Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
12/17.5 IDFAR.E1
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: INVALIDADES PROCESSUAIS
INEXISTÊNCIA
RECURSO PENAL
AUDIÊNCIA
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A inexistência, como a mais grave das invalidades processuais, é vício que apenas se verifica quando a sentença não reúne o mínimo de requisitos essenciais para que como tal possa ter eficácia ou produzir os efeitos jurídicos que lhe são próprios, a saber, ter sido proferida oralmente, a non iudice, contra pessoa ficta ou não conter decisão capaz de produzir qualquer efeitos jurídicos.

II - A condição processual para produção de alegações orais, perante o tribunal de recurso, tal como fixada pelo n.º 5 do artigo 411º do CPP não configura uma “eliminação”, uma “redução” ou sequer uma “oneração” excessiva que diminua o âmbito e a extensão do direito fundamental de recurso penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP). Mesmo que o recorrente se veja privado da possibilidade de produção de alegações orais, certo é que o núcleo essencial do direito a que determinada decisão penal condenatória seja apreciada por um outro tribunal, mantém-se plenamente intacto, visto que as suas motivações escritas serão alvo de conhecimento, pela conferência resultante da alínea c) do n.º 3 do artigo 419º do CPP.

É constitucionalmente admissível que o atual regime dos recursos penais conceba a audiência de julgamento para produção de alegações orais como uma efetiva exceção ao regime normal de tramitação.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora
*

I- Relatório

Por acórdão de 28-6-2023 (fls. 1187 a 1204) foi negado provimento ao recurso do arguido AA, no qual vinham suscitadas as seguintes questões:

- impugnação da matéria de facto (parte final do ponto 48) e qualificação jurídica.

Vem, agora, o arguido requerer seja declarada a inexistência do acórdão por preterição de audiência por si requerida e a designação de data para realização desta última.

*

II- Apreciando

Entende o recorrente que o acórdão proferido após conferência deve ser considerado inexistente, uma vez que não teve lugar a audiência por si requerida.

Não lhe assiste, contudo, qualquer razão, não obstante ser verdade que não teve lugar a audiência por si requerida.

Desde logo, no campo estricto das potenciais invalidades processuais, atenta uma interpretação meramente literal (que não a mais adequada) do disposto no art. 411º, nº5 do CPP, nunca a presente situação seria reconduzível a mais do que uma mera irregularidade, tal qual se tem entendido em múltiplos arestos desta Relação (por ex., 5-3-2013, pr. 34/09.0 GCBJA.E1, rel. Proença da Costa; 17-9-2013, pr. 380/09.2 JACBR-B.E2, rel. Ana Brito; 21-12-2017, pr. 94/15.4 T9EVR, rel. Proença da Costa) e de outros Tribunais superiores (Ac. STJ de 30-11-2017, pr. 500/15.8JACBR-C.S1 ou Ac. TRP de 29-1-2014, pr. 870/12.0PPPRT.P1).

De facto, a inexistência, como a mais grave das invalidades processuais, é vício que apenas se verifica quando a sentença não reúne o mínimo de requisitos essenciais para que como tal possa ter eficácia ou produzir os efeitos jurídicos que lhe são próprios, a saber, ter sido proferida oralmente, a non iudice, contra pessoa ficta ou não conter decisão capaz de produzir qualquer efeitos jurídicos.

Escrevia, a propósito, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 12.ª edição, Almedina, p. 317:

“Na esteira do CPP de 1929 e do CPC, não toma o Código posição expressa sobre a existência ou não de um vício ainda mais grave, que a doutrina tem detectado, ou seja sobre o vício da inexistência.

De algum modo, este vício é implicitamente admitido pelo art. 468º, embora rotulado de inexequibilidade, talqualmente o era pelo art. 626.º do CPP de 1929, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei n° 185/72, de 31 de Maio…

Verifica-se o vício da inexistência quando ao acto faltam elementos que são essenciais à sua própria substância, de modo que em caso algum pode produzir efeitos jurídicos. Se na doutrina existe geralmente acordo quanto à existência deste vício, notam-se muitas hesitações quanto à sua definição.

A nossa lei, como a generalidade das estrangeiras, não faz alusão expressa à inexistência. No entanto, a doutrina não deixa de considerar esta espécie.

Podem ver-se, em processo civil, a minuciosa exposição de J. A. dos Reis, no Código de Processo Civil Anotado, vol. V, págs. 113-122, e os autores aí citados, e, em processo penal, Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, 1, 266 e segs . e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 11, 75-76…

O STJ, no acórdão de 1 de Abril de 1964; BMJ, 136, 232 e segs., debruçou-se sobre um caso de inexistência de sentença ou acórdão em processo penal, decidindo que existe, como espécie autónoma, o vício da inexistência de sentença ou acórdão, enquadrando-se em tal vício o caso de a decisão ter sido proferida por quem não está investido de poder jurisdicional. É um caso de acto praticado a non judice, de usurpação do poder jurisdicional, tipicamente apontado pela doutrina como de inexistência. Outros casos de inexistência são os de falta de jurisdição (v. g. sentença de tribunal estrangeiro, sem confirmação); de usurpação da função judicial dentro do processo (v. g. sentença proferida pelo MP ou por um funcionário da secretaria); de falta, no processo, dos respectivos sujeitos - titulares da acusação ou réu; etc. Ver J. A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, 118 e segs. e Cavaleiro de Ferreira, Curso, 1, 271-273”.

Donde a situação invocada não ser subsumível a tal tipo de vício.

Nem tão pouco a qualquer tipo de nulidade (sanável ou insanável) sabido como é que a violação ou inobservância das disposições da lei do processo só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei (art. 118º CPP), o que in casu não se verifica.

Tratando-se, simplesmente, de mera irregularidade, manifestamente sanada, uma vez não arguida no prazo previsto no art. 123º, nº1 CPP (o que compulsados os autos significava que deveria ter sido suscitada até 6-7-23, quando é certo que o requerimento em análise só foi apresentado em 12-7-23).

Acresce, além disso, que de acordo com a melhor e mais correcta interpretação da lei processual (histórica, sistemática e teleológica), admitir a audiência em sede de recurso no presente caso, seria permitir a prática de acto inútil.

De facto, como se tem analisado em diversos arestos, não está aqui em causa a preterição do direito ao recurso, enquanto direito constitucionalmente consagrado relativamente ao sujeito processual “arguido” (no art.º 32.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa). O direito ao recurso encontra-se suficientemente assegurado com o julgamento em conferência.

Constitucionalmente, o direito ao recurso basta-se e satisfaz-se com o conhecimento em conferência, não exigindo a Constituição uma audiência. A conferência assegura o exercício dos direitos de defesa, o contraditório, o direito de intervir no processo, de dar a conhecer as razões do recorrente e de contraditar os argumentos apresentados pelos outros sujeitos processuais.

Nem se verifica qualquer “violação das regras de competência ou de composição do tribunal”.

Dos arts 419º e 435º do Código de Processo Penal resulta que tanto na conferência como na audiência intervêm o presidente de secção, o relator e dois juízes adjuntos (nº 1 do art. 419º).

A constituição do tribunal é, assim, a mesma.

Escreveu-se, a propósito, no Ac. TC 352/98

“Não se pode, em consequência, dizer que o sistema não proporcione ao arguido recorrente uma oportunidade - e de peso - para discretar as razões-de-direito que, no seu entendimento, seriam adequadas para porventura levar a uma decisão diferente daquela que foi tirada na 1ª instância. De onde haver de aceitar-se que a contraditoriedade (ou, se se quiser, a contraposição dialéctica que ao arguido se deve reconhecer) não deixa de ser exercitada com suficiência pelo dito sistema.

Simplesmente, o que já não é exigível é que o posicionamento do arguido (ou mais concretamente, a exposição das sua razões) se faça ad libitum ou imoderadamente, visando impor-se um sistema que lhe permita, por variadas vezes, a reiteração dessas razões, assim como também não é exigível que, para a defesa do seu ponto de vista, se tenha de proporcionar-lhe oportunidade para, além do que foi escrito na motivação, explanar, oralmente e perante o tribunal superior, esse mesmo ponto”.

E no Ac. TC 163/2011

“Com efeito, “a Lei n.º 48/2007, de 29.8, não só suprimiu as alegações escritas, como abandonou a regra da audiência no tribunal de recurso em processo penal”, tendo o legislador considerado que a supressão da possibilidade de apresentação de alegações escritas se justificava, na medida em que aquelas acabaram por se revelar “«actos processuais supérfluos», pois «a experiência demonstrou constituírem pura repetição das motivações» (ver a motivação da proposta de lei 109/X)”. Além disso, “com o mesmo objectivo de celeridade processual e ponderando que a audiência já constituía um direito renunciável, o legislador consagrou a audiência no tribunal de recurso como uma excepção” (Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário ao Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2009, p. 1118).

Sendo assim, a fixação legislativa de uma condição de realização de tal audiência de julgamento – que passou a constituir a excepção na tramitação processual dos recursos penais

Em primeiro lugar, a condição processual para produção de alegações orais, perante o tribunal de recurso, tal como fixada pelo n.º 5 do artigo 411º do CPP não configura uma “eliminação”, uma “redução” ou sequer uma “oneração” excessiva que diminua o âmbito e a extensão do direito fundamental de recurso penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP). Mesmo que o recorrente se veja privado da possibilidade de produção de alegações orais, certo é que o núcleo essencial do direito a que determinada decisão penal condenatória seja apreciada por um outro tribunal, mantém-se plenamente intacto, visto que as suas motivações escritas serão alvo de conhecimento, pela conferência resultante da alínea c) do n.º 3 do artigo 419º do CPP.

Em segundo lugar, a extensão do direito ao recurso à produção de alegações orais nem sequer resulta da Lei Fundamental (artigo 32º, n.º 1, da CRP), pelo que há que destrinçar o “direito fundamental ao recurso penal” de um (pretenso) “direito à produção de alegações orais” que, na perspectiva do recorrente, estaria ínsito naquele direito fundamental.

Em consequência, é constitucionalmente admissível que o actual regime dos recursos penais conceba a audiência de julgamento para produção de alegações orais como uma efectiva excepção ao regime normal de tramitação. Aliás, mesmo no âmbito do regime jurídico anterior à Lei n.º 48/2007, a produção de alegações orais nem sequer constituía um direito indisponível do arguido, podendo este dele prescindir.

Em terceiro lugar, é jurisprudência firme e constante deste Tribunal (cfr., por exemplo, Acórdão n.º 215/2007, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), que:

“Especificamente quanto ao processo criminal, em que é convocável o parâmetro constitucional do princípio das garantias de defesa, incluindo expressamente o direito ao recurso, tem-se considerado ser lícito ao legislador, na sua regulamentação, impor determinados ónus aos diversos intervenientes processuais.”

Ou seja, o legislador goza de uma ampla margem de apreciação neste domínio.

Conforme resulta da jurisprudência consolidada neste Tribunal, do direito fundamental ao recurso penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP) não resulta um direito de ver a questão controvertida que é objecto de recurso ser apreciada, oralmente, em audiência de julgamento. Assim ditou o Acórdão n.º 352/98 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):

“Nada na Constituição impõe, desta sorte, que nos recursos em matéria criminal que versem somente sobre matéria de direito deva haver lugar a uma audiência subordinada aos princípios da imediação e da oralidade.”

É este entendimento que se sufraga e reitera, considerando-se que a eventual ausência de uma fase de audiência de julgamento de recurso, mediante produção de alegações orais, não conflitua com o direito fundamental ao recurso penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP)”.

E, por seu turno, densificando tais conceitos, escreveu-se de forma correcta e impressiva, mais recentemente, na Decisão de 1-9-2021, pr. 430/20.1 GBSSB.E1, rel. Gomes de Sousa, in www.dgsi.pt:

“1- Sendo as conclusões que conformam e delimitam o objecto do recurso e devendo ser, obrigatoriamente, apresentadas por escrito, autorizar a realização de audiência de julgamento no Tribunal da Relação apenas para as reproduzir é permitir a prática de um acto inútil.

2- Essa realização só se justifica se houver um intuito probatório claramente definido e aceitável face às normas recursivas e em função do caso concreto.

Com ou sem audiência o tribunal conhecerá – com base no escrito nas motivações – do recurso. Nem pode alterar tal objecto. Nem em audiência!

Nesta discussão, parece ser sempre esquecida uma norma, o artigo 412.º, nº 1 que assegura de forma clara que “A motivação (do recurso) enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

Assim como parece esquecida toda a jurisprudência constitucional e processual penal sobre o tema e a delimitação do recurso pelas motivações e conclusões. São estas – com as relações internas entre motivações e conclusões que se conhecem e aqui se não abordarão porque para tanto seria necessária uma tese – que delimitam, conformam, demarcam, circunscrevem as questões a conhecer pelo tribunal (e também, consoante a natureza das exigências em cada caso concreto, restringem, limitam ou reduzem o direito ao recurso).

Em lado algum o Código de Processo Penal determina que o recurso pode ser apresentado, conformado, delimitado por motivações ou conclusões orais.

Mais – de extrema relevância e que mais estaria de acordo com os sonhos processuais – em local algum o diploma sequer permite que as motivações e conclusões escritas possam ser alteradas, acrescentadas ou diminuídas oralmente em audiência…

E quando é que se justifica de forma teleologicamente fundada a realização de audiência para além do caso de renovação da prova? Quando houver necessidade de o arguido estar presente para prestar declarações ou simplesmente – com essas declarações – exercer o seu direito de defesa ou tiver sido – ou dever ser - produzida prova na Relação”.

*

Em conclusão, a verificar-se qualquer tipo de vício no processado do presente recurso, nunca a mesma situação seria reconduzível a mais do que uma mera irregularidade, sanada por ausência de tempestiva arguição.

Acresce que nem a Constituição Portuguesa nem o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos ou a CEDH exigem a realização de audiência em instância de recurso, em situações como a presente, na completa ausência de qualquer intuito probatório, não sendo a mesma admissível por tal redundar simplesmente na prática de acto inútil.

*

III- Decisão

Termos em que se indefere o requerido (arguição de inexistência do acórdão e pretensão de realização da audiência).

Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.

*

Évora, 10/10/2023