa pode debruçar-se ocupando parcialmente o prédio alheio e arremessar com facilidade objectos para dentro deste – vide Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume III, 2ª edição, pags. 215, 219 e 223.
Deste modo, conclui-se que a abertura que existia no edifício que foi demolido não se pode qualificar como janela, mas sim como fresta irregular.

Tal fresta perdurou durante, pelo menos, 25 anos, por referência a Outubro de 2004, e foi utilizada pela ré e os anteriores proprietários do imóvel antigo, continuadamente, para arejamento e iluminação do interior do quarto, o que ocorreu com o conhecimento e à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém.
Assim, por via possessória, constitui-se uma servidão predial (que não de vistas) por usucapião, que confere ao seu titular (réu) o direito de manter tal abertura em condições irregulares, deixando o proprietário do prédio vizinho (autor), sobre o qual recai o encargo, de poder exigir, através de uma acção negatória, que a fresta irregular seja modificada e harmonizada com a lei – cfr. arts. 1251º, 1254º, 1256º, 1261º, 1262º, 1287º, 1288º, 1296º, 1543º, 1544º e 1547º do C. Civil.

Por outro lado, na linha do sustentado na sentença recorrida, e contrariamente ao propugnado pelo apelante, destruída e reconstruída a parede, o proprietário dominante pode nela abrir de novo a fresta, mantendo-se a servidão, desde que a abertura mantenha a mesma localização e dimensões anteriores – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela. ob cit. pag. 220; Ac. RC de 29-02-2000, in CJ. 2000 tomo I pag. 33.
É esse, precisamente, o caso dos autos, pois que se provou que a nova abertura se encontra implantada no mesmo sítio e tem as mesmas dimensões e configuração.
Deste modo, mantém-se a aludida servidão.
Porém, não se tendo constituído uma servidão de vistas, o autor mantém o direito de, a todo o tempo, construir no seu prédio, ainda que vede tal abertura – cfr. Henrique Mesquita, estudo citado, pag. 153.

Do que se deixa dito decorre a improcedência do pedido formulado pelo autor, atenta a constituição da servidão com o conteúdo apontado, bem como a improcedência do pedido reconvencional no que tange à constituição de uma servidão de vistas.
Procede, por isso, em parte o recurso interposto nos autos.
*
VIII. Pelo exposto, decide-se:

1. Julgar a apelação parcialmente procedente, e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida na parte em que se declarou constituída uma servidão de vistas a favor do prédio do réu, mantendo-se no mais, a decisão recorrida, se bem que, nesta parte, com base em fundamentos substancialmente diferentes dos nela aduzidos;
2. Custas devidas em 1ª instância: as da acção ficam a cargo do autor e as da reconvenção ficam a cargo do autor e de réu, na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente;
3. Custas devidas nesta Relação pelo apelante e pelo apelado, na proporção de metade cada um;
4. Notifique.

Évora, 18 de Setembro de 2008

--------------------------------------
(Manuel Marques - Relator)

--------------------------------------
(Pires Robalo - 1º Adjunto)

---------------------------------------
(Almeida Simões - 2º Adjunto)