Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5547/17.7T8STB-H.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CUMPRIMENTO
FALTA DE RESPOSTA
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: No âmbito do procedimento da exoneração do passivo restante, a omissão de informações que comprovem o cumprimento das obrigações do devedor durante o período da cessão, sem motivo razoável, no prazo fixado, constitui causa de recusa da exoneração, independentemente, do prejuízo que daí possa advir para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: 5547/17.7T8STB-H.E1

Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. Nos autos de insolvência de pessoa singular em é insolvente AA, decorrido o período de cessão do rendimento disponível da devedora e não tendo havido lugar a cessação antecipada da exoneração do passivo restante liminarmente admitida, ouvidos a devedora, o fiduciário e os credores da insolvência, foi proferido despacho assim concluído:
(…) decido, nos termos do artigo 244.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, recusar a exoneração definitiva do passivo restante de AA.

2. A Insolvente recorre deste despacho e conclui assim a motivação do recurso:
1. A sentença recorrida viola os princípios do CIRE.
2. Pois a recorrente demonstrou com documentos que os valores que ficam para viver são insuficientes.
3. O prejuízo que eventualmente que os credores poderiam ter sofrido.
4. O prejuízo a que se refere o artigo 238.º, n.º 1, alínea d), deverá corresponder a um prejuízo concreto que, nas concretas circunstâncias do caso, tenha sido efetivamente sofrido pelos credores em consequência do atraso a apresentação a insolvência.
5. Cabia aos credores, o dever de virem reclamar tais prejuízos o que não aconteceu e os que fizeram foram ressarcidos.
6. Alias nenhum dos credores levantou este assunto em processo.
7. A recorrente esteve e sempre esteve de boa-fé.
8. Não sonegou bens, e antes pelo contrário demonstram os seus rendimentos na sua totalidade.
9. Tanto mais que nenhum credor foi prejudicado.
10. A recorrente em nada incumpriu as suas obrigações.
11. O fundamento invocado pelo tribunal recorrido é excessivo e não pode colher.
12. Os documentos foram juntos e foi prestada total colaboração.
13. Deve ser mantido a exoneração e ser proferido despacho final de encerramento e não de recusa.
14. Pois 7 anos de penitência e agora a recorrente confrontada com algo que não deveria sê-lo.
15. A recorrente merece justiça.
Nestes termos e nos demais, requer-se a V. Exa. que seja revogada a recusa da exoneração do passivo restante com as consequências legais, assim se fará a acostumada JUSTIÇA.”
Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Tendo em conta que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões nele incluídas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos, que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir se não se verifica motivo de recusa da exoneração.

III- Fundamentação
1- Factos
A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. Nos presentes autos, foi proferido despacho inicial relativo ao procedimento de exoneração do passivo restante em 28.09.2017, tendo o processo de insolvência em que foi declarada insolvente AA sido encerrado na mesma data para efeitos de cessão.
2. Por despacho datado de 28.04.2022, foi considerado findo o período de cessão, com efeitos a 11.04.2022.
3. Em 20.05.2022 veio o Sr. Fiduciário juntar aos autos informação final de cessão, de onde consta que a insolvente não cedeu qualquer montante durante o período de cessão, tendo o seu Ilustre Mandatário informado que a mesma não tem qualquer rendimento.
4. Em 05.07.2022 veio a credora Banco 1..., CRL pugnar pela recusa da exoneração do passivo restante, uma vez que durante o período de cessão a insolvente não comprovou a procura activa de emprego ou a sua inscrição no Centro de Emprego, sendo certo que já estava desempregada quando se iniciou o período de cessão, nem comprovou documentalmente ao Sr. Fiduciário a ausência total de rendimentos por si referida.
5. Por despacho de 22.09.2022 foi determinada a notificação da insolvente para, em 10 dias, prestar os esclarecimentos solicitados pela credora, quanto à procura activa de emprego, inscrição no Centro de Emprego, e ausência total de rendimentos durante o período de cessão.
6. A insolvente nada disse ou informou no prazo que lhe foi concedido.
7. Em 05.12.2022 veio o Sr. Fiduciário dar parecer favorável à exoneração do passivo restante.
8. Em 06.03.2023 foi determinada a notificação do Sr. Fiduciário, para que este informasse se a prova da insolvente quanto aos seus rendimentos foi apenas aquela que consta do email junto aos autos em 20.05.2022 (A D. AA não tem qq rendimento, att) ou se esta comprovou de algum outro modo a ausência de rendimentos.
9. Em 21.03.2023 veio a insolvente requerer a junção aos autos do comprovativo da sua inscrição no Centro de Emprego.
10. Como o documento se mostrava ilegível, foi determinada a sua notificação para juntar aos autos cópia legível do mesmo.
11. Juntou novamente o documento em 30.03.2023, 15.06.2023 (embora com configuração diferente), sempre de forma ilegível.
12. Em 21.09.2023 juntou declaração legível do Centro de Emprego, de onde consta que a mesma está inscrita nesse Centro desde ../../2023.
13. A credora Banco 1..., CRL, notificada desse documento veio reiterar a posição que assumiu nos autos (24.10.2023).
14. Em 26.10.2023 veio a insolvente requerer seja proferido despacho final a conceder a exoneração do passivo restante.
15. Em 29.01.2024 veio o Sr. Fiduciário informar que a Insolvente não comprovou a ausência de rendimentos de outro modo a não ser o referido em 8.

2. Direito
2.1. Se não se verifica motivo de recusa da exoneração
A decisão recorrida recusou a exoneração final do passivo restante da Devedora considerando, em resumo: i)[n]ão existe (…) qualquer justificação válida para a ausência de informação completa sobre os rendimentos e património da devedora, tanto mais que foi notificada para comprovar a ausência total de rendimentos e nada disse”; ii) a conduta da devedora tornou impossível a prova, pelos credores, da existência de prejuízo”; iii) a devedora apenas se inscreveu no Centro de Emprego em 21.09.2023, sendo que o período de cessão terminou em 11.04.2022” e iv) notificada para comprovar a procura ativa de emprego, nada disse”.
A Devedora, em vista da revogação da decisão recorrida, argumenta, no essencial, que não incumpriu nenhuma das obrigações a que estava sujeira no período da cessão e que nenhum credor foi prejudicado.
Decidindo.
A exoneração do passivo restante permite ao devedor pessoa singular, com as exceções previstas no n.º 2 do artigo 245.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste.
A efetiva obtenção deste benefício “supõe (…) que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período (…) – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica” [preâmbulo do D.L. n.º 53/2004, de 18/3].
Em harmonia com este desiderato e pondo de parte os casos de prorrogação do prazo da cessão e os casos de cessação antecipada da exoneração, decorrido o período de três anos da cessão, o juiz profere decisão final da exoneração, declarando-a ou recusando-a, conforme a avaliação que lhe mereça a actuação do devedor, ante a observância dos deveres para com os credores a que se encontra adstrito durante o período da cessão.
Por efeito da remissão do n.º 2 do artigo 244.º para o artigo 243.º, do CIRE, constituem causa de recusa da exoneração:
- a violação dolosa ou com grave negligência de alguma das obrigações respeitantes à cessão do rendimento disponível, de resulte prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência [artigo 243.º, n.º 1, alínea a)];
- a verificação de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, apenas conhecida pelo devedor após o despacho inicial ou de verificação superveniente [artigo 243.º, n.º 1, alínea b)];
- a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência [artigo 243.º, n.º 1, alínea c)];
- a omissão, sem motivo razoável, no prazo fixado, de informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou a falta injustificada à audiência em que devia prestá-las, quando devidamente convocado, casos em que a exoneração é sempre recusada [artigo 243.º, n.º 3].
Interessa-nos, sobretudo, esta última previsão, ou seja, os casos em que a exoneração é sempre recusada.
A par da violação de obrigações respeitantes à satisfação dos interesses dos credores, impendem sobre o devedor, no âmbito do procedimento de cessação da exoneração, deveres de informação e deveres de comparência a atos judiciais para que haja sido regulamente convocado, cuja violação é sempre sancionada com a recusa da exoneração.
Verificando-se que o devedor, sem motivo razoável – por maioria de razão, sem indicação de qualquer motivo – deixou de prestar informações relativas ao cumprimento das suas obrigações ou faltou injustificadamente à audiência em que devia prestar tais informações, a exoneração é recusada.
Compreende-se que assim seja, uma vez que só depois de o devedor trazer ao procedimento as razões pelas quais não cumpriu com a cessão de rendimento disponível é possível concluir se não cumpriu porque não quis ou se não cumpriu porque não pôde, isto é, se as razões do incumprimento lhe são, ou não, imputáveis, por forma a estabelecer o nexo de imputação subjetiva - violação dolosa ou com grave negligência – suposta pelo juízo de recusa da exoneração; se a falta de colaboração do devedor não constituísse causa bastante de recusa da exoneração, isto é, se para além dela o juízo de recusa exigisse, ainda, a demonstração do prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, encontrado estaria o caminho para que a falta de cessão do rendimento disponível, sem qualquer justificação, não constituísse causa de recusa da exoneração, uma vez que omitindo o devedor, sem reprovação, as razões do incumprimento dificilmente se poderia concluir pela sua atuação dolosa ou negligente.
A omissão de informações que comprovem o cumprimento das obrigações do devedor durante o período da cessão, sem motivo razoável, no prazo fixado, constitui causa de recusa da exoneração, independentemente, do prejuízo que daí possa advir para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Na espécie, a decisão recorrida julgou verificadas duas causas de recusa antecipada da exoneração: (i) a falta de colaboração da devedora na prestação de informações sobre os seus rendimentos e património, (ii) o incumprimento do dever de procurar profissão durante o período da cessão de rendimentos.
Prova-se que a Devedora não cedeu à fidúcia quaisquer montantes no período da cessão, não juntou aos autos qualquer prova da ausência de rendimentos, nem prestou, a este propósito, esclarecimentos, apesar de notificada para o fazer no prazo de 10 dias [pontos 3, 5, 6 e 15 dos factos provados]. Impossibilitando a Devedora o conhecimento da sua situação económica e o consequente juízo sobre a existência de valores em dívida à fidúcia e, respectivos, montantes, caracterizada se mostra a omissão, sem motivo razoável, no prazo fixado, de informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações.
A Devedora violou os deveres de informação relativas ao cumprimento das suas obrigações e, como tal, a exoneração deverá ser recusada.
Havendo sido este o sentido da decisão recorrida resta confirmá-la.
Improcede o recurso.

3. Custas
Vencida no recurso, incumbe à Devedora/recorrente o pagamento das custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)

IV. Dispositivo
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 9/5/2024
Francisco Matos
Cristina Dá Mesquita
Eduarda Branquinho