Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
495/25.0T8BNV.E1
Relator: SUSANA FERRÃO DA COSTA CABRAL
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
POSSE
DIREITO DE ACÇÃO
VENDA EXECUTIVA
DETENÇÃO
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário:
I. Os requerentes, que deixaram de ser proprietários do imóvel no âmbito de uma ação executiva, mas que continuaram a residir no mesmo, por força do acordo verbal celebrado com o novo proprietário, não são possuidores, mas meros detentores do imóvel.

II. Assim, não pode proceder o procedimento cautelar que intentaram destinado à defesa da posse do imóvel, contra o anterior proprietário e o novo proprietário.

III. Os procedimentos cautelares não constituem mecanismos destinados a impedir o exercício do direito de ação, pelo que não pode proceder um procedimento com vista a evitar que a requerida proponha ação contra os requerentes, que têm receio de perder a casa que habitam.

Decisão Texto Integral: *

Acordam na 1.ª secção do Tribunal da Relação de Évora,

1. Relatório:


AA e BB, residentes na Rua 1, nº18, ... Local 1 intentaram o presente procedimento cautelar comum contra CC e GEST 37 – Sociedade de Construções, Ldª, com sede em Cidade 2, pedindo:

a. Que se ordene a manutenção da posse dos requerentes sobre o imóvel sito na Rua 1, nº18, ... Local 1, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 3884 e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Local 1 sob o artigo 8º;

b. Que seja suspensa qualquer medida de despejo, venda, registo, posse ou disposição do imóvel;

c. Que sejam os requeridos intimados a absterem-se de qualquer ato sobre o imóvel até decisão da ação principal.

Em abono destas pretensões, os Recorrentes invocam que

• Residem no referido imóvel há cerca de 50 anos:

• O imóvel foi penhorado num processo executivo;

• O primeiro requerido, neto dos requerentes, exerceu o direito de remição e adquiriu o imóvel.

• Entre o primeiro requerido e os requerentes foi, então, acordado que estes continuariam a residir no imóvel, contribuindo com a quantia mensal de € 305,68 para auxiliar o requerido no pagamento do empréstimo que o mesmo contraiu para adquirir o imóvel.

• Porque o requerido residia com os requerentes, pagando-lhes uma quantia pela alimentação e arranjo de roupa, inicialmente aquela quantia mensal de € 305,68 foi abatida no valor da quantia paga pelo requerido aos requerentes;

• A partir de maio de 2023, a quantia de € 305,68 passou a ser paga por transferência para a conta do primeiro requerido, uma vez que este deixou de residir com os requerentes;

• Em abril de 2024, a solicitação do primeiro requerido, os requerentes pagaram o IMI relativo ao prédio;

• Em maio/junho do mesmo ano, os requerentes receberam uma carta de uma solicitadora em representação do primeiro requerido, informando-os que este pretendia instaurar uma “ação judicial de reivindicação da posse”, propondo aos requerentes a entrega voluntária do imóvel no prazo de 30 dias, sem o pagamento de qualquer contrapartida;

• Há 3 ou 4 meses o primeiro requerido vendeu à segunda requerida o dito imóvel, sem o consentimento dos requerentes;

• A 2.ª requerida que adquiriu o imóvel pretende expular os Requerentes do imóvel.

• Os requerentes vivem das suas pensões de reforma, não possuem outra habitação, e encontram-se na iminência de perda irreparável da sua casa, com grave prejuízo para a sua dignidade, estabilidade e saúde.


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Os requeridos foram citados, com a advertência de que a falta de oposição importava a confissão dos factos articulados e não deduziram oposição.


Foi, então proferida sentença que julgou “improcedente o presente procedimento cautelar comum”, razão pela qual não foi determinada “a aplicação das medidas peticionadas contra os requeridos.”.


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Os requerentes não se conformando com a sentença interpuseram o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:





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Os requeridos não contra-alegaram.


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Questões a decidir:


O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, atento o disposto artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º do Código de Processo Civil.


Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir se estão reunidos os pressupostos do procedimento cautelar comum e em caso afirmativo se deve o mesmo ser julgado procedente, ao contrário do decidido.

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2. Fundamentação:

1. O Tribunal considerou indiciados os seguintes factos:

1. Pela apresentação 273 de 16.07.2020, o imóvel sito na Rua 1, nº18, ... Local 1, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 3884 e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Local 1 sob o artigo 8º, foi inscrita a aquisição a favor de CC, por compra em processo de execução;

2. Tal aquisição teve lugar no processo executivo nº 1903/07.7... do Juízo de Execução do Cidade 3, Comarca de Cidade 4, no qual era exequente a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Cidade 5, e eram executados AA e BB, mediante adjudicação do dia 30 de junho de 2020, na decorrência do exercício do direito de remição por parte do adquirente CC;

3. Pela apresentação 2946 de 23.10.2024 foi inscrita a aquisição por compra do mesmo imóvel a favor de Gest 37 – Sociedade Construções, Ldª;

4. Os requerentes residem no imóvel identificado há cerca de 50 anos;

5. Após o facto descrito em 2, entre o primeiro requerido e os requerentes foi acordado que estes continuariam a residir no imóvel, contribuindo estes com a quantia mensal de € 305,68, até pagamento integral de um empréstimo por aquele contraído para poder exercer o direito de remição;

6. Uma vez que o primeiro requerido residia com os requerentes, pagando-lhes uma quantia mensal pela alimentação e arranjo de roupa, inicialmente, foi acordado que aquela quantia mensal de € 305,68 seria abatida no valor da quantia paga pelo requerido aos requerentes;

7. A partir de maio de 2023, a quantia de € 305,68 passou a ser paga por transferência para a conta do primeiro requerido, uma vez que este deixou de residir com os requerentes;

8. Em abril de 2024, a solicitação do primeiro requerido, os requerentes pagaram o IMI relativo ao prédio;

9. Em maio/junho do mesmo ano, os requerentes receberam uma carta de uma solicitadora em representação do primeiro requerido, informando-os que este pretendia instaurar uma “ação judicial de reivindicação da posse”, propondo aos requerentes a entrega voluntária do imóvel no prazo de 30 dias, sem o pagamento de qualquer contrapartida;

10. A venda do imóvel pelo primeiro requerido à segunda requerida foi feita sem o consentimento dos requerentes;

11. Tendo os requerentes solicitado uma certidão do registo predial do imóvel, foi a mesma recusada por a descrição ter sido inutilizada;

12. Os requerentes vivem das suas pensões de reforma e não possuem outra habitação.

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2.2. O Tribunal considerou não indiciado, o seguinte facto:

a) Para a aquisição do imóvel no âmbito do processo executivo identificado em 2, o primeiro requerido contraiu um empréstimo.

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3. Apreciação das questões a decidir:

1. Dos pressupostos do procedimento cautelar

No caso concreto, os recorrentes invocaram ser possuidores do imóvel, onde vivem há 50 anos e pretendem com a presente providência evitar que os requeridos pratiquem qualquer medida de despejo, venda, registo, posse ou disposição do imóvel.


Alegam que o 1.º requerido, que lhes adquiriu o imóvel, em junho de 2020, acordou com eles a possibilidade de continuarem a residir no imóvel pelo valor de € 350,00 mensais.


Em 2024, a 2.ª Ré adquiriu o imóvel e já o registou em seu nome. A 2.ª Ré tem a intenção de expulsar os AA do imóvel.


A decisão recorrida julgou a providência improcedente com os seguintes fundamentos:

a. Os requerentes não são possuidores, mas meros detentores do imóvel, pelo que não podem fazer uso dos meios cautelares de defesa da posse;

b. A conduta do primeiro requerido que enquanto proprietário do imóvel anunciou a intenção de recorrer aos meios judiciais para lhe ser conferida a entrega do imóvel é legítima, e,

c. Relativamente à segunda requerida, não resultou indiciado qualquer acto suscetível de ofender a situação jurídica dos requerentes.


Os recorrentes, nas alegações de recurso, insistem que são possuidores do imóvel e que estão na iminência de ser despejados da casa que habitam. Terminam, pedindo que se mantenha a sua posse sobre o imóvel e se determine a abstenção de quaisquer atos de despejo ou disposição dos recorridos. Invocam que a sentença violou os artigos 334.º e 1251.º e seguintes do Código Civil.


Vejamos, então se foi violada alguma das referidas normas como pretendem os Recorrentes e se estes lograram demonstrar ainda que indiciariamente os requisitos necessários à procedência da providência cautelar comum que intentaram, e que são, nos termos do artigo 362.º do CPC:

a. A probabilidade séria da existência do direito invocado (fumus boni iúris);

b. O fundado receio de que outrem, antes de a ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum ín mora);

c. A adequação da providência à situação de lesão iminente;

d. A inexistência de providência específica que acautele aquele direito;

e. Que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que se quer evitar.


Quanto ao primeiro requisito:


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O citado artigo 1251.º do CC define posse como o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real. Ou seja, o direito de posse não existe autonomamente, mas ligado a um qualquer direito real, seja ele o direito de propriedade ou outro.


Abrantes Geraldes1 explica com clareza que “a posse não foi encarada como um direito real, antes reputada, como situação de facto com proteção jurídica justificada pela aparência de um direito real de gozo. (…) A tutela possessória assenta num juízo provisório no que concerne à aferição do direito, condicionado à não sobreposição de uma situação jurídica invocada pela parte contrária correspondente à titularidade de um direito real de gozo ou melhor posse.”.


No caso concreto, os recorrentes arrogam-se da qualidade de possuidores do imóvel, correspondente ao exercício do direito de habitação. Com efeito, até 2020, os Requerentes habitavam o imóvel por serem seus proprietários, pelo que eram também possuidores para efeitos do artigo 1251.º do CC, na medida em que atuavam sobre o imóvel por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade. A partir desta data deixaram de ser proprietários e invocam assim a posse correspondente ao direito de habitação.


De facto, ficou provado que não obstante a venda ocorrida em 2020 e a venda ocorrida em 2024, os requerentes continuam a atuar por forma correspondente ao exercício do direito de habitação, já que continuam a viver no imóvel.


Sucede, porém, que não basta o poder de facto, é necessário a intenção (animus possidendi) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela. Ora, os Requerentes alegaram e ficou indiciariamente demonstrado que habitam a casa porque exercem um direito obrigacional, no âmbito de um acordo celebrado com o proprietário/seu neto. Este acordo celebrado com o primeiro requerido não fez com que estes agissem como titulares do direito (real) de habitação, mas antes como titulares de um direito obrigacional a habitarem na casa.


Face ao exposto, é, até, improvável que na ação de manutenção de posse, ação principal de que este procedimento depende, os requerentes lograssem que os seus pedidos fossem procedentes, por não conseguirem provar precisamente a posse.


Diz assim o artigo 1278.º do CC: “(…) o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito.”. Ou seja, a lei protege a posse apenas por presumir que, por detrás dela, existe na titularidade do possuidor o direito real correspondente. A proteção conferida ao possuidor traduz-se numa tutela provisória, destinada unicamente a manter determinada situação de facto, enquanto não se provar quem é o verdadeiro titular do direito real correspondente.


Ora, no caso concreto, está demonstrado que o titular do direito de propriedade é a 2.ª requerida. Sendo que o direito de propriedade de um imóvel destinado à habitação, nos termos do artigo 1305.º do CC inclui o direito (real) de habitação, pelo que pertencendo este direito ao proprietário não poderia pertencer aos recorrentes que assim sempre veriam a ação naufragar.


Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-06-20212:


“(…) os embargantes invocam serem titulares do direito de uso e habitação sobre o imóvel penhorado. Mas, diga-se, desde já, que não basta morar na casa e fazer dela sua habitação, para se concluir, sem mais, que se constituiu um “direito de uso e habitação” no sentido da existência de um direito real de gozo oponível erga omnes”, tal como é previsto nos Art.s 1484.º e ss. do C.C.


Efetivamente, nos termos do Art. 1306.º n.º 1 do C.C., que consagra o princípio da tipicidade dos direitos reais, sujeitando-os à regra do numerus clausus”, não é permita a constituição, com caráter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei, pois toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional. Logo, não são oponíveis erga omnes” e a sua constituição é ineficaz para o exequente em ação executiva.


O direito real de uso e habitação, para além de dever ter por conteúdo o previsto no Art. 1484.º n.º 1 e n.º 2 do C.C., deve constituir-se por uma das formas previstas na lei, tal como estabelece o Art. 1485.º do C.C..


Em função do que dispõe este último mencionado preceito, o direito de uso e habitação constitui-se pelos mesmos modos do direito de usufruto, mas não é possível a sua aquisição por via de usucapião, atento à restrição prevista no Art. 1293.º al. b) do C.C.. Pelo que, esse direito só pode ser constituído por “contrato” ou “testamento” (v.g. Art. 1440.º do C.C.).


(…) será o titular do direito de propriedade sobre a coisa quem poderá, por negócio jurídico (contrato ou testamento), constituir o direito de uso e habitação, por compressão voluntária do seu direito de propriedade.
Sucede que, tratando-se de direito real sobre bem imóvel, quer o “contrato”, quer o “testamento”, têm que necessariamente observar as regras de forma impostas por lei.



(…)


para a celebração de contratos que tenham por objeto a constituição de direitos reais sobre bens imóveis: ou observam a forma de escritura pública, ou observam a forma de escrito particular autenticado.


Em suma, (….) o mero uso habitacional da casa, com eficácia meramente obrigacional (cfr. Art. 1306.º n.º 1 do C.C.), não é oponível ao exequente e não pode constituir fundamento legal para a dedução de embargos de terceiro, nos termos do Art. 342.º n.º 1 do C.P.C..”.


Por todo o exposto, bem andou a sentença em considerar que os requerentes são meros detentores do imóvel e não possuidores, inexistindo qualquer violação do artigo 1251.º do CC e que o procedimento sempre teria que improceder por não estar demonstrada a probabilidade séria da existência do direito3.


Por outro lado, também não procede, como pretendem os recorrentes, a alegada violação do artigo 334.º do CC, que prevê o instituto do abuso de direito. Com efeito, de acordo com o artigo 1305.º do CC o proprietário goza de modo pleno do direito de disposição das coisas que lhe pertencem. Ora, se a 2.ª requerida, Gest 3, é proprietária do imóvel, não se vislumbra – face aos factos indiciados - em que medida estaria a abusar do seu direito a dispor do imóvel ou mesmo a reivindica-lo dos requerentes.


Quanto ao periculum in mora:


Embora o primeiro requerido , por intermédio de uma solicitadora, tenha, em maio/junho de 2023, informado os requerentes de que iria propor ação de reivindicação, o facto é que, em outubro de 2024, vendeu o imóvel à 2.ª requerida, pelo que já não terá legitimidade, nem aliás qualquer interesse em propor a ação de reivindicação, como não é fundado o receio de que este possa praticar qualquer outro ato relativamente ao imóvel e pôr em causa a invocada posse dos requerentes.


Já quanto à segunda requerida Gest 37, como se refere na decisão recorrida não foram demonstrados quaisquer atos suscetíveis de ofender a situação jurídica dos requerentes que tenham sido praticados pela segunda requerida.


Com efeito, apesar de a segunda requerida não ter contestado a acusação que lhe foi dirigida de pretender expulsar os requerentes de casa, as providências cautelares não constituem mecanismos destinados a impedir o exercício do direito de ação, consagrado no artigo 2.º, n.º 2 do CPC. O receio dos requerentes “de serem despejados” estará sempre acautelado com a possibilidade de defesa que lhes é assegurada em qualquer ação que eventualmente a requerida proponha contra eles. Por isso, o presente procedimento intentado também com o propósito de impedir a propositura de uma ação, pela requerida, sempre teria que improceder.


Face a todo o exposto, importa concluir que bem andou o Tribunal a quo em julgar improcedente o presente procedimento cautelar comum, motivo pelo qual não procede o recurso apresentado pelos requerentes.


As custas deverão ser suportadas pelos Recorrentes, atenta a total improcedência do recurso (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).


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3. Decisão:


Pelo exposto, decide-se julgar a apelação totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.


Custas pelos Recorrentes.


Évora, 2 de outubro de 2025


Susana Ferrão da Costa Cabral (Relatora)


José António Moita (1.ª Adjunto)


Maria João Sousa e Faro (2.º Adjunta)

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1. Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, 2.ª edição, pág. 30.↩︎

2. https://www.dgsi.pt/JTRL.NSF/33182fc732316039802565fa00497eec/5affd76b02f6c085802586f8002e9954↩︎

3. Neste sentido também o Acórdão desta Relação de Évora de 28-06-2028, acessível in https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/57E636000A34790C802582CC004620EC↩︎