I.RELATÓRIO
1. BB, réu nos autos à margem identificados, nos quais figura como autora AA, veio interpor recurso da sentença que declarou o divórcio entre ambos e, assim, dissolvido o respetivo casamento celebrado em 11 de Outubro de 2018, formulando, na sua apelação, as seguintes conclusões:
1. A competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer de determinado litígio de natureza laboral só se afere em função do artigo 10.º do CT, desde que não seja aplicável ao caso convenção de direito internacional.
2. A incompetência absoluta decorrente da violação das regras de competência internacional [art.º 96.º al. a), do CPC] é uma excepção dilatória que o Tribunal aprecia oficiosamente, devendo abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância [art.º 278.º 1, al. a), do CPC)].
Ora,
3. Cabe aos tribunais portugueses aferir da sua própria competência internacional.
Com efeito,
4. As normas do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27-11-2003, regulam a competência de execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, aplicáveis aos litígios emergentes de situações transnacionais.
5. Segundo o art. 3.º deste diploma, são sete os critérios gerais que definem a competência internacional de um Estado-Membro em questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento:
a. a residência habitual dos cônjuges,
b. a última residência habitual dos cônjuges na medida em que um deles ainda aí resida,
c. a residência habitual do requerido,
d. a residência habitual de qualquer dos cônjuges, em caso de pedido conjunto,
e. a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido,
f. a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido, pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado - Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu «domicílio».
g. o da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do «domicílio» comum.
6. Entendemos o Recorrente que a aplicação das situações previstas supra não é aleatória, mas antes subsidiária.
7. Quis o legislador fixar uma ordem definidora dos elementos que deverão determinar o tribunal competente qual o Estado competente para apreciar uma acção de divórcio.
8. Caso assim não fosse, tal facto determinaria uma enorme incerteza sobre os cônjuges.
Vejamos in caso,
9. O Recorrente tem nacionalidade indiana.
10. A Recorrida tem nacionalidade portuguesa.
11. As partes casaram-se na Dinamarca.
12. O Recorrente reside em Inglaterra.
13. A Recorrida reside em Portugal.
14. O Recorrente desde sempre assumiu que a sua esposa regressaria a Inglaterra, despois de um desentendimento que assume ter ocorrido na relação.
15. Desde sempre assumiu que a sua esposa regressaria a Inglaterra, depois de um desentendimento que assume ter ocorrido na relação.
16. Porque a Recorrida reside em Portugal à mais de mais de 6 meses, fica a Recorrida encabeçada no direito de optar? Não nos parece que esta seja a solução, pois, como se referiu, o Recorrente ainda hoje vive na esperança do regresso da Recorrida.
17. Estamos, pois, em querer que a fixação dos critérios terá de ser analisada de forma subsidiária.
18. Pretende assim o Recorrente ver aplicado corretamente o Art 3.º do citado diploma.
19. É um facto que no presente momento as Partes não têm uma residência habitual;
20. Resulta claramente da audiência de que a Recorrida tem residência em Portugal e o Recorrente tem residência em Inglaterra.
21. É também um facto de que nenhum dos cônjuges reside na morada que haviam residido.
22. Nessa medida, não se poderá aplicar as primeiras duas alíneas do Art. 3.º.
23. Deverá pois ser aplicado o terceiro critério para determinar a competência do estado para apreciar o divórcio, designadamente o estado da residência habitual do requerido,
24. Leia-se, Tribunais Ingleses.
25. Só assim se poderá assegurar que as legítimas expectativas do Recorrente não sejam defraudadas.
Pelo exposto, deverão V Ex.ªs reconhecer oficiosamente a incompetência absoluta dos tribunais portugueses, e em consequência, absolver o Recorrente das presentes autos.
Nestes termos, e nos melhores de direito, e com o sempre mui douto suprimento de vossas excelências, deverá ser concedido integral provimento ao presente recurso de acordo com as alegações e conclusões expeditas, fazendo Vossas Excelências desta forma, e como sempre, a acostumada JUSTIÇA!”.
2. Não houve contra-alegações.
3. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se apenas à questão de saber se o Tribunal “ a quo” é internacionalmente competente para apreciar a presente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge.
II- FUNDAMENTAÇÃO
4. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida:
1- No dia 11 de outubro de 2018, na Dinamarca, AA e BB casaram um com o outro, mediante celebração de casamento civil sob o regime imperativo da separação de bens.
2- Esse casamento está registado no assento de casamento n.º … do ano 2019 da Conservatória do Registo Civil de ….
3- AA tem nacionalidade portuguesa.
4- BB tem nacionalidade indiana.
5- AA reside em Portugal.
6- BB reside em Inglaterra, Reino Unido.
7- Após a data referida em 1 Autora e Réu encontram-se várias vezes, mas não residiram juntos na mesma casa desde, pelo menos, final de janeiro de 2019.
8- E não pernoitaram juntos desde essa data.
9- Não tomaram refeições juntos desde essa data.
10- Não mantêm relação de convívio desde essa data, embora tenham mantido várias comunicações entre si, à distância.
11- Desde março de 2019 que Autora vive com CC, juntos na mesma casa, embora desde então tenham residido sucessivamente em várias casas.
12- A Autora e CC partilham, desde o referido mês de março, refeições, cama, vida quotidiana e relação afetiva.
13- A Autora e CC têm dois filhos comuns: DD, nascido em …/05/2020, e EE, nascido em …/11/2021.
14- A Autora tem o propósito de não viver com o Réu e de viver com CC.
15- O Réu reside e trabalha em Inglaterra, Reino Unido, desde data não apurada posterior a outubro de 2018.
16- O Réu pretende manter-se casado com a Autora e quer viver quotidianamente com esta.
17- A petição inicial foi apresentada em juízo em 1 de junho de 2022.
A2) FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provaram quaisquer outros factos, designadamente e no essencial a saber:
1- A Autora e o Réu não vivem juntos por desentendimento entre ambos.
2- Até agosto de 2020 e após a data referida no ponto 1 dos factos provados a Autora e o Réu residiram juntos na mesma casa.
3- O Réu foi residir e trabalhar para Inglaterra por, então, Autora e Réu terem dificuldades financeiras.
4- Autora e Réu acordaram, em 2022, não viver juntos com intenção de, no futuro, voltarem a viver juntos e terem melhor relação entre ambos.
5- O Réu continua a tratar a Autora como sua esposa perante terceiros.
2. Do mérito do recurso
Inconformado com o desfecho da acção, enveredou o réu, ora apelante, por suscitar em sede de recurso [1]a incompetência internacional do Tribunal para conhecer do pedido de divórcio intentado pelo seu cônjuge.
Em vão, é certo, já que o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, ainda em vigor à data da propositura da acção[2], não dá qualquer acolhimento à sua pretensão.
Com efeito, apesar de o réu, ora apelante, ser de nacionalidade indiana e residir em Inglaterra, o certo é que a Autora é portuguesa e reside em Portugal desde, pelo menos, Março de 2019 (cfr. supra 4.3., 4.5.e 4.11).
O citado Regulamento (conhecido como Bruxelas II bis) uniformiza no território da União Europeia as regras de competência internacional e as normas sobre o reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, fazendo parte de um conjunto de instrumentos legislativos da União em matéria de relações privadas internacionais de natureza familiar e sucessória.
No que concerne à competência em “questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento” estabelece o nº1 do art.º 3º do dito Regulamento que a mesma se defere aos tribunais do Estado-Membro:
“a) Em cujo território se situe:
- a residência habitual dos cônjuges, ou
- a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou
- a residência habitual do requerido, ou
- em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu 'domicílio';
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do 'domicílio' comum.”.
Tem-se entendido que “nenhum dos sete critérios atributivos de competência internacional prevalece sobre os restantes, não havendo, portanto, uma hierarquização dos critérios. Todos os critérios são colocados a um nível paritário e a paridade entre eles permite qualificá-los como critérios alternativos, no sentido em que são de aplicação concorrente, isto é, um mesmo divórcio transnacional pode preencher dois ou mais dos critérios de competência internacional previstos no citado art. 3º , podendo, assim, os tribunais de dois ou mais Estados-Membros ser internacionalmente competentes para julgar o litígio”.[3]
Ora, não existindo nenhuma hierarquia e, por conseguinte, nenhuma ordem de precedência entre os critérios atributivos de competência internacional em matéria matrimonial previstos no art. 3º, nº1, als. a) e b) do Regulamento nº 2201/2003, temos que no caso se mostra preenchido, pelo menos, um deles : o atinente à residência habitual da Autora em território nacional nos seis meses anteriores à data do pedido conjugado com a circunstância de a mesma ter nacionalidade Portuguesa.
De acordo com o princípio de tratamento paritário de todos estes critérios atributivos de competência internacional, estava, pois, deferido à autora optar por interpor a acção de divórcio num Tribunal Português que assim era, e é, como logo se antecipou, internacionalmente competente para conhecer do pedido pela mesma formulado.
III. DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Évora, 28 de Setembro de 2023
Maria João Sousa e Faro ( relatora)
José António Moita
Albertina Pedroso
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[1] Este caso de incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes ou suscitada oficiosamente pelo Tribunal enquanto a decisão final relativa ao mérito da causa não transitar em julgado. “Regime que assim diverge da regra preclusiva do art.º 573º, nº2 ( princípio da concentração da defesa na contestação ) levando, por exemplo, a que seja admissível a apreciação ou mesmo a invocação da excepção dilatória em fase de recurso (Assim, A.Geraldes, P.Pimenta e L.F.Sousa in CPC anotado, vol.I, 3ª ed.pag.138.)
[2] Que foi substituído pelo Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25.06 nas acções entradas em juízo a partir de 01.08.2022, cfr, art.º 100º, nº1.is
[3] Cfr. Acórdão do STJ de 7.10.2020 (Rosa Tching).