Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | FERNANDO BENTO | ||
Descritores: | DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO RELAÇÃO DE BENS COMUNS PARTILHA | ||
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Data do Acordão: | 03/10/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO CÍVEL | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO | ||
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Sumário: | I - A relação especificada dos bens comuns com indicação dos respectivos valores é um dos documentos que deve instruir o requerimento de divórcio por mútuo consentimento e não implica, em si, qualquer acordo de partilha, no sentido de divisão desses bens entre os futuros ex-cônjuges. II - O património conjugal constitui uma propriedade colectiva que pertence em comum aos cônjuges mas sem se repartir entre eles por quotas ideais, como acontece na compropriedade. III - O meio processual adequado para a divisão dos bens comuns subsequente a divórcio é o inventário e não a acção de divisão de coisa comum. IV - O Tribunal competente para tal inventário é o Tribunal de Família e Menores, ainda que o divórcio por mútuo consentimento tenha sido decretado na Conservatória do Registo Civil. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA * RELATÓRIO Decretado na Conservatória do Registo Civil de … o divórcio por mútuo consentimento do casal formado por “A” e “B” e transitada em julgado tal decisão, veio esta instaurar acção especial de divisão de coisa comum com vista à divisão do único imóvel relacionado como bem comum no referido processo de divórcio, a saber, o direito de superfície do prédio urbano constituído em propriedade horizontal correspondente ao 2° andar, fracção autónoma "C", destinada a habitação, sito na Rua …, nº …, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 00064 com o valor patrimonial de € 25.000 euros. O Réu contestou, designadamente por excepção dilatória de nulidade total do processo, por erro na respectiva forma, já que o meio processual adequado deveria ser o inventário para partilha de bens e consequente incompetência material do Tribunal, já que o Tribunal competente deveria ser o de Família e Menores. A Autora replicou. O Mmo Juiz, porém, acolhendo a defesa do Réu, julgou procedente as excepções dilatórias de nulidade total do processo por erro na escolha da respectiva forma e de incompetência material do Tribunal Cível e absolveu o Réu da instância. Inconformada, apelou a Autora, pugnando pela revogação da decisão recorrida em alegações que finaliza com a seguinte síntese conclusiva: 1. O acordo de relacionamento e divisão de bens comuns do casal, junto em processo de divórcio por mútuo consentimento, ocorrido na Conservatória do Registo Civil de …, é de molde a configurar uma verdadeira partilha. 2. Tendo havido partilha dos bens comuns do casal e tendo subsistido, mediante indicação da respectiva quota-parte, a titularidade, em comum, por ambos os ex-cônjuges, de um direito de superfície, sobre uma Facção urbana, não pode, agora, para efeitos de "liquidação" do seu valor, novamente, exigir-se uma nova partilha judicial. 3. Com o divórcio os efeitos patrimoniais retrotraem-se à data da proposição da presente acção, de tal modo que já não existem propriedade em comunhão conjugal, mas, pelo contrário, propriedade em comum ou, melhor, compropriedade relativamente ao direito de superfície cuja quota-parte foi fixada em 50% para cada um dos comproprietários (autor e Réu). 4. A única forma de pôr termo à comunhão conjugal de bens, após o termo das relações patrimoniais dos cônjuges, por divórcio, é a da partilha (ex vi processo especial de inventário) … nos casos em que ela já não consta de acordo - (artigo 1689, n° 1, do Código Civil). Nesses casos, o meio próprio para pôr termo à indivisão - figura distinta da comunhão - é a acção de divisão de coisa comum (artigos 1412. e 1.413. o do Código Civil e artigos 1 052. o e seguintes do CPC). O que significa que se pode obter a identificação da quota-ideal respectiva, relativa a direito de superfície, detido em compropriedade, no âmbito de uma acção especial de divisão de coisa comum. 5. Pode e deve dar-se seguimento a uma acção de divisão de coisa comum intentada por ex-cônjuge, contra o outro, relativamente a um antigo bem comum do casal que já havia sido partilhado em quotas ideais iguais. 6. Sempre que a comunhão conjugal termina e se dá, por efeito de partilha, a aquisição, por duas pessoas que já foram casadas entre si, de um único direito de superfície, então tal somente poderá significar que ambos detêm uma coisa comum, em regime de compropriedade, de tal modo que a acção própria para é a acção de processo de divisão de coisa comum dos artigos 1052. e seguinte do CPC e não a do inventário para pôr termo à comunhão conjugal, já que esta última encontra-se reservada para todos os outros bens adquiridos, na pendência do matrimónio, até à sua dissolução, por casamento, mas que não, hajam sido partilhados. 7. Os factos dados como provados são suficientes para se concluir que Autor e Réu já haviam firmado a partilha do direito de superfície, sobre o prédio urbano constituído no regime de propriedade horizontal, respeitante ao 2.º andar, Fracção Autónoma "C," destinada a habitação composto por três divisões, cozinha, dispensa, corredor, vestíbulo e direito ao uso exclusivo do terraço que faz parte do prédio urbano sito na Rua …, nº 22, …, freguesia e concelho de …, inscrito na matriz do registo predial sob o n° 12837, melhor descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o n° 00064. 8. Tendo já sido partilhado o bem comum do casal, nas respectivas proporções de 50%, a presente acção de divisão de coisa comum é a forma de processo adequada à efectiva concretização daquela primeira "divisão ". 9. Tendo havido partilha dos bens comuns do casal e tendo ocorrido a … referida dissolução, não subsiste qualquer comunhão conjugal de natureza patrimonial, a que haja de pôr termo, por via de processo de inventário,' por não ser o mesmo o adequado e não existirem bens a partilha, já que a divisão ocorreu em percentagens que urge agora identificar patrimonialmente e em sede própria do exercício do referido direito de superfície mediante identificação da quota-parte sobre a qual incidirão os poderes da Autora, sobre a referida fracção na qual incide o direito de superfície em conflito no presente pleito. 10. Tratando-se de divisão de coisa comum, não se verifica qualquer erro na forma do processo, nem pode laçar-se mão de qualquer processo especial de inventário, por falecer o contexto legal de tal forma processual. 11. Contrariamente ao que se refere na sentença, não se encontra, presentemente, em vigor o disposto no artigo 81.º, alínea c), da LOFTJ (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro onde se dispunha que competia aos Tribunais de Família preparar e julgar inventários requeridos na sequência de acções de separação de preparar e julgar inventários requeridos na sequência de acções de separação de pessoas e bens e de divórcio, bem como os procedimentos cautelares com aquelas relacionadas. De facto, desde 1 de Janeiro de 2009, por força do disposto no artigo 187º e 186º alínea c), tal normativo foi revogado pela Lei n° 52/2008,de 28 de Agosto (que aprova a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), de tal modo que do artigo 114.°, deste último diploma, já não se pode retirar a conclusão ínsita na presente sentença. Conclui, pedindo a procedência do recurso. Não foram apresentadas contra-alegações. Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação onde, após a distribuição e o exame preliminar, foram corridos os vistos e inscrito o processo em tabela de julgamento. FUNDAMENTAÇÃO Como se depreende das conclusões que supra se transcreveram, o objecto do presente recurso consiste em determinar se o relacionamento de bens comuns para efeitos de divórcio por mútuo consentimento se configura como partilha e se o divórcio por mútuo consentimento converte a comunhão conjugal em compropriedade de quotas partes iguais. Sustenta a recorrente que o prévio relacionamento de bens comuns exigido para o divórcio por mútuo consentimento configura uma partilha desses bens. Não é verdade. A relação especificada dos bens comuns com indicação dos respectivos valores é um dos documentos que deve instruir o requerimento de divórcio por mútuo consentimento (art. 1419° nº 1- b) CPC). Não implica em si qualquer acordo de partilha, no sentido de divisão desses bens entre os futuros ex-cônjuges. As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam pelo divórcio (art. 1688° CC). E cessando essas relações patrimoniais, os cônjuges recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património, sem prejuízo de, havendo passivo a liquidar, serem pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum e só depois as restantes e de os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro serem pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum (art. 1689° n° 1, 2 e 3 CC). Assim, decretado o divórcio, de duas uma: ou os ex-cônjuges pretendem manter a indivisão patrimonial ou não. Nesta hipótese - não pretenderem continuar na indivisão - de duas uma: ou estão de acordo quanto ao modo de fazer a divisão ou não. Já se disse que o acordo quanto aos bens comuns e respectivos valores exigido para o prosseguimento do processo de divórcio por mútuo consentimento não representa qualquer acordo de partilha desses bens. Então se estiverem de acordo quanto ao modo de fazer a partilha podem fazê-la extrajudicialmente, através de escritura pública (no caso de, entre os bens comuns, se incluírem imóveis - art. 89° -p) do Cód. Notariado). No caso inverso - ausência de acordo - terão de recorrer a tribunal. Pergunta-se: qual o meio processual que deverão utilizar? A divisão de coisa comum - como pretende a recorrente - ou o processo de inventário especial? A resposta a esta questão está contidas no art. 1689° CC, do qual se depreende que, com a cessação das relações patrimoniais dos cônjuges, não está em causa apenas uma divisão dos bens comuns, mas também a liquidação das responsabilidades mútuas bem como das dívidas do casal, quer as comunicáveis, quer as incomunicáveis. Assim, na comunhão conjugal, podem existir situações jurídicas activas e situações jurídicas passivas. Se os bens comuns constituem uma massa patrimonial que, como se depreende do art. 1689° citado, está especialmente afectada à satisfação das dívidas conjugais e que, por isso, goza de certo grau de autonomia, e se a respectiva titularidade pertence aos cônjuges - ou, decretado o divórcio, aos ex-cônjuges - ocorre perguntar qual a natureza dessa massa: compropriedade ou património colectivo. O entendimento dominante é o de que o património conjugal constitui uma propriedade colectiva que pertence em comum aos cônjuges mas sem se repartir entre eles por quotas ideais, como acontece na compropriedade. Com efeito, nesta última, o direito de cada um dos comproprietários exprime-se por uma quota qualitativamente igual às demais mas que pode ser quantitativamente diferente (art. 1403° nº1 e 2 e 1408° CC). Diversamente, na comunhão conjugal, o direito dos respectivos membros não incide directamente sobre cada um dos elementos que constitui o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário; logo, a qualquer daqueles membros, individualmente considerados, não pertencem direitos específicos (designadamente uma quota) sobre cada um dois bens que integram o património global, não lhes sendo lícito, por conseguinte dispor desses bens ou onerá-los (Cfr. Pires de Lima-A. Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 1984, p. 347. s). Na comunhão conjugal há, pois, uma comunhão sem quotas: os respectivos titulares são sujeitos de um único direito e de um direito uno que não comporta a sua divisão nem mesmo ideal. A propósito, escrevia o Prof. A. Varela: «Não há, de facto, identidade nem analogia entre o regime dos bens comuns, em matéria de casamento, e o regime dos bens em compropriedade. Na compropriedade, como está em causa o simples interesse individual dos comproprietários e como a contitularidade dos direitos reais não corresponde, segundo os critérios da lei, à melhor forma de exploração económica dos bens, qualquer dos contitulares pode, a todo o tempo, exigir a divisão da coisa comum, salvo se houver cláusula de indivisão (art. 1412). (...) Dos bens comuns, pelo contrário, nenhum dos cônjuges pode, em princípio, requerer a divisão. E a comunhão mantém-se, por imperativo da lei, enquanto persistir a sociedade conjugal, a cuja sustentação económica os bens comuns se encontram adstritos (art. 1689, 1). Por outro lado, cada comproprietário pode dispor livremente da quota que representa a medida da sua participação no direito comum. (...) Quanto aos cônjuges, nenhum deles pode alienar ou onerar bens determinados, nem parte especificada de qualquer dos bens comuns, nem dispor sequer de qualquer quota ideal de participação no direito comum. (...) Por virtude da diferença intrínseca entre os dois institutos, expressivamente retratada nas soluções que acabam de ser referidas, se afirma na doutrina que os bens comuns dos cônjuges constituem objecto, não duma relação de compropriedade, mas duma propriedade colectiva. Propriedade colectiva a que os autores alemães, reconhecendo o seu carácter específico desde há mais de um século, dão a designação de propriedade de mão comum (zur gesamten Hand). Sujeitos dessa propriedade colectiva são ambos os cônjuges, sem que seja correcto falar, enquanto persiste a comunhão, numa divisão de quotas entre eles. Na propriedade colectiva há contitularidade de duas (ou mais) pessoas num único direito, tal como na compropriedade (art. 1403); mas, além de conter um único direito, na propriedade colectiva há ainda um direito uno, enquanto na compropriedade há um aglomerado de quotas dos vários comproprietários. A propriedade colectiva é, assim, uma comunhão una, indivisível, sem quotas. O direito à meação, de que cada um dos cônjuges é titular, só se torna exequível depois de finda a sociedade conjugal ou depois de cessarem as relações patrimoniais entre os cônjuges.» (Cfr. Direito da Família, Livraria Petrony, Lisboa, 1982, pp. 373-375). Também Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira entendem que: «(...) os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela. Aderimos assim à doutrina da propriedade colectiva que é a mais divulgada entre nós. O conceito de património colectivo já nos é conhecido da cadeira de Teoria Geral. Trata-se de um património que pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas ideais, como na compropriedade. Enquanto, pois, esta é uma comunhão por quotas aquela é uma comunhão sem quotas. Os vários titulares do património colectivo são sujeitos de um único direito, e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal. Não tem, pois, cada um deles algum direito de que possa dispor ou que lhe seja permitido realizar através da divisão do património comum. Esta particular fisionomia do património colectivo radica no vínculo pessoal que liga entre si os membros da colectividade e que exige que o património colectivo subsista enquanto esse vínculo perdurar.» (Cfr. Curso de Direito da Família, volume I, 3a ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 550). Fica, pois, claro que a indivisão típica da compropriedade não se confunde com a comunhão, típica do património comum conjugal. Àquela põe-se termo pela divisão de coisa comum (art. 1412° nº 1 e 1413 nº 1 e 2 CC), a esta pelo inventário para partilha (art. 1404° nº 1 CPC). A inclusão de determinado na relação de bens comuns com vista ao divórcio por mútuo consentimento não converte a sua natureza de bem comum - onde nem sequer se pode falar no direito de qualquer dos cônjuges à meação nesse concreto bem - em compropriedade. Consequentemente, o meio processual adequado para a divisão dos bens comuns é o inventário e não a acção de divisão de coisa comum (Cfr. STJ 5-7-1990, BMJ 399, p. 512; Ac. Rel Év 10-05-2007, acessível pela INTERNET através de http://www.dgsi.pt)). Bem andou, pois, a 1ª instância quando considerou verificar-se erro na forma de processo. Consideremos agora a questão da competência material do Tribunal. Se o Tribunal Cível era, inequívoca e incontestavelmente, o materialmente competente para a acção de divisão de coisa comum, já o não é para o processo de inventário na sequência de divórcio, face ao preceituado no art. 114° -d) da LOFTJ (Lei nº 52/2008 de 28 de Agosto). Em síntese: O meio processual adequado para proceder à divisão dos bens comuns do casal - e ainda que estes sejam constituídos apenas por uma única verba - na sequência de divórcio é o inventário e não a acção de divisão de coisa comum. O Tribunal competente para tal inventário é o Tribunal de Família e Menores, ainda que o divórcio por mútuo consentimento tenha sido decretado na Conservatória do Registo Civil. Consequentemente, instaurada acção de divisão de coisa comum no tribunal cível como se aquele bem constituísse uma compropriedade, verifica-se erro na forma de processo e, reconhecido este, incompetência material do Tribunal cível. ACÓRDÃO Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a douta decisão recorrida. Custas pela apelante. Évora e Tribunal da Relação, 10.03.2010 |