Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
500/21.9PAVRS.E1
Relator: MARIA JOSÉ CORTES
Descritores: AUTO DE NOTÍCIA
AGENTE DA POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
IMPEDIMENTO
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: I - Sendo verdade que o artigo 8º do D.L. nº 243/2015, de 19/10, determina a aplicação aos agentes da PSP, enquanto membros de órgão de polícia criminal, do regime de impedimentos, recusas e escusas do C. P. Penal, é também verdade que não deixa de o fazer com as devidas adaptações.
II - Ora, se no nº 3 do artigo 39º do C. P. Penal se proíbe o exercício de funções, a qualquer título, no mesmo processo, de juízes que sejam entre si cônjuges (ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges), esta proibição restringe-se ao específico exercício da função judicial, qua tale.
III - Na função policial, o impedimento subsiste limitado ao exercício dessa mesma função, e nela não se inclui a qualidade de testemunha, porquanto qualquer cidadão, polícia ou não, a pode exercer.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – RELATÓRIO
1.1. No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Vila Real de Santo António – J2, foi contra o arguido S deduzida acusação pela prática, em 28.09.2021, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1 e 26.º, do Código Penal, e artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, por referência aos artigos 121.º, 123.º e 125.º do Código da Estrada.
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1.2. Na data designada para a realização da audiência de julgamento, e na sequência de requerimento do arguido, foi proferida decisão, absolvendo o arguido da prática do crime pelo qual se encontrava acusado, e de que ora se recorre e se transcreve:
Compulsados os autos, temos que, vem o arguido acusado da prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 3 de janeiro, por factos praticados a 28 de setembro de 2021.
Designada data para a realização de audiência de julgamento, a 07/06/2023, veio o arguido, na mesma, invocar que, em suma, tendo sido autuante a agente M, e testemunha o agente V, e tendo atuado conjuntamente no exercício das funções enquanto agentes da PSP, encontrando-se, à data dos factos, casados, e estabelecendo o artigo 8.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, do estatuto da PSP que o regime de impedimentos, recusas e escusas previstos no Código de Processo Penal é aplicável com as necessárias adaptações aos policias enquanto OPC, mais sendo que no Código de Processo Penal o regime dos impedimentos, recusas e escusas vem previsto nos artigos 39.º a 46º, e assim, transpondo tais normativos para o caso dos autos e aplicando-lhe as necessárias adaptações, não podem exercer funções a qualquer título no mesmo processo policias que sejam entre si cônjuges ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges. Face ao exposto, entendendo que tal facto é cominado como nulidade insanável dada a previsão do artigo 119.º do Código de Processo Penal, a ser oficiosamente declarada em qualquer fase de procedimento, foi tal requerido.
Foi nessa sequência, dada sem efeito a realização da audiência de julgamento e determinada a junção aos autos da certidão de nascimento da Agente autuante.
Posteriormente, foi igualmente determinada a junção aos autos da certidão de nascimento da testemunha.
Foi designada nova data para realização da audiência de julgamento e, previamente ao início da mesma, considerando que das certidões juntas aos autos se observando que a Agente autuante e a testemunha apenas contraíram casamento a 18/03/2022, foram os referidos Agentes chamados a responder relativamente à sua situação pessoal e de vida, à data dos factos, tendo resultado que se encontravam a viver em situação de união de facto.
Iniciada a audiência de julgamento e procedendo à identificação do arguido e à comunicação ao mesmo dos factos pelos quais vem acusado, o mesmo não os admitiu.
Cumpre, pois, neste momento, decidir da nulidade suscitada.
Compulsados os autos, verifica-se que o auto de noticia junto aos mesmos foi elaborado pela agente da Policia de Segurança Pública M, com a matricula n.º (…..) e nele foi indicada a testemunha, também agente da mesma força policial, V, com a matrícula n.º (…..).
Resulta ainda dos autos, que a agente autuante e a testemunha indicada no auto de notícia, viviam à data dois factos, em condições análogas à dos cônjuges.
Aos autos é, desde logo, aplicável o disposto no artigo 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei 243/2015, de 19 de outubro, que estabelece o Estatuto Profissional do Pessoal com Funções Policiais da Polícia de Segurança Pública, o qual estatui que “o regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no Código de Processo Penal é aplicável, com as devidas adaptações, aos polícias enquanto órgão de polícia criminal (…)”.
Por sua vez, nos termos do art. 39.º, n.º 3 do CPP, relativo ao regime de impedimentos, recusas e escusas, temos que, “não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges”.
Ora, nos autos, claro está que, vivendo à data dos factos em condições análogas às dos cônjuges, e sempre se aplicando o disposto nas normas acima referidas, sendo que, inexistindo nos mesmos declaração de impedimento efetuada pela agente autuante – podendo tal circunstancialismo ser ademais suscitado pelo arguido, considerando o disposto no artigo 41.º, n.º 2, do CPP.
Nesta sequência, e considerando o disposto no artigo 41.º, n.º 3, do CPP, veja-se que “os actos praticados por juiz impedido são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo”.
Considerando-se que os presentes autos assentam na notícia do crime constatada pelos referidos intervenientes, enquanto agente autuante e testemunha, não podendo o mesmo ser repetido utilmente, sendo que, a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade, o que necessariamente afeta de forma grave a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade, impõe-se julgar inválido o mesmo.
Tal invalidade constitui uma nulidade insanável, considerando o disposto no artigo 119.º, do CPP, a qual deve ser oficiosamente declarada, em qualquer fase do procedimento, face à impossibilidade de repetição do ato nulo.
Sobre a questão – e ademais quanto aos mesmos intervenientes - debruçou-se já o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25/05/2023, Relator Gomes de Sousa, Processo 463/22.3PAVRS.E1, no qual se entendeu que “Integrando-se auto de notícia num processo penal, o qual fora levantado por agente policial que nele indicou como testemunha o seu cônjuge, passa o mesmo a ser regido pelas normas do CPP, nomeadamente no que tange ao regime de impedimentos, quer por aplicação subsidiária do regime de impedimento dos juízes, quer por aplicação do regime de invalidades processuais nele previstos.
O referido impedimento do agente autuante, agindo como órgão de polícia criminal, advém da regra prevista no artigo 39.º, n.º 3 do CPP, aplicável por força do n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, no qual se dispõe que «não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes [na circunstância «agentes»] que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges». Inexistindo nos autos declaração de impedimento pelo próprio, pode aquele ser suscitado pelo arguido (artigo 41.º, n.º 2 CPP), como foi. Constatando-se que o ato processual praticado – o lavrar do auto de notícia e o sequente depoimento testemunhal – não podem ser repetidos utilmente; e considerando que a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade – assim afetando gravemente a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade – este é inválido. Estando esta invalidade sujeita ao princípio da legalidade, constante do artigo 118.º, n.º 1 do CPP, a nulidade insanável cominada (artigo 41.º, § 3.º e corpo do artigo 119.º do CPP) impede a repetição do ato nulo” – neste sentido, entendeu-se que os atos nulos praticados pelos OPC, inquinavam tudo o mais praticado no processo, porquanto “irrepetíveis” os atos nulos e assim, declarou-se nulo o auto de notícia e tudo o mais que lhe seguiu, nomeadamente, a sentença proferida nos autos, absolvendo o arguido do crime praticado.
Diga-se ainda que, iniciada a audiência de julgamento, o arguido não admitiu a prática dos factos, pelo que inexistindo quaisquer outros meios de prova não contaminados pela nulidade dos atos praticados pelo OPC, e que pudessem ser livremente valorados – admitindo-se, fosse esse o caso, a consideração de meio de prova diverso e não inquinado pelo nulidade do auto de notícia, entendendo que em tal situação se poderia ponderar a valoração de tais declarações de natureza confessória, não afetadas pelo vício referido, e livremente apreciadas (neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional 198/2004, no que respeita à análise da questão relativa à não contaminação da nulidade dos atos praticados pelos OPC – no caso, nulidade de escutas mas aplicada ao caso com as devidas adaptações – à prova por confissão e ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/09/2023, Relator Ernesto Vaz Pereira, Recurso de Revisão, no qual se analisou situação com os mesmos intervenientes dos autos e tendo sido negado provimento ao mesmo, porquanto o facto novo trazido a juízo, o do casamento dos OPC, à data da prática dos factos e do auto de noticia, não “contaminou a confissão livre integral e sem reservas operada pelo arguido em sede de audiência de julgamento, entendendo-se que “a dúvida sobre a justiça da condenação, relevante para a revisão, tem de ser qualificada. Como se tem salientado, não basta a mera existência da dúvida; é necessário que ela se eleve a um patamar de solidez que permita afirmar a sua «gravidade. Aqui a condenação sofrida assentou na confissão integral e sem reservas do arguido. Confissão essa que não vem negada, nem se afirma viciada. Confissão que levou necessariamente à condenação e coerentemente à não interposição de recurso. Estamos perante uma confissão livre, total e sem reservas, fora de qualquer coação, em termos que não levantam dúvidas da sua espontaneidade, genuinidade ou autenticidade. Nem hic et nunc o Recorrente as suscita. Confissão assumida, com arrependimento, perante juiz de julgamento e na presença do seu defensor e depois da advertência feita pelo primeiro. Que, decorrentemente, implicou a renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consideração destes como provados, como manda o artigo 344º, nº 2, do CPP. Nomeadamente determinou a não audição da única testemunha arrolada pelo Ministério Público para ser inquirida na audiência de julgamento. A que não houve oposição. O facto “novo” agora avançado, a conjugalidade dos agentes autuantes, que, como “novo”, marcado vem nos pontos conclusivos VI, XII, XXVI e XXVIII do recurso, alegadamente impeditivo do desempenho de funções conjuntas, nem determinou a condenação nem agora tem a virtualidade de por si ou com os demais elementos suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação”).
Face ao exposto, e na ausência de outros meios de prova que validamente possam ser valorados, declara-se nulo o auto de noticia elaborado nos presentes autos, o que implica a invalidade dos demais atos praticados subsequentemente, nos termos dos artigos artigo 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, 39.º, n.º 3, 41.º, n.º 3, 119.º e 122.º, n.º 1, do CPP, absolvendo-se, nessa sequência, o arguido, da prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 3 de janeiro.
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1.3. Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o Ministério Público o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes CONCLUSÕES (transcrição):
1. A sentença recorrida considerou que o auto de notícia que deu origem ao processo se encontra ferido de nulidade porque a autuante indicou no mesmo como testemunha o seu então companheiro e actual marido, o que determinou a nulidade subsequente dos ulteriores actos praticados nos autos.
2. Tal nulidade, em seu entender, encontra-se prevista no art.º 41º do CPP, por referência aos art.ºs 8º, nº 2 do D.L. nº 243/2015, de 19.10 e 39º, nº 3 do C.P.P..
3. Ora, o marido da autuante não praticou nenhum acto no processo, porquanto não subscreveu o auto de notícia, nem qualquer outro documento ou peça processual, e, tendo sido indicado como testemunha na acusação deduzida, não prestou depoimento.
4. Assim, não exerceu nos autos qualquer função ou acto de que se encontrasse impedido, motivo pelo qual não deveria ter sido considerada a existência da aludida nulidade.
5. A decisão recorrida violou os dispositivos legais citados em 2.
6. Deve, assim, ser substituída por outra que declare que não se verifica quer no auto de notícia, quer nos actos ulteriores do processo, qualquer nulidade e determine o prosseguimento dos autos com realização da audiência de julgamento, na qual Vítor Conceição deixará de ser testemunha, assim se fazendo JUSTIÇA.
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1.4. Notificado da interposição do recurso, o arguido não respondeu.
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1.5. Nesta Relação, a Exa. Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.
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1.6. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o art.º 419.º, do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Âmbito do recurso e questões a decidir
Conforme entendimento pacífico, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto do recurso submetido à apreciação do tribunal de recurso, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que seja ainda possível conhecer.
Face às conclusões apresentadas pelo recorrente da respetiva motivação, extraímos uma única questão a decidir: determinar se o auto de notícia é nulo, resultante do impedimento das testemunhas arroladas, agentes da PSP, e, consequentemente todo o processado, ao abrigo das normas previstas nos art.ºs 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, 39.º, n.º 3, 41.º, n.º 3, 119.º e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
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2.2. Apreciação do recurso
Como acima se explanou, a única questão a decidir é a de saber e decidir se o auto de notícia é nulo, resultante do impedimento das testemunhas arroladas, agentes da PSP, e, consequentemente todo o processado, ao abrigo das normas previstas nos art.ºs 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, 39.º, n.º 3, 41.º, n.º 3, 119.º e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Entende o recorrente, Ministério Público, que não verifica qualquer nulidade do auto de notícia, porquanto o marido da autuante não praticou nenhum ato no processo, não subscreveu o auto de notícia, nem qualquer outro documento ou peça processual, e, tendo sido indicado como testemunha na acusação deduzida, não prestou depoimento. Ou seja, não exerceu nos autos qualquer função ou ato de que se encontrasse impedido, motivo pelo qual não deveria ter sido considerada a existência da aludida nulidade, pelo que a decisão recorrida violou o art.º 41.º, do Código de Processo Penal, por referência aos art.ºs 8.º, n.º 2, do Decreto Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro e 39.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Cumpre apreciar e decidir.
Previamente, cumpre salientar que neste Tribunal da Relação de Évora já foram proferidas duas decisões contrárias acerca da mesma questão jurídica.
Na primeira, datada de 25.05.2023, no âmbito do processo n.º 463/22.3PAVRS.E1, em que foi relator o Exº. Senhor Desembargador Gomes de Sousa, e no qual a decisão recorrida se baseou, entendeu-se que o auto de notícia estava afetado de nulidade insanável em virtude do impedimento decorrente de as testemunhas, agentes da PSP (agente autuante que elaborou o auto e testemunha) serem casados entre si.
O sumário do referido acórdão é o seguinte:
I. Integrando-se auto de notícia num processo penal, o qual fora levantado por agente policial que nele indicou como testemunha o seu cônjuge, passa o mesmo a ser regido pelas normas do CPP, nomeadamente no que tange ao regime de impedimentos, quer por aplicação subsidiária do regime de impedimento dos juízes, quer por aplicação do regime de invalidades processuais nele previstos.
II. O referido impedimento do agente autuante, agindo como órgão de polícia criminal, advém da regra prevista no artigo 39.º, n.º 3 do CPP, aplicável por força do n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, no qual se dispõe que «não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes [na circunstância «agentes»] que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges».
III. Inexistindo nos autos declaração de impedimento pelo próprio, pode aquele ser suscitado pelo arguido (artigo 41.º, n.º 2 CPP), como foi.
IV. Constatando-se que o ato processual praticado – o lavrar do auto de notícia e o sequente depoimento testemunhal – não podem ser repetidos utilmente; e considerando que a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade – assim afetando gravemente a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade – este é inválido.
V. Estando esta invalidade sujeita ao princípio da legalidade, constante do artigo 118.º, n.º 1 do CPP, a nulidade insanável cominada (artigo 41.º, § 3.º e corpo do artigo 119.º do CPP) impede a repetição do ato nulo.
Na segunda, proferida em 06.02.2024, relatado pela Exª. Senhora Desembargadora Margarida Bacelar, no processo n.º 309/23.5PAVRS.E1, seguiu-se entendimento contrário.
Transcreve-se o respetivo sumário:
Sendo verdade que o art.º 8º do Dec. Lei nº 243/2015, de 19 de Outubro determina a aplicação aos agentes da PSP, enquanto órgão de polícia criminal, do regime de impedimentos, recusas e escusas do CPP, é também verdade que não deixa de o fazer, com as devidas adaptações.
Ora, se no nº 3 do art.º 39º do CPP se proíbe o exercício de funções, a qualquer título, no mesmo processo, de juízes que sejam entre si cônjuges, esta proibição restringe-se ao exercício da função judicial, qua tale.
Revertendo para a função policial, o impedimento subsiste limitado ao exercício desta mesma função, e nela não se inclui a qualidade de testemunha pois que, qualquer cidadão, polícia ou não, a pode exercer.”
Ao nível da legislação, têm interesse para a solução jurídica do pleito as normas jurídicas que de seguida se transcrevem.
Estatui o art.º 8.º, n.º 2, do Decreto Lei n.º 243/ 2015, de 15 de outubro que:
1 - Os polícias estão sujeitos ao regime geral de incompatibilidades, impedimentos, acumulações de funções públicas e privadas e proibições específicas aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.
2 - O regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no Código de Processo Penal é aplicável, com as devidas adaptações, aos polícias enquanto órgão de polícia criminal, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 - A declaração de impedimento e o seu requerimento, bem como o requerimento de recusa e o pedido de escusa, são dirigidos ao diretor nacional.”
Por seu turno, dispõe o art.º 39.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que:
“(…)
3 - Não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges.
Finalmente, prevê o art.º 41.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que:
“ (…)
3 - Os atos praticados por juiz impedido são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo.”.
Subscrevemos na íntegra o douto acórdão deste tribunal superior acima referenciado em segundo lugar, dando, assim, salvo o devido respeito por opinião diferente, razão ao recorrente Ministério Público.
A sentença recorrida, arrimada no acórdão desta Relação de 25.05.2023, já citado, entendeu, num caso idêntico ao dos presentes autos, que «vivendo a agente autuante e a testemunha, à data dos factos, em condições análogas às dos cônjuges, e sempre se aplicando o disposto nas normas acima referidas, sendo que, inexistindo nos mesmos declaração de impedimento efetuada pela agente autuante – podendo tal circunstancialismo ser ademais suscitado pelo arguido, considerando o disposto no artigo 41.º, n.º 2, do CPP.
Nesta sequência, e considerando o disposto no artigo 41.º, n.º 3, do CPP, veja-se que “os actos praticados por juiz impedido são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo”.»
Considerou, assim a sentença, haver uma situação de impedimento o que determinou que o auto de notícia elaborado nos presentes autos fosse declarado nulo e declarou a invalidade dos demais praticados subsequentemente.
Como cristalinamente se lê no acórdão proferido no processo n.º 309/23.5PAVRS.E1, e com o qual concordamos, “Sendo verdade que o transcrito art.º 8.º do Dec. Lei nº 243/2015, de 19 de Outubro determina a aplicação aos agentes da PSP, enquanto órgão de polícia criminal, o regime de impedimentos, recusas e escusas do CPP, é também verdade que não deixa de o fazer, com as devidas adaptações.
Ora, se no nº 3 do art.º 39º do CPP se proíbe o exercício de funções, a qualquer título, no mesmo processo, de juízes que sejam entre si cônjuges, esta proibição restringe-se ao exercício da função judicial, qua tale.
Revertendo para a função policial, o impedimento subsiste limitado ao exercício desta mesma função, e nela não se inclui a qualidade de testemunha pois que, qualquer cidadão, polícia ou não, a pode exercer.”
Porém, supondo que a testemunha indicada no auto de notícia estaria impedida de depor por ter presenciado os factos que, eventualmente, presenciou na qualidade de agente da PSP no exercício de funções, cumpre realçar que não chegou a testemunhar em qualquer ato do processo, designadamente, na audiência de julgamento que possa ou deva ser declarado nulo.
Foi, aliás, prescindido o seu depoimento por parte do titular da ação penal (vide ata de audiência de julgamento de 25 de outubro de 2023).
Uma vez mais apelando ao acórdão deste TRE, de 06.02.2024, “cumpre notar que, mesmo que se entenda que a indicação da testemunha nessa qualidade no auto de notícia implica o dito impedimento, no limite, o que poderá estar ferido de nulidade, com base no disposto no art.º 41.º, n.º 3, do CPP, é a indicação da testemunha enquanto tal, mas não a parte sobrante do auto de notícia.
Assim, a reconhecer-se a nulidade da indicação da testemunha nessa qualidade, o que, em nosso entender, se impunha, era efetuar a sua declaração com o consequente aproveitamento do auto de notícia na parte subsistente na audiência de julgamento.”
E, aliás, o art.º 243.º, do Código de Processo Penal não contém qualquer causa específica de nulidade do auto de notícia e a prova do crime objeto dos presentes autos (um crime de condução sem habilitação legal) faz-se, essencialmente, mediante prova documental.
No caso concreto, resulta dos autos que o arguido não era titular de título de condução válido em Portugal, apenas possuindo Licença de Condução n.º (…..), emitida pelo Estado de Kerela, na Índia, não sendo o modelo apresentado reconhecido em qualquer Acordo, Convenção ou Tratado do qual existe reciprocidade em Portugal
Pelo que, se conclui facilmente que tal prova testemunhal, eventualmente nula, seria despicienda.
Concluímos, assim, que a decisão recorrida deve ser revogada e ser ordenado o prosseguimento dos autos.
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III – DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes que integram a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO e, em consequência, revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos nos termos sobreditos.
Sem custas.
Notifique.
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Évora, 7 de maio de 2024
(o presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelas suas signatárias – art.º 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal)

Maria José Cortes (Relatora)
Beatriz Marques Borges (2.ª Adjunta)
Filipa Costa Lourenço (1.ª Adjunta – vencida, conforme voto que se segue)

Voto de vencida – Filipa Costa Lourenço Juíza Desembargadora 1ª adjunta
Julgaria o recurso improcedente e confirmaria na integra a decisão recorrida declarando nulo o auto de notícia, concordando-se com a absolvição do arguido bem como com os seus fundamentos que nos parecem acertadíssimos, pelos seguintes vectores:
Seguindo de perto Jurisprudência e citando a “quase” e por ora, consolidada a deste Tribunal da Relação de Évora, vide Ac. TRE de 2/05/2023 processo 463/22.3PAVRS.E1 e AC TRE 325/22.4PAVRS.E1 de 19/03/24.
I- Integrando-se auto de notícia num processo penal, o qual fora levantado por agente policial que nele indicou como testemunha o seu cônjuge, passa o mesmo a ser regido pelas normas do CPP, nomeadamente no que tange ao regime de impedimentos, quer por aplicação subsidiária do regime de impedimento dos juízes, quer por aplicação do regime de invalidades processuais nele previstos.
II. O referido impedimento do agente autuante, agindo como órgão de polícia criminal, advém da regra prevista no artigo 39.º, n.º 3 do CPP, aplicável por força do n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, no qual se dispõe que «não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes [na circunstância «agentes»] que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges».
III. Inexistindo nos autos declaração de impedimento pelo próprio, pode aquele ser suscitado pelo arguido (artigo 41.º, n.º 2 CPP), como foi.
IV. Constatando-se que o ato processual praticado – o lavrar do auto de notícia e o sequente depoimento testemunhal – não podem ser repetidos utilmente; e considerando que a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade – assim afetando gravemente a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade – este é inválido.

V. Estando esta invalidade sujeita ao princípio da legalidade, constante do artigo 118.º, n.º 1 do CPP, a nulidade insanável cominada (artigo 41.º, § 3.º e corpo do artigo 119.º do CPP) impede a repetição do ato nulo.
Então :
“O Artigo 8.º do Decreto-Lei nº 243/2015, de 19 de Outubro, que aprovou o Estatuto Profissional do Pessoal com Funções Policiais da Polícia de Segurança Pública, integrado na Secção II do Capítulo II, relativa às «Garantias de imparcialidade», dispõe claramente que:
1 - Os polícias estão sujeitos ao regime geral de incompatibilidades, impedimentos, acumulações de funções públicas e privadas e proibições específicas aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.
2 - O regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no Código de Processo Penal é aplicável, com as devidas adaptações, aos polícias enquanto órgão de polícia criminal, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 - A declaração de impedimento e o seu requerimento, bem como o requerimento de recusa e o pedido de escusa, são dirigidos ao diretor nacional.
Ora, tratando-se de um auto de notícia lavrado em funções cristalinamente processuais penais, é inócuo o regime contido na Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas), designadamente o seu art. 24º, nsº 1, 2 e 4 («Proibições específicas»), na medida em que não nos encontramos face a simples obrigações laborais resultantes de prestação de «serviços no âmbito do estudo, preparação ou financiamento de projetos, candidaturas ou requerimentos que devam ser submetidos à sua apreciação ou decisão ou à de órgãos ou serviços colocados sob sua direta influência», com cariz contratual ou administrativo no sentido restrito.
Tratando-se de notícia de um crime é indubitavelmente aplicável o nº 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei nº 243/2015, de 19 de Outubro, que estatui que “O regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no Código de Processo Penal é aplicável, com as devidas adaptações, aos polícias enquanto órgão de polícia criminal, (…)”.
Como nenhum dos agentes envolvidos no auto de notícia suscitou o seu impedimento para o acto, passada se mostra a possibilidade de ter sido deduzido o impedimento, tornou-se inaplicável o disposto no nº 3, que naturalmente supõe a existência de uma declaração de impedimento.
(…)
Integrando-se a existência do auto de notícia num processo penal passa o mesmo – e o impedimento invocado - a ser regido pelo CPP, quer por aplicação subsidiária do regime de impedimento dos juízes, quer por aplicação do regime de invalidades processuais nele previstos.
O artigo 39º, nº 3 do CPP, relativo ao regime de impedimentos, recusas e escusas, é cristalino quando estatui que «Não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges».
Demonstrado nos autos que o agente autuante e a testemunha indicada no mesmo auto são cônjuges (ou vivem em união de facto/ no caso), demonstrada está a existência de impedimento.
Inexistindo declaração de impedimento – o que pode ser suscitado pelo arguido (nº 2 do preceito) -passa a reger a situação o disposto no artigo 41.º do CPP que, no seu número 3 determina que «Os actos praticados por juiz impedido são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo».
Constatando-se que o acto – o lavrar de auto de notícia e o sequente depoimento – não podem ser repetidos utilmente e considerando que a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade – assim afectando gravemente a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade – é inválido, resta saber do regime da mesma.
Sujeita a invalidade ao princípio da legalidade constante do artigo 118º, nº 1 do CPP, verificamos que a mesma está prevista na lei – as supras citadas – e cominada como nulidade, concretamente insanável dada a previsão do corpo artigo 119º do CPP e a ser “oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais” e face à impossibilidade de repetição do acto nulo.”
Nestes termos, e em situações similares já foram analisadas em acórdãos do T.R.E. sendo intervenientes agentes da autoridade casados entre si ou vivendo em união de facto e sempre da mesma cidade Vila Real de Santo António.
Como já disse concordo na integra com a decisão recorrida e seus fundamentos , aduzindo no entanto que o quadro que nos é apresentado deveria pelo menos ser dado conhecimento ao superior hierárquico dos intervenientes no auto de noticia para evitar a nova oclusão de situações similares, não se compreendendo também a génese destes casos pois basta estarem ambos em serviço de giro ( ou outro) simultaneamente um com o outro tal agir não é legalmente admissível e sendo todos os actos praticados nessa “ parceria proibida”( metaforicamente falando) nulos.
O princípio da legalidade impõe-se ao legislador, dele exigindo o recurso a técnicas legislativas de qualidade que garantam a efectividade da função de garantia da lei penal. Ao juiz cabe aplicar a lei feita pelo legislador, nunca podendo aquele substituir-se a este, num processo dialéctico determinado pela relação entre o problema de facto juridicamente relevante e a determinação da norma aplicável cuja previsão se há-de encontrar por via da utilização de todos os critérios legitimamente admissíveis no processo de interpretação que, tendo a norma por objecto, nela busca o critério adequado à solução do caso sub judice. É indiscutível que toda a norma jurídica carece de interpretação mesmo nos casos em que é evidente um «claro teor literal» (JESCHEK, loc. cit, p. 137; sublinhando este ponto, o acórdão do STJ de 14.3.3013, no proc. 287/12.6TCLSB.L1.S1).A interpretação há-de levar-se a efeito seguindo uma metodologia hermenêutica que, levando em conta todos os elementos de interpretação - gramatical, histórico, sistemático e teleológico (este a impor que o sentido da norma se determine pela ratio legis) -, permita determinar o adequado sentido normativo da fonte correspondente ao «sentido possível» do texto (letra) da lei, enquanto limite da própria interpretação (artigo 9.º do Código Civil). / vide aqui parecer do PGA agora Juiz Conselheiro José Luís Lopes da Mota.
Aliás levando ao extremo parece-nos que que este “status quo” repetente fere indubitavelmente a garantia constitucional de imparcialidade que o nosso Estado de Direito garante a todos os cidadãos, podendo até dar origem a processos de indemnização a pedido pelos arguidos, ou quiçá até à condenação do Estado Português em Instâncias Internacionais, pois as normas que regem este conspecto são tão claras que não lobrigamos um “ nicho” para se fazer uma interpretação do modo decidido julgando o recurso procedente e excepcionando desta forma a aplicação da lei que nos parece bastante clara.
Aliás e fazendo jus a um exemplo de extremo ou radical, atente-se por exemplo que ao fazer- se um julgamento em Tribunal Colectivo, se este começa com dois juízes casados entre si e depois de levantada a questão um deles retira-se, entrando outro em sua substituição prosseguindo o julgamento e aproveitando-se os actos anteriormente praticados…” quid júris? (Artº 39º nº 3 do CPP e já para não falar do artº 40º do C.P.P.)
Também se seguiria o raciocínio do presente acórdão? Julgamos que não…
E se não, porque fazê-lo a quem está sujeito à mesma norma legal / no caso dos autos, a dois agentes da PSP? Não pode haver dois pesos nem duas medidas, e por aqui me quedo.
Sabemos que a jurisprudência é o próprio direito na sua vivência progressiva, no entanto “in casu” parece-nos que seria aqui também de aplicar o princípio lógico (filosófico) da “Navalha de Occam” ( dita como a lei da parcimónia-“Pluralitas non est ponenda sine necessitate”) na interpretação das normas adoptadas da decisão da qual se discorda.
Aliás “O regime de impedimentos do processo penal previsto nos arts. 39.º e 40.º, para além de específico, é de enumeração taxativa. Não contém lacunas que devam ser integradas por analogia. Por tal motivo, não é lícito recorrer ao CPC, ex vi do art. 4.º do CPP, para integração do pretenso caso omisso” vide AC do STJ de 7/07/2010.
Verificando-se nos autos que o agente autuante e a testemunha indicada no mesmo auto viviam ao tempo em união de facto, demonstrada está a existência do impedimento, razão pela qual concordo com a decisão recorrida e julgaria improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, posição aliás que já assumi noutro processo de idêntica natureza.

Filipa Costa Lourenço (Juíza Desembargadora -1ª adjunta)